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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.65 Natal jul./set 2022  Epub 24-Fev-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n65id28934 

Artigos

Infância e consumo no YouTube

Childhood and consumption on YouTube

Infancia y consumo en YouTube

Tamara Costa da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-6290-9573

Bianca Salazar Guizzo2 
http://orcid.org/0000-0003-1080-2210

1Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul (Brasil)

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul(Brasil)


Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar como o conteúdo do canal do YouTube Luccas Neto, Luccas Toon, contribui para a propagação de representações de infâncias consumidoras. Para tanto, foram selecionados 15 vídeos postados no referido canal. As análises foram desenvolvidas tomando como referencial teórico os estudos culturais em Educação, de viés pós-estruturalista. No intuito de desenvolver uma análise cultural, a partir da assistência aos vídeos, foram destacadas imagens e transcrições de falas do youtuber consideradas recorrentes e de maior relevância. Neste artigo, discute-se a categoria “gestão de si como uma marca”. Os resultados apontaram que o canal coloca em circulação a representação de uma infância consumista que busca incessantemente por novidades no mercado. Isso que implica na apresentação de diversos produtos e na grande identificação das crianças com um indivíduo adulto que forja uma identidade infantil e reforça gostos e preferências dos fãs mirins.

Palavras-chave: Infância; YouTube; Representação; Identidade

Abstract

This article aims to analyze how the content of the YouTube channel Luccas Neto, Luccas Toon, contributes to the propagation of representations of consumer childhoods. For this purpose, 15 videos posted on that channel were selected. The analyzes were carried out taking cultural studies in Education as theoretical framework, with a post-structuralist bias. In order to develop a cultura analysis, from watching the videos, images and transcripts of the YouTuber's speeches considered recurrent and of greater relevance were highlighted. In this article, the category “management of the self as a brand” is discussed. The results pointed out that the channel puts into circulation the representation of a consumerist childhood that incessantly searches for novelties in the market. This implies the presentation of various products and the children's strong identification with an adult individual that forges a childish identity and reinforces child fans' tastes and preferences.

Keywords: Childhood; YouTube; Representation; Identity

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar cómo el contenido del canal de YouTube Luccas Neto, Luccas Toon, contribuye a la propagación de representaciones de la infancia consumidora. Para ello, se seleccionaron 15 videos publicados en ese canal. Los análisis se desarrollaron tomando los Estudios Culturales en Educación como marco teórico, con un sesgo postestructuralista. Con el fin de desarrollar un análisis cultural, a partir de la visualización de los videos, se destacaron imágenes y transcripciones de discursos de lo YouTuber considerados recurrentes y de mayor relevancia. En este artículo, se analiza la categoría " gestión del yo como marca". Los resultados señalaron que el canal pone en circulación la representación de una infancia consumista que busca incesantemente las novedades del mercado. Esto implica la presentación de diferentes productos y la gran identificación de los niños con un individuo adulto que forja una identidad infantil y refuerza los gustos y preferencias de los aficionados infantiles.

Palabras clave: Infancia; YouTube; Representación; Identidad

Introdução

O presente artigo analisa e problematiza o conteúdo de 15 vídeos do canal do youtuber Luccas Neto destinados ao público infantil, atentando para as infâncias contemporâneas como uma geração marcada pelos processos culturais na esfera digital. É importante considerar que a pandemia causada pelo coronavírus em 2020 intensificou ainda mais o uso e a inserção das crianças no mundo tecnológico, considerando-se a onipresença da internet na infância do século XXI, pois a busca e a oferta de dados estão cada vez maiores, conferindo novas formas das crianças se relacionarem no e com o mundo. Elas não precisam mais esperar para assistir a um desenho ou a um filme, elas escolhem o que e quando assistir. Isso em parte, devido ao acesso facilitado aos dispositivos móveis, tablets e smartphones o que justifica, de certo modo, o consumo e o sucesso dos vídeos ora analisados. As abordagens realizadas pelos youtubers nos vídeos produzem efeitos nas crianças, que se “espelham” nesses influenciadores e passam a assumir atitudes e posturas similares às suas. Sendo assim, este artigo tem como objetivo compreender de que forma o conteúdo audiovisual do canal do YouTube Luccas Neto, Luccas Toon, contribui para a propagação de representações de infâncias consumidoras, vinculadas ao uso de tecnologias e aos novos modos de ser criança de um determinado tempo e espaço.

O artigo está organizado em quatro seções: a primeira seção, intitulada “Apresentando o fenômeno midiático Luccas Neto no cotidiano das infâncias conectadas”, descreve o processo investigativo acionado na pesquisa, bem como a figura do protagonista do canal Luccas Neto, Luccas Toon, e seu alcance midiático na plataforma YouTube Brasil, abordando um pouco sobre o crescimento de seu canal e sobre a gama de produtos que foram comercializados após a sua ascensão na internet. Ademais, é apresentado o percurso que foi realizado durante o processo de construção investigativa, mostrando os dados coletados, as ferramentas analíticas que foram usadas para problematizar e analisar os vídeos do canal.

A segunda seção, “Aprendendo a consumir com Luccas Neto”, aborda os conceitos teóricos utilizados para a operacionalização das análises, quais sejam: representação, identidade e consumo, a partir do campo dos estudos culturais.

Na terceira seção, “Gestão de si como uma marca”, são apresentados os resultados analíticos a partir dos quais procura-se evidenciar as implicações do consumo dos vídeos endereçados ao público infantil com apelo de cunho publicitário para a marca de produtos do influenciador. Para tal, nos embasamos em autores como Sibilia (2016), Jenkins (2009), Beck (2017) e Bauman (2008). Por fim, em “Considerações finais” são retomados alguns aspectos discutidos no decorrer do artigo como também apresentamos algumas considerações finais, convidando os leitores a outras tantas e infinitas possibilidades e releituras valendo-se desse mesmo material analítico.

Apresentando o fenômeno midiático Luccas Neto no cotidiano das infâncias conectadas

A hibridação entre Educação e Comunicação tem contribuído para uma significativa discussão sobre pedagogias, uma vez que é destacada a implicação de artefatos que compõem o que tem sido denominado de cultura da mídia na formação de sujeitos hoje. Textos televisivos, jornalísticos, radiofônicos, publicitários, fotográficos, fílmicos, assim como aqueles das assim chamadas novas mídias, conectadas a World Web Wide, são apenas alguns componentes desse universo midiático sempre em expansão (ANDRADE; COSTA, 2010, p. 52).

A citação acima sinaliza as diversas formas de aprendizagem para as diversas formas de aprendizagem presentes no mundo contemporâneo, as quais se encontram principalmente nos meios midiáticos e digitais, possibilitando a fusão entre as áreas da Educação e Comunicação. Nesse contexto, apresentamos o youtuber Luccas Neto e seu alcance midiático na atualidade, seus atravessamentos do ambiente virtual para o mercado publicitário, as implicações e os possíveis efeitos causados pelo consumo direcionado à infância.

O youtuber Luccas Neto Ferreira, de nacionalidade luso-brasileira, é um jovem que profissionalmente se descreve como: ator, cantor, escritor, diretor, empresário e roteirista. Ficou conhecido popularmente no YouTube por criar o canal Luccas Neto, Luccas Toon, no ano de 2014, apesar de já ter tido outro canal anterior chamado Hater Sincero, em que, como um hater1, fazia críticas aos influenciadores digitais e à cultura de consumo vendida para o público infantil, se dizia ser um anti-youtuber. Porém, de modo controverso, assim que criou o canal Luccas Neto, Luccas Toon, mudou severamente sua postura em relação às crianças e aos youtubers, mudou o visual, aderindo a um cabelo com luzes, boné e vestuário com a marca própria. Passou a investir ativamente em vídeos direcionados ao público infantil com tutoriais desembalando brinquedos, fazendo comidas e realizando gincanas com as crianças. Atualmente é considerado o maior produtor de conteúdo infantil, em 2019, Luccas entrou no ranking do instituto QualiBest2 como um dos maiores influenciadores digitais do Brasil, contando com mais de 32 milhões de inscritos e mais de treze bilhões de visualizações acumuladas. O canal Luccas Neto, Luccas Toon, afirma ter como objetivo “educar e entreter crianças de todas as faixas etárias” e cresceu de forma significativa ao longo dos anos: de 100 inscritos em 2016 passou a 32, 7 milhões de inscritos no ano de 20203.

Devido ao crescimento meteórico do canal de Luccas Neto e ao aumento significativo de inscritos e internautas do público infantil, bem como devido às inúmeras críticas sofridas pelo youtuber por incentivar o consumo exacerbado de marcas alimentícias, seu canal contratou uma equipe de profissionais no decorrer do ano de 2018, dentre eles: psicólogos, pedagogos e psicopedagogos, que são responsáveis por supervisionar e aprovar o conteúdo do canal.

Com isso, vemos que a publicidade opera como uma forma de educar, tentando sempre se adequar às normas e convenções sociais visando fins lucrativos. A publicidade, como Kellner argumenta:

[...]se constitui como uma das esferas mais avançadas da produção de imagem, com mais dinheiro, talento e energia investidos nesta forma de cultura do que em qualquer outra em nossa cultura hiper capitalista, sendo a própria publicidade uma pedagogia que ensina aos indivíduos o que eles precisam e devem desejar, pensar e fazer para serem felizes, bem-sucedidos e genuinamente americanos, a publicidade ensina uma visão de mundo, valores e quais comportamentos são socialmente aceitáveis e quais são inaceitáveis (KELLNER, 1995, p. 112).

No ano de 2018 Luccas estabeleceu uma parceria com a fabricante de brinquedos Grow para a produção e venda de sua linha de brinquedos, no mesmo ano, foi lançado o boneco Luccas Neto. Em apenas dois meses, foram vendidos mais de 240.000 unidades do brinquedo que fala frases gravadas pelo fenômeno do público infantil. E o lançamento de seu primeiro livro Aventuras na Netoland com Luccas Neto, vendeu 54 mil exemplares, ultrapassando o recorde da pré-venda do livro de Harry Potter no Brasil.

No ano de 2018, Luccas Neto ainda promoveu uma turnê de shows pelo Brasil, contando com mais de 130 mil espectadores. Apesar de ser considerado um fenômeno na plataforma digital, até o final do ano de 2017, ele sofreu críticas por ser um dos youtubers que mais fazia merchandising direcionado para o público infantil, além de induzir ao consumismo e ingestão de alimentos inadequados para as crianças.

Em 2018, Luccas anunciou que o conteúdo de seu canal havia sido readaptado, contando a partir de então com “conteúdos educacionais”, de cunho social e entretenimento, baseados na criação e reprodução de histórias, fábulas e clássicos contos do universo infantil. Os vídeos postados após a mudança na elaboração de conteúdos não serão analisados neste artigo, uma vez que optamos por analisar alguns vídeos postados anteriormente à referida mudança. Em função da perspectiva teórica a qual este artigo se vincula, metodologicamente, empreendemos uma análise cultural, baseando-nos especialmente em três conceitos centrais: representação, identidade e consumo. As representações que circulam em nossas sociedades produzem sentidos e efeitos sobre os sujeitos. Segundo Hall (2016, p. 33), “[...] representar algo é descrevê-lo ou retratá-lo, trazê-lo à mente por descrição ou retrato ou imaginação; fazer uma relação com algo que tínhamos em nossas mentes ou sentidos previamente”.

Nessa perspectiva, o sentido depende da relação entre coisas, pessoas, objetos e eventos, reais ou ficcionais, e do sistema conceitual, que pode operar como sua representação mental. “O sentido não está no objeto, pessoa ou coisa, e nem está na palavra. Somos nós que fixamos o sentido tão firmemente que, depois de um tempo, ele parece natural e inevitável” (HALL, 1997, p. 8).

A partir do modo como as coisas são representadas no mundo, criam-se possibilidades de constituição de identidades. Isso se relaciona muito com a identificação das crianças com a figura representada pelo youtuber Luccas Neto, pois enxergam nesse sujeito atitudes muito semelhantes às de seus pares e sua “vida” online acaba por se tornar objeto de desejo das crianças, que também almejam possuir os mesmos brinquedos, roupas, alimentos e produtos propagandeados pelo youtuber.

Segundo Silva (1999), a partir da “virada cultural”, estabeleceu-se uma equivalência entre a multiplicidade de instâncias, instituições e processos culturais dos quais dispomos (televisão, publicidade, livros de ficção, turismo, filmes, exibições de museus, entre outros) que alcança a Educação. Dessa forma, também é possível equiparar a Educação a essas outras instâncias culturais, podendo-se considerá-las como pedagógicas em uma operação inversa. Assim, nessa perspectiva, ao mesmo tempo em que [...] “a cultura é vista como uma pedagogia, a pedagogia também é vista como uma forma cultural” (SILVA, 1999, p. 17).

Tal como já mencionado, metodologicamente, empreendeu-se uma análise cultural a partir da seleção de 15 vídeos veiculados no canal escolhido. Esse conjunto de vídeos foi escolhido por sua aderência às temáticas centrais da pesquisa da qual decorreu este artigo, quais sejam: infância consumidora, consumismo atrelado à brinquedos de marcas reconhecidas mundialmente e relações de gênero nos brinquedos apresentados e de brincadeiras estabelecidas pelo youtuber na sua interação com a parceira mirim de canal. No quadro a seguir, apresentamos algumas características dos vídeos analisados.

Quadro I Vídeos analisados 

Ordem Cronológica Título do Vídeo Data de publicação Duração (minutos)
Minha coleção de brinquedos de shopkins!! (edição especial e limitada) 2 jan. de 2018 27:37
Os novos brinquedos dos Minions!!! (os melhores produtos oficiais) 6 jan. de 2018 25:48
Recebi o presente secreto de diamante do YouTube!! 17 jan. de 2018 30:06
12º Abrindo brinquedos do homem aranha e homem de ferro (lançador de teia de verdade) 24 jan. de 2018 39:37
16º Comprei o carro das princesas da Disney de verdade! (muito raro e gigante) 28 jan. de 2018 20:34
20º Comprei todos os brinquedos de Pokémon! 2 fev. de 2018 35:13
21º Recebi uma caixa misteriosa de R$ 300 reais 3 fev. de 2018 24:54
24º Abrindo brinquedos da Frozen e da Moana juntos!!! 6 fev. de 2018 34:26
30º Comprei Baby Alive que faz cocô e Masha e o urso gigante!! (brinquedos em português) 12 fev. de 2018 26:31
36º 36º Provando sorvetes diferentes dos Estados Unidos! (Oreo, Reese's e M&M) 18 fev. de 2018 30:17
37º Tudo o que comprei nos Estados Unidos! (Iphone X, Ninjago, Nike e Gucci) 19 fev. de 2018 31:37
38º Comprei R$ 500 reais de brinquedos nos Estados Unidos!! 20 fev. de 2018 26:41
39º Comprei R$ 300 reais em doces americanos para levar pro Brasil! (duas malas cheias) 21 fev. de 2018 31:33
88º Transformação do meu novo quarto na Netoland (parede com desenhos da Disney 14 abr. de 2018 36:11
102º Fizemos as atividades do livrão do Luccas! 29 abr. de 2018 20:54

Fonte: As autoras (2020).

Durante o manuseio atento do material empírico, foram estabelecidas possíveis relações entre os vídeos, principalmente, a fim de definir as categorias analíticas. Assim, foram observadas recorrências nas falas do youtuber nos vídeos selecionados para a análise fazendo alusão à comercialização de produtos/brinquedos que remetem a ações de consumo exagerado de brinquedos, bem como de produtos da marca própria do influenciador por parte das crianças.

Aprendendo a consumir com Luccas

Não há nada "natural" ou "inevitável" na vida cotidiana. Quando começamos a examinar o que é dado como certo, ele se revela mais complexo e processual do que simples e reificado. Consiste em um vasto número de processos conscientes e inconscientes, desde tarefas simples, como amarrar cadarços, abrir portas, vasculhar roupas em uma loja ou tarefas mais complexas, como dirigir ou flertar. No que se refere ao consumo, agora é óbvio que um grande número de processos conscientes e inconscientes ocorrem no que antes era considerado uma atividade rotineira ou banal, e essas ações e processos revelam diálogos e transações muito complexos a respeito de identidade, status, aspirações, capital cultural e posição dentro de um grupo social (GARDINER, 2000, p. 19).

O consumo também é um elemento do circuito da cultura que acionamos nessa pesquisa, relacionando os artefatos culturais midiáticos do youtuber ao conceito de consumo a partir das lentes dos estudos culturais e de como o consumo se tornou uma estratégia das mídias sociais para aumentar seus lucros, o que acaba contribuindo, de certa forma, para a constituição das culturas infantis de massa.

De acordo com Momo:

Práticas sociais midiáticas e de consumo são constituídas e constituintes de cultura. Em sua forma discursiva, mídia e consumo operam de forma a criar sistemas de representação e identificação dos quais é difícil não participar. Mídia e consumo produzem, em alguma medida, a cultura cotidiana da qual participamos e assim acabam por regular, de alguma forma, nossas condutas. Não significa que isso ocorra de forma impositiva e que os sujeitos não tenham escolha. O que quero dizer é que mídia e consumo fazem parte da nossa esfera cotidiana de negociação de significados de tal modo que acabamos por constituir uma cultura midiática e de consumo (MOMO, 2007, p. 55).

O conteúdo dos vídeos do canal de Luccas Neto, Luccas Toon, oferece formas de consumir através da plataforma digital YouTube e ao mesmo tempo apresenta para as crianças marcas alimentícias, tais como: Kinder Ovo, Nutella, Kit Kat, brinquedos conhecidos e desejados como os da linha dos personagens Minions, entre outros artefatos culturais que são divulgados pelo youtuber em seu canal e de outros que são produtos da linha assinada pelo próprio influenciador digital.

Para Costa:

Na sociedade de consumidores somos constantemente ensinados, segundo os moldes da melhor pedagogia do exercício e do exemplo, a formatar nossas ações rigorosamente dentro de preceitos e táticas que fomentam a realização dos desígnios dessa sociedade. As crianças de hoje nascem dentro da cultura consumista e crescem modelando-se segundo seus padrões e suas normas (COSTA, 2009, p. 35).

Segundo Bauman (2008), a relação entre os consumidores e os possíveis objetos de consumo tem por tendência se tornarem um dos princípios na trama das interações humanas, indicada pelo autor como “sociedade de consumidores”, que se distingue pela renovação das relações humanas e, ao mesmo tempo, pela semelhança das relações entre objetos de consumo e consumidores. A notoriedade dessa atividade se origina na anexação e colonização da espacialidade pelos mercados de consumo que se estabelece entre os indivíduos – e da espacialidade que designa os laços que conectam os seres humanos e que elevam os muros que os dividem.

Segundo Canclini (2006), na atualidade, vivemos outros tempos em que o consumo nas sociedades contemporâneas sinaliza para outras funções como a de representar identidades sociais, além da função de suprir necessidades. Mochilas, jogos eletrônicos, aparelhos celulares, roupas e muitos outros artefatos são desejados pelas crianças de forma intensa e efêmera e não têm valor intrínseco, seu valor mercantil advém de variadas interações socioculturais nas quais estão implicados os sujeitos.

Esse ato de desejar, ter objetos que possuem rótulos, marcas e que estampam o seu personagem favorito, é uma atividade muito conhecida tanto por adultos, como por crianças. No entanto, o que chama atenção no youtuber Luccas Neto é o fato de, além de testar e de certa maneira indicar produtos de marcas famosas para as crianças, o influenciador também possui uma marca própria de produtos, dentre os quais estão coleção de livros com atividades lúdicas, jogos educativos, camisetas, bonés, chinelos, bonecos, entre muitos outros.

Isso também colabora para que de certa forma as crianças sejam convidadas a consumir a imagem do apresentador do canal Luccas Neto, Luccas Toon. Ignácio (2009, p. 47) aponta que “[...] o valor não está no objeto em si, mas nos significados que concentra e distribui e a quem o possui”. Nessa direção, a autora supracitada salienta que:

Nos tempos modernos, a aquisição de produtos obedeceu a uma lógica compreensível: obter para consumir, suprir necessidades ou conquistar algo longamente ambicionado. O ato de comprar roupas, brinquedos, automóveis, entre outras coisas – outrora restrito aos adultos – fez parte de uma lista de objetos e metas previamente estabelecidos. Renová-los ou substitui-los foi algo que ocorreu em decorrência do desgaste dos objetos. Isso porque um dos principais atributos, inerente à qualidade desejável das coisas, foi a durabilidade (IGNÁCIO, 2009, p. 47).

Nos tempos atuais, podemos perceber como as crianças estão cada vez mais participativas na atividade de consumo, no que se refere à aquisição de produtos, um negócio bastante lucrativo para os empresários, justificando-se hoje a existência de tantas lojas especializadas em produtos infantis.

Conforme argumenta Ignácio:

Crianças e jovens – na atualidade mais independentes e também responsáveis pela aquisição de produtos - buscam incansavelmente adquirir uma gama infindável de significados distribuídos pelos inúmeros produtos que circulam nas teias do consumo. Fazem isso para se sentirem parte do(s) grupo(s) com o(s) qual(is) se identificam (IGNÁCIO, 2009, p. 48).

Dessa forma, também se percebe que, além de consumir produtos assinados pelo youtuber e que estão em voga no momento, as crianças também estão por consumir a identidade e a imagem do sujeito que com elas interage virtualmente. Nessa direção, são importantes as argumentações de Camozzato quando afirma:

[...] que numa sociedade em que a imagem é central para a nossa produção, para mostrarmos aos demais como somos, nossos pertencimentos, fazer isso é também se disponibilizar ao consumo. O consumo não se dá somente por meio do ato de compra de objetos, mas também quando consumimos a nós mesmos, processo operacionalizado nos movimentos realizados em prol de produzir-se para atender aos apelos e ditames identitários de determinado tempo-espaço, num preciso momento histórico. Colocar a si mesmo como uma imagem a ser apresentada, apreciada e, assim, consumida pelos demais é algo que traduz e sinaliza uma série de transformações que nosso tempo vem operando (CAMOZZATO, 2009, p. 44).

De acordo com Ignácio (2009, p. 48), tais perspectivas voltadas para as crianças de hoje nos possibilitam pensar a respeito da crescente relação entre adquirir produtos e o processo de sua aceitação social como sujeitos. Além do mais, “[...] nos levam a admitir que o ato de consumir está hoje conectado à identidade e à cidadania”.

Gestão de si como uma marca4

[...] os gêneros autobiográficos mais novos, que hoje inundam a internet, assinalam outros processos e inauguram outras tendências. Revelam a emergência de novos modos de ser, subjetividades afinadas com uma sociedade e uma cultura cada vez mais distantes do tempo em que fomos e devíamos ser absolutamente modernos. Agora é preciso se tornar compatível com outros ritmos e com outras demandas, para estar à altura do que o mundo contemporâneo solicita de cada um de nós. Tornar-se personagens visíveis e em contato ativo com muitos outros, partilhando a extimidade enquanto performa o que se é [...] (SIBILIA, 2016, p. 352).

O youtuber do canal analisado faz uma performance em seus vídeos, encenando por vezes a personagem de uma criança que mostra para outras crianças o seu modo de viver a infância, revelando o seu mundo e o seu cotidiano para seus fãs internautas, despertando o desejo das crianças para lhe conhecerem pessoalmente. Além de desembalar diversos brinquedos de marcas famosas e mostrar maneiras de brincar com eles, em seu canal, ele também promove a venda de seus produtos e convida os fãs para suas peças teatrais Suas falas demonstram a importância de também manter a relação e interação com seu público fora do espaço virtual, como apresentado abaixo:

Youtuber- Agora eu tô com novo show pra rodar as cidades do Brasil inteiro, o nome do show é Netoland com Luccas Neto. E eu vou pra todas essas cidades que estão aparecendo aqui. É a única chance da gente se encontrar ao vivo e fazer várias brincadeiras. Só que você precisa garantir agora o seu ingresso, porque várias sessões já estão esgotadas. É o primeiro show que eu tô fazendo na minha vida, então, todo mundo está querendo comprar o ingresso para me assistir e me conhecer pessoalmente. Então, corre entra no site que tá aqui na descrição do vídeo e garante o seu ingresso junto com seu pai e sua mãe, beleza? (LUCCAS, 2018).

O alcance do youtuber vai além das redes sociais, ele também consegue interagir com seu público fora das plataformas, mobilizando seus fãs para diversas formas de entretenimento em outros espaços, através de shows e encontros, o que, de certa forma, revela a participação “fiel” de seus seguidores.

Nas palavras de Jenkins:

[...] nas últimas décadas, as corporações buscaram vender conteúdo de marca para que os consumidores se tornem os portadores de suas mensagens. Profissionais de marketing transformaram nossos filhos em outdoors ambulantes e falantes, que usam logotipos na camiseta, pregam emblemas na mochila, colam adesivos no armário, penduram pôsteres na parede [...] (JENKINS,2009, p.195).

Dessa forma, podemos perceber o quanto a construção da imagem do youtuber é importante para defini-lo como um produto, em razão de todo o arsenal de mercadorias e tipos de entretenimentos que oferece, como shows, vídeos, brinquedos, roupas, além de outros produtos. Todos aqueles artefatos ligados à personalidade do youtuber colaboram para a criação da sua própria marca.

Nesse sentido, Sibilia (2016) escreve sobre a passagem do século XX para o século XXI, mostrando que surgiu na sociedade pós-moderna um conjunto de novos hábitos com o aparecimento de canais que permitiram tornar públicos diversos aspectos da vida, que até então eram considerados da intimidade privada de cada um. Ao longo dos anos, temos nos familiarizado com esses veículos: reality-shows, blogs, redes sociais, vídeos, selfies, que inundaram a internet. Para a autora, vivemos uma importante transformação histórica, que inclui diversos ingredientes, mas sobretudo uma mutação das subjetividades.

De acordo com Beck (2017, p. 42), vê-se que as representações de infância no contexto da mídia, outrora restrita aos programas televisivos, que emergiram na década de 1960, transformaram as crianças, antes meras espectadoras dos roteiros de entretenimento infantis, em protagonistas dos programas, “[...] ocupando o lugar de personagens de espetáculos artísticos e culturais”.

Se inicialmente esses programas tinham o propósito de servir ao entretenimento das crianças, reforçando a ludicidade presente nesse período de vida, foi a partir da década de 80 em nosso país que os respectivos programas assumiram outra perspectiva na captação do mesmo público (BECK, 2017, p. 42).

Podemos inferir que, de certo modo, os vídeos do canal Luccas Neto, Luccas Toon, apesar de emergirem em um cenário contemporâneo, em que disponibilizam através da tecnologia, cada vez mais rápida e instantânea, conteúdos audiovisuais para as crianças assistirem e compartilharem na rede, ainda há muita referência, e talvez certa inspiração, em programas televisivos da TV brasileira das décadas 1980 e 1990. Neles, as apresentadoras promoviam brincadeiras com a participação de crianças e exibiam diversas propagandas de produtos a serem consumidos. De acordo com Felipe:

[...] programas como o Xou da Xuxa (transmitido pela TV Globo de 1986 a 1995) promoviam gincanas e brincadeiras com a participação dos “baixinhos”. No âmbito desses programas, havia também a exibição de variados produtos infantis. A partir daí, no intervalo de programas desse tipo, as propagandas televisivas infantis passaram a ganhar maior destaque. Em tais propagandas as crianças eram interpeladas a comprar desde guloseimas (bolachas recheadas, chocolates, etc.) até roupas e acessórios que levavam o nome de apresentadoras desses programas infantis (Xuxa, Angélica e Mara Maravilha) ou dos personagens protagonistas (He-Man, por exemplo) dos desenhos animados transmitidos durante a programação de tais programas (FELIPE, 2007, p. 255-256).

De acordo com Beck (2017, p. 43), podemos afirmar que foi a partir dessas décadas que houve um aumento substancial na produção de programas infantis e se deu a sua ascensão na mídia, tais programas “[...] se projetaram, delineando um vigoroso marcador às infâncias que vêm se constituindo até hoje: aliar entretenimento infantil ao consumo de produtos produzidos para crianças foi/é uma estratégia lucrativa e que deu certo”.

A respeito disto, Steinberg e Kincheloe (2001, p. 24) defendem que “[...] mensagens vêm sendo enviadas às nossas crianças com a intenção de trazer à tona pontos de vista particulares e ações que são o maior interesse daqueles que o produzem”. Assim, as corporações que desenvolvem propagandas de todo tipo de parafernália para as crianças consumirem também produzem uma teologia de consumo, prometendo redenção e felicidade através do ato de consumo visto como um ritual. O influenciador do canal ora em análise inicialmente propagandeava produtos de diversas marcas, mas com o passar o tempo, e ao criar os produtos que levavam seu nome, passou a fazer uma gestão de si próprio como uma marca.

Em um dos vídeos analisados, o youtuber (ao lado de seus parceiros, Roni e Giovana) mostra como é seu livro As aventuras na Netoland com Luccas Neto, as atividades, desenhos dos personagens do canal e pôsteres, bem como pede para seus seguidores fazerem as atividades, tirarem fotos e lhe marcarem com hashtags em sua outra rede social: o Instagram.

A proposta desse vídeo é gerir sua marca e, para isso, mostra o produto, incentiva que ele seja experimentado, pois, obviamente, é necessário impulsionar a venda do livro para seus fãs. Ao mesmo tempo, mobiliza o imaginário das crianças, ao apresentar super-heróis que possuem poderes e habilidades especiais, reiterando gostos e preferências presentes no ideário infantil como demonstrado na figura 1.

Fonte: Luccas(2018).

Figura 1 Vídeo - Fizemos as atividades do livrão do Luccas 

Ao descrever as atividades do livro, o youtuber também o “vende” dizendo para as crianças que elas também podem ser super-heróis como eles, basta usarem a imaginação e realizarem as atividades do livro, além de lhe enviarem fotos do que fizeram em suas redes sociais, como comenta em um trecho do vídeo:

Youtuber-Como vocês podem perceber aqui no livrão, têm os aventureiros, tem o super foca, tem o super gafanhoto, tem também a sereia aquática, mas tem uma página em branco pra gente criar outro personagem dos aventureiros. Quem será que vai criar o melhor personagem novo? Se você quer ser um aventureiro, comenta aqui embaixo qual é o seu herói dos aventureiros. Eu quero muito ver qual aventureiro você é, desenhe, e, pra isso, você pode tirar uma foto do seu aventureiro que você desenhou e colocá-la no seu Instagram e me marcar pra eu olhar o seu aventureiro. Eu quero muito conhecer o novo time de aventureiros, então, hoje, tira uma foto do seu herói aventureiro, me marca no Instagram com hashtag. O meu Instagram é esse que tá aparecendo na tela, é só você ir lá no meu Instagram e marcar. Fala pro seu papai, para a sua mãe, me marcarem se você não tiver Instagram, porque eu quero muito ver o seu aventureiro. Esses dias, seu recebi uma heroína linda e a habilidade especial dela era vencer os seus adversários com os super cachos do cabelo dela (LUCCAS, 2018).

Ao analisar os vídeos em que o youtuber divulga e ensina a brincar com seus produtos, promovendo a sua marca, percebemos o que Bauman (2008) sinaliza ao argumentar que, na sociedade de consumidores, uma forma de consumo também é a de investir em si próprio, demonstrando que existe uma demanda que precisa ser sempre vista e ampliada, estando em constante movimento. Dessa maneira, além de consumir, nós também nos transformamos em mercadorias a serem consumidas. Essa mercantilização das várias facetas de nossa vida, de nós mesmos enquanto indivíduos sociais, e de tudo o que nos cerca, tem sido mencionada por Bauman (2008) como comodificação, o que equivale a dizer que nos transformamos em commodity, em um bem de consumo (ANDRADE; COSTA, 2010).

Nessa direção, vemos o youtuber sendo convertido através de sua imagem em um produto a ser consumido pelas crianças. Aliás, não apenas um produto, mas uma gama infindável de artefatos atrelados a seu nome, ganham visibilidade cada vez mais efêmera e em constante expansão. Ora, podemos inclusive dizer que as crianças de hoje estão seguindo fielmente os desígnios da sociedade de consumidores como aponta Rubens (2010, p. 279):

A sociedade não pode ficar entediada, pois à medida que consome mais, ela se reveste de uma aura de sucesso e sempre recorre ao consumo como uma forma de felicidade, de prêmio ganho, mesmo sendo ilusório. Pois é assim que a sociedade de consumo se vê, sempre “satisfeita” até o próximo lançamento.

Todos os recursos audiovisuais (filmes, vídeos, peças teatrais, músicas) e produtos que compõem a imagem mercantil do youtuber colaboram para que a sua figura chegue a diversos lares e continue sendo amplamente divulgada pela mídia em plataformas digitais (YouTube, Facebook, Instagram). Inclusive, no ano de 2020, foi criado um site para a sua nova loja virtual Luccas Toon, na qual encontram-se inúmeros produtos à venda, desde linha de brinquedos, jogos, camisas, bonés, produtos para decoração de festa infantil e até produtos alimentícios e de higiene e saúde como máscaras faciais que foram impostas ao uso cotidiano devido à pandemia de coronavírus.

O grande sucesso adquirido pela marca do youtuber em um curto espaço de tempo nos mostra como as crianças contemporâneas são interpeladas pelo consumo cotidiano visto primordialmente como forma de entretenimento. E as crianças são participantes ativas da cultura nesse processo, muitas crianças vêm se tornando experts nessa tarefa rotineira da vida humana, porém o que está em questão aqui é como as identidades infantis vêm sendo produzidas nesse contexto, atravessado pelas mudanças tecnológicas e pelo constante acesso às mídias digitais, reiterando a representação de infâncias consumidoras.

Um youtuber adulto que interpreta uma criança, converte sua imagem em tudo aquilo que as infâncias consumidoras mais almejam, seguindo a rapidez em que é devorada e descartada a mercadoria, a volatilidade do produto e a necessidade de adquirir novos. A criança precisa estar sempre na moda, através do ato de consumo, aguardando ansiosamente pelos novos lançamentos e novidades de seu ídolo. Inicialmente visto como um sujeito que propagandeava marcas publicitárias infantis, ele se torna agora mais uma marca a ser consumida. “Numa sociedade de consumidores, tornar-se uma mercadoria desejável e desejada é a matéria de que são feitos os sonhos e os contos de fadas” (BAUMAN, 2008, p.22).

Considerações finais, um convite a outras reflexões...

Essas transformações gerais – tanto nas ideias sobre a infância como na vida real das crianças – têm feito eco às mudanças no ambiente midiático das crianças, e até certo ponto as têm reforçado. Também aí as distinções tradicionais sofrem erosão, e novas lacunas se abrem. As crianças estão ganhando maior acesso às mídias “adultas” e maior status como consumidores; contudo, a comercialização e a privatização das mídias (e das ofertas de lazer em geral) contribuem para o aumento da desigualdade. Se as crianças estão de fato vivendo hoje uma “infância midiática”, os ambientes de mídia que elas habitam tornam-se cada vez mais diversificados (BUCKINGHAM, 2007, p. 276).

Partindo da citação de Buckingham (2007) sobre a relação das infâncias contemporâneas com as mídias eletrônicas, empreendemos aqui uma breve explanação de alguns apontamentos que foram possíveis neste artigo, que buscou evidenciar a estreita vinculação entre as crianças e o consumo midiático a partir do canal do YouTube, Luccas Neto, Luccas Toon, voltado para o público infantil.

Nesse contexto, encaramos o YouTube como um veículo que revolucionou não somente a internet, mas também a forma como as pessoas lidam com as tecnologias hoje em dia, uma relação que vai muito além do entretenimento e da diversão, uma vez que os conteúdos produzidos pelos youtubers geram receitas, potencializam a publicidade e fazem a economia da plataforma girar e render lucros, tanto para criadores de conteúdo quanto para empresas patrocinadoras. Vemos as crianças cada vez mais engendradas em uma rede de consumo, que atrai, ensina e representa identidades infantis afinadas com desejos consumistas, de certo modo, uma pedagogia cultural que também tem concedido muitos frutos no âmbito econômico.

A ênfase maior das análises se debruçaram sobre a figura do youtuber protagonista do canal, Luccas Neto, que nos permitiu a observação de aspectos como a representação de uma infância consumista que busca incessantemente por novos produtos e novidades no mercado de brinquedos infantis. Além disso, há uma grande identificação das crianças com um indivíduo adulto que forja uma identidade infantil para se comunicar produzindo narrativas infantis e reforçando gostos e preferências de meninos e meninas.

Ainda foi possível perceber que torna-se imperativo consumir em uma sociedade de consumidores, principalmente com o advento do consumismo (BAUMAN,2008), pois o apelo pela aquisição de produtos implica também na constituição das identidades infantis. Assim, o youtuber torna-se um produto (ou melhor um arsenal de produtos) à venda, por tudo aquilo que representa e pelos “ensinamentos consumistas” que propaga ao seu público.

Devido ao grande sucesso do youtuber, foi possível observar a sua expansão para múltiplos espaços, inicialmente no YouTube e depois em outras ambientes. O aumento expressivo de novos seguidores em seu canal fez com que Luccas Neto passasse a receber premiações e a aparecer em espaços físicos com shows em lojas de brinquedos e livrarias com produtos de licenciamento, como livros, bonecos, jogos etc O youtuber também migrou para outras plataformas como a Netflix com um número significativo de filmes em um curto período de dois anos. Sem dúvidas, um fenômeno midiático infantil que cresceu (e continua crescendo) no universo infantil, o que revela a relação cada vez mais indissociável entre infância, tecnologias e consumo.

Na seção Gestão de si como uma marca, destacamos o entendimento de comodificação (BAUMAN, 2008) em que uma das formas de consumo também é a de investir em si próprio, manifestando que existe uma demanda de consumo que precisa ser sempre vista e ampliada, seguindo os voláteis ritmos do mundo contemporâneo. Em outras palavras, é preciso transformar-se em commodity, em bem de consumo. Desse modo, além de estimular o consumo de brinquedos já bem conhecidos pela mídia que estampam heróis e princesas da Disney, o youtuber também se transforma em uma mercadoria a ser consumida.

O consumo está muito veiculado ao personagem do youtuber, que demonstra publicamente o quanto sua marca de produtos tem crescido de forma exponencial nos últimos anos. Isso também nos revela o quanto as crianças são cada vez mais ativas nesse processo, elas consomem produtos e também comportamentos com os quais se identificam e, apesar de existir uma regulação publicitária no Brasil no que tange a produtos direcionados ao público infantil, as crianças continuam sendo vistas como potenciais consumidoras, também devido ao crescente acesso de uma parcela significativa das crianças brasileiras aos aparelhos digitais, principalmente os smartphones.

A partir da discussão apresentada neste artigo, buscou-se problematizar e analisar o conteúdo de vídeos e alguns artefatos culturais propagandeados pelo youtuber Luccas Neto, destinados ao público infantil, dando visibilidade às representações de infâncias contemporâneas consumidoras, principalmente aquelas vinculadas ao uso das tecnologias e aos novos modos de ser criança de um determinado tempo e espaço. Com isso, pode-se perceber como o youtuber representa uma infância mercantil e globalizada, que estabelece relações cada vez mais rápidas e voláteis com os produtos, propagando ensinamentos de como consumir e fazer parte da cultura midiática.

Por fim, podemos destacar que as infâncias contemporâneas são vividas por crianças mais ativas e participativas em relação aos conteúdos que estão acessando e assistindo. Percebe-se também que as crianças são cada vez mais capturadas pela mídia para exercerem o ato de consumir, seja para consumirem uma infinidade de produtos de marcas famosas ou para consumirem estilos de vida, formas de ser criança e de viver a infância dos tempos atuais. Assim, fazendo uso dessas possibilidades virtuais interativas, as crianças de hoje encontram novos modos de socializar e de produzir-se como sujeitos contemporâneos.

Notas

1Odiador ou, em inglês, hater é um termo usado na internet para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou crítica sem muito critério. Os alvos mais comuns dos odientos são celebridades ou famosos. Disponível: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Hater_(internet)#:~:text=odiador%20ou%2C%20em%20ingl%C3%AAs%2C%20hater,ou%20cr%C3%ADtica%20sem%20muito%20crit%C3%A9rio>. Acesso em: 3 dez. 2019.

2Fundado em 2000, o primeiro instituto de pesquisas online do Brasil, realiza, por meio do painel de pesquisa, estudos Ad Hoc, quantitativos e qualitativos, com foco em acompanhar as mudanças de comportamento das pessoas como consumidoras e entender melhor seus hábitos, relações e desejos. Disponível em: <https://www.institutoqualibest.com/sobre-nos/> Acesso em: 16 dez. 2020.

4Título inspirado no cap. 9- EU espetacular e a gestão de si como uma marca. Obra de Paula Sibilia SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo.

Referências

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Recebido: 18 de Maio de 2022; Aceito: 08 de Agosto de 2022

Tamara Costa da Silva

Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul (Brasil)

Mestrado em Educação (ULBRA)

Programa de Pós-graduação: Egressa do PPGEDU/ULBRA

Grupo de pesquisa: Cultura e Educação (PPGEDU/ULBRA)

E-mail: tamaracosta94@hotmail.com

Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-6290-9573

Bianca Salazar Guizzo

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil)

Pós-doutorado (Universidade de Bolonha/Itália) e doutorado (PPGEDU/UFRGS)

Professora do Departamento de Estudos Especializados da Faculdade de Educação da UFRGS, sendo bolsista de produtividade em pesquisa do CNPQ.

Grupo de pesquisa: Cultura e Educação (PPGEDU/ULBRA); Grupo de Estudos de

Educação Infantil e Infâncias (FACED/UFRGS).

E-mail: bianca.guizzo@gmail.com

Orcid id: https://orcid.org/0000-0003-1080-2210

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