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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.66 Natal out./dez 2022  Epub 18-Abr-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n66id29532 

Artigo

Mario Alighiero Manacorda e a educação da classe trabalhadora na escola pública

Mario Alighiero Manacorda y la educación de la clase obrera en la escuela pública

Cézar de Alencar Arnaut de Toledo1 
http://orcid.org/0000-0002-7813-7950

Helen Cristina de Oliveira Vieira2 
http://orcid.org/0000-0003-0941-9839

1Universidade Estadual de Maringá (Brasil)

2Rede Estadual do Paraná (Brasil)


Resumo

Este artigo tem como objetivo analisar três contribuições de Mario Alighiero Manacorda ao campo da educação brasileira publicados na década de 1980. Os escritos do autor traduzidos no Brasil fortaleceram a discussão sobre a formação da classe trabalhadora e corroboraram com a defesa da escola pública, universal, gratuita e laica. Para tanto, foram examinadas duas entrevistas, uma publicada em 1986 e outra em 1987, e uma palestra proferida em 1987. No que se refere à fundamentação teórica, as análises estão ancoradas no materialismo histórico, especificamente nos escritos de Karl Marx, Friedrich Engels e Antonio Gramsci. Conclui-se que a escola pública é um ganho histórico da classe trabalhadora, deve ser mantida pelo Estado, mas, sem a sua interferência no que diz respeito à disseminação de ideologias. Nesse contexto, o papel da educação é proporcionar ao estudante a apropriação do que há de mais avançado e desenvolvido na ciência, tecnologia, esporte e arte com vistas à formação completa do homem.

Palavras-chave: Educação; História da Educação; Manacorda; Marxismo.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar tres contribuciones de Mario Alighiero Manacorda al campo de la educación brasileña publicadas en la década de 1980. Los escritos del autor, traducidos en Brasil, fortalecieron la discusión sobre la formación de la clase obrera y contribuyeron a la defensa de la educación pública, universal, libre y laica. Para ello, se examinaron dos entrevistas, una publicada en 1986 y otra en 1987. En cuanto a la base teórica, los análisis están anclados en el materialismo histórico, específicamente en los escritos de Karl Marx, Friedrich Engels y Antonio Gramsci. Se concluye que la escuela pública es una conquista histórica de la clase obrera, debe ser mantenida por el Estado, pero sin su injerencia en cuanto a la difusión de ideologías. En este contexto, el papel de la educación es proporcionar al alumno la apropiación de lo que hay de más avanzado y desarrollado en la ciencia, en la tecnología, en el deporte y en el arte con vistas a una completa formación ciudadana.

Palabras clave: Educación; Historia de la Educación; Manacorda; Marxismo.

Abstract

This article aims to analyze three contributions of Mario Alighiero Manacorda to the field of Brazilian education published in the 1980s. The author’s writtings, translated in Brazil, stregthened the discusson on the formation of the working-class and contributed to the defense of public, universal, free, and secular schools. For this purpose, we examined two interviews, one published in 1986 and the other in 1987, and a lecture given in 1987. As for the theoretical basis, the analyses are anchored in historical materialism, specifically in the writings of Karl Marx, Friedrich Engels, and Antonio Gramsci. We conclude that the public school is a historical gain for the working-class, and that it should be maintained by the State, but without its interference with respect to the dissemination of ideologies. In this context, the role of education is to provide the student with the appropriation of what is most advanced and developed in science, technology, sports, and art with a view to the complete formation of man.

Keywords: Education; History of Education; Manacorda; Marxism.

Introdução: A vida é que anima a resistência

Mario Alighiero Manacorda (1914-2013) se propôs a analisar as questões da educação à luz dos escritos de Marx, Engels e Gramsci e é um intelectual marxista do século XX. A socialização dos seus escritos no Brasil se deu em meio à luta contra a ditadura civil-militar vivenciada no início dos anos 1980, momento em que os pesquisadores, organizados nos cursos de pós-graduação em educação, buscavam um referencial teórico que superasse as concepções de educação não críticas e crítico-reprodutivistas. Encontraram nas matrizes teóricas do materialismo histórico - em Marx, Gramsci e seus intérpretes, dentre eles, Manacorda - o aporte necessário às suas análises e pesquisas. Nesse período, circulavam entre os pesquisadores brasileiros algumas de suas obras publicadas na Espanha e em Portugal: Marx y la pedagogia moderna, de 1969; Marx e a Pedagogia Moderna, de 1975; El princípio educativo en Gramsci, de 1977 (ANDE, 1981, 1986).

Em outubro de 1987, Manacorda veio ao Brasil a convite de Paolo Nosella para ministrar a palestra de abertura do evento que comemorou os 10 anos de existência do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) da Universidade Federal de São Carlos - São Paulo, que era coordenado pela professora Ester Buffa naquele momento. Após esse acontecimento, os pesquisadores brasileiros se mostraram interessados em seus escritos que tinham sido traduzidos para o português e publicados no Brasil: História da Educação: da antiguidade aos nossos dias; O princípio Educativo em Gramsci; e Marx e a Pedagogia Moderna (NOSELLA, 2013a; SAVIANI, 2010).

Nosella relata o seu envolvimento nesse convite:

Em outubro de 1987, a convite da Coordenação do PPGE de São Carlos que comemorava 10 anos do programa, me empenhei para que esse ilustre professor de história da educação aqui proferisse a palestra, ainda inédita, sobre o tema ‘humanismo em Marx e industrialismo em Gramsci’. Naquela ocasião, realizou um ciclo de palestras em várias universidades brasileiras, estabelecendo contatos. Alguns acadêmicos daqui, passando pela Itália, visitaram Manacorda, inclusive para entrevistá-lo (NOSELLA, 2013b, p. 212).

No Brasil, Manacorda proferiu a palestra intitulada Humanismo de Marx e industrialismo de Gramsci, que posteriormente foi traduzida e publicada no livro Trabalho, Educação e Prática Social, organizado por Tomaz Tadeu da Silva, em 1991, e recentemente republicada na Revista Eletrônica de Educação, em 2017. Nessa ocasião, Manacorda percorreu outros estados brasileiros proferindo palestras e concedendo entrevistas, das quais destacamos a publicada na Revista Educação em Questão, em 1989, realizada por Jandira Araújo Teixeira e Zuleide Araújo Teixeira, que versou sobre a temática Trabalho e Educação.

É importante indicar que o primeiro contato presencial de Paolo Nosella com Manacorda se deu dois anos antes do evento do PPGEd da UFSCar. Nosella menciona que, ao conhecer os textos manacordianos publicados na Espanha, desejou dialogar com o autor a respeito da educação no âmbito marxista e, para isso, foi visitá-lo na sua casa em Bolsena, na Itália em 1985. Nessa oportunidade, recebeu das mãos do educador marxista um exemplar da obra Storia dell'educazione: dall'antichita a oggi. O exemplar, marcado com dedicatória e assinado, Nosella ressalta que guarda “com carinho” (NOSELLA, 2013b), porque relembra a sua experiência de intercâmbio internacional e o primeiro contato presencial com Manacorda.

O contato mais marcante foi, e é, com o historiador e pedagogista italiano Mario Alighiero Manacorda. Certamente, há em nossa relação pessoal algo que transcende o interesse profissional, algo que toca a esfera do existencial. Toda vez que a gente se despede, a emoção embarga nossa voz. Mario é para mim uma referência intelectual importante, inspiração profunda que sequer sei definir. Sua cultura clássica, sua disciplina e dedicação nos estudos, seu amor à independência, à política me fascinam. Em dezembro completou 96 anos. Em recentíssimo e-mail de 1º de fevereiro de 2011, escreve: Caro Paolo, eccoti il texto ‘definitivo’, butta l´altro. Um abbracio. Mario. (Caro Paolo, eis o texto ‘definitivo’, joga fora o outro. Um abraço. Mario). Refere-se a seu último ensaio de mais de cem páginas, ‘definitivo’ entre aspas, cujo título provocativo é Karl Marx, aquele velho liberal comunista [...] (NOSELLA, 2013b, p. 211).

Após o primeiro contato pessoal entre Nosella e Manacorda, foram publicados trechos de uma entrevista concedida à pesquisadora Maria de Lourdes Stamato de Camillis, em 1986, pela Revista ANDE - Revista da Associação Nacional de Educação sobre a qual abordaremos a seguir. Também apresentaremos a entrevista concedida a Jandira Araújo Teixeira e Zuleide Araújo Teixeira e a palestra de abertura do Seminário comemorativo dos 10 anos do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar. Compreendemos que esses são os primeiros escritos manacordianos traduzidos para o português e publicados no Brasil. Eles contribuíram para os estudos sobre o marxismo e educação e para a discussão sobre a defesa da escola pública, gratuita, laica e para todos, difundida nos anos de 1980.

Entrevista: Revista ANDE - 1986

A entrevista de Manacorda, publicada na seção DEPOIMENTO da Revista da Associação Nacional de Educação (ANDE, 1986), pode ser considerado um dos primeiros, se não o primeiro, texto das ideias do autor traduzido para o português e publicado em nosso país, haja vista o contato dos educadores brasileiros com a obra Marx e a Pedagogia Moderna publicada em língua portuguesa em Lisboa, Portugal. A entrevista foi realizada por Maria de Lourdes Stamato de Camillis, contou com a colaboração de Marcos Salles de Oliveira para a transcrição e tradução do italiano e a revisão final do texto ficou sob a responsabilidade de Maristela Debenest.

Dentre as questões abordadas, selecionamos as que chamam a atenção por conterem reflexões candentes sobre o momento histórico vivido no Brasil, ou seja, os mais de vinte anos de ditadura civil militar e o papel da educação frente à abertura democrática que se punha em processo. Vejamos, a primeira.

Sob a premissa de que a formação do homem está diretamente relacionada com a sua emancipação como indivíduo social, como se coloca a problemática educacional em países como o Brasil, que viveu sob a ditadura militar por mais de vinte anos? (MANACORDA, 1986, p. 60).

Fundamentado no referencial teórico marxista de Marx e Engels, o autor realiza a sua análise sobre a situação do desenvolvimento da ciência, da produção do conhecimento e do avanço das forças produtivas em âmbito mundial. Manacorda identifica o Brasil como inserido na lista de países que compõem o grupo do terceiro mundo, privado da produção de ciência, dada a sua situação de consumidor no cenário mundial, portanto, subordinado aos países centrais.

Atualmente, vivemos uma situação contraditória. A ciência não está concentrada nas grandes fábricas, mas também numa parte específica do mundo, no norte capitalista ou socialista. O restante do mundo, o chamado de 3º Mundo, é desprovido de todo conhecimento: recebe-o do mundo desenvolvido sob a forma de produtos, pelos quais paga caro e que aumentam seu endividamento. Mas o conhecimento corporificado em produtos, e não como capacidade de produzir, não contribui para o desenvolvimento desses países. Nessa espiral de contradições, aparentemente totais, vejo o 3º Mundo como o operário assalariado do século XIX, do ponto de vista de Marx. Há uma possibilidade de ruptura do sistema: essas populações, implicadas negativamente no desenvolvimento moderno, embora recebam os restolhos e não participem como produtoras de conhecimento, em primeiro plano, participem desse mundo moderno e adquirem cada vez mais consciência dessas contradições (MANACORDA, 1986, p. 60).

A segunda questão selecionada aprofunda a discussão partindo das consequências que a ditadura civil-militar impôs à formação dos sujeitos naquele período.

Atualmente, pode-se sentir com mais crueza as consequências de vinte anos de ditadura no Brasil, ao nível do pensamento, da produção intelectual, da qualidade de vida etc., em toda uma geração. Nesse quadro, que papel o senhor reserva à educação? (MANACORDA, 1986, p. 60).

Na resposta, o entrevistado destaca que a educação apenas dirigida à afirmação dos princípios da democracia, liberdade e participação cultural é insuficiente, precisa objetivar mais, por isso, sem negar esses princípios, considera que os homens devem ser armados de saber “[...] de tal modo que possam participar concretamente da criação de uma vida mais rica, de uma maior capacidade produtiva, com maior participação democrática [...]” (MANACORDA, 1986, p. 60), portanto, necessitam de mais instrução e de mais cultura. O autor enfatiza que é preciso problematizar o que é cultura.

A cultura, hoje, não passa somente pelo ler, escrever e fazer contas. Passa exatamente pelo conhecimento teórico-prático, conhecimento e uso de novos instrumentos de produção e de comunicação entre os homens [...]. É preciso dar instrução, sim, mas como instrumento concreto de conhecimento, de capacidades operativa, produtiva, e de capacidade cognoscitiva (MANACORDA, 1986, p. 60).

Suas considerações a respeito do que se deve ensinar se aprofundam ao exemplificar o caráter mistificador encontrado na ideia de progresso. Não há nada de místico no progresso ou no avanço da ciência e da tecnologia. O que existe é o não acesso à ciência e à tecnologia como produtor, e, em alguns casos, nem mesmo como consumidor. Por isso, é necessário combater a mistificação desse aspecto, ou seja, combater o “[...] culto mágico gerado pelo progresso [...]” (MANACORDA, 1986, p. 61) que ocorre quando não se conhece o funcionamento ou como se produz aquilo que consumimos como, por exemplo, a eletricidade. Não é por mágica que acionamos um interruptor e a iluminação artificial se faz.

Na realidade, devemos possuir o conhecimento de todas essas técnicas que compõem a nossa vida, em países em que tais conhecimentos e técnicas são difundidas, como no Brasil (ainda que não em todo o território, mas em certas zonas de grande desenvolvimento cultural e tecnológico, como São Paulo). Cabe perguntar então: pode-se ensinar a todos a mesma coisa? É evidente que, onde tais conhecimentos e técnicas ainda não chegaram, não se pode ensinar. Mas, gradativamente todas essas coisas chegam, e o novo ABC é o uso e a compreensão científica dessas novas técnicas. Não só escrever, mas o escrever com o computador; não só o manejo de uma máquina ou o trator (para servir de trabalhador braçal num trabalho feito com tratos), mas o conhecimento de princípios de mecânica. Ou seja, a cultura de base hoje deve ser aquela que signifique uma tradução moderna da antiga preparação formal, instrumental como se fosse o ler, o escrever, o fazer contas - que deveriam servir de instrumentos para o conhecimento, a instrução concreta (MANACORDA, 1986, p. 61, grifo nosso).

Para o autor, a formação do jovem deve envolver os conhecimentos científicos e técnicos disponíveis - socializados em cada momento histórico, mas não se trata, nesse caso, apenas do treinamento para uma profissão determinada, porquanto, o autor acredita “[...] que não se pode preparar um homem para atuar apenas numa determinada profissão pois, findo o período escolar, não se sabe se haverá demanda social para aquele tipo de profissional” (MANACORDA, 1986, p. 61). Está em seu texto o desenvolvimento produtivo ocorrido nos séculos XVIII e XIX, isto é, a mudança da produção artesanal à produção nas fábricas, que substituiu o trabalho de mão de obra humana por máquinas, a qual hoje ainda assistimos de forma mais acelerada. Por isso, é preciso considerar que “[...] numa forma moderna de instrução, as coisas estão ligadas e relacionadas, não podem estar desarticuladas do mundo circundante” (MANACORDA, 1986, p. 62).

Determinar o que ensinar se configura em um problema difícil de ser resolvido, porém, o autor encontrou um norte para seguir a fim de solucioná-lo.

Mas, creio, no entanto, que, se a instrução dada tornar o homem tanto quanto possível contemporâneo de sua própria época (uso uma expressão de Gramsci), essa instrução será também educação. Serão homens capazes de reivindicar seus próprios direitos, capazes de participar da vida democrática comum, tanto no âmbito de seu pequeno ambiente quanto no da sociedade maior em que vivem (MANACORDA, 1986, p. 62).

Ao ser incitado a se posicionar em defesa da instituição escolar como espaço educativo/formativo da juventude, o faz de maneira crítica e não apresenta soluções para seus limites, pelo contrário, elabora instigantes questões problematizadoras a seu respeito.

O problema é este: como unir, na escola, organização, cientificidade, presença dos mais altos níveis da ciência e da produtividade mundial, com um sujeito individual? Com o menino e suas necessidades de participação, de alegria, de divertimentos intelectuais e esportivos, de brincadeira, de erro, de afeto, de socialização etc.?... Parece-me que o Estado moderno está em condições de dar um espaço ao adolescente, que não seja somente o espaço do estudo e nem mesmo somente o espaço do ABC moderno, mas também o lugar dos erros, da alegria etc... De uma parte não prescindimos da ciência e da tecnologia, e, de outra, queremos atender o indivíduo. É preciso aliar essas duas coisas (MANACORDA, 1986, p. 63).

Ainda pensando nos grandes problemas da educação nos países que compõem o Terceiro Mundo, segue a última questão da entrevista: “A seu ver quais são os grandes problemas educacionais do 3º Mundo?” (MANACORDA, 1986, p. 63).

Sua resposta pondera que são problemas complexos, visto que se trata de “[...] conciliar a educação de uma elite com a educação de massa” (MANACORDA, 1986, p. 63). Explica que o Terceiro Mundo apareceu no cenário internacional logo após a guerra e inaugurou um processo de trabalho frente ao analfabetismo, tentou-se alfabetizar em massa, a fim de educar rapidamente toda aquela geração. Percebeu-se que era uma tarefa onerosa e tensa, por isso, alguns avaliaram que era melhor iniciar pela formação de uma elite cultural, científica e técnica “[...] a nível de capacidade produtiva e também de capacidade educativa” (MANACORDA, 1986, p, 63). Nesse caso, encontramos o contraponto entre a difusão da educação para um grande contingente populacional de um lado, e, de outro, a formação de uma restrita elite qualificada. Do ponto de vista do entrevistado “[...] é necessário procurar, em conjunto a elevação do nível mínimo de alfabetização e a criação de uma elite qualificada” (MANACORDA, 1986, p. 63). Isso faz retornar ao problema sobre o que ensinar, “[...] trata-se de decidir o que é hoje cultura de massa, de base, e qual preparação formal que deve tornar possível a apropriação de uma instrução concreta” (MANACORDA, 1986, p. 63).

O desafio, pois, está em como materializar essa premissa. Um caminho percorrido e já conhecido é o da instrução profissional determinada, ou seja, a difusão da cultura por meio da profissionalização. Mas a seu ver, esse não é um caminho adequado, uma vez que tal formação chegaria tarde para profissões que mudam rapidamente.

Como não se pode nunca prever estatisticamente a necessidade de mão de obra em cada setor, é necessária uma preparação para a formação de quadros de engenheiros, técnicos ou de quadros culturais em geral dirigida o mais possível para a formação de um homem com capacidade de executar qualquer atividade cultural, seja desinteressada (letras, história, filosofia) ou empenhada (ciência, tecnologia e outras). Um homem com uma preparação formal, instrumental, de tipo moderno, pode conquistar a especialização profissional durante o trabalho, transformando-se quando as condições de trabalho mudam - como, aliás, estão mudando rapidamente nesses anos (MANACORDA, 1986, p. 63).

Tais elaborações devem, pois, partir do princípio de que “[...] cada país deve considerar a sua realidade concreta [...]” (MANACORDA, 1986, p. 63) e, a partir disso, posicionar a escola o mais próximo possível do mundo real, contemporâneo, e armá-la com os níveis mais avançados de conhecimento da ciência e da tecnologia. Isso resultaria, pois, numa melhor escola, dando condições aos alunos não apenas de consumir, mas, também de produzir ciência e tecnologia.

A partir da leitura dessa entrevista, é possível perceber que o intelectual marxista estava sintonizado com as mudanças apresentadas pelo mundo contemporâneo. Estava atento às necessidades educativas dos países do chamado Terceiro Mundo, compreendendo-os como integrantes das trincheiras na esfera mundial e, por isso, a escola deveria proporcionar a apropriação efetiva da ciência, da arte, do esporte e da tecnologia, em um movimento em consonância com o seu tempo de avanços em todos os setores da vida humana. Compreendida assim, tal formação pode proporcionar ao estudante não apenas uma formação ou instrução técnica, mas também a capacidade de reivindicar seus direitos, de participar da democracia em âmbito micro e macrossocial na sociedade como um todo.

Esse mesmo nível de sobriedade e análise crítica pode ser verificado no conteúdo da entrevista concedida a Jandira Araújo Teixeira e Zuleide Araújo Teixeira realizada no ano seguinte.

Entrevista: Revista Educação em Questão - 1987

A entrevista foi concedida a Jandira Araújo Teixeira e Zuleide Araújo Teixeira quando Manacorda veio ao Brasil em 1987 e foi publicada pela Revista Educação Em Questão, em 1989. O tema educação e trabalho norteou os questionamentos feitos naquela ocasião.

O conteúdo da primeira pergunta versa sobre o papel do trabalho na sociedade capitalista e socialista. As entrevistadoras se reportam ao trabalho no capitalismo como sendo a “[...] forma de materialização do capital [...]” (MANACORDA, 1989, p. 103) e, na sociedade socialista, como uma construção a partir de uma condição de não-trabalho, espaço social, “[...] onde o homem trabalha para ter mais lazer, desenvolver-se artisticamente, enfim, gozar de um maior nível de cultura” (MANACORDA, 1989, p. 103).

O autor, dedicado ao significado e ao contexto das palavras, esclarece que, para Marx, Gramsci e para ele, não existe projeto socialista sem trabalho ou não-trabalho, mas sim, de mais-trabalho, não apropriado ou não explorado pelo capital como a mais-valia, que gera lucro para o capitalista. Esse mais-trabalho seria o aspecto de avanço da sociedade, que permitiria, por meio do desenvolvimento das forças produtivas, o desenvolvimento completo do homem, isto é, lhe proporcionaria condições de apropriação da arte, cultura e lazer. Em suas palavras:

No socialismo de Marx, de Gramsci e (se é permitido ‘magnis componere parva’, comparar as coisas pequenas às grandes) também no meu, não vejo o não-trabalho, mas acima de tudo o mais-trabalho. É isso mesmo.

Não pode existir a possibilidade de divertimento, arte, cultura, enfim de ‘prazeres superiores’ (höhere gewüsse) de que Marx falava, se além do trabalho ‘necessário’ para a mera subsistência do trabalhador, não existir o trabalho ‘supérfluo’, ou mais-trabalho.

A questão é que esse mais-trabalho não seja produtor de mais-valia ou lucro para um capitalista; mas seja uma ‘mais-valia’ social, que por isso mesmo produza aquela riqueza universal que são os lazeres etc., de que vocês falam na pergunta (MANACORDA, 1989, p. 103).

A estimulante resposta mostra que a apropriação da arte, da cultura e do lazer, dos bens superiores, por parte do trabalhador, não se dá a partir do não-trabalho, mas, a chave está, ou deveria estar, na não exploração da força produtiva do trabalhador, seja na sociedade capitalista ou em qualquer outra. Portanto, o trabalho sempre existirá, pois é inerente ao homem e ao desenvolvimento da humanidade (MANACORDA, 1989).

Esse debate abre a discussão sobre a escola na contemporaneidade. As autoras buscam do entrevistado uma resposta a respeito de “[...] como a escola deve absorver e desenvolver um ensino que una o teórico-prático dentro do Estado moderno” (MANACORDA, 1989, p. 106). No sentido de elaborar uma resposta direta, Manacorda estabelece que é preciso retomar a discussão sobre a união, instrução e trabalho e lista uma série de condições do que não deve pautar o ensino que objetive essa união.

Não ao simples moralismo (o amor pelo trabalho e o respeito pelo trabalho); não à simples metodologia didática (o fazer como estímulo e verificação do saber); não ao trabalho como jogo, e não ao trabalho como preparação profissional para profissões que, no entanto, ou desaparecem ou mudam radicalmente etc. E nem o trabalho de fábrica de Marx, ou o ‘5 + 1’ tentado pelos países do ‘socialismo real’ merecem um sim.

No entanto, tenho certeza de que a separação, da instrução do trabalho e, antes disso, a escola como lugar separado dos adultos e do trabalho, seja a maldição implícita deste grande acontecimento civil que foi a escolarização de massa.

Penso então, em duas questões. A primeira é abrir o máximo a escola para a sociedade e a sociedade para a escola. Isto é, a escola deve estar aberta também para os adultos além dos adolescentes, no tempo livre; e as instituições sociais devem encontrar formas não improvisadas ou perturbadoras de abertura para a escola. Difícil! A segunda questão é fazer da escola o lugar e o ‘tempo integral’ dos adolescentes, associando às disciplinas curriculares todas as atividades opcionais que os adolescentes (com ou sem os adultos) queiram organizar: aprofundar disciplinas, resgatar a cultura excluída, mais ou menos, pela escola (música, teatro, artes figurativas, atividades artesanais, produtivas e experimentais), esporte etc. Os jovens devem ter a ideia de possuir uma ‘capacidade de domínio’ da escola (como o povo deveria ter do Estado). Enfim a escola como tempo de necessidade e de liberdade (MANACORDA, 1989, p. 106-107).

Aprofundando os questionamentos sobre o papel da escola para a classe trabalhadora, segue outra pergunta: “Você concorda com a ideia de que a escola pode ser um instrumento do proletariado na luta contra a burguesia?” (MANACORDA, 1989, p. 107).

A palavra ‘instrumento’ me dá a ideia, negativa, de uso ‘instrumental’. Justamente da escola com finalidades propagandísticas que não são suas.

É claro que a escola, como todas as instituições da sociedade civil, tem características das classes dominantes, cujas ideias são dominantes através do uso instrumental dessas instituições: o espírito não atua, pelo que eu sei, sem a matéria.

A igreja católica doutrinava, a escola liberal-burguesa ensinava seus princípios de liberdade de exploração, de propriedade etc. E Lênin tinha razão em denunciar a implícita e duradoura politização dela.

Mas não gosto de uma escola que, além dos outros problemas que tem, continue tendo aquele de ser sede de propaganda ideológica, mesmo que seja do proletariado.

Penso, com Marx, que a escola seja a sede para o ensino de noções que não admitem conclusões diferentes, não importa quem as ensine; e que os ensinamentos de tipo social possam ser dados e vividos em outras sedes. [...] Na escola, o proletariado ‘luta contra a burguesia’ se, e na medida em que, faz sua herança cultural. Lênin afirmava que precisava construir a cultura futura com os tijolos da cultura burguesa. E no caso, a escola pode e deve ser conquistada pelo proletariado como todas as instituições da sociedade civil, as camadas do poder burguês, a serem conquistadas numa guerra de posição, como dizia Gramsci. E para livrá-la das tarefas de propaganda e fazer dela uma sede de verdadeira e livre cultura, sem dominações (MANACORDA, 1989, p. 107-108).

A resposta é uma genuína aula de História da Educação em poucas linhas. A perspectiva de inculcação ideológica de qualquer tipo (tanto burguesa quanto proletária) é rejeitada e definitivamente negada pelo entrevistado. A seu ver, a escola do proletariado deve se ater em democratizar a cultura, a mais elevada e desenvolvida cultura produzida pela humanidade. Nesse aspecto, ela estará fazendo o seu papel enquanto escola do proletariado, por isso, fazendo-se também revolucionária. Isso se considerarmos que, na sociedade moderna, o conhecimento científico se transformou em meios de produção, por isso, a aquisição deste por parte do proletariado significa, em certa medida, a socialização dos meios de produção.

As autoras abordam o tema da democratização da escola pública de forma direta. Observemos, então, o questionamento seguido de sua resposta: “Dentro do contexto de uma organização sociopolítica como a do Brasil, qual o seu comentário sobre nossa luta pela escola pública e gratuita em todos os níveis?” (MANACORDA, 1989, p. 109).

Concordo com tudo. A tarefa da formação a mais completa possível, da totalidade das novas gerações, é tão vasta e complexa que não pode requerer o compromisso total de toda a sociedade, organizada no Estado. E isso deve acontecer sem que a ideologia desse ou daquele governo domine a escola, ao contrário, com o máximo desdobramento das liberdades (MANACORDA, 1989, p. 109).

O autor é claro ao se posicionar contra a disseminação de qualquer tipo de ideologia no espaço escolar. Retorna à afirmativa de uma formação completa para todos.

A entrevista se encerra com uma indagação em consonância com o momento histórico vivido pelos brasileiros nos anos de 1980, qual seja, a redemocratização do país e a elaboração de sua nova Constituição Federal: “defendemos nesse momento que na nova Constituição deverá constar como princípio que é dever do Estado assumir a educação do cidadão desde zero anos de idade. Qual seu comentário a respeito?” (MANACORDA, 1989, p. 109).

Estado deve estabelecer por lei o próprio dever de providenciar a educação-instrução de todos os cidadãos (e também a obrigação dos cidadãos de usufruir das oportunidades fornecidas pelo Estado); fornecer, justamente as condições materiais (fundos, estruturas, pessoal, etc.) para a realização dessa tarefa, e enfim controlar a execução e o respeito de suas leis. Dentre as quais, a liberdade dos professores e também - eu diria - dos alunos, de não sofrerem doutrinações, etc. (MANACORDA, 1989, p. 109).

Vê-se, pois, que Manacorda se mostra um defensor da escola pública, gratuita, laica, para todos, e financiada pelo Estado, contudo, sem a interferência deste, tal como Marx defende na Crítica ao Programa de Gotha, que o educador marxista analisa em seu livro Marx e a Pedagogia Moderna (MANACORDA, 2017a).

Palestra: Humanismo de Marx e Industrialismo de Gramsci - 1987

Sobre o texto base da conferência proferida em 1987, Humanismo de Marx e industrialismo de Gramsci, podemos afirmar que se trata de um escrito cujas marcas históricas são bem definidas. Isto é, foi elaborado em um momento em que estava em voga o questionamento a respeito das teses de Marx sobre a superação do capitalismo, visto que naquele período já se encaminhava o fim da União Soviética, materializado na queda do Muro de Berlim, em 1989.

Além disso, proliferavam naquele contexto as produções que ficaram conhecidas como “a história em migalhas”, termo que compõe o título do livro de François Dosse, publicado originalmente em 1987 (DOSSE, 1992). Tais produções insinuavam que Marx estava ultrapassado pelo fato de não tratar de temas próprios da superestrutura, isto é, temas amplamente abordados pela terceira geração do Movimento dos Annales - a Nova História, ou, a Nova História Cultural.

Manacorda já havia ultrapassado os 70 anos de idade quando proferiu a palestra, portanto, acumulava uma considerável experiência em relação às análises e estudos sobre os textos marxistas e gramscianos. Logo no início de sua fala, lança uma provocação astuta, dizendo: “Marx não era marxista. E Gramsci, era marxista?” (MANACORDA, 2017b, p. 26). A partir dessa problematização, desenvolve seus argumentos a fim de contrapor a tendência de dissociar Gramsci de Marx, que reduz Marx ao economicismo e atribui a Gramsci o estudo restrito aos aspectos humanísticos advindos da superestrutura.

Nessa apresentação, nos interessa focar naquilo que o autor trabalhou em relação a Marx, uma vez que tal aspecto insiste em perdurar nas primeiras décadas do século XXI, por isso, é no humanismo de Marx que iremos nos deter.

O autor inicia a sua fala apresentando seus conterrâneos italianos Croce e Bobbio. Ele afirma que depois que “Croce renovou no pós-guerra a costumeira acusação de economicismo, até a mais recente celebração do centenário de Marx foi para muitos uma ocasião para recolocar mais uma vez, e pela mesma razão, Marx no sótão” (MANACORDA, 2017b, p. 27). Sobre Bobbio, afirma que o autor “relegava o epifenômeno, nos textos marxistas, os termos liberdade e dignidade” (MANACORDA, 2017b, p. 27). A respeito desses dois aspectos interligados conclui que “[...] o desvio por eles produzido no pensamento de Marx me parece evidente e total, pois deixaram de lado a origem, a substância e objeto último da sua economia” (MANACORDA, 2017b, p. 27).

Da mesma maneira, cita o trabalho dos frankfurtianos Adorno e Horkheimer, que sentiram “[...] a necessidade de contrapor à relevância das categorias econômicas marxistas uma mais forte presença das categorias políticas, reduzindo a marxiana produção da vida a um simples componente, secundário entre outros, do desenvolvimento histórico” (MANACORDA, 2017b, p. 27-28). Contudo, considera o contexto em que as teorizações frankfurtianas foram produzidas, isto é, “[...] após a monstruosa dominação política do nazismo” (MANACORDA, 2017b, p. 28).

Menciona relevantes nomes, tais como: Habermas, Offe, Agnes Heller, Hannah Arendt, Negri, Bowles e Ginits, e conclui essa introdução afirmando:

[...] mas, para que continuar? De Popper a Foucault, ou nos níveis culturalmente mais baixos, do papa aos novos filósofos, as citações poderiam ser infinitas. Mas, eu sei bem, far-se-ia uma grave injustiça aos autores citados, posto que as citações isoladas correm o risco de sempre trair ou ao menos de reduzir o pensamento, além de tudo responsabilizando-os pelo péssimo uso que o senso comum pode fazer de seus pensamentos. E eu não queria, na verdade, fazer a eles aquilo que frequentemente vem sendo feito a Marx, por eles (MANACORDA, 2017b, p. 28).

Na mesma linha de raciocínio acrescenta:

Pessoalmente, considero o conjunto das pesquisas dos autores citados, e de outros, uma contribuição determinante para o enriquecimento da tradição marxista, um feliz florescimento do pensamento contemporâneo. E não é de pouco mérito a sensibilidade deles pelos temas superestruturais da política, da cultura, da literatura, das artes, da educação, em uma palavra, da consciência, e o desenvolvimento de novos campos do saber como a antropologia cultural, a sociologia, a psicologia da pessoa e da sociedade, a psicanálise, etc., e em geral os campos que permanecem marginais (et pour cause!) ou, ainda ignorados na(?) muito determinada investigação de Marx. Sem dúvida, todas essas observações sobre Marx, e, mais ainda, sobre o marxismo “ortodoxo”, podem ser legítimas e dignas de serem tomadas em consideração, todavia, por convergirem todas na denúncia do exclusivo economicismo e da insensibilidade de Marx aos problemas da pessoa, confirmam no senso comum, não só uma imagem de Marx que a mim parece muito redutiva, mas também uma consideração esquemática daquilo que pode ser a economia política humanamente concebida. Isolando-a de todos os outros interesses humanos, acabam reduzindo-a, justamente, àquela imagem materialista e mecanicista que acreditam poder atribuir a Marx, e que, queriam, talvez exorcizar (MANACORDA, 2017b, p. 28).

Ao arrolar seus argumentos Manacorda retoma o texto da Ideologia Alemã e as críticas que Marx elaborou em relação à concepção hegeliana - que versava sobre a atividade humana subjetiva ou espiritual ao ignorar o trabalho material - e a tese materialista de Ludwig Feuerbach (1804-1872), e o acusou “de conceber a matéria como objeto, e não subjetivamente, como atividade” (MANACORDA, 2017b, p. 29). Desse jeito, ao abordar as duas críticas, ao materialismo e ao idealismo, evidenciou a sua concepção de materialismo, “que é, senão, a expressão imediata da luta contra o ideologismo e a falsa consciência dominante” (MANACORDA, 2017b, p. 29), a fim de libertar a consciência humana das condições de sua falsidade ou falsa consciência, logo, trata-se de temas alusivos à superestrutura.

O condicionamento da falsa consciência está relacionado diretamente às “[...] relações intersubjetivas humanas como objetos ou coisas, e, portanto, como fetiches [...] e [...] a libertação da consciência dos fetiches, das relações tidas como coisas, é uma questão de consciência?” (MANACORDA, 2017b, p. 30), indaga e responde: “Essa libertação é a substância da boa crítica da economia política que é o título d’O Capital” (MANACORDA, 2017b, p. 30).

Ainda sobre falsa consciência, o autor afirma:

[...] para descobrir esse mundo da falsa consciência, Marx fala de fetiches, segredos, mistérios, formas distorcidas, contorções, ficções sem fantasia, mistificações, loucuras, retificações e coisificações, figuras separadas irracionais e sem conteúdo, transubstanciações e ‘quiproquó’ religiosos tais de fazer arrepiar os cabelos etc. (MANACORDA, 2017b, p. 31).

De fato, os temas elencados são específicos da superestrutura, sem deixar de lado a sua relação estreita com a estrutura - economia política. A atualidade e a relevância das teses marxianas podem ser evidenciadas não apenas no âmbito do trato com temas relativos à superestrutura, mas também às suas análises a respeito da evolução das forças produtivas na organização da produção capitalista que Manacorda retoma.

Poderá, então, representar-se como verdadeira, tremendamente verdadeira, e não exorcizável, a indicação de Marx sobre o fato de que as forças produtivas, enormemente desenvolvidas sob a hegemonia capitalista, se manifestam ao mesmo tempo como forças destrutivas (MANACORDA, 2017b, p. 34).

Para demonstrar essa afirmativa, o autor apresenta alguns exemplos das trágicas contradições vivenciadas naquele momento, lembrando que para ele a categoria contradição é a chave de interpretação das relações capitalistas.

[...] o grande e sempre crescente desequilíbrio entre o norte e o sul do planeta, com o endividamento do terceiro mundo e a fome de populações inteiras; a assimilação destrutiva de antigas culturas ‘primitivas’ e o desequilíbrio de riqueza e miséria no interior das próprias sociedades aflorentes; o empobrecimento da natureza, a poluição do ar, das águas, dos terrenos e até do espaço; a ‘desertificação’ progressiva dos trópicos africanos e o desmatamento irreversível das faixas equatoriais; a poluição das Antártidas; a extinção de populações humanas inteiras (os índios amazônicos reduzidos em poucos decênios, de muitos milhões a poucas centenas de milhares); o desaparecimento cotidiano de inúmeras espécies viventes; o saque das reservas energéticas; as guerras locais, a corrida armamentista; a ameaça de uma possível catástrofe nuclear, que não mais apenas na guerra mas também na paz nos ameaça; e enfim, se se quer verdadeiramente ser sensível aos fatos da consciência, a impalpável, mas obsessiva submissão das consciências aos meios de comunicação, e o desajustamento psicológico de massa nas sociedades desenvolvidas (MANACORDA, 2017b, p. 34).

Se partirmos do fato que essa é uma elaboração de 1987, podemos perceber que tais contradições se exacerbaram nos primeiros decênios do século XXI, reafirmando que as forças produtivas se tornam forças destrutivas no âmbito do capitalismo e, com isso, podemos reafirmar a atualidade do aporte teórico de Marx como fundamento para análises do atual contexto histórico.

Diante dos argumentos expostos, o autor conclui dizendo que “[...] não é por nada que Marx tem sido, por excelência, o crítico da unilateralidade real e o teórico da omnilateralidade possível do homem” (MANACORDA, 2017b, p. 35). É o humanismo de Marx.

Considerações Finais

Os três textos destacam os rumos e o papel da educação nos anos de 1980. Neles, encontramos análises da realidade educativa fundamentada no materialismo histórico de Marx, Engels e Gramsci, sem dogmatismo ou receituário pronto para serem aplicados. Trata-se de análises que levam o leitor a interpretar criticamente a situação educacional e, com isso, fundamentam intervenções concretas rumo à efetivação de uma escola pública, gratuita, laica, para todos e que seja contemporânea com os avanços de seu tempo.

A partir deste estudo, é possível afirmar que a escola pública é um ganho histórico da classe trabalhadora e deve ser mantida ou financiada pelo Estado, desde as estruturas (construção e manutenção dos prédios), remuneração de pessoal (professores e funcionários), aquisição de equipamentos, material pedagógico, entre outros. Contudo, isso deve ocorrer sem sua interferência no que se refere à disseminação de ideologias de qualquer tipo, em outras palavras, a escola não deve ser um aparelho de reprodução ideológica do Estado. Nesse contexto, o objetivo da instituição escolar é proporcionar a efetiva apropriação da ciência, da arte, do esporte e da tecnologia em um movimento que se dá em consonância com todos os setores da vida humana com vistas à formação completa do homem.

Diante disso, afirmamos que retomar os clássicos do marxismo e o conteúdo dos escritos manacordianos na atualidade se apresenta como necessária e urgente para a fundamentação da luta por uma sociedade mais justa. Trata-se de um horizonte de esperança e de transformação social nos tempos de privatização do serviço público e da escola, de reestruturação produtiva, de flexibilização, precarização do trabalho docente, de obscurantismo e de conservadorismo que presenciamos hoje.

Trata-se, pois, de um referencial teórico atual, visto que os problemas desencadeados pelas contínuas crises do capital se aprofundam com o passar do tempo. Os problemas da sociedade capitalista não foram superados, ao contrário, estão mais agravados na fase do capitalismo financeiro. Por essa razão, os escritos de Manacorda continuam sendo essenciais para nos ajudar a compreender a sociedade e os desafios da educação neste início de século. É de se lamentar o fato de que os escritos de Mario Alighiero Manacorda estejam cada vez mais distantes dos cursos de formação de professores.

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Recebido: 14 de Julho de 2022; Aceito: 08 de Novembro de 2022

Prof. Dr. Cézar de Alencar Arnaut de Toledo, Universidade Estadual de Maringá (Brasil), Programa de pós-graduação em Educação, Grupo de Pesquisa Sobre Política, Religião e Educação na Modernidade, e-mail: caatoledo@uem.br

Profa. Dra. Helen Cristina de Oliveira Vieira, Rede Estadual do Paraná (Brasil), Grupo de Pesquisa Sobre Política, Religião e Educação na Modernidade, e-mail: evanelen@hotmail.com

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