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Revista Educação em Questão

Print version ISSN 0102-7735On-line version ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.65 Natal July/Sept 2022  Epub Feb 24, 2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n65id28790 

Artigos

O jogo pedagógico e as interações multimodais no ensino

El juego pedagógico y las interacciones multimodales en la enseñanza

Ana Luisa Feiteiro Cavalari-Lotti1 
http://orcid.org/0000-0001-9457-6358

Flavia Medeiros Sarti2 
http://orcid.org/0000-0003-2926-5873

1Docente da Prefeitura de Praia Grande (São Paulo)

2Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho


Resumo

O presente artigo discute a interação entre professores e alunos/estudantes, que se delineia mediante o jogo pedagógico. Novas compreensões conferem centralidade à interação que, na sala de aula, passa a ser alvo das investigações educacionais. A proposta é explorada com base em um recorte de uma pesquisa de doutorado, que buscou identificar e caracterizar os elementos constitutivos desse jogo, a saber: os papéis, as regras, as máscaras e o cenário/ foco. Os dados da investigação foram reunidos por meio de entrevistas realizadas com duas professoras, que atuam na educação básica. No que tange à fundamentação teórica, o trabalho ancora-se em uma concepção multidisciplinar da interação, principalmente das áreas da Educação e da Linguística. Quanto ao jogo, o concebemos a partir de referenciais da Filosofia, da Sociologia e da História. Objetiva-se, dessa forma, compreender melhor a interação na ação e na formação docente e, particularmente, no ensino, atividade fim da docência.

Palavras-chave: Jogo pedagógico; Interação; Ensino; Trabalho docente

Resumen

Este artículo discute la interacción entre profesores y alumnos que se delinea a través del juego pedagógico. Los nuevos entendimientos dan centralidad a la interacción que, en el aula, se convierte en el objetivo de la investigación educativa. La propuesta se explora a partir del recorte de una investigación doctoral, que buscó identificar y caracterizar los elementos constitutivos de este juego, a saber: los roles, las reglas, las máscaras y el escenario/foco. Los datos de la investigación fueron recolectados a través de entrevistas con dos maestras, que actúan en la educación básica. En cuanto a la fundamentación teórica, el trabajo se ancla en una concepción multidisciplinar de la interacción, principalmente desde las áreas de Educación y Lingüística. En cuanto al juego, lo concebimos a partir de referencias de Filosofía, Sociología e Historia. De esta forma, el objetivo es comprender mejor la interacción en la acción y la formación de los profesores y, particularmente, en la enseñanza, actividad fin de la docencia.

Palabras clave: Juego pedagógico; Interacción; Enseñanza; Trabajo docente

Abstract

This article discusses the interaction between teachers and students, which is outlined through the pedagogical game. New understandings give centrality to the interaction that, in the classroom, becomes the target of educational research. The proposal is explored based on a sample of doctoral research, which sought to identify and characterize the constitutive elements of this game, namely: the roles, the rules, the masks and the scenario/focus. The investigation data were obtained through interviews with two teachers, who work in basic education. Concerning the theoretical basis, the work is anchored in a multidisciplinary conception of interaction, mainly from the Education and Linguistics areas. As for the game, we conceived it based on references of Philosophy, Sociology and History. The aim is to better understand the interaction in the teacher’s action and training, and, particularly, in teaching, the ultimate activity of teachers.

Keywords: Pedagogical game; Interaction; Teaching; Teaching work

Introdução

No português brasileiro, mas não apenas nele, o termo “jogo” é amplamente utilizado para descrever diversas relações sociais. Usos como “jogo político”, “jogo de poder”, “jogo da sedução”, “jogo de palavras”, além de expressões como “conhecer as regras do jogo” e “jogo de cintura”, são muito comuns e carregam o sentido de dinâmicas regradas do convívio social. Em outras acepções, temos os jogos esportivos, de entretenimento e os jogos do universo infantil, estes relacionados ao brincar e ao desenvolvimento. Quanto à etimologia, a origem do substantivo jogo é latina. Dentre outras possibilidades, uma de suas acepções é Ludus (jogo, brincadeira), que também é outra palavra para escola (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014). Além da origem, os termos jogo e escola possuem outras similaridades.

Exploramos tal questão, ao indicar que na escola, entre professores e alunos, configura-se um tipo específico de jogo, ou seja: uma dinâmica regrada semelhante a outras tantas que existem socialmente. Trata-se do jogo pedagógico (CAVALARI-LOTTI, 2020) Partindo do pressuposto de que a ideia de jogo se relaciona às interações multimodais, buscarmos, portanto, neste artigo, recorte de uma pesquisa de doutorado, responder às seguintes questões: que elementos aproximam o ensino do jogo? Como as interações multimodais atuam na construção da prática e no papel docente? Na busca por respostas a esses questionamentos, procedemos à investigação que origina a discussão e as análises que aqui apresentamos.

A metáfora jogo

A relação entre as diferentes perspectivas de jogos e a área da educação não é inédita. Diversos são os trabalhos, no campo da educação, que revelam a importância da utilização das brincadeiras e dos jogos como recursos para o ensino, por exemplo, Kishimoto (2011). Este artigo, no entanto, segue uma perspectiva diferente, sustentando que a interação entre alunos e professores, na sala de aula, constitui-se, metaforicamente, em um jogo.

A metáfora é um recurso linguístico que estabelece uma relação de comparação entre dois elementos. No campo da Linguística, contudo, já há bastante tempo, é discutida uma compreensão acerca da metáfora que transcende seu uso como recurso linguístico, para compreendê-la como uma forma de estruturar o pensamento, ou seja: as metáforas são um fenômeno cognitivo-social (LAKOFF; JOHNSON, 1980).

Essa perspectiva afina-se à definição proposta por Scheffler (1974, p. 65), segundo a qual “[...] as metáforas educacionais de uso corrente auxiliam na reflexão e na organização do pensamento e das práticas sociais, relativas à educação escolar, mas não estão presas a processos de confirmação de predição experimentais”. Nesse contexto, os diversos usos do termo jogo não remeteriam a diferentes compreensões ou expressões de jogos, mas a um significado único: interações sociais de disputa regidas por regras.

Consequentemente, constituir-se em um jogo não é característica peculiar desse tipo de interação, que ocorre entre alunos e professores, mas este é um jogo com peculiaridades. Gauther e Martineau (1999) destacam que o trabalho docente é, como toda relação social, semelhante a um jogo. Dessa maneira, este é um jogo desenvolvido na sala de aula, em um contexto específico, mas de alguma forma geral, que segue a própria gramática. Logo, afirmamos:

[...] a interação, que se estabelece entre alunos/estudante e professores, na sala de aula, processa-se por meio do jogo pedagógico. Este é um jogo típico do ambiente escolar (do cenário da sala de aula), constitutivo da atividade de ensinar, que é jogado por atores específicos – alunos/estudantes e professores. Ele é regido por regras próprias e, para jogá-lo, os professores incorporam máscaras e papéis. Pontua-se, assim, que as aprendizagens relativas ao jogo são fundamentais para a formação docente (CAVALARI-LOTTI, 2020, p. 161).

Para além da visão metafórica de jogo, diferentes autores reconhecem que os jogos são constitutivos do homem e de suas relações sociais permeadas pela linguagem. Na filosofia, Wittgenstein (1989, p. 19) destaca que os jogos são “[...] uma forma de vida”. No campo da História, Huizinga (1999, p. 10) defende que o jogo é constitutivo da condição humana, além de ser uma “[...] esfera temporária de atividade com orientação própria”. Na área da Sociologia, Bourdieu (2005, p. 144), ao abordar os jogos sociais, estabelece a compreensão da illusio “[...] essa relação encantada com um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social". O emprego ora proposto da noção de jogo busca articular as perspectivas multidisciplinares assumidas por esses três autores de referência.

Nessa direção, o jogo pressupõe duas ideias, que também incluem aspectos metafóricos, quais sejam: a disputa e as regras. No que se refere ao jogo pedagógico, a ideia de disputa assume um significado bastante peculiar: o professor não entra em disputa com os alunos, no sentido de jogar contra eles. O emprego aqui proposto remete ao sentido de “lutar por”. Dessa forma, o professor entra em uma disputa pela aprendizagem dos alunos, jogando assim, não contra os alunos, mas por eles (em função de). Pressupõe-se, contudo, que em todo jogo, compreendido como uma disputa, haverá vencedores. No jogo pedagógico não é diferente, haverá de fato vencedores, mas desde que todos os jogadores envolvidos na relação vençam: o aluno, ao aprender e o professor, pelo êxito alcançado ao ensinar (“lutar pela” aprendizagem). Assim, revela-se aspectos importantes das especificidades desse jogo. Dessa maneira, o jogo pedagógico assume uma dimensão colaborativa essencial, segundo a qual, a disputa é pela vitória de todos os jogadores.

Essa especificidade do jogo pedagógico é crucial para compreendê-lo, pois nele há uma relação de codependência, isto é: quando o ensino não alcança êxito, todos perdem. Esta é a face reversa do jogo (perde-perde – ainda que seja um jogo orientado pelo ganha-ganha).

Tão crucial para a compreensão da metáfora jogo, quanto a noção de disputa, é a de regras, pois não há jogo sem elas. Podem ser compreendidas como um modelo esquemático para interpretar e reconhecer os jogadores. Definem, para os que aceitam agir em sua conformidade, as situações de jogo (GARFINKEL, 1963). Mais especificamente acerca das regras no trabalho docente, Altet (2001) afirma que cabe ao professor: “jogar com as regras e manter uma relação com os conhecimentos teóricos que não seja reverente e dependente, mas, ao contrário, crítico, pragmático e até mesmo oportunista” (PERRENOUD, 1993). Por consequência, o processo de formação do professor é composto por “aprender a jogar” com as regras específicas de sua função, logo, parte fundamental da formação do professor ocorre por meio de um jogo pedagógico com os alunos, no espaço da sala de aula tendo o habitus professoral (SILVA, 2005) como suporte, considerando que o habitus é o princípio gerador das práticas e a ação pedagógica é mobilizada por ele (PERRENOUD, 2001b).

Trata-se, sob a perspectiva bourdieusiana, de que o professor tenha as regras do jogo pedagógico (regras explícitas e implícitas, exaustivas e inexaustivas), no sentido de Scheffler (1974) em “estado prático” (BOURDIEU, 2005), incorporadas como disposições da razão prática que lhe permita jogar como professor. O exercício da docência requer, assim, que o professor tenha incorporado o jogo pedagógico, como habitus (BOURDIEU, 2005).

Pressupõe-se, por essa via, que o habitus professoral (SILVA, 2005) ofereça ao professor o “sentido do jogo”, sua illusio. Esta lhe permite apreender e colocar em ação as regras explícitas e implícitas, exaustivas e inexaustivas (SCHEFFLER, 1974) do jogo em uma situação de urgência, elementos que são requisitos para o trabalho docente. Isto porque, como ensina Bourdieu (2003, p. 139-140): “[...] a Illusio é estar preso ao jogo, preso pelo jogo, acreditar que o jogo vale a pena ou, para dizê-lo de maneira mais simples, que vale a pena jogar”.

Essas regras constitutivas do jogo pedagógico devem ser consideradas em relação ao espaço no qual tendem a ser mobilizadas: a aula. O

jogo pedagógico se desenvolve no espaço da aula, que é compreendida como um gênero discursivo (CAVALARI-LOTTI, 2020), cuja estabilidade relaciona-se ao fato de obedecer a determinadas “regras” estruturais e discursivas. Mangueneau (2004) vale-se de três metáforas para descrever qualquer gênero: contrato, jogo e papel. Não obstante, Mangueneau (2004) tenha usado três metáforas, podemos englobá-las em apenas uma, o jogo. Isto é: o contrato são as regras e sua condição para haver jogo (no caso, o jogo pedagógico) e os papéis correspondem às diferentes maneiras com as quais os professores se colocam para o jogo.

Além disso, sob a perspectiva da estrutura do enunciado e da enunciação (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 1992), compreendemos a relativa estabilidade desse gênero, considerando a situação comunicativa, a ação imediata e o meio social. Posto que há elementos característicos sem os quais não podemos defini-lo: os papéis professor-aluno, os conteúdos, a instituição e o espaço da aula (cenário), a relação pedagógica e o jogo pedagógico, há, por consequência, estabilidade. Por outro lado, a instabilidade decorre do fato de cada professor atuar de diferentes maneiras, a depender de fatores como: desempenho de papéis, tipo da instituição que atua (dos cenários), nível de ensino e disciplina que ministra, entre outros aspectos.

Sob esse prisma, destacamos que as aulas seguem um esquema individual, de cada professor, mas que se repete, quase como um ritual, em suas práticas. Dessa forma, os gêneros discursivos e sua relativa estabilidade parecem garantir a presença do jogo; sem o contrato, o jogo e os papéis, o jogo pedagógico não ocorre. Assim, “[...] é possível, então, afirmar que a aula é um gênero discursivo e que nela ocorre o jogo, mas, dentro desse espaço de jogo, cada professor, com suas respectivas turmas, constrói variantes de jogos pedagógicos” (CAVALARI-LOTTI, 2020, p.158).

Pontuamos, ainda, a perspectiva ritualística da aula, que a insere (entre outros aspectos) na concepção de gênero discursivo, também a aproxima do universo da teatralidade que, por sua vez, está presente na metáfora jogo. Dessa maneira, essa metáfora, oferece-nos elementos de teatralidade para a compreensão da interação na sala de aula. Esses elementos são discursivos e estruturais. Os elementos discursivos ligados à teatralidade são recorrentes no campo educacional: papéis (o papel de professor e o papel do aluno); protagonismo do professor e protagonismo do aluno; ritmo de aula, (como ritmo de cena); foco (foco no professor e foco no aluno) e a ideia de improviso. Já os elementos estruturais desse universo podem ser considerados como: a configuração do espaço da sala de aula como um cenário (CELA; PALOU, 1997): a disposição das carteiras e a postura do professor; a presença de alunos e professores (todos em atuação, assumindo seus papéis); o foco e o protagonismo do professor; o sinal de entrada para a aula como o sinal do início da aula/ espetáculo e o uso das máscaras, são a esses elementos que pretendemos nos ater.

Sob esse viés, do ponto de vista estrutural, interessa-nos quatro aspectos: o cenário, o foco, as máscaras e os papéis. Como já afirmamos, com Cela e Palau (1997), a sala de aula é configurada como um cenário, um espaço de jogo, que o influencia, do mesmo modo, que um cenário a uma cena – ajudam a elaborar a cena e o jogo. Elementos externos e internos são influenciadores das dinâmicas de jogo que ocorrem durante a aula.

Salientamos, se considerarmos um tipo específico de palco, o italiano, é possível encontrar semelhanças físicas entre configuração de uma sala de aula e a de um teatro. Ou seja: a disposição dos assentos na plateia, colocados à frente do palco, como as carteiras dos alunos à frente do professor, em uma aula expositiva, faz com que o professor pareça ser o protagonista (em um monólogo) e seus alunos aparentam ser a plateia. Todavia, visto que alunos e professores desempenham seus próprios papéis em uma única cena, esta não é uma peça teatral, mas sim um jogo teatral. Boal (2007) afirma que nos jogos, não há atores e seu público, são todos “spect-atores” (atores e espectadores ao mesmo tempo). Por conseguinte, alunos não constituem uma plateia e os professores não são os atores-protagonistas, cada um ocupa seu papel ao construírem a cena/jogo (ou a aula) com e por meio da interação.

Assim sendo, mesmo que aparentemente os alunos estejam, em certas aulas, em uma posição “passiva”, eles estão em cena e sempre desempenham um papel sem o qual a aula (ou a cena) não acontece. Afinal, sem aluno, não há aula. A passividade (ou não) do aluno na aula não está, portanto, relacionada ao seu papel, posto que este será sempre desempenhado, mas ao foco, que no teatro e na aula é um elemento basilar. Considera-se, pontuamos, que mesmo que o ator não esteja no foco, ele ainda está em cena. Então, sob a perspectiva do foco, é possível promover a alternância de relevância de papéis (protagonista e coadjuvante) e tornar o aluno protagonista, já que é ele quem está no foco, sem nunca ter deixado de exercer seu papel de aluno.

Diante disso, os elementos de teatralidade, cenários e foco, são fundamentais para a elaboração de estratégias de jogo, que geram diferentes versões do jogo pedagógico. Isto quer dizer, dependendo de fatores como: a instituição na qual o professor atua, a relação com os alunos/estudantes, a questão do conflito que advém de ambientes degradados e/ou violentos (pertencentes a categoria cenário/foco); diferentes versões de jogo poderão ser praticadas pelos docentes.

Quanto às máscaras, as compreendemos como representação, ou seja: aceitar a iIllusio do jogo corresponde a aceitar sua representação (ou a teatralização). Definidas como: “[...] matrizes de práticas construtoras do próprio mundo social” (CHARTIER, 1991, p. 183) estão presentes também nos jogos. Torna-se necessário, portanto, compreender de que maneira.

Com esse propósito, recorremos à teoria das faces (GOFFMAN, 1980) que a define como uma representação presente em qualquer interação, inclusive, na sala de aula. Assim, podemos considerar que as máscaras usadas pelos professores se relacionam às faces (GOFFMAN, 1980) e são vestidas como o habitus (BOURDIEU, 2003), no sentido de que são necessárias à representação e incorporadas (feitas do corpo). Todavia, não apenas isso, elas são um conjunto formado por esses elementos e mais, o conhecimento do jogo, da teatralidade, do contexto, dos alunos, das regras, do improviso, da experiência e da ação docente; além desses, a definição de qual máscara (ou quais) o professor vai usar que é decorrente da interação.

Ademais, destacamos que máscara pode ser todo e qualquer elemento capaz de produzir representação, algo capaz de produzir significado dentro daquele contexto e, ao mesmo tempo, construir a identidade professor que se difere, de algum modo, da identidade daquele ser fora da sala de aula. Por conseguinte, a “escolha” (ligada ao senso do jogo, no sentido bourdieusiano) que o professor faz acerca das máscaras é um elemento constitutivo do jogo pedagógico.

Por fim, salientamos que o jogo pedagógico permite ao professor a incorporação de um papel específico, mas também, há, inseridos no papel docente, diversos outros papéis que são construídos pelos elementos que tornam os professores sujeitos sócio históricos, ao mesmo tempo, que os insere em ambientes relacionais específicos - turmas e cenários - a confluência desses diversos elementos é responsável pela elaboração do papel docente e dos outros papéis decorrentes dele.

A interação multimodal na sala de aula

Na atualidade, tanto o campo das ciências da linguagem, como o da educação têm convergido seus estudos para atribuir centralidade às investigações que versam sobre a temática da interação. No bojo dessas concepções, somam-se discussões sobre a profissionalização e os saberes docentes (TARDIF, 2002), bem como sobre a interação e o dialogismo de Bakhtin (1993).

Nas décadas de 1980 e 1990, emerge um movimento internacional de profissionalização da docência, que se propõe analisar e compreender o trabalho docente a fim de, inicialmente, contradizer a visão corrente de que ensinar constitui-se tarefa simples, realizada pela mera transmissão de conhecimentos elaborados em seu exterior.

Nessa direção, Perrenoud (1993) defende que a docência deve ser compreendida como sendo atividade racional e complexa, em que a pessoa inteira é mobilizada (corpo e mente). Com efeito, é preciso esclarecer que o docente é um ser todo, indissociando-se, corpo/mente. Este artigo, portanto, situa-se na perspectiva que entende a interação de maneira multimodal. Isto é: o gesto e a fala só têm sentido como uma sequência, em um contexto específico, não possuem significado em si, mas é na dinâmica que a significação emerge. Logo, a interação multimodal ocorre de maneira indissociável entre fala e gestos, entre corpo e mente.

Na perspectiva da multimodalidade e do corpo, destacamos os estudos de Silva (2005), dos quais advém nossa compreensão da hexis corporal do professor e dos alunos. Consoante a pesquisadora “um gesto harmonicamente repetido”. Além disso, o habitus é corporeado para Bourdieu e isto pode ser observado pelos discursos e por meio da hexis corporal. Entretanto, a corporeidade ou corpo apresentam, tanto para a Filosofia, como para a Etnometodologia, um sentido mais amplo que a hexis para Bourdieu, ou seja, a ação do corpo do professor pode ser justificada pelo habitus e observada na hexis corporal, no entanto, parece que há práticas dos professores, observadas por intermédio da ação de seus corpos, que são orientadas por outras instâncias. Inferimos, então, que além do habitus o que orientam essas ações são as interações que ocorrem na sala de aula, isto é: o jogo pedagógico.

O jogo pedagógico e as estratégias docentes

As considerações teórico-conceituais, apresentadas neste artigo, orientaram uma pesquisa de doutorado, defendida em 2020, que buscou investigar a interação entre alunos e professores na sala de aula. Os contextos específicos de jogo pedagógico, que selecionamos como referenciais empíricos para o encaminhamento dos estudos, foram o Ensino Fundamental II e o Ensino Médio. Isso se fez por meio da observação de aulas e de entrevistas com duas professoras da escola básica: Larissa (nome fictício), então lecionando Física, no primeiro ano do Ensino Médio e Cecília, nome também fictício, com aulas de Geografia, no sexto ano do Ensino Fundamental. Os relatos foram produzidos durante as aulas das duas professoras, pela pesquisadora, durante oito meses. Foram, ainda, realizadas duas entrevistas com cada uma das professoras. Essas entrevistas – ateremo-nos a elas – e os relatos, forneceram-nos as pistas necessárias para a investigação do jogo pedagógico na sala de aula, este que discutimos a seguir.

O percurso de análise tem início com a apresentação daqueles que as professoras – sujeitos de pesquisa – entendem que sejam seus papéis. Encaminhamos a discussão sobre as regras, para posteriormente apresentar os elementos de teatralidade: as máscaras, o cenário e o foco. Por fim, analisamos as diferentes versões de jogo. Agora, destacamos os aspectos relativos ao papel docente no jogo pedagógico.

Excerto 1 – Larissa – Entrevista 2

Eu mantenho uma diferenciação entre aluno e professor. Eu não levo para o lado afetivo. Esses alunos não são meus amigos. [...] Eu tento me colocar no papel como professora. [...] Independente desse relacionamento que é professor e aluno, eles podem contar também com algo mais próximo. Talvez, não amigo, mas essa relação de ‘eu tenho alguém também para contar’ com outras expectativas (LARISSA, 2018).

Larissa apresenta como compreende o papel de professora e como percebe que deve ser a relação com os alunos, para ela é importante que os estudantes reconheçam e entrem nesse jogo estabelecido. Com essas constatações, Larissa evidencia, primeiro, a questão dos papéis e de como ela os vê, não apenas ela se coloca nesse papel, como posteriormente define quais seriam suas atribuições. Logo, afirmamos: Larissa mostra-se uma professora preocupada em delimitar para si o que entende como papel docente.

O excerto da entrevista indica que há uma expectativa de ser mais próxima dos alunos, sem, no entanto, alterar seu papel. Neste ponto, o jogo fica complicado, complexo, com regras inexaustivas (SCHEFFLER, 1974). Há, também, uma certa tensão em sua fala, ela delimita o papel docente, mas parece ter alguma dificuldade para conciliar docência e “proximidade”. Assim, as regras não parecem ser claras para ela. Trata-se de uma zona mais nebulosa, desconhecida, algo próximo do que Schön (2000) denomina “zona indeterminada da prática”. O nível de “proximidade” (ou intimidade) com os alunos parece configurar, para ela, uma “zona indeterminada”, que é marcada, ainda, por regras não exaustivas (SCHEFFLER, 1974). Podemos inferir, dessa forma, dificuldades próprias do jogo pedagógico, como um jogo no qual há zonas mais indeterminadas, como ensina Schön (2000). Pontuamos, ainda, que ao transitar por esse espaço de regras inexaustivas, Larissa faz apostas, decide na incerteza (PERRENOUD, 2001a). Afirmamos, por fim: o jogo pedagógico tem elementos de jogo de apostas, as jogadas nem sempre são claras, nem seus resultados.

Passamos, agora, a analisar certas estratégias de jogo de Cecília.

Excerto 2 – Cecília – Entrevista 2

Aí eu tenho que voltar para a ideia inicial, que é o seu trabalho de formiga, que o professor planta uma semente. Mas está difícil de germinar. [...] Talvez, na escola pública, eles tenham mais necessidade, entre aspas, de ter essa visão crítica sobre as coisas, porque eu sinto que eles aceitam tudo. [...] Mudar essa ideia ou plantar uma semente sobre esse olhar mais crítico sobre as coisas, para mim, eu acho que o meu trabalho está feito (CECÍLIA, 2019).

Deste trecho da entrevista de Cecília, queremos salientar a ideia de “plantar sementes” e esperar que “germinem”. A “germinação” faz parte do caráter incerto da docência - agir na incerteza, como afirma Perrenoud (2001a), mas a professora anuncia uma incerteza ainda mais flagrante: está difícil até “plantar agora”. Se “plantar as sementes” é uma ação integrante do jogo pedagógico, ao afirmar sua dificuldade no momento de “plantar”, Cecília parece sugerir que vem sentindo dificuldade de entrar no jogo. Tal dificuldade evidencia-se pela compreensão subjetiva de seu papel, já que “plantar sementes” ou formar indivíduos críticos está aquém do que ela poderá constatar como objetivo alcançado (afinal, ela diz deixar em segundo plano a preocupação em “dar conta” do conteúdo). Quando Cecília delimita seu papel docente em outra esfera que não a do ensino de conteúdos mais convencionais ligados à Geografia, parece, tal como ocorre com Larissa, atuar em uma “zona indeterminada da prática” docente (SCHÖN, 2000), agindo sob a égide de regras não exaustivas (SCHEFFLER, 1974). Assim, a ideia de que está difícil “germinar” até “plantar”, parece configurar, para ela, a percepção de que o jogo pedagógico está difícil de ser estabelecido.

Ainda assim, no entanto, as duas professoras permanecem em seus papéis delineados na interação com seus alunos e estabelecem estratégias de jogo, decisões e ações que, entendidas na perspectiva bourdieusiano (2003), são orientadas pelo sentido do jogo, em nível pré-reflexivo. Com base nessas estratégias, são elaboradas diferentes jogadas e, juntas, podem produzir versões distintas do jogo pedagógico, este que também sofrerá influência das regras, das máscaras e do cenário/foco. Passamos, subsequente, a analisar esses elementos do jogo.

De início, é preciso afirmar, apesar das regras serem condição para a realização dos jogos (sem elas não há jogo), existem diferentes tipos de regras que subjazem o jogo pedagógico. Nesse sentido, o jogo pedagógico é regido por regras que lhe são mais específicas e por outras que, exteriores a ele, impactam-no. São regras relativas à interação entre professor-alunos; professor-campo e professor-professores. Explica-se: as regras professor-alunos são aquelas acordadas entre os professores e seus alunos, do contrato pedagógico (AQUINO, 2005), além dos acordos de trabalho (SOUZA, 1999); as professor-campo são as externas ao jogo pedagógico, mas que estão presentes no campo da educação e as regras professor-professores são aquelas que o professor determina (provenientes de sua moral, da sua formação e da maneira como ele enxerga e executa a sua prática).

Doravante, examinamos três excertos referentes às entrevistas com Cecília.

Excerto 3 - Cecília – Entrevista 2

Eu sempre fiz o contrato conversando com eles a respeito das regras. A escola tem certas regras. Eu nunca falei ‘A escola tem uma regra que diz que vocês não podem chupar chicletes [...] Eu falava ‘Quais foram as regras que vocês votaram?’ [...] Mas esse contrato, no entanto, só tem eficácia se eu tenho um respaldo da direção (CECÍLIA, 2019).

[...]

Excerto 4 – Cecília – Entrevista 2

Eu tento sempre conversar com eles. Eu sempre falo para eles que o diálogo é a melhor coisa. De repente, se eu percebo que tem algum aluno brigando com outro ou discutindo com outro, fazendo bullying, eu tento chamar e tento fazer com que eles conversem entre si. Essa de uma forma mais específica. Mas o conflito geral, uma baderna na sala de aula, eu tento com o contrato pedagógico que eu faço no começo do ano. (CECÍLIA, 2019).

[...]

Excerto 5 – Cecília – Entrevista 2

E eu fico como? Eu, professora? [...] Eu tinha um professor da faculdade que falava ‘É o sistema’. Eu demorei de entender o que era o sistema. Hoje, na prática, eu vejo que o sistema foi muito bem-feito. Ele conseguiu realmente acabar com o pouco de estrutura, de crítica que existia (CECÍLIA, 2019).

Desses excertos das entrevistas (3 e 4), podemos evidenciar duas estratégias de jogo relacionadas às regras: o uso do diálogo para resolução dos problemas e o contrato pedagógico (AQUINO, 2005), bem como o estabelecimento de acordos de trabalho (SOUZA, 1999). Essas estratégias parecem ser do jogo, mas também, para iniciar o jogo, ou seja: para o jogo. Ressaltamos, ainda, o aparecimento de dois tipos de regras essenciais para o jogo pedagógico: a professor-alunos, quando ela se refere ao contrato pedagógico (AQUINO, 2005) e acordos de trabalho (SOUZA, 1999) e a professor-campo, quando Cecília se refere ao respaldo da direção. À vista disso, o jogo pedagógico prevê, entre outros aspectos, o estabelecimento de um contrato, que pode ser explícito, como o de Cecília ou tácito, o que parece acontecer na maior parte dos casos e ocorre com Larissa.

Para mais, jogar significa aceitar uma determinada visão social (LYOTARD, 2010). Parece-nos que parte do conflito em que Cecília se insere, para além daquele do jogo com os alunos, reside no fato de ela ter aceitado as regras do jogo, o que elas representam e essa visão social por ser professora (essas regras seriam as professor-professor), mas isto significa ter seu trabalho construído sob a égide do “sistema” (excerto 5), contudo ela discorda das regras impostas por esse “sistema”, ela discorda do que essas regras representam e da visão de mundo que elas impõem (regras professor-campo). Por isso, o conflito instaura-se a ponto de ela questionar-se até mesmo sobre a continuidade do seu trabalho e seu papel como professora “aquela que planta sementes” (excerto 2), mas que não germinam.

No que tange ao uso das máscaras precisamos, de imediato, reafirmar seu caráter fundamental para a elaboração do papel de professor, ao mesmo tempo em que ela é constitutiva do jogo. Sem a máscara, não há jogo, ao tirar a máscara, o jogador rompe o jogo, mesmo que momentaneamente. Não é única, é diversa e está ligada ao cenário, visto que, a exemplo do que discutiremos em relação aos papéis, poderá ser revista, reformulada, vestida e retirada a depender dos elementos do jogo e dos cenários nos quais as professoras as usam. Dessa maneira, diferentes cenários poderão requerer o uso de diferentes máscaras.

Excerto 6 – Larissa – Entrevista 2

‘Começa a se vestir com uma roupa mais social’, mas aqui no Ensino Médio eu não consigo. Eu acho que ficaria muito mais longe deles se eu começar a vir muito formal. Na faculdade, por exemplo, no mínimo eu coloco uma sandália que tenha um certo salto. [...] Para ter um pouquinho ‘A professora’. Aqui no colégio eu uso algo mais calça, camiseta, coisas mais simples. Tênis na maioria dos casos (LARISSA, 2018).

[...]

Excerto 7 – Cecília – Entrevista 2

A primeira é por conta de que eu não gosto. [...] Aquela sensação de eu sair da escola com uma roupa suja de giz. [...] Tem a questão também que eu acho que eu tenho cara de professora, e eu gosto de usar. [...] De repente, é uma tentativa de fazer com que eles me reconheçam. Uma identidade. [...] E essa vergonha de mostrar o que eu tenho, o meu corpo, é como se eu me blindasse. Eu sinto uma proteção. [...] E essa professora de português usava o jaleco (CECÍLIA, 2019).

A máscara pode ser compreendida como qualquer elemento que, ao ser “vestido”, ajuda o ator a incorporar seu papel. Para Cecília, a máscara é o jaleco, para Larissa é um estilo de se vestir. Embora de maneiras distintas, ou seja, com máscaras distintas, as duas parecem sentir que vestir esses elementos é, também, vestir seus papéis.

Larissa diferencia sua atuação profissional, nas instituições em que atua, pela forma como se veste. Na universidade, usa roupas mais formais que a ajudam a construir sua identidade “a professora”. Entretanto, no Ensino Médio, ela usa calça, camiseta e tênis. Portanto, podemos evidenciar a diferenciação dos papéis que Larissa desempenha nas instituições em que trabalha, pelo uso de suas máscaras. Nessa perspectiva, a escolha da máscara parece ser estratégica, mas o fato de assumi-la é um elemento constitutivo do jogo do jogo pedagógico.

Enquanto Larissa utiliza sua máscara para aproximar-se dos alunos, Cecília para se afastar deles, no sentido de diferenciar-se. Dessa forma, embora as duas professoras escolham as máscaras como estratégia de jogo e elaboração dos papéis, elas usam máscaras diferentes, com intenções distintas. Para Cecília, a máscara é, também, um recurso para trazer um elemento que ela considera essencial para o jogo - o respeito - que viria pela identificação de elementos que a distanciam dos alunos, que a caracterizam no papel docente.

Cecília apresenta quatro motivos para o uso do jaleco: 1) proteger a sua roupa: fundamental notar que ao proteger a sua roupa ela protege também sua identidade, a Cecília, aquela que sai da escola e vai buscar seus filhos, sem, necessariamente, ser identificada como professora. 2) Identificar-se como professora (no papel professora), construir uma identidade: da mesma maneira que ela usa o jaleco para proteger a identidade Cecília, usa-o para construir a identidade professora. Assim, evidencia-se a incorporação do papel, ao vestir a máscara jaleco, Cecília veste o papel de professora. O jaleco, para ela, faz parte do jogo pedagógico, que é jogado exclusivamente na escola, ele é situado. O jaleco só faz sentido no âmbito do jogo. 3) Proteger o seu corpo: novamente há aqui uma tentativa de Cecília de proteger e de diferenciar suas identidades. A mulher e a professora. 4) A professora de português, referência para ela (Cecília a cita em outros momentos das entrevistas como tendo sido importante em sua formação) também usava jaleco.

A escolha de qual máscara usar é definida, pelo professor, com base nos elementos já discutidos e, ainda, de acordo com os cenários nos quais ele atua. Os cenários são entendidos por nós, como os espaços em que os jogos pedagógicos ocorrem. Esses espaços são compostos pela sala de aula e os elementos físicos que a integram, isto é: a configuração do espaço físico. Contudo, consideramos também cenário, as instituições (no sentido de conjunto de valores morais e sociais) e as marcas que deixam em seus alunos por meio de suas regras. O cenário é composto ainda pelas idades correspondentes ao nível de ensino de determinada classe e pôr como esses estudantes se relacionam entre si e com a instituição.

Os cenários em que as professoras atuam não poderiam ser mais distintos. Larissa atua em um ambiente limpo e organizado, enquanto Cecília enfrenta desorganização e problemas com depreciação de materiais e de mobiliário. Essas considerações podem explicar, por exemplo, a depredação que os alunos de Cecília fazem e que os de Larissa não, ao mesmo tempo em que há o conflito que Cecília busca superar para jogar o jogo, o que não ocorre com Larissa. Esses elementos podem remeter, mais uma vez, à questão de que os de Cecília são alunos (estabelecendo uma relação de heteronomia diante das tarefas escolares) e os de Larissa, estudantes (mais autônomos). Porém, essa explicação não parece ser suficiente.

Poder-se-ia argumentar, essas questões ocorrem, pois, os alunos de Larissa são mais velhos (estudantes) e passam por um processo seletivo rigoroso para ingresso naquela escola, já que é uma ETEC. Contrapomos afirmando, ainda que isso seja verdadeiro, o ambiente, ou seja: o cenário contribui para a construção dessas relações. Embasamos essa afirmação com o que se convencionou denominar “teoria da janela quebrada”, da escola de Chicago (KELLING; COLLIS, 1996), grosso modo, essa teoria sugere que a desordem dos ambientes gera mais desordem no comportamento dos indivíduos que frequentam esses ambientes. Embora essa teoria esteja associada às questões de segurança pública, ela parece um caminho para compreendermos essa relação entre o cenário e jogo. Nessa perspectiva, o cenário seria, então, mais um dos fatores que poderiam contribuir para gerar o conflito que Cecília busca superar para realizar o jogo pedagógico com seus alunos, fato que não ocorre com Larissa.

Por fim, exploramos o foco. Quanto a ele, destacamos, que não o tratamos como uma categoria integrante do jogo, mas como uma subcategoria do cenário, já que o foco é dependente tanto dos elementos físicos do cenário, como a arrumação das carteiras (em círculos ou em fileiras, por exemplo), como também de outros elementos mais subjetivos relacionados à maneira como o professor compreende seu papel, além do fato de quem são, alunos ou estudantes, os integrantes da sala. É necessário considerar, ainda que mude o foco, o papel é mantido.

Explicamos, a partir da análise de uma das aulas de Cecília. Nessa aula, Cecília organiza uma roda na qual os alunos devem apresentar a pesquisa que fizeram sobre o petróleo. Como essa é uma apresentação dos alunos, o foco fica muito mais tempo neles que em Cecília. Crucial perceber que ela continua no papel de professora, que cede o foco ao aluno e depois o retoma para si. O que desloca é o foco, não o papel.

Esse deslocamento ocorre, também, quando o aluno faz uma pergunta ou qualquer tipo de participação durante a aula. Esse processo (de deslocamento do foco ou ainda quando o foco é posto em jogo), parece trazer ao aluno uma sensação de pertencimento ao jogo, de elemento integrante da ação e, assim, ele tende a engajar-se mais na elaboração do jogo.

Concluída a análise dos elementos constitutivos do jogo pedagógico, empreendemos uma discussão acerca das versões de jogo. Para tanto, iniciamos a exploração de um excerto da entrevista com Larissa.

Excerto 8 – Larissa – Entrevista 2

É um ambiente gostoso. Os alunos dão uma resposta, um carinho [...]. O contato que a gente acaba tendo dentro do ensino médio e a identidade que o aluno tem com a escola, aqui, é muito maior Acho que isso acaba envolvendo (LARISSA, 2018).

Larissa afirma que essa atmosfera criada com base na relação de identidade que o aluno tem com a escola acaba envolvendo-a. A escolha lexical do termo “envolver” parece remeter ao jogo. Esse termo é bastante polissêmico, diante das diversas possibilidades, interessa-nos as acepções: tomar conta de intrometer-se, ligar-se, atrair, cativar – todas essas pressupõem elementos distintos postos em relação. Essa percepção aproxima-se bastante da noção de illusio (BOURDIEU, 2003, p. 139-140), especialmente, quando o autor afirma: “[...] essa relação encantada com um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objetivas do espaço social".

Há, ainda, outra questão: os alunos de Larissa estão naquela sala pois querem estar, esforçaram-se para estudar em uma ETEC. Isto faz com que “a resposta” a que ela se refere também possa ser compreendida como a disposição para jogar. Então, os alunos de Larissa estão para o jogo, ela não parece precisar convencê-los a jogar, bem como ela parece estar envolvida pelo jogo. O envolvimento no jogo é recíproco. Assim, uma das estratégias de Larissa é a cumplicidade.

Excerto 9 – Cecília – Entrevista 2

Eu acho que essa coisa de conflito é constante. Para mim é. Não tem um dia que eu saia da sala de aula falando ‘Por que que isso aconteceu? O que eu tenho que fazer?’. [...] Então é um conflito que eu vivo todo dia e tenho vivido mais ainda (CECÍLIA, 2019).

As versões de jogo de Cecília são distintas, posto que para ela, há o desafio do conflito. Faz parte do trabalho do professor, em qualquer nível de ensino, convencer os alunos/estudantes a estarem ali e a interessarem-se pelas aulas. Precisamos considerar que os alunos de Cecília, do 6° ano, são crianças. Eles são levados para o jogo e cabe aos adultos os conquistarem, convencendo-os a jogar. Eles entram no jogo em uma relação de heteronomia – são alunos – com o passar do tempo, devem se tornar estudantes, jogando de modo cada vez mais autônomo. Logo, o conflito vem do embate com os desafios que são postos, já que a disputa não é com os alunos e sim pelos alunos, por sua atenção e engajamento na aula/na disciplina.

O caso de Cecília, seus conflitos e suas jogadas, aponta para o que talvez sejam as principais e as mais complexas tarefas que o professor deve realizar: a de manter-se no jogo e a de conseguir que os aluno/estudantes joguem. Cabe, nesse sentido, ao professor convencer os alunos a jogarem, uma tarefa nada trivial, já que o convencimento diário é exaustivo. Embora a tarefa seja exasperante, é preciso executá-la, quando o professor não consegue convencer os alunos a jogarem, ele ainda precisa permanecer no jogo.

Conclusões

Neste artigo, discutimos a interação entre professores e alunos/estudantes, na sala de aula, que se delineia mediante o jogo pedagógico. Este jogo, típico do ambiente escolar, articula as perspectivas multidisciplinares, a partir da filosofia, com Wittgenstein (1989), da História, com Huizinga (1999) e da sociologia, com Bourdieu (2005). Esses autores reconhecem que os jogos são constitutivos do homem e de suas relações sociais permeadas pela linguagem. Além disso, buscamos elaborar uma visão também multidisciplinar da interação, com referenciais tanto do campo da educação, como da linguística, reconhecendo-a em sua multimodalidade.

Além dessa perspectiva multidisciplinar do jogo, este artigo o concebe como metáfora para compreender a interação entre professores e alunos na sala de aula. Isto se fez consoante Lakoff; Johnson, (1980) e Scheffler (1974).

Quanto aos elementos constitutivos dos jogos pedagógicos, afirmamos que há, inseridos no papel docente, diversos outros papéis. Os papéis influenciam e são influenciados pelas máscaras, o cenário e o foco. Esses elementos são cruciais para a elaboração de estratégias que, por sua vez, criam diferentes versões do jogo pedagógico. Outra condição para haver jogo é a presença das regras, estas não são apenas necessárias para jogar, mas estão presentes na definição do termo jogo, em seu sentido literal e no metafórico.

Desse modo, o ensino está em jogo quando professores e alunos jogam na sala de aula, cotidianamente, o jogo pedagógico. Desvelar o jogo e seus elementos constitutivos, possibilita-nos precisar melhor as condições necessárias para sua configuração, inclusive no que se refere à formação de professores mais bem preparados para jogá-lo.

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Recebido: 10 de Maio de 2022; Aceito: 07 de Setembro de 2022

Prof.ª Dr.ª Ana Luisa Feiteiro Cavalari-Lotti

Docente da Língua Portuguesa da Prefeitura de Praia Grande (São Paulo – Brasil)

Grupo de Pesquisa Docência, Formação de Professores e Práticas de Ensino

(DOFPPEN)

Orcid id: 0000-0001-9457-6358

E-mail: alfc.lotti@unesp.br

Prof.ª. Dr.ª Flavia Medeiros Sarti

Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Campus Rio Claro - Brasil)

Programa de Pós-Graduação em Educação

Líder do Líder do Grupo de Docência, Formação de Professores e Práticas de Ensino

(DOFPPEN)

Pesquisadora do Centre de recherche international sur la formation et la profession enseignante (Brésil)

Orcid id: 0000-0003-2926-5873

E-mail:flavia.sarti@unesp.br

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