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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.65 Natal jul./set 2022  Epub 24-Feb-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n65id30414 

Artigos

Professoras(es) de História: modos de ser e usos de táticas (1970-2000)

History teachers: ways of being and uses of tactics (1970-2000)

Profesores de Historia: modos de ser y usos de las tácticas (1970-2000)

Aliny Dayany Pereira de Medeiros Pranto1 
http://orcid.org/0000-0001-8998-2343

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)


Resumo

O objetivo deste trabalho é refletir sobre as táticas desenvolvidas por professoras(es) de História enquanto formas de resistência às estratégias de controle promovidas pelo Estado brasileiro e pelas instituições escolares. Este artigo é um resultado preliminar da pesquisa “Caminhos do ensino de História: o saber e o fazer docente no Rio Grande do Norte (1970-2000)”, ainda em curso. Estamos ouvindo professoras(es) de História que lecionaram neste estado. Inicialmente pensadas para serem entrevistas temáticas de história oral, ao longo do seu percurso, elas vêm se desdobrando em história oral de vida de professoras(es). São fundamentais a este trabalho os conceitos de estratégias e táticas (CERTEAU, 2014). Além desses, auxiliam na pesquisa outros conceitos, como autoridade compartilhada (FRISCH, 2016); narrativa (BENJAMIN, 2012); história oral (MEIHY; HOLANDA, 2017); e história de vida de professores (ANDRADE; ALMEIDA; SILVA, 2019). O tratamento das narrativas segue as proposições de Alessandro Portelli (2016). Após analisar as fontes, foi possível compreender o quanto a resistência é parte fundamental da identidade docente forjada por essas(es) profissionais.

Palavras-chave: História de vida de professoras(es); Táticas; Resistências; História oral

Abstract

The purpose of this paper is to reflect about the tactics developed by history teachers as forms of resistance to the control strategies promoted by the Brazilian State and school institutions. This article is a preliminary result of the research “Paths of History teaching: the knowledge and the teaching practice in Rio Grande do Norte (1970-2000)”, still in progress. We are listening to history teachers who have taught in this state. Initially they were thought to be thematic interviews of oral history, along its course, they have been unfolding in oral history of the life of teachers. Fundamental to this work are the concepts strategies and tactics (CERTEAU, 2014). Besides these, other concepts, such as shared authority (FRISCH, 2016); narrative (BENJAMIN, 2012); oral history (MEIHY; HOLANDA, 2017); and teachers' life history (ANDRADE; ALMEIDA; SILVA, 2019) assist the research. The treatment of the narratives follows the propositions of Alessandro Portelli (2016). After analyzing the sources, it is possible to understand how resistance is a fundamental part of the teacher identity forged by these professionals.

Keywords: Life history of teachers; Tactics; Resistance; Oral history

Resumen

El objetivo de este trabajo es discutir las estrategias llevadas a cabo por los profesores de Historia como formas de resistencia a las estrategias de control promovidas por el Estado brasileño y por las instituciones escolares. Este artículo es resultado preliminar de la investigación “Caminos de la enseñanza de la Historia: conocimiento y enseñanza en Rio Grande do Norte (1970-2000)”, aún en curso. Estamos escuchando a los profesores de historia que enseñaron en este estado. Inicialmente pensadas como entrevistas temáticas de historia oral, durante su transcurso, se han ido desdoblando en historia oral de vida de los docentes. En este trabajo son fundamentales los conceptos de estrategias y tácticas (CERTEAU, 2014). Además de estos, otros conceptos, como el de autoridad compartida (FRISCH, 2016); narrativa (BENJAMIN, 2012); historia oral (MEIHY; HOLANDA, 2017); e historia de vida de docentes (ANDRADE; ALMEIDA; SILVA, 2019) ayudan a la investigación. El tratamiento de las narrativas sigue las propuestas de Alessandro Portelli (2016). Después del análisis de las fuentes, fue posible comprender cuánto la resistencia es parte fundamental de la identidad docente forjada por estos profesionales.

Palabras clave: Historia de vida de los docentes; Tácticas; Resistencia; Historia oral

Introdução

O que torna alguém professora ou professor de História no Brasil? Motivada por essa e outras questões, propus um projeto de pesquisa intitulado: “Caminhos do ensino de História no Rio Grande do Norte: o saber e o fazer docente (1970-2000)”. Pensado para ser voltado apenas aos egressos do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, o projeto foi sendo ampliado e passou a ouvir professoras(es) de História com diferentes formações, desde que inseridas(os) no recorte cronológico que ia dos anos 1970 até os anos 2000, no Rio Grande do Norte.

Iniciado no ano de 2019, enquanto ideia, o projeto foi formalizado e aprovado em meio ao cenário caótico da pandemia de COVID-19. Portanto, precisou ter seus rumos refeitos, seus caminhos e abordagens reorganizados. Mas a motivação era a mesma: ouvir professoras(es) de História, constituir um banco de memórias com suas narrativas, divulgá-las, torná-las história pública (ANDRADE; ANDRADE, 2016), utilizá-las para formar novas(os) professoras(es) e refletir sobre como se constitui a identidade dessas(es) docentes.

Mais recentemente, o projeto se vinculou à Rede Trajetórias Docentes e ao Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense (LABHOI/UFF), buscando fazer circular essas narrativas, para que possam se somar a outros acervos e, assim, apontar que as memórias de professoras(es) brasileiras(os) sejam cada vez mais objeto de reflexão, pesquisa e formação de novos profissionais.

Ao pensar inicialmente o ser professora ou professor, fui levada, quase instintivamente, a refletir sobre o quanto o contexto histórico afetava as suas formas de encarar o magistério e como isso lhes levava a lugares comuns e a atitudes aproximadas. A formação de historiadora me motivava a separá-las(os) cronologicamente e a tentar enxergar naqueles sujeitos, mulheres e homens do magistério, o quanto cada período os teria afetado e de que maneira isso ocorria. No entanto, a lida com as fontes e com o novo repertório teórico me oportunizaria trilhar por caminhos cada vez mais complexos, com espaço para refletir sobre suas vidas, escolhas, modos de ser, agir e fazer.

Seguindo a sequência da operação historiográfica que propus, fui em busca da construção das referidas fontes, atentando às especificidades que não foram produzidas em outra época e, sim, que estão sendo feitas no presente, as fontes orais. Para obtê-las, precisava das(dos) narradoras(es), evocando os preceitos de Benjamin (2012). E na experiência da “entre-vista” (PORTELLI, 2016), do entreolhar-se, do movimento de pergunta, resposta, silêncio e lágrimas, fui descortinando os véus de minha visão. Utilizando a metodologia da história oral, seguindo os preceitos e orientações já abordados por mim em outros trabalhos (PRANTO, 2018), e destacados em obras de autores como Meihy e Holanda (2017), Alessandro Portelli (2016), dentre outros, passei à elaboração de roteiros e gravação das narrativas, pela primeira vez registradas por mim através de videoconferência (o que oportunizou ganhos e perdas, posteriormente discutidos em trabalho oportuno).

Inicialmente pensadas como temáticas, as entrevistas foram se transformando em história oral de vida de professoras(es), pois quanto mais lhes ouvia, mais eu entendia a afirmativa de Nóvoa (2012, p. 17) de que “é impossível separar o eu profissional do eu pessoal”. As reflexões sobre a história de vida de professoras e professores, e suas narrativas, abordadas a partir de trabalhos como os de Everardo Paiva de Andrade, Juniele Rabêlo de Almeida e Mariana Silva (2019), foram fundamentais para melhor analisar as memórias docentes.

Assim, ao longo de 2021, juntamente com as bolsistas de iniciação científica vinculadas ao projeto, realizei seis entrevistas de história oral com professoras(es) de História, que atuaram no Rio Grande do Norte. O material, devidamente aprovado para disponibilização, foi editado, transcrito literalmente e “transcriado” (MEIHY; HOLANDA, 2017, p. 133), transformando-se em narrativas escritas. Cabe salientar a participação das(dos) narradoras(es) ao longo de todo esse processo. Alguns que apenas conferiram as produções, outros que participaram ativamente da construção da versão final dos textos, estabelecendo entre nós uma longa parceria e um intenso trabalho compartilhado.

As(os) entrevistadas(os) atuaram (ou ainda atuam) na rede básica de educação do RN, alguns já aposentados e outros ainda na ativa. As(os) que se formaram na graduação, entre os anos 1970 e 1980, foram: o professor João Maria Valença de Andrade, a professora Miriam Soares e a professora Dione Pessoa Ferreira. As(os) que ainda se encontram na ativa e tiveram formação e atuação, entre os anos 1990 e 2000, foram: a professora Andreia Regina, o professor Nadson Gutemberg e a professora Maria do Socorro Batista. Todas(os) permitiram que seus nomes fossem citados e suas narrativas publicizadas, tendo sido orientadas(os) quanto ao teor da entrevista e assinado Termos de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE.

Foi ao longo desse processo, na troca de olhares e impressões entre mim e as(os) entrevistadas(os), em uma relação de autoridade compartilhada (FRISCH, 2016) daquelas narrativas docentes, que percebi haver um forte ponto de aproximação, para além do que eu imaginava encontrar, entre aquelas experiências (LARROSA, 2020), aparentemente tão peculiares, particulares e pessoais.

Ao ouvir professoras e professores de História que atuaram no Rio Grande do Norte, comecei a perceber o quanto, mesmo em cenários tensos, desfavoráveis e até mesmo repressivos, elas(es) resistiam e criavam alternativas. Quando os sistemas de ensino e as instituições escolares tentavam (e por vezes ainda tentam) defini-las(os) como meras(os) técnicas(os), sujeitos sob controle, que apenas recebiam ordens, elas(es) faziam uso das táticas (CERTEAU, 2014) da burla e da inventividade para (re)agir em suas salas de aula, mesmo que sob formas discretas ou até camufladas.

Para além do contexto histórico em que estavam inseridas(os), as(os) professoras(es) traziam consigo as marcas de suas histórias de vida, trajetórias escolares, formação inicial e experiência profissional (NÓVOA, 2012). Por isso, as escolhas feitas por cada uma(um) eram distintas, mas as(os) professoras(es) se encontravam ao assumir o protagonismo de suas experiências, mesmo que à custa do desenvolvimento de táticas.

Diante disso, o objetivo central deste trabalho é refletir sobre as táticas desenvolvidas por professoras(es) de História enquanto formas de resistência às estratégias de controle promovidas pelo Estado brasileiro e pelas instituições escolares.

Do militarismo para a vida, Certeau (2014) ajuda a perceber – em falas como: “eu precisei inventar um novo programa” (ANDRADE, 2021), ou, ainda, “eu tentava sugerir, discretamente, que os alunos lessem mais que aqueles livros didáticos” (SILVA, 2021) – o quanto um sistema de ensino, ou um regime político, não foi nem é capaz de deter total controle sobre o que é ensinado ou sobre como pensam e agem as(os) professoras(es). Os conceitos de estratégia e tática de Certeau permitem que seja possível identificar o quão moldável é o currículo escolar, pois, se por um lado, o Estado impõe conteúdos a serem ensinados e formas de fazê-lo, por outro, as(os) professoras(es) “criam” seus próprios planos de curso e atividades diversas, sugerem caminhos fora do prescrito e constroem narrativas fora dos registros oficiais.

Em proporções e escalas diferentes, fui percebendo que as “maneiras de agir” a partir das táticas aproximaram diferentes carreiras, mesmo que sob distintas motivações. Para todas(os) as(os) ouvidas(os) até aqui, isso era um sinal de certa resistência à realidade vivida. Atitudes que, num primeiro momento, poderiam soar como sujeições às estratégias de controle se desnudam diferentes se eu aproximo o foco e me permito desenvolver a empatia histórica (SOLÉ; COSTA, 2017).

Estratégias de controle sobre a docência, entre continuidades e transformações

Para Certeau (2014, p. 46), “[...] as estratégias escondem sob cálculos objetivos a sua relação com o poder que os sustenta, guardado pelo lugar próprio ou pela instituição”. Nessa perspectiva, qual seria o papel do Estado das instituições escolares? Construir estratégias de controle do que é ensinado seria uma delas? Prescrever modos de fazer às(aos) professoras(es) lhes imporia também seu papel social? A depender do contexto histórico, do lugar e da tradição de uma determinada instituição, o poder sobre o que ocorre nas escolas e suas estratégias se transformam, se ajustam e se adaptam. Portanto, neste item, serão apresentadas estratégias desenvolvidas pelo Estado brasileiro e por instituições escolares a fim de controlar o fazer pedagógico das(os) professoras(es) em geral e, especificamente, daquelas(es) que lecionaram História ao longo das últimas décadas do século XX.

Se é certo que, em pleno século XXI, o poder estatal e as instituições escolares constroem estratégias para definir o fazer docente em sala de aula, prescrevendo currículos formais, distribuindo materiais didáticos específicos, ou controlando aquilo que é ensinado, é inegável que a forma de fazê-lo se alterou nitidamente ao longo das últimas décadas do século anterior no Brasil.

Com o país imerso em múltiplas iniciativas de educação popular, tidas como progressistas e contestatórias nos anos 1950 e 1960, e vivendo sob a lógica da permanente “ameaça comunista”, o grupo político que organizou e efetivou o golpe militar de 1964 logo se preocupou em controlar um dos mais profícuos espaços de propagação de ideias consideradas “subversivas”, a escola.

No estado do Rio Grande do Norte, houve iniciativas de controle do setor educacional, como o fechamento de acampamentos escolares, a busca por materiais subversivos em suas dependências e o indiciamento de professores que estavam à frente da campanha “De pé no chão também se aprende a ler”. Tais fatos ocorreram no imediato pós-golpe, ainda em abril de 1964, e fizeram com que a campanha “De pé no chão também se aprende a ler” fosse considerada subversiva já nos primeiros meses da ditadura.

A fim de conter lideranças políticas de esquerda e pôr fim às iniciativas populares e progressistas, o governo do Rio Grande do Norte, alinhado aos militares, rapidamente instaurou um inquérito na Polícia Militar. Este visava “higienizar” a sociedade potiguar da ameaça comunista com a promoção da perseguição de membros da Prefeitura de Natal, da campanha “De pé no Chão também se aprende a ler”, de sindicatos, do movimento estudantil e de quaisquer outros setores considerados comunistas ou, de alguma forma, identificados como ameaça ao regime em vigor.

Como resultado dessa iniciativa, surgiu o chamado Relatório Veras, considerado no Rio Grande do Norte, “[...] dentre os vários inquéritos policiais existentes na época, o mais abrangente e, portanto, o mais importante [...]” (GERMANO, 2021, p. 184). Esse documento dedicou uma seção exclusiva à Prefeitura de Natal e, assim, se referiu à campanha “De pé no chão também se aprende a ler”: “a subversão educacional que, sob o nome-slogan de ‘De pé no Chão Também se Aprender a Ler’, era dirigida e supervisionada pela Secretaria de Educação, Cultura e Saúde da Prefeitura de Natal [...] (VERAS, 1964).

Sob a pecha de subversiva e tendo seus materiais, que discutiam voto, cultura popular e política, listados como prova de uma revolução em curso, aquela campanha educacional foi encerrada e seus líderes indiciados e presos. Além das iniciativas contra a campanha, o relatório também indiciou líderes do movimento estudantil e taxou de subversivas outras iniciativas, como o Centro Popular de Cultura-CPC da União Nacional dos Estudantes, o Movimento de Cultura Popular-MCP de Recife e o movimento estudantil do estado. Mas se a repressão, com iniciativas de controle autoritárias, agiu sobre a educação potiguar já nos idos de abril de 1964, ela não se restringiu a esse momento.

Ao longo dos anos 1960 e 1970, a ditadura tratou de construir diversas estratégias de controle sobre o que era ensinado e como deveria sê-lo. Já em 1969, houve a aprovação do Decreto Lei nº 869, de 12 de setembro de 1969, que, sem promover amplas discussões com setores educacionais, instituiu a obrigatoriedade das disciplinas Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política Brasileira (OSPB).

Junto ao Decreto Lei nº 869, de 12 de setembro de 1969, outras legislações, a exemplo da Lei nº 5692, de 11 de agosto de 1971, foram construídas visando moldar o sistema de ensino e estabelecer um caráter tecnicista, definindo seus componentes, formas de ministrá-los e exercendo maior controle sobre as instituições de ensino e as(os) professoras(es), com vistas a alcançar princípios caros a uma pedagogia tecnicista, se considerarmos a definição apresentada por Dermeval Saviani (2013, p. 379-380).

Ainda nos anos 1970, no Rio Grande do Norte, a perseguição a professores (ao que diziam e como agiam em sala de aula) continuava se fazendo presente para além da letra da lei. Segundo a professora Dione Pessoa Ferreira, ao falar sobre situações em que foi chamada a prestar depoimentos no Exército e na polícia, a repressão cuidava até mesmo das expressões artísticas fomentadas em sala de aula.

A vez que fui chamada ao quartel general foi a coisa mais besta. Fiz uma apostila e tinha um aluno meu que era caricaturista e ele disse: ‘Professora, vou desenhar aqui uma capa’. Ele colocou o Brasil, que estava chorando, na verdade, e o povo perto. Quando apostila começou a vender, fui chamada, porque ele colocou uma corrente e o homem achou que eu estava tramando contra a segurança (FERREIRA, 2021).

A narrativa da professora, que trabalhava em escolas públicas e em um curso preparatório para o vestibular, entre fins dos anos 1960 e início dos anos 1970, em Natal, demonstra como mesmo situações cotidianas em uma sala de aula poderiam virar objeto de perseguição. Numa explícita “gestão” do que faziam docentes e outros profissionais em seus ambientes de trabalho, o governo autoritário impunha a sua força e demonstrava as suas estratégias de controle ao indiciar, convocar para prestar depoimentos, instalar “olheiros” em escolas e universidades ou ainda estimular delações entre os que conviviam em um mesmo ambiente.

Na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, assim como em outras instituições de ensino superior, houve a instalação formal de uma Assessoria de Segurança e Informações do Ministério da Educação e Cultura (ASI/UFRN), a fim de identificar possíveis práticas “subversivas” de professoras(es), servidoras(es) e estudantes, conforme está registrado no relatório final da Comissão da Verdade da referida instituição.

A maneira institucional pela qual o regime militar brasileiro encontrou para vigiar as universidades brasileiras foi a criação, no início dos anos 1970, das Assessorias Especiais de Segurança e Informações universitárias, nomeadas pelos reitores e subordinadas ao Ministério da Educação e Cultura (MEC). A Assessoria de Segurança e Informações da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (doravante citada como ASI/UFRN) foi criada pelo Reitor Onofre Lopes da Silva em 1971 no final de sua gestão (1959-1971), que nomeou como seu primeiro ‘chefe’ o Professor de Direito Carlos Augusto Caldas da Silva (1970-1971), um liberal considerado amigo dos estudantes. Funcionou no Campus Universitário até meados dos anos 1980 [...] (BUENO, 2015, p. 85).

O relatório também revela o funcionamento, as funções e as estratégias empregadas pela ASI/UFRN, a partir de sua chefia, o ex-reitor Genibaldo Barros.

[...] eu me lembro que pedi ao Adriel (chefe da ASI/UFRN) que se arvorava, se arvorava não, ele por direito tinha uma delegação de pesquisar o que é que tinha acontecido. Ele tinha uns informantes, algumas pessoas que colaboravam com ele anonimamente [...] (BARROS apud BUENO, 2015, p. 86).

A Assessoria tinha por função principal evitar e coibir ações consideradas subversivas dentro da universidade. Para tanto, fazia uso de estratégias, como aquela descrita pelo ex-reitor, que iam desde plantar informantes em salas de aula da universidade, assembleias estudantis e espaços de convivência, até a elaboração de fichas individuais de professoras(es) e estudantes consideradas(os) “suspeitos” de subversão.

Essas estratégias da ditadura poderiam impor uma censura prévia, por isso, nem tudo cabia ser dito, sobretudo em salas lotadas, em que pouco se conhecia acerca dos ouvintes que ali estavam. Mesmo porque, segundo Bueno constatou a partir de parte da documentação da ASI localizada no arquivo Nacional em Brasília,

[...] o meio mais comum de coleta de informações era a infiltração em salas de aula e assembleias estudantis, repassadas depois ao ‘chefe’ e ainda a utilização de fichas com dados pessoais, endereços e comentários sobre as atividades, como o fichário da ASI do CERES em Caicó demonstrou [...] (BUENO, 2015, p. 93).

Em um período repressivo, como foram os anos da ditadura, são explícitas as estratégias de controle do Estado sobre o fazer docente, havendo espaço para denúncias anônimas aos órgãos repressivos; elaboração de fichas individuais com descrição das ações de professoras(es) e estudantes, em órgãos de segurança, a exemplo da ASI/UFRN; indiciamento de professoras(es); prescrição de um currículo formal que restringia o ensino de História, Filosofia e Sociologia, além da criação de componentes como Educação Moral e Cívica ou Organização Social e Política Brasileira.

Mas é possível afirmar estarmos livre de outras estratégias de controle em momentos democráticos? Ou são utilizadas formas distintas, com objetivos diferentes, mas também visando o controle?

Encerrada a ditadura militar brasileira em 1985, seus resquícios ainda continuaram (continuam?) presentes na sociedade brasileira como um todo e, em particular, na educação. É possível demonstrar isso de várias maneiras, por exemplo, apenas em 1993, oito anos após o fim do regime, é que foram extintos os componentes de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira (OSPB) da educação por meio da Lei nº 8663, de 14 de junho de 1993.

E mesmo com o fim da obrigatoriedade desses componentes, algumas instituições podem ter levado um período ainda maior para retirá-los efetivamente de seus currículos. A reorganização da educação brasileira e o fim do modelo empregado pela ditadura ocorreu, oficialmente, apenas em 1996, com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996.

Apesar da continuidade de componentes como Educação Moral e Cívica e OSPB, o professor João Valença destacou que, na realidade em que ele atuava, por exemplo, esses componentes já não faziam mais qualquer sentido desde o final dos anos 1980.

[...] isso aí já havia caducado, já se tinha vivenciado toda aquela fase de decadência da ditadura, o movimento das Diretas Já, a anistia, a eleição indireta, a transição para o presidente civil. De modo que a Educação Moral e Cívica permanecia por gravidade, ela foi extinta acho que no começo dos anos 1990 (ANDRADE, 2021).

Já na entrevista com a professora Miriam Soares, que atuou em colégios militares nos anos 1990, pude ter a dimensão das estratégias de controle sobre a prática docente naqueles ambientes, mesmo após a redemocratização. Ao narrar a organização da sala de aula e sua disposição favorável à vigilância, é impossível não lembrar dos modelos estabelecidos em instituições totais (GOFFMAN, 1987).

[...] a sala, a composição da sala de aula, tinha o quadro, a mesa do professor, e a porta era sempre lá do outro lado, porque quando a gente estava no quadro escrevendo alguma coisa, muitas vezes eu me virava e estava alguém, uma pessoa, assim, um colega, chefe. Então, o teu chefe estava lá olhando como era que você estava trabalhando aquele conteúdo, principalmente a gente de História, que era muito fiscalizado. Então, eles chegavam, ficavam em pé assistindo à aula, às vezes assistia a aula todinha (SILVA, 2021).

A narrativa da professora apresenta uma realidade vivida em meados dos anos 1990. Mesmo com a democracia já reestabelecida, uma professora passava pelo constrangimento de ter as suas aulas assistidas por superiores, numa explícita estratégia de controle do que era dito, escrito, ensinado. Apesar do fim da ditadura, seu fantasma continuava rondando os corredores e salas de aula em diferentes colégios militares pelo Brasil, assombrando as(os) professoras(es) em escalas diferentes, a depender do comando e da tradição de cada instituição.

Em escolas civis, as estratégias do autoritarismo ditatorial parecem ter acontecido em menor escala (ao menos naquelas onde nossas(os) narradoras(es) atuaram, mas o sucateamento das redes públicas de ensino, com salas superlotadas e pouco financiamento, agia diretamente sobre as escolhas docentes.

Ao longo das últimas décadas do século XX, as escolas passaram a receber um número crescente de estudantes. Um dado que sinaliza nessa direção é a taxa de escolarização líquida, que se manteve em ascensão entre as décadas de 1980 e 2015, chegando a 96,5 para o Ensino Fundamental e 56,9 para o Ensino Médio, conforme dados disponíveis nas séries estatísticas MEC/INEP/Censo Escolar 1980/2000 do IBGE (2022).

A carreira docente, porém, não contou com o mesmo crescimento e as condições de trabalho foram paulatinamente precarizadas, sucateadas. Mesmo com a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases de 1996, que asseguraram a valorização da carreira, a lei do piso para o magistério nacional, Lei nº 11.738, de 16 de julho de 2008 foi instituída apenas nos anos 2000.

Em um contexto como esse, além do sucateamento das redes públicas de ensino, que afeta diretamente o fazer docente, o Estado brasileiro e as instituições de ensino passaram a estabelecer estratégias de controle ao incorporar as avaliações externas e as prescrições curriculares, que passaram a ser utilizadas, visando moldar o currículo escolar e definir o fazer docente, sobretudo a partir dos anos 1990. O contexto econômico neoliberal, aliado às avaliações externas e ao pouco investimento nas escolas e na carreira docente, motivou o discurso de insucesso da escola pública.

Nesse novo contexto, as ideias pedagógicas sofrem grande inflexão: passa-se a assumir no próprio discurso o fracasso da escola pública, justificando sua decadência como algo inerente à capacidade do Estado de gerir o bem comum. Com isso se advoga, também no âmbito da educação, a primazia da iniciativa privada regida pelas leis do mercado (SAVIANI, 2013, p. 428).

Ao discorrer sobre a sua atuação na rede estadual, a professora Andreia Regina Mendes sinalizou para esse sucateamento destacado por Saviani e a tensão em relação à rede privada, ao descrever o que fazia para conseguir trabalhar com condições mínimas e o incômodo de seu pai acerca disso. Segundo ela, nos anos 1990,

[...] Na escola pública, inclusive, eu tive que pedir ao meu pai um mimeógrafo para eu poder fazer as atividades dos meus alunos, já que na escola o mimeógrafo estava sempre dando problema e meu pai conseguiu isso, comprou um mimeógrafo. Eram litros e litros de álcool e o meu pai dizia ‘como é que você tá usando o dinheiro que você ganha na escola particular pra dar aula na escola pública’ [...] (MENDES, 2021).

Aqui, a própria permanência no magistério era desafiada diuturnamente, sobretudo, se a referência fosse a rede pública de educação. Mas as estratégias do mercado também afetavam diretamente os caminhos da educação brasileira. Em um mundo que caminhava para a informatização e a globalização, tudo parecia tornar-se mercadoria e com a educação não era diferente.

A propagação do discurso de insucesso das redes públicas abriu espaço para o advento de propostas educacionais neotecnicistas, pautadas em competências, habilidades e resultados aferidos. Pouco a pouco, imersos nessa estratégia de estabelecimento de um currículo normativo padronizado e passível de ser aferido, professoras e professores passaram a ter as suas ações acompanhadas e definidas nos mínimos detalhes.

Ao chegar aos anos 2000, em um passado bem mais recente, também é possível observar o crescimento de movimentos como o programa “Escola sem partido”, que elevou à máxima potência a busca pelas estratégias de controle da ação docente em sala de aula e colocou professoras(es), sobretudo as(os) das Ciências Humanas, a exemplo da História, sob permanente suspeição. Para tanto, foram utilizadas argumentações negacionistas e teorias conspiratórias como bem destaca o professor Marcos Napolitano (2021, p. 98).

Mesmo com a não aprovação e o arquivamento do Projeto de Lei nº 867, de 23 de março de 2015 que instituía a “Escola sem partido”, suas ideias conspiratórias permaneceram e ameaçaram, ainda mais, o conhecimento escolar durante o ensino remoto emergencial, ocorrido nos últimos anos, em função da pandemia de Covid-19. Agora, além das estratégias do Estado e das instituições escolares, há ainda aquelas elaboradas pelas próprias famílias das(os) estudantes, que se julgam autorizadas e capazes de avaliar o que é ensinado em sala de aula, passando a buscar nos cadernos, livros e (durante o ensino remoto emergencial) aulas remotas aquilo que deve, ou não, ser lecionado. Isso pode ser percebido na narrativa da professora Maria do Socorro Batista que afirma: “[...] principalmente, nesse contexto on-line, porque nós entramos na casa dos alunos, eles estão em formação, mas muitos estão enrijecidos, os que estão ao seu lado e de repente veem uma afirmativa ou não da sua fala” (BATISTA, 2021).

Em seguida, a professora narrou o constrangimento de justificar para um pai porque um professor de História ensinava Socialismo, por exemplo. Na sua fala, é possível perceber que o tempo todo a professora, que na circunstância respondia também como coordenadora da instituição, tentava se justificar e pautar que o fazer do docente estava orientado por um material didático específico. Tal material também pode ser considerado como uma estratégia de controle promovida pela indústria cultural e posta em prática pelas instituições escolares. Tanto que a professora se refere ao material dizendo que ele “leciona”, como pode ser percebido no fragmento a seguir:

[...] então o que o professor falou foi sobre o Socialismo, que isso é o material que leciona, sobre o Socialismo, Comunismo e vem para o Brasil. O que o pai me colocou foi que ele (o professor) defendeu o Socialismo e o Comunismo e que achava que estava errado [...] (BATISTA, 2021).

A fala da professora pode representar a de muitos outros profissionais que precisam lidar diariamente com um cenário de polarização política e de tentativa, cada vez mais explícita, de controle sobre o que é ensinado em sala de aula, seja tendo que justificar as suas escolhas às famílias, ou sendo obrigados a seguir fielmente alguns materiais didáticos predefinidos pela instituição. A docência tem sido objeto de vigilância, numa época em que políticos extremistas e outras figuras públicas tentam encorajar jovens a gravar seus professores e a denunciar suas supostas práticas ideologizantes.

Em um contexto como esse, o que fazem as(os) professoras(es)? Apenas cumprem programas e reproduzem materiais didáticos predefinidos? Em outros momentos, vivendo sob ditaduras, apenas repetiram narrativas cristalizadas? Ou é possível tatear, e identificar, práticas de resistência, mesmo que em uma escala micro?

Resistindo às tensões: as táticas desenvolvidas por professoras(es) de História

Percebemos que se o Estado e as escolas criam suas estratégias de controle sobre o que ensinam e como agem as(os) professoras(es), é provável que haja também uma “margem de manobra” (CERTEAU, 2014, p. 43) para o desenvolvimento de táticas. Estas criam, distorcem, manipulam, ocultam ou burlam, se preciso for, para escapar de um controle que se pretende total. Isso acontece, pois, segundo Certeau (2014, p. 40) apesar da existência de uma “rede de vigilância”, a sociedade não se reduz a ela. Os dominados encontram, ou criam, “maneiras de fazer” e, assim, elaboram o que ele chama de uma “rede de antidisciplina”.

Assim, as “[...] estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo que as táticas só podem utilizá-los, manipular e alterar” (CERTEAU, 2014, p. 87). E, nessas “maneiras de fazer” e de viver das/os (os) professoras(es), a docência é forjada, recebendo as marcas do sujeito, de sua vida e trajetória profissional, do período histórico e do regime político vividos.

Quando entrevistei a professora Dione Pessoa Ferreira, formada durante a ditadura, que lecionou no auge daquele regime autoritário, me questionei se, e como, ela poderia resistir diante de um cenário tão desfavorável com a ameaça de perder empregos públicos e privados. Questionava-me, e a questionava, como era possível ensinar História naquele contexto e a professora mostrava, pouco a pouco, como “escorregava” das mãos do militar que a indiciava. Ela reconstruiu um desses momentos narrando, bem-humorada, o episódio da capa do material didático com o Brasil chorando e a sua tática para burlar o interrogatório: “Fui tentar explicar, dizer que não era chorando, era suando para ver se amenizava o negócio, fui dar uma explicação que depois da revolução, o Brasil desenvolveu-se muito… fui mentir” (FERREIRA, 2021).

O riso e a burla, expressa na mentira, são o que Certeau (2014, p. 46) reconhece como maneiras de “aproveitar a ocasião”. Essas “maneiras de fazer” da professora Dione, que demonstram a vitória do fraco sobre o forte, era a tentativa de enganar aquele que detinha o poder, a ordem, a força. Ela não possuía um “próprio”, não controlava o acontecimento (interrogatório), mas articulava a partir dele. Ela inventou uma nova forma de olhar para a capa daquele material e jogou com a abstração, zombando do indiciador e arriscando que ele não percebesse.

Em outro momento, a professora discorreu sobre ter usado o tom humorístico para responder a uma pergunta sobre a sua aproximação com as ideias de Hitler, por ter discutido sobre essa personagem histórica em sala de aula. Ao narrar o diálogo com o policial, ela afirmou que respondeu: “Não gosto de Hitler! Sou muito expansiva assim, então, eu disse: gosto do meu marido!” (FERREIRA, 2021). A comicidade empregada na fala revela mais que sua inclinação ao humor. O sarcasmo da resposta demonstra que a tática empregada pela professora utiliza os elementos que dispõe para transitar pelas circunstâncias impostas pelo outro. A professora estava dentro de um espaço militar e fazia graça de uma questão absurda, buscando comunicar que aquilo tinha pouca, ou nenhuma, importância, e que, portanto, devia ser também desconsiderado por aquele que a interrogava.

É de se deduzir que muitas devem ter sido as táticas desenvolvidas por docentes para gozar de alguma liberdade em suas salas de aula durante a ditadura no Brasil e, igualmente ou de forma semelhante, em outros cenários de autoritarismo. Mas estariam as(os) docentes completamente livres para exercerem seu ofício com a transição e o processo de democratização?

É evidente que órgãos de controle como a ASI nas universidades, e outros que cuidavam da inteligência do regime, entraram em decadência ao longo dos anos 1980 e encerraram suas práticas nos anos 1990. No entanto, as(os) professoras(es) ainda passaram anos convivendo com instrumentos “caducos” do autoritarismo.

Apesar disso, as(os) professoras(es) deixam marcas de como conseguiram elaborar “maneiras de fazer” e transgredir esses resquícios ditatoriais. Na narrativa do professor João Maria Valença de Andrade, por exemplo, ele apresentou como reorganizava o programa de Educação Moral e Cívica e o transformava em uma proposta completamente distorcida do que fora pensada pelo regime. Segundo ele,

[...] a cada bimestre eu começava privilegiando um daqueles conteúdos que estavam lá no programa de Educação Moral e Cívica. [...] Então, nos encontros restantes, era quando eu colocava em prática uma atividade mais dialógica com as turmas. [...] Então, no primeiro bimestre, eu pedia que eles fossem entrevistar o pai, ou a mãe, para que eles falassem como tinha sido a escola, o que que era importante aprender na escola. E aí, eles faziam essas conversas. Depois, apresentavam em sala de aula. [...] No outro semestre, eu ia ensiná-los a ver telejornais. Eu explicava o que era uma notícia local, uma notícia nacional, uma notícia internacional. Mostrava como a televisão funcionava, que o importante era o comercial e não a novela. E, depois, eles iam analisar uma notícia (ANDRADE, 2021).

O que importa perceber é que as(os) professoras(es) de História desenvolveram "microrresistências" num momento de transição de um regime autoritário para um Estado democrático de direito. Estavam submetidas(os) a diferentes estratégias que lhes impunham controle, como as avaliações externas e os currículos prescritos, somados ao sucateamento das redes de ensino e ao investimento insuficiente em suas carreiras. Assim, usaram táticas próprias, forjadas a fim de manterem-se nas carreiras escolhidas e exercerem o magistério a partir de um conjunto de valores que consideravam cruciais ao seu fazer.

Para o professor João Valença, a tática criada foi apresentar brevemente o currículo prescrito para EMC e, logo em seguida, pôr em prática um currículo alternativo, elaborado por ele e considerado mais adequado. Com essa prática, o professor não retira a validade da legislação em vigor, mas a extrapola, e demonstra (no cotidiano de suas salas de aula) que ele faz algo além do que lhe foi prescrito, se movendo naquele espaço sem romper com o poder estabelecido, mas também sem curvar-se totalmente a ele.

É preciso, ainda, destacar que as táticas utilizadas por cada professora ou professor dialogam também com o contexto singular das instituições em que estão inseridas(os). Além da construção de currículos alternativos, são exemplos de táticas a orientação pela busca de outras leituras, a elaboração de seus próprios materiais didáticos, a compra de equipamentos com recursos próprios, a manipulação da linguagem (em diálogos com pais de estudantes) ou ainda a adaptação de práticas buscando se comunicar com estudantes deficientes, mesmo sem ter qualquer formação para tal.

A depender do perfil da instituição em que atuavam, as(os) professoras(es) escolhem as táticas mais adequadas. Percebo que elas eram as respostas possíveis para seguirem com suas profissões, já que estratégias e táticas desenvolvem “tipos de operações distintas”, pois “[...] nesses espaços que estratégias são capazes de produzir, mapear e impor”, as táticas “[...] só podem utilizá-los, manipular e alterar.” (CERTEAU, 2014, p. 87).

Ao discorrer sobre a docência em colégios militares, nos anos 1990, a professora Miriam Soares Silva destacou que:

[...] quando eu trabalhava com os meus alunos, eu dizia que era apenas um ponto de vista, que existiam muitos pontos de vista e que era interessante buscar. Eu não podia chegar e trabalhar de uma outra forma, que eu ia contra o sistema. Eu poderia entrar até em um processo e me colocarem para fora. Então, é aquela história, eu tinha que colocar da maneira que eles queriam que eu colocasse, mas deixava sempre em aberto as demais possibilidades. Assim, eles poderiam buscar e aquilo ali não se engessava, nem se fechava naquilo que estava sendo passado para eles (SILVA, 2022).

Ou seja, ela agia aparentemente conforme o estabelecido pelas estratégias institucionais (ao seguir um livro didático específico), mas, antes ou depois da explicação, entrava com a sua tática e deixava “escapar” que nem todos pensavam conforme aquele material que ela reproduzia, que era possível ter acesso a outros pontos de vista. Quais? Não fica explícito. Talvez tenham passado despercebido à maioria de seus alunos. Mas será que a todos? A dúvida poderia ser plantada, mesmo que não houvesse espaço formal para ela. Táticas como essa não demonstrariam algum incômodo, alguma resistência ou a simples burla como forma de desviar alguns centímetros fora do percurso definido? E essa não seria a resistência cabível para se manter dentro daquela carreira? O inconformismo da professora, apesar de apresentado em ações pontuais, demonstrava a busca pelo que está fora, por agir para além do limite estabelecido pela instituição, mas sem ir tão longe a ponto de ser prejudicada. Ou seja, ela se movimentava dentro do espaço do outro, mas deixando pistas do seu próprio querer.

Com os anos 1990, chegaram também as mudanças na legislação, no currículo, e foram retiradas algumas marcas da ditadura, a exemplo dos já citados componentes curriculares moralizantes. No entanto, esse novo momento marcado pelo avanço democrático também presenciou a expansão de um modelo de educação cada vez mais próximo de mercadoria.

A mobilização docente, através de lutas sindicais e conquistas para a carreira do magistério, foi um avanço inegável às(aos) docentes enquanto categoria, tanto na educação básica quanto no ensino superior. Mas, para além da ação coletiva, no plano individual, as(os) professoras(es) seguiam desenvolvendo suas táticas, a fim de permanecerem em suas carreiras.

Sobre esse período, a professora Andreia Regina de Moura Mendes destacou algumas práticas desenvolvidas para assegurar que o cotidiano de suas aulas seguisse adiante, mesmo quando não dispunha de quase nenhuma condição de trabalho. Ela buscava seguir preparando materiais didáticos e comprando equipamentos para utilizar em suas aulas, chegando a empregar seus próprios recursos para tanto.

No plano individual, a professora Andreia Mendes tentava, mesmo que isoladamente, exercer algum controle sobre seu fazer. Contrariando familiares que questionavam sobre gastar o parco salário com o trabalho, ela continuava imprimindo seus textos, copiando páginas e mais páginas, porque desistir do espaço escolar e do ensino de História não lhe parecia ser uma alternativa. Já o professor João Valença também narrou práticas semelhantes no início dos anos 1990, quando datilografava em casa fichas de conteúdos e fazia cópias a serem utilizadas pelas(os) estudantes em sala de aula. Além de resistirem ao sucateamento das escolas, ambos sinalizavam não limitar as suas ações ao que estava estabelecido nos currículos prescritos, já que elaboravam seus próprios materiais didáticos.

O professor Nadson Gutemberg Santos falou sobre como elaborou “jeitinhos” (lidos como táticas) para se comunicar com alunos surdos, ou com estudantes com outras Necessidades Educacionais Específicas - NEE, já que não tinha formação para tal. Sem nenhuma orientação, por vezes, seus esforços tinham pouco, ou nenhum, resultado.

Eu lembro de uma vez que eu fui procurar um ortopedista, porque eu vivia com dores nos braços, eu estava dando aula numa escola e eu tinha um aluno que ele era surdo e aí eu nunca tinha recebido preparação nenhuma sobre como tratar um aluno com deficiência auditiva. Procurando fazer o melhor para ele, eu passava a aula gesticulando e fazendo gestos e subindo os braços e descendo os braços, passava a aula. [...] O pior é que esse aluno só fazia rir. Eu fazia mil gestos para ele e ele só fazia rir, porque ele não estava entendendo o que eu estava fazendo (SANTOS, 2021).

Mesmo diante do fracasso narrado, o professor afirmou continuar buscando caminhos para se aperfeiçoar e melhorar a dinâmica em sala de aula. Ele tentou articular “maneiras de fazer”, a fim de transpor as limitações impostas pelas circunstâncias e enfatizou que isso partia dele, o que não o impedia de ver a ausência do poder público diante da situação.

A professora Maria do Socorro Batista apontou, em sua narrativa, uma tática para buscar sustentação dos discursos proferidos em sala de aula e demonstrou como o fez: em uma determinada ocasião, utilizou o próprio discurso de um pai para defender um professor.

Eu disse: ‘Pai, o senhor tem certeza de que foi dessa forma?”. Ele disse: “Porque só na outra aula que ele veio falar do Capitalismo’. [...] Fui falar com o pai, a esposa dele estava do lado. Eu disse: ‘O senhor acabou de defender o profissional, ele tem que falar todos os conceitos, para poder chegar no outro, ele nem desvalorizou, nem valorizou, nem enfatizou o capitalismo, ou o comunismo, nem o socialismo, ele simplesmente deu a aula dele’ (BATISTA, 2021).

A partir de um jogo de retórica, a professora conseguiu caminhar dentro daquele espaço e convencer o outro de seu equívoco. Esse tipo de lida com a língua respresenta , segundo Certeau (2014, p. 46) “[...] maneiras de mudar (seduzir, persuadir, utilizar) o querer do outro” e são marcas características das táticas.

É possível observar, então, que as escolhas e invenções de táticas de cada professora ou professor são particulares, mas guardam em comum o movimento dentro do espaço do outro, lidando com as regras impostas e tendo que combinar “elementos heterogêneos” presentes naquela circunstância para poder extrapolar o limite do controle estabelecido.

Considerações finais

Viver do magistério em um país marcado por desigualdades sociais e golpes políticos recorrentes não é uma tarefa fácil. Manter-se na profissão já evoca alguma dose de resistência. Vivenciá-la e seguir acreditando em seu caráter transformador mobiliza o pensar a respeito de como isso é possível.

O Estado e as instituições escolares, a própria indústria cultural, e, às vezes, até mesmo as famílias, desenvolvem estratégias próprias visando definir o que e como a professora ou o professor deve lecionar. Somando-se a isso o sucateamento das escolas e das carreiras docentes, observamos o fortalecimento da ideia de que as(os) professoras(es) estão fortemente submetidas(os) a um controle quase total do seu fazer.

As(os) professoras(es) parecem subjugadas(os) ao longo das últimas décadas, mas um olhar atento possibilita ver que o seu campo de batalha, seu espaço de trabalho, se apresenta também como um espaço de resistência diária.

Utilizando-se de diferentes “maneiras de agir” as(os) professoras(es) sobreviveram, e viveram, suas docências em diferentes contextos históricos, aproximando-se pelo escape ao controle total.

As táticas das(os) professoras(es) aqui discutidas se apresentaram, às vezes, com ares de comicidade, outras ainda como o próprio ato de mentir para escapar de um interrogatório policial. Mas também puderam ser identificadas enquanto táticas, atitudes como a da professora, que mesmo em um colégio militar, sugeria leituras fora do material prescrito, daquele professor que construía seu próprio programa de ensino ou de outra professora que elaborava e imprimia seus materiais em casa.

Diante desse conjunto de ações, é possível observar as relações depoder que envolvem/envolveram o magistério no Brasil. E, diante de tudoisso, entendo que ouvir professoras(es) é um caminho necessário para seguirmúltiplas direções na pesquisa. A partir dessas vozes, é possível identificarproblemas, tensões e potenciais soluções para nossa educação. Partindo doprotagonismo das(os) professoras(es), das memórias, e das análises acercadesuashistórias,tem-seumdensomaterialdepesquisa,e,maisqueisso,detransformação social.

Este trabalho demonstra, a partir das narrativas de professoras(es), oquantoaidentidadedocenteétranspassadapeloatoderesistiremarcadaportáticas que permitem “jogar” com as circunstâncias (im)postas e dar sentido aesta profissão.

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Recebido: 19 de Setembro de 2022; Aceito: 28 de Outubro de 2022

Profa. Dra. Aliny Dayany Pereira de Medeiros Pranto

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)

Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Educação e Diversidade – GEPHED (UFRN/CNPq)

Membro do Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense

E-mail: alinydayany@gmail.com

Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-8998-2343

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