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Revista Educação em Questão

Print version ISSN 0102-7735On-line version ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.66 Natal Oct./Dec 2022  Epub Apr 18, 2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n66id29874 

Artigo

Gramsci em debate com as concepções político-pedagógicas de Rosa Luxemburgo, de Trotsky, da Internacional Comunista e de Bukharin

Gramsci in debate with the political-pedagogic conceptions of Rosa Luxembourgo, Trotsky, the Communist International and Bukharin

Gramsci en debate con las concepciones político pedagógicas de Rosa Luxemburgo, de Trotsky, de la Internacional Comunista y de Bukharin

Lorivaldo do Nascimento1 
http://orcid.org/0000-0001-9741-2076

Aparecida Favoreto1 
http://orcid.org/0000-0003-3883-5604

1Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Brasil)


Resumo

Este artigo se baseia, principalmente, nos Cadernos do Cárcere, e discorre sobre as análises gramscianas acerca das teorias de Rosa Luxemburgo, de Trotsky, da Internacional Comunista e de Bukharin. As críticas gramscianas direcionadas a esses teóricos e à Internacional Comunista, em geral, apontam que suas perspectivas e táticas políticas se firmavam em um prisma economicista/positivista, no qual predominava uma teoria mecanicista de causalidade histórica, permanecendo uma ideia de atuação política espontaneísta. Em um sentido adverso, Gramsci defende uma nova concepção político-pedagógica. No caso, pressupõe uma relação dialética entre infraestrutura e superestrutura, e entre teoria e prática histórico-social, além de defender a inserção da cultura em uma perspectiva de luta político-pedagógica. Desse modo, espera elevar moral e intelectualmente as classes subalternas, criando as condições teóricas capaz de superar o conformismo burguês, na mesma medida que poderia instaurar uma nova conformação e uma nova hegemonia política. Assim, Gramsci considera imprescindível a atuação dos intelectuais orgânicos das classes subalternas que, em contato com as massas, formariam as condições necessárias para a revolução do proletariado na sociedade civil.

Palavras-chave: Gramsci; Concepções político-pedagógicas; Conformismo; Espontaneísmo e processo de transformação social.

Abstract

This article is mainly based on the Prison Notebooks and discusses Gramscian analyses of Rosa Luxemburg’s, Trotsky’s, the Communist International’s, and Bukharin’s theories. Gramscian criticisms of these theoreticians and the Communist International, in general, point out that their perspectives and political tactics were based on an economist/positivist prism, in which a mechanistic theory of historical causality predominated, and an idea of spontaneous political action remained. In an opposite direction, Gramsci advocates a new political-pedagogical conception. In this case, he presupposes a dialectical relationship between infrastructure and superstructure, and between theory and social-historical practice, in addition to advocating the insertion of culture in a perspective of political-pedagogical struggle. In this way, he hopes to elevate morally and intellectually the subordinate classes, creating the theoretical conditions capable of overcoming bourgeois conformism, to the same extent that it could establish a new conformation and a new political hegemony. Thus, Gramsci considers essential the action of organic intellectuals of the subaltern classes who, in contact with the masses, would form the necessary conditions for the revolution of the proletariat in civil society.

Keywords: Gramsci; Political-pedagogical concepts; Conformism; Spontaneity and the process of social transformation.

Resumen

Este artículo se basa principalmente en los Cuadernos de la Cárcel y aborda los análisis gramscianos de las teorías de Rosa Luxemburgo, de Trotsky, de la Internacional Comunista y de Bukharin de Las críticas gramscianas a estos teóricos y a la Internacional Comunista, en general, apuntan al hecho de que sus perspectivas y tácticas políticas se basaban en un prisma economicista/positivista, en el que predominaba una teoría mecanicista de la causalidad histórica, restando una idea de acción política espontánea. En sentido contrario, Gramsci defiende una nueva concepción político-pedagógica. En este caso, presupone una relación dialéctica entre infraestructura y superestructura, y entre teoría y práctica histórico-social, además de abogar por la inserción de la cultura en una perspectiva de lucha político-pedagógica. De este modo, espera elevar moral e intelectualmente a las clases subalternas, creando las condiciones teóricas capaces de superar el conformismo burgués, en la misma medida en que podría establecer una nueva conformación y una nueva hegemonía política. Así, Gramsci considera imprescindible la actuación de los intelectuales orgánicos de las clases subalternas que, en contacto con las masas, formarían las condiciones necesarias para la revolución del proletariado en la sociedad civil.

Palabras-clave: Gramsci; Concepciones político-pedagógicas; Conformismo; Espontaneidad y proceso de transformación social.

Introdução

Para Gramsci, não existe política sem pedagogia e nem pedagogia sem política. Toda relação de hegemonia (política) é uma relação pedagógica e vice-versa (GRAMSCI, 1977). O debate político-pedagógico entre Gramsci e outros pensadores marxistas de seu tempo é perpassado pelas concepções do espontaneísmo e do conformismo pedagógicos1. Nos Cadernos e Cartas do Cárcere, Gramsci direciona suas críticas não apenas às concepções espontaneístas da escola genebrina, do ativismo pedagógico, da Reforma Gentile, do folclore, do senso comum e das superstições e crenças ligadas à Igreja Católica, mas também ao que denomina como espontaneísmo político-pedagógico de pensadores marxistas (GRAMSCI, 1977).

O aparente espontaneísmo se manifesta intencionalmente como um serviço ao conformismo burguês, como forma de manutenção e expansão da dominação, deixa as camadas populares no espontaneísmo/conformista do folclore, do senso comum e da religião e reserva a conformação filosófica e dos conteúdos historicamente construídos e de relevância social para uma elite dirigente (GRAMSCI, 1977).

O debate de Gramsci com os marxistas de seu tempo e com a própria Internacional Comunista diz respeito, mais uma vez, ao papel/função dos intelectuais na construção de um consenso, formação de um bloco histórico e elevação moral e intelectual das massas como condições indispensáveis para a revolução das classes subalternas. Para Gramsci, apenas uma práxis pedagógica, que desencadeasse em uma revolução cultural, poderia criar as condições para a instauração e manutenção da nova ordem mundial surgida pela revolução das classes trabalhadoras. Sem a hegemonia cultural na sociedade civil, pedagogicamente construída, não existem condições, segundo Gramsci, para a hegemonia política que levaria às mudanças na estrutura econômica (GRAMSCI, 1977).

Dessa forma, Gramsci acentua a função desempenhada pelos intelectuais orgânicos das classes subalternas, os quais, atuando junto às massas, contribuem para que sejam formadas/conformadas de acordo com a concepção de mundo que é própria das classes trabalhadoras e, ainda, abandonem as mais diversas formas de espontaneísmo, que contribuem para o conformismo burguês. Logo, no contato com as massas, unindo prática e teoria, em um processo de catarse, os intelectuais das classes subalternas formam e são continuamente formados (GRAMSCI, 1977).

Ademais, os intelectuais orgânicos das classes trabalhadoras não devem considerar as massas como uma multidão infantil, apenas capazes de receber e seguir teorias preestabelecidas. Todo homem é um intelectual e o trabalhador é um instrumento ativo no processo revolucionário, que não acontece sem uma práxis pedagógica. Da mesma forma, os intelectuais das classes subalternas, segundo Gramsci, em debate com Sorel e Rosa Luxemburgo, não devem exercer apenas a função de líderes e incentivadores do povo que, diante da crise econômica, realizaria a revolução movido pela passionalidade (GRAMSCI, 1977).

Ao analisar a importância dada por Gramsci ao papel desempenhado pelos intelectuais orgânicos na construção do consenso/conformação, Antonio Roberto Bertelli (2003) destaca o trabalho de alguns marxistas que antecederam Gramsci, tais como Kautsky2, Bernstein3, Trótsky4, e Rosa Luxemburgo5, os quais foram formados na militância político/partidária ou sindicalista e não apresentaram preocupações em analisar a função da cultura, da pedagogia e dos intelectuais na construção do consenso que possibilita a conquista do poder político.

Segundo Vacca (2014), um dos principais objetivos dos Cadernos do Cárcere é combater as infiltrações positivistas no materialismo que, na forma de materialismo vulgar, se faziam presente no marxismo oficial. Gramsci (1977) considera as posições do economicismo, do sindicalismo anárquico, do materialismo vulgar, da guerra de movimentos e da tática do muro contro muro como manifestações de um espontaneísmo, não apenas político, mas também pedagógico.

Pontuando a questão político-pedagógica, Gramsci critica as concepções espontaneístas de Rosa Luxemburgo (1871-1919), da guerra de movimento de Trotsky, de Bukharin e, inclusive, da Internacional Comunista. Assim, Gramsci expõe sua compreensão do espontaneísmo como uma concepção teórica que prioriza a ação espontânea individual ou coletiva como propulsores da transformação social e da revolução e considera que esses elementos estão presentes no pensamento dos autores marxistas com os quais debate.

Nesse sentido, a pesquisa aborda a interpretação gramsciana das concepções político-pedagógicas de outros pensadores marxistas presente nos Cadernos do Cárcere. Destarte, nem sempre são feitas referências diretas aos textos originais de Rosa Luxemburgo, Trotsky e Bukharin.

Rosa Luxemburgo

No Caderno 13, após abordar a temática da escola no Caderno 12, Gramsci começa a tratar do intelectual orgânico coletivo, o novo príncipe, ou seja, o Partido Comunista. De acordo com Gramsci (1977), Rosa Luxemburgo negligenciava os elementos organizativos próprios de uma direção consciente. As concepções de Rosa Luxemburgo não concebiam a necessidade de um programa articulado e de um partido político que, no contato com as massas, organizasse as ações e preparasse a revolução.

Em diversas passagens dos Cadernos, Gramsci faz severas críticas ao sindicalismo anárquico (sem o novo príncipe, ou seja, a necessidade do Partido), do qual Rosa Luxemburgo era considerada a principal expoente na Alemanha (VACCA, 2014). Nesse contexto, as afirmações sobre os limites do partido político encontram-se inseridas em sua análise sobre os fatos políticos na Rússia em 1905 e, posteriormente, sobre a atuação do Partido Social Democrata da Alemanha (SPD). Segundo Rosa Luxemburgo, na Rússia, os fatos de 1905 colocaram o proletariado na vanguarda do socialismo europeu, não pela ação do Partido Social Democrata (bolchevique ou menchevique), mas pela atitude das massas populares, que se moveram e criaram os soviet. Dessa forma, a crise econômica, ou do capitalismo, criou as condições para a ação revolucionária baseada na espontaneidade das massas (LUXEMBURGO, 1970). Em sequência, ao abordar as possibilidades da revolução do proletariado nos países ocidentais, Luxemburgo escreve: “não esperar fatalisticamente, com os braços cruzados, mas entender o desenvolvimento da realidade para apressar os tempos” (LUXEMBURGO, 1970, p. 238).

Para Gramsci, as posições de Rosa Luxemburgo indicam uma subestimação do papel ou da função desempenhada pelo partido, pela cultura, pelos intelectuais e da necessidade de uma organização político-pedagógica em geral. Já em um artigo de 1916, intitulado Socialismo e cultura, Antonio Gramsci considerava a ação do partido e a educação como fundamentais para a preparação do processo revolucionário, definindo o Iluminismo como a época que permitiu a Revolução Francesa: “o que vai determinar a revolução, o que vai mover as massas, se não a ação educacional, organizacional e organizativa do Partido” (GRAMSCI, 1973, p. 156).

Outros textos juvenis de Gramsci, em modo especial os escritos do bienio rosso contra a direção do PSI, apresentam uma simpatia com as teses de Rosa Luxemburgo sobre a força e a espontaneidade das massas, capazes de anteceder a ação do Partido. Todavia, nos Cadernos do Cárcere, a valutação dos escritos de Rosa Luxemburgo, em modo especial da obra Greve Geral, Partido e sindicatos, muda drasticamente. A espontaneidade passional das massas desencadeada pela crise econômica, a guerra de movimentos, entre outros fatores, produziram na Europa ocidental uma série de derrotas, em modo especial na Alemanha (GRAMSCI, 1977).

O Estado e a sociedade civil dos países capitalistas avançados mostraram-se resistentes, diferentemente das condições encontradas na Rússia em 1917. Uma Rússia praticamente feudal, sem uma sociedade civil organizada, tornou possível a revolução do proletariado sem uma práxis pedagógica e a elevação moral e intelectual das massas camponesas e proletárias. Esse fato exigia uma reconsideração das estratégias e métodos de luta: uma revolução no conceito de revolução, como Gramsci começou a entender a partir de 1924, após a estadia em Moscou e, também, um conhecimento mais profundo de Lenin e da política do III Congresso da Internacional Comunista caracterizada pelo entrelaçamento da Nova Política Econômica (NEP) e da Frente Única (GRAMSCI, 1977).

Para Gramsci (1977), essa forma de sindicalismo repetia o erro teórico do liberalismo, na medida em que elevava a distinção metódica entre Sociedade Civil e Estado a uma distinção orgânica. Na longa nota 38 (nada menos que dez páginas) do Caderno 04, que tem como título “As relações entre estrutura e superestruras”, Gramsci discorre sobre as categorias de Estado, sociedade civil, estrutura econômico-material, política, cultura, ideologia, intelectuais, entre outros. Então, o uso de superestruturas no plural demonstra a importância da categoria ou conceito de cultura, que muitas vezes se apresenta como sinônimo de pedagogia, ideologia ou mesmo filosofia. Já a superestrutura da cultura, ou pedagogia, se relaciona dialeticamente com a superestrutura da política. Por outro lado, as superestruturas da cultura/pedagogia e da política se relacionam dialeticamente com a estrutura econômico-material (GRAMSCI, 1977).

Para Gramsci (1977), Rosa Luxemburgo elevava a uma distinção orgânica a distinção metodológica entre Estado e sociedade civil na medida em que não analisava dialeticamente as relações entre a superestrutura econômico-material e as superestruturas, de modo especial mais elevada (mais distante do econômico-material), ou seja, a cultura/pedagogia/ideologia.

Na mencionada nota, Gramsci (1977) aponta que as relações dialéticas entre estrutura e superestruturas são o problema crucial do materialismo histórico. Sendo assim, com a intenção de defender o genuíno pensamento de Marx contra as deturpações economicistas/mecanicistas e voluntaristas/passionistas, descreve os problemas do sindicalismo que, em base aos mencionados erros, subestima a função do partido e dos elementos organizativos.

Gramsci (1977) afirma que a liberdade (nas relações comerciais) é introduzida por lei - isto é, pelo Estado - e não é uma expressão espontânea do fato econômico, como defendia o liberalismo. O sindicalismo, da mesma forma, enfatiza os fatores econômicos como propulsores da futura revolução do proletariado. Ademais, o sindicalismo negligencia a relação de que o econômico-material sofre a incidência do político e do cultural nas dialéticas relações entre estrutura e superestruturas. Em uma posição adversa ao sindicalismo, Gramsci defende que as classes subalternas deveriam conquistar a hegemonia política e intelectual na sociedade civil. Apenas tendo o domínio intelectual na sociedade civil, as classes subalternas poderiam criar as condições de possibilidade para a revolução, ou seja, para a conquista do domínio político.

Na análise de Gramsci, o economicismo defendido pelo sindicalismo de Rosa Luxemburgo cometia um duplo erro espontaneísta. Em primeiro lugar se pressupõe que, sem as dialéticas relações com as superestruturas da política e da cultura (domínio intelectual), a questão econômica - isto é, a crise do capitalismo - espontaneamente criaria as condições materiais para a revolução do proletariado. Em segundo lugar, concebe-se que as massas não serão capazes de realizar a revolução sem uma formação moral (disciplinar) e intelectual (conhecimentos históricos, sociais etc.) realizada pelo novo príncipe, ou seja, o Partido Comunista(GRAMSCI, 1977).

Leon Trotsky

Em uma nota do Caderno 07 (texto A), escrita na segunda metade de 1930, retomada no Caderno especial 13 (texto C), escrito em 1932, Gramsci volta a abordar a temática do economicismo/sindicalismo espontaneísta de Rosa Luxemburgo e a relaciona com Trotsky. Além disso, na nota 24 do Caderno 13, Gramsci comenta as concepções de guerra de manobras, ou guerra de movimento, defendidas por Rosa Luxemburgo e Trotsty. Diferentemente, de outras passagens dos Cadernos do Cárcere, a nota cita diretamente Rosa Luxemburgo na obra, Greve geral, Partido e Sindicato (GRAMSCI, 1977).

Numa leitura conjunta da nota 16 do Caderno 07 e da nota 24 do Caderno 13, é possível considerar que Gramsci compara a guerra de movimento de Trotsky ao espontaneísmo de Rosa Luxemburgo, bem como considera ambos como expressões de um espontaneísmo político e pedagógico.

A teoria de Trotsky pode ser comparada àquela de alguns sindicalistas franceses sobre a greve geral e a teoria de Rosa no opúsculo traduzida para o italiano por Alessandri. O opúsculo de Rosa e a teoria de Rosa influenciaram o sindicalismo francês como demostram alguns artigos de Rosner sobre a Alemanha na Revista Vida Trabalhadora (Vie Ouvrière): depende também em parte da teoria da espontaneidade (GRAMSCI, 1977, p. 897, tradução nossa).

Gramsci compara as posições de Trotsky àquelas do sindicalismo francês e de Rosa Luxemburgo e, por conseguinte, às do economicismo. No Caderno 04, conforme nota supramencionada, Gramsci considera como economicismo é equiparado ao liberalismo nas teorias de Rosa Luxeumburgo e do sindicalismo (GRAMSCI, 1977). Ainda, na nota 16 do Caderno 07, após realizar tais comparações e encerrar a frase com dois pontos, Gramsci conclui: “depende também, em parte, da teoria da espontaneidade” (GRAMSCI, 1977, p. 867).

A guerra de movimento de Trotsky que se manifesta no sindicalismo das teorias de Rosa Luxemburgo é considerada por Gramsci como expressão de um espontaneísmo político-pedagógico. Em contraposição, nos Cadernos do Cárcere, ele defende a guerra de posições, que se caracteriza pela necessidade de disciplina moral e conhecimentos intelectuais para roubar casamatas do adversário na sociedade civil, alcançar a hegemonia intelectual, política e ter a possibilidade de incidir sobre a estrutura econômico-material (GRAMSCI, 1977). Obviamente, como representante do materialismo histórico, o qual denomina como filosofia da práxis, Gramsci defende as dialéticas relações entre matéria e ideias e jamais o primado das ideias ou ideologias.

Como demostram diversas notas dos Cadernos 03, 04, 10, 11, 13, 14 e 17, dentre outros, entre a estrutura econômico-material e as superestruturas da política e da cultura, ocorrem constantes relações dialéticas. Logo, partindo da prática, o intelectual orgânico das classes subalternas teoriza e volta-se novamente para a prática, portanto, filosofia da práxis (GRAMSCI, 1977).

Sobre as análises de Gramsci no que diz respeito ao pensamento de Trotsky, importa destacar que suas relações foram de mútua admiração, proximidade e alianças táticas nos anos que se seguiram após a Revolução Russa. Assim, a tática do fronte unico6, reelaborada por Gramsci na década de 1930, denominada por ele como Assembleia Constituinte, uniu Trotsky e Gramsci. Todavia, mesmo em tal ponto, os dois apresentaram, ao menos a partir da segunda metade da década de 1920, grandes diferenças no que diz respeito ao modo de conceber a revolução, isto é, sobre a aplicabilidade da tática do fronte unico, ou da Assembleia Constituinte. Nessa perspectiva, na interpretação gramsciana, Trotsky seria o teórico do ataque frontal e da guerra de movimentos (GRAMSCI 1977). Ademais, Gramsci se contrapôs àquela da guerra de posição, para a qual a cultura e a escola (capitalista) desempenhavam a importante função de colaborar, enquanto uma instituição da sociedade civil no processo de construção de uma nova hegemonia.

Em 1924, Gramsci defendeu Trotsky na derrota da revolução na Alemanha, mas, posteriormente, nos Cadernos do Cárcere, dirigiu pesadas críticas à tática do ataque frontal, afirmando que tal posição de Trotsky foi responsável pelas derrotas produzidas no Ocidente (GRAMSCI, 1977). Dentre as derrotas no Ocidente, a mais dolorosa foi na Alemanha. Todavia, a situação não significou uma aproximação com Stalin, Zinoviev e Bukharin; ao contrário, com a svolta, a III Internacional Comunista passou a defender a tática do muro contro muro e a possibilidade da revolução eminente. Nesse ponto específico, a posição de Gramsci se diferencia tanto daquela de Trotsky quanto da maioria stalinista. No Caderno 06, Gramsci escreveu que Trotsky continuava a propor a guerra de movimento em uma época em que esta já estava superada pela guerra de posição e, então, era a causa de derrotas. Para Gramsci, a revolução permanente e a guerra de movimento se constituíam em um reflexo da situação de pobreza da sociedade civil russa, de modo que Trotsky, ao propô-la universalmente, era incapaz de colher a especificidade do Ocidente (GRAMSCI, 1977).

Na década de 1930, nos Cadernos do Cárcere, Gramsci afirmou que a tática do ataque frontal defendida por Trotsky foi acertada na Rússia em 1917, mas no Ocidente havia obtido apenas derrotas (GRAMSCI, 1970). Por tal motivo, apresenta suas pesadas críticas a Trotsky e aponta a necessidade de substituir o ataque frontal pela guerra de posição, assim como a primordialidade da revolução cultural como condição de possibilidade para a conquista do poder político (GRAMSCI, 1977).

Conforme já demostrado, Gramsci equipara a guerra de movimento, ou do ataque frontal de Trotsky, ao sindicalismo e economicismo de Rosa Luxemburgo, que denomina como espontaneísmo. Em contraposição, propõe a direção consciente, que também chama de socialização, conformismo (para confundir os imbecis), catarse e guerra de posição (GRAMSCI, 1977). O espontaneísmo das posições de Trotsky se exprime por meio de uma guerra de manobra conduzida em campo aberto. A solidez da sociedade civil nos países ocidentais exige disciplina moral, conhecimentos intelectuais, ou seja, conformação, para gradativamente avançar sobre o adversário através de uma guerra de posições (GRAMSCI, 1977).

O ponto de vista de Trotsky sobre a guerra de movimentos era tipicamente oriental (russo). Na nota 16 do caderno 07, imediatamente antes de escrever que a guerra de movimentos era inspirada em um modelo espontaneísta de luta política, Gramsci afirma que Trotsky não compreendeu algo que Lenin aparentemente compreendeu, mas não teve tempo de colocar em prática.

Parece-me que Ilici havia compreendido que ocorria uma mudança da guerra manobrada, aplicada vitoriosamente no Oriente em 17, para a guerra de posição que era a única possível no Ocidente. Mas Ilici não teve tempo de aprofundar sua fórmula. No Oriente, o estado era tudo, a sociedade civil era primordial e gelatinosa; no Ocidente entre Estado e sociedade civil existia uma relação justa e, ao lado do Estado, podia-se ver imediatamente a robusta estrutura da sociedade civil (GRAMSCI, 1977, p. 866).

Nas revoluções de 1905, e posteriormente 1917, existiram elementos organizativos e de direção consciente; assim, Gramsci defende a sua importância contra Rosa Luxemburgo (GRAMSCI, 1977). Todavia, em virtude da inexistência de uma sociedade civil organizada, foi possível a guerra de movimentos defendida por Trotsky.

As posições de Gramsci no diálogo crítico com Rosa Luxemburgo e Trotsky, envolvendo as temáticas ou categorias de guerra de movimento, guerra de posição, espontaneísmo e direção consciente, ou conformismo, parecem complexas. Todavia, nos referidos acontecimentos da história russa e da luta das classes subalternas, foi possível a guerra de manobras ou movimentos, que também é considerada por Gramsci como uma forma de espontaneísmo que produziu apenas derrotas no Ocidente.

A Internacional Comunista

As críticas de Gramsci ao espontaneísmo político-pedagógico o colocam em posição diversa não apenas de Rosa Luxemburgo e Trotsky, mas também em relação à posição assumida pela Internacional Comunista. A partir da metade da década de 1920, a III Internacional Comunista foi completamente dominada pelo maioria stalinista. Os fatos econômico-políticos europeus e internacionais que desencadearam a svolta de 1926, com a consequente passagem da tática do fronte unico7 à do muro contro muro ou classe contro classe8, determinaram igualmente o surgimento/retorno de novas categorias político-pedagógicas no cenário dos partidos comunistas e da III Internacional Comunista. A tática do muro contro muro, já em desenvolvimento desde a derrota na Alemanha em 1924, foi definitivamente lançada por Stalin e Bukharin no VI Congresso da III Internacional Comunista em 1928 (LINDENBERG, 1977). A principal referência teórica para o lançamento da tática consistiu na análise sociológica de Bukharin, considerada por Gramsci como mecanicista e denominada como exposição do materialismo vulgar (GRAMSCI, 1977).

A tática do muro contro muro representou no âmbito da cultura, inclusive naquela da educação formal, o triunfo das teses do economicismo e o do voluntarismo, aliás, consideradas por Gramsci como formas de espontaneísmo. Segundo Vacca (2003), nos anos que esteve no cárcere de Turi, ao estudar os pormenores da svolta stalinista e do IV Congresso de Colonia9, Gramsci dá início à elaboração da tese da Assembleia Constituinte, inclusive, em defesa da luta política aliada ao aspecto cultural e escolar, bem como, em defesa do conformismo político-pedagógico. Sobre a questão, Lindenberg (1977) comenta que a mudança de tática na Internacional Comunista, ou seja, a passagem do fronte unico para o muro contro muro, significou uma ruptura com a cultura, a educação e a própria escola burguesa.

Gramsci permaneceu fiel à tática do fronte unico e, nos Cadernos do Cárcere, defendeu que as classes subalternas deveriam se apoderar das mais elevadas formas de cultura e de conhecimentos produzidos pela humanidade, inclusive pela sociedade burguesa (GRAMSCI, 1977). Especialmente nos Cadernos 04 e 12, Gramsci afirma que embora a escola esteja a serviço da manutenção da ordem vigente, isto é, da sociedade capitalista, ela pode ser usada pelos grupos dominados, podendo ser um importante e imprescindível instrumento de emancipação cultural, política e econômica (GRAMSCI, 1977).

Assim, Gramsci rejeita a oposição à ciência, à cultura e à escola burguesa presentes nos documentos da Internacional Comunista (LINDENBERG, 1977). Como meio de emancipação, as classes subalternas deveriam se apoderar dos conhecimentos científicos, artísticos e, por fim, da ciência e cultura produzidos ao longo da história da humanidade.

Ademais, nos Cadernos 10 e 11, Gramsci afirma que o desprezo pela ideologia era um erro do economicismo e do materialismo vulgar, que repercutia na subestimação da cultura, a qual poderia contribuir na construção de uma nova hegemonia política. Desse modo, a relação dialética entre estrutura econômico-material e a superestrura se reduz àquela mais próxima da base, ou seja, a política em detrimento do ideológico, cultural ou pedagógico (GRAMSCI, 1977).

Defendendo um amadurecimento político-pedagógico das classes subalternos, Gramsci (1977) critica a tática do muro contro muro, afirmando que ela contribuía para a desvalorização dos aspectos culturais ou pedagógicos na medida em que postulava uma imediata superação da sociedade e dos valores burgueses através da eminente revolução operária.

Por conseguinte, Gramsci defendeu a necessidade de um tempo intermediário, denominado Assembleia Constituinte, no qual a cultura desempenharia um papel primordial e as classes subalternas seriam conformadas de acordo com a concepção de mundo que lhes é própria (GRAMSCI, 1977).

A luta econômica não poderia ser separada da luta política e ambas não poderiam ser separadas da luta ideológica. Sobre as dialéticas e constantes relações entre a hegemonia ideológica, a ideologia política e a hegemonia econômica em Gramsci, Peter Mayo afirma:

Se, portanto, o domínio ideológico total não é possível antes da conquista do Estado, é notável a quantidade de trabalho a ser feito com antecedência para facilitar o nascimento do clima propício à mudança. Isso significa que toda revolução foi precedida por um intenso trabalho de crítica, de penetração cultural, de permeação de ideias (MAYO, 2007, p. 26).

A III Internacional Comunista, motivada por situações históricas concretas, priorizou a tática da classe contro classe. Dessa forma, a possibilidade da revolução eminente tornava desnecessária e supérflua a conquista da hegemonia cultural e a formação/conformação das classes subalternas à concepção de mundo que lhes é própria. Gramsci, em contraposição, defendeu que era possível partir dos espaços oferecidos pela própria sociedade burguesa no âmbito cultural e escolar (LINDEBERG, 1977).

Após o fascismo, que havia desarticulado o movimento operário contadino, seria necessário um período de transição para a formação/conformação dos membros das classes dominadas. Sem a reforma moral e intelectual, não estariam presentes as condições para a revolução. Ainda, em outras passagens dos Cadernos, Gramsci afirma que, mesmo se a revolução ocorresse sem um período de formação, maiores dificuldades seriam encontradas para que a classe trabalhadora se mantivesse no poder. Sem uma hegemonia cultural, a hegemonia política não seria mantida e não seriam possíveis mudanças duradouras na estrutura econômico-material (GRAMSCI, 1977).

Nicolai Bukharin

Conforme supracitado, Bukharin foi um dos pensadores que forneceu as bases teóricas para as formulações político-pedagógicas da Internacional Comunista, consequentemente, as divergências de Gramsci com encaminhamentos políticos e estratégicos da III Internacional se estenderam a Bukharin. Segundo Vacca (2014), um dos grandes objetivos dos Caderno do Cárcere consiste na refutação do cientificismo positivista que, nas décadas de 1920 e 1930, caracterizou o marxismo soviético, cujos textos principais eram La Teoria del materialismo storico. Manuale popolare di sociologia marxista, de Bukharin, e o Précis d’economie politique (L’économie politique e la théoria de l’économie sovietique), de Lapidus e Ostrovitianov.

A Teoria do Materialismo Histórico de Bukharin foi publicada pela primeira vez em 1921 e tornou-se, na Itália, um texto muito utilizado na formação dos trabalhadores. Desse modo, a obra transformou-se em uma das grandes fontes para a divulgação e propagação do pensamento marxista no país (SCHLESENER, 2005). O próprio Gramsci, em 1925, utiliza a Teoria do Materialismo Histórico para a escola do PCI.

Nos Cadernos do Cárcere, escritos a partir de 1929, a obra de Bukharin é submetida a uma crítica ampla e minuciosa, especificamente no Caderno 11. A defesa das etapas ou estágios do capitalismo, tese central de Bukharin, é considerada por Gramsci como um economicismo que deprecia a importância dos fatores culturais/pedagógicos e organizativos.

Já abordamos que, nos Cadernos, principalmente a partir de 1932/1933, Gramsci passa a defender a necessidade da Assembleia Constituinte como um período de transição entre o fascismo e a revolução. Para Gramsci, a cultura desempenharia uma função imprescindível e a política estaria intrinsicamente relacionada à pedagogia em tal período. Nesse sentido, no Caderno 11, ele pontua com firmeza que toda relação política é uma relação pedagógica (GRAMSCI, 1977). Logo, a tese dos estágios do capitalismo não estaria em conformidade com o processo revolucionário, pois nega a necessidade da reforma moral e intelectual das classes subalternas. Segundo Gramsci, tal tese acreditava que mecanicamente as classes subalternas deixariam de ser conformadas às concepções burguesas de mundo e, por adesão ao conformismo, passariam a ser guiadas pela concepção de mundo própria dos trabalhadores. Nessa perspectiva, semelhante às criticas direcionadas à Rosa Luxemburgo, a Trotsky e à Internacional Comunista, Gramsci equipara o economicismo de Bukharin ao espontaneísmo.

Para compreender as críticas de Gramsci, é necessário levar em consideração o contexto dos seus escritos, em modo especial, os Cadernos 10 e 11. Os dois Cadernos foram escritos quando Bukharin ainda tinha uma posição de destaque na política russa. Embora derrotado por Stalin em 1929, suas obras continuavam a exercer grande influência no capitalismo internacional e, conforme mencionado, também exerciam muita influência entre os comunistas italianos. Apesar de os Cadernos enfrentarem frentes teóricas distintas - o Caderno 10 direcionava uma crítica à filosofia idealista de Croce e o Caderno 11 focava nas concepções políticas e pedagógicas economicistas/positivistas de Bukharin - a dupla polêmica, conforme já demonstrado, encetava as teses firmadas no espontaneísmo.

No conjunto de suas argumentações, Gramsci procura explicitar que o materialismo histórico dialético não seria apenas materialismo (economicismo e espontaneísmo), mas também um elemento histórico e dialético, portanto, processual e constituído pela luta político-pedagógica na sociedade civil. No contexto das disputas com Croce e Bukharin, Gramsci “ressaltou tanto os problemas da assimilação de Marx pela filosofia burguesa quanto os limites decorrentes das interpretações que prevaleciam no âmbito da política marxista da década de 30” (SCHLESENER, 2005, p. 12).

A teoria dos estágios do capitalismo, segundo a crítica gramsciana, diminuía a importância da cultura e da reforma moral e intelectual dos trabalhadores. Todavia, traduzida para o italiano e para as demais línguas europeias, a Teoria do Materialismo Histórico era utilizada como um manual para a formação das massas populares, através da qual se expunha os principais conceitos do materialismo histórico dialético a partir da elaboração de Marx, Lenin, Stalin e do próprio Bukharin para os trabalhadores. Logo, a obra se apresentava como um projeto de formação, mas difundia a possibilidade de uma imediata revolução do proletariado através da teoria dos estágios. Desse modo, para Gramsci, o principal oponente no campo teórico é Bukharin e a tese dos estágios na sua obra.

Enquanto Gramsci afirma que todo homem é um intelectual e que todo dirigido deve estar capacitado para ser um dirigente (GRAMSCI, 1977), Bukharin (na compreensão de Gramsci) quer formar/preparar para a imediata revolução. Nesse ponto, a crítica direcionada a Rosa Luxemburgo volta-se também contra Bukharin, ou seja, na concepção gramsciana, se acontecesse a revolução, ela não se manteria, pois a revolução seria, em curto tempo, derrotada sem uma reforma moral e intelectual das massas, sem a superação do conformismo burguês (GRAMSCI, 1977).

Analisando a obra de Bukharin, Gramsci (1977) afirma que a redução do materialismo histórico dialético a uma sociologia, significava uma simplificação metafísica e vulgar (GRAMSCI, 1977), reduzindo o marxismo a um formulário mecânico. No mesmo período, em uma carta que demonstra preocupação ao filho Délio na Rússia, refere-se às tendências do ensino na Rússia soviética e afirma que o mecanicismo e o espontaneísmo negavam a dialética, dando a impressão de querer colocar toda a história no bolso (GRAMSCI, 1965).

No Caderno 4, textos A, os quais serão revistos em textos C, nos Cadernos 10, 11 e 12, Gramsci aborda a temática em polêmica com Croce e Bukharin. Por exemplo, na nota 03, do caderno 04, que tem como título: Dois aspectos do marxismo, Gramsci afirma que o marxismo se constitui em um momento da cultura moderna que determinou e fecundou outras correntes do pensamento, entretanto, em uma contumaz crítica, aponta que o estudo de tal fenômeno (do marxismo como alta cultura) tem sido transcurado e ignorado pelo marxismo oficial (GRAMSCI, 1977).

No mesmo período em que a Internacional Comunista, o Partido Comunista Russo e os demais partidos comunistas europeus, inclusive o PCI, solidificavam a tática do muro contro muro e as possibilidades de uma eminente revolução, entretanto, Gramsci empreende a defesa da superestrutura da cultura/pedagogia nas suas dialéticas relações com a política e a estrutura econômico-material.

Em sequência, recorrendo ao pensamento de Antonio Labriola, Gramsci defende que o marxismo já seria uma filosofia, portanto, não teria a necessidade do positivismo cientificista que se manifesta no economicismo, no materialismo vulgar e, consequentemente, no espontaneísmo (GRAMSCI, 1977).

Na mesma e longa nota 03 do Caderno 04, Gramsci afirma que o marxismo ofereceu a Croce o materialismo histórico como cânone de suas pesquisas na história. Por sua vez, o filósofo neoidealista italiano introduziu o conceito na cultura moderna, inclusive entre os católicos italianos. Entretanto, para Gramsci, o marxismo como ideologia e movimento cultural implicava em uma nova forma de ver e analisar o mundo, modificando os velhos modos de pensar e agir. Por fim, o marxismo concedeu ensinamentos práticos aos grupos e partidos políticos que o combatem - assim como os jesuítas na Itália combatiam a Maquiavel, utilizando-se do próprio Maquiavel (GRAMSCI, 1977).

Noutros termos, pode-se afirmar que o marxismo surge com uma dupla finalidade: combater as ideologias burguesas nas suas formas mais refinadas e esclarecer as massas. Segundo Gramsci (1977), o materialismo vulgar surge numa “combinação” com o marxismo oficial. Para retirar as massas populares de um estado pré-capitalista, principalmente pela influência religiosa, o marxismo vulgar se confundiu com a cultura um pouco superior à mentalidade popular, mas insuficiente e inadequada para combater as ideologias das classes dominantes. O marxismo original (de Marx e Engels) era a superação das mais elevadas manifestações culturais de seu tempo, isto é, da filosofia clássica alemã (GRAMSCI, 1977).

Para Gramsci (1977), seria necessária uma catarse para haver uma sólida reforma moral e intelectual nas classes subalternas. Desse modo, todo dirigido estaria preparado para ser um dirigente, bem como se constituiria em uma nova conformação, superando a ideologia burguesa, não só em termos qualitativos, mas também superando as diferenças significativas entre a massa de trabalhadores e os intelectuais. Assim, os próprios trabalhadores poderiam se apoderar da cultura, dos conhecimentos científicos, artísticos, entre outros, e, dessa forma, dariam um salto qualificativo para a nova ordem, que seria o comunismo como superação do capitalismo (GRAMSCi, 1977).

Na dialética entre prática e teoria, estrutura e superestruturas, ideologia e materialidade, segundo o filósofo sardo, o marxismo se configurava como a superação dos mais altos movimentos culturais (filosofia clássica alemã, Renacimento/Ressurgimento, Reforma Protestante e a Revolução Francesa), significando o coroamento de todas as reformas intelectuais e morais como uma filosofia indispensável para a superação do folclore, dos elementos da religiosidade católica, mas também da filosofia e da ciência burguesa nas suas formas mais elevadas (GRAMSCI, 1977).

Para Gramsci (1977), o marxismo vulgar dos marxistas oficiais foi insuficiente para criar um amplo e vasto movimento cultural que pudesse perpassar e envolver todos os homens em todas as épocas e em todas as condições sociais, unificando-os moral e intelectualmente à sociedade. O acento gramsciano em todas as épocas demonstra que o marxismo precisa ser herdeiro das tradições culturais anteriores para poder superá-las. Portanto, deve atingir os homens em todas as condições sociais, isto é, não pode haver distinção entre a cultura exclusiva dos intelectuais e a cultura popular (GRAMSCI, 1977).

Seguindo nesse pressuposto, Gramsci (1977) afirma que Marx construiu e sintetizou a unidade dialética da história na junção da filosofia hegeliana com o materialismo de Feuerbach. Todavia, muitos materialistas fizeram com Marx o que os idealistas de direita haviam feito com Hegel, ou seja, constitui-lo em um idealismo vulgar. No caso da unidade marxista, surgiu o materialismo vulgar (GRAMSCI, 1977).

Na segunda parte do Caderno 11, que tem como título Algumas observações sobre uma tentativa de ságio popular de sociologia, Gramsci coloca-se diretamente contra Bukharin. Segundo Gramsci (1977), apontando que a obra de Bukharin comete alguns erros ao enaltecer o senso comum e por se colocar numa posição crítica às filosofias tradicionais. Também erra, segundo Gramsci (1977), por pressupor que a filosofia original elaborada pelas massas populares se contrapõe e sofre oposição dos grandes sistemas filosóficos tradicionais e a religião, do alto clero, ou seja, das concepções de mundo dos intelectuais e da alta cultura. Na visão gramsciana, O Ságio popular de Bukharin também comete um erro metodológico na medida em que se volta contra as filosofias tradicionais e não contra o senso comum.

Para Gramsci, a elaboração de uma filosofia popular original não surgiria da espontaneidade das massas diante de motivações econômicas, mas resultaria de uma reforma moral e intelectual que, assim como o materialismo histórico, incluiria as filosofias tradicionais antes de dar um salto qualificativo (GRAMSCI, 1977).

As massas populares desconhecem os sistemas filosóficos tradicionais e as elaborações teológicas do alto clero. No entanto, isso não significa que estas não atuem sobre a mentalidade e as práticas populares. Trata-se, segundo Gramsci, de uma atuação indireta. As concepções de mundo da classe dirigente, tanto a filosofia quanto a religião do alto clero, se servem de elementos do senso comum, do folclore e das superstições religiosas para manter as classes subalternas em uma visão caótica de mundo. Trata-se, portanto, de uma conformação indireta (GRAMSCI, 1977).

Para Gramsci, o primeiro passo no processo revolucionário consiste na reforma moral e cultural das massas populares que significa, justamente, a superação do senso comum, do folclore e das superstições e das crendices religiosas. Apenas em um segundo momento, após a supração do senso comum, é possível realizar um diálogo crítico com as filosofias tradicionais, que serão dialeticamente superadas pela filosofia da práxis, correspondendo a uma identificação entre alta cultura e cultura popular (GRAMSCI, 1977).

A filosofia da práxis, ao contrário das concepções de Bukharin, representa a unidade dialética entre a filosofia das massas e os grandes sistemas filosóficos. A filosofia da práxis, ou materialismo histórico, supera as filosofias tradicionais justamente porque está enraizada nas práticas sociais e inclui as classes subalternas em seu sistema. As filosofias tradicionais e a teologia do alto clero são manifestações do conformismo burguês que favorecem e incentivam o espontaneísmo popular. Já a filosofia da práxis representa um novo conformismo que contribui para a superação do espontaneísmo das massas (GRAMSCI, 1977).

O Caderno 11 foi redigido em clara polêmica com o marxismo oficial que, segundo Gramsci, aderiu ao materialismo vulgar e encontra em Bukharin um de seus principais teóricos. Entretanto, em outras passagens isoladas dos Cadernos do Cárcere, além das já mencionadas notas do Caderno 04, Gramsci dirige contumazes críticas a Bukharin e ao seu Ságio Popular. Na nota 06 do Caderno 07, descreve que as posições do autor representam o embrião de uma filosofia não desenvolvida e, assim, incapaz de superar as filosofias tradicionais e as concepções de mundo da classe dominante.

Na nota 186 do Caderno 08, com o título: Sobre o Ságio Popular, Gramsci tece fortes e diretas críticas a Bukharin:

Sobre o ensaio popular. A filosofia do ensaio popular e puro aristotelismo [positivista], ou seja, um reajuste da lógica formalista de acordo com os métodos das ciências naturais: a lei da causalidade substitui a dialética; classificação abstrata, sociologia etc. Se ‘idealismo’ é a ciência das categorias a priori do espírito, ou seja, é uma forma de abstração anti-histórica, este ensaio popular é idealismo reverso no sentido de que substitui as categorias do espírito por categorias empíricas que são igualmente a priori e abstratas. Causalidade e não dialética (GRAMSCI, 1977, p. 1054).

Na nota, Gramsci equipara o pensamento de Bukharin ao positivismo aristotélico, ao passo que equipara o positivismo ao espontaneísmo. Noutros termos, para Gramsci, vida social não poderia ser reduzida e explicada pelas ciências da natureza, pela lei da causalidade ou pela lógica formal. Se a vida social e a política fossem reduzidas ao economicismo positivista, tudo já estaria previamente dado, não existiria espaço para a dialética. Também, tal perspectiva isolaria a cultura, a ideologia e a pedagogia, visto que pressupunharia que tais elementos não incidiriam sobre a realidade econômico/material. O positivismo economicista se identifica com o espontaneísmo ao passo em que subestima a necessidade de elevação moral e intelectual das classes subalternas.

Nesse sentido, contrapondo-se à Rosa Luxemburgo, a Trotsky, a Bukharin e à Internacional Comunista, os quais, de modo diferente, afirmam que a estrutura econômica material - isto é, a crise do capitalismo - criaria as condições para a revolução do proletariado, Gramsci defende o materialismo histórico e aponta, por diversas vezes, que a dialética e a ideologia seriam imprescindíveis e influentes na luta política. Desse modo, a dialética daria-se apenas entre a estrutura econômico-material e a superestrutura da política. Gramsci quer defender a ideologia e a superestrutura mais distante da estrutura econômico-material, ou seja, a cultura/pedagogia.

Considerações finais

O artigo abordou o diálogo crítico que Gramsci estabelece, principalmente nos Cadernos do Cárcere, com os pensadores marxistas de sua época: Rosa Luxemburgo, Trotsky, Bukharin e a Internacional Comunista. O debate abre muitas possibilidades de reflexão sobre o movimento revolucionário e o papel da educação.

Aliás, no contexto das primeiras décadas do século XX, logo após a Revolução Russa, as estratégias e perspectivas do processo revolucionário foram motivos de muitos debates entre as diferentes correntes marxistas.

Sobre as reflexões de Rosa Luxemburgo, Gramsci pontua que ela acaba por subestimar a função do partido como elemento organizativo ao valorizar a ação do sindicato. Destaca, ainda, que a defesa da greve das massas populares e o desencadeamento da Revolução, ocasionado apenas pela paixão espontânea diante da crise econômica e/ou como reflexo da crise geral do capitalismo, carregava deturpações originárias do pensamento economicista/mecanicista. Para Gramsci, economicismo/mecanicismo/passionismo equivale a espontaneísmo.

No que se refere a Trotsky, apesar de se aproximar de algumas de suas considerações, principalmente quando teoriza sobre a Assembleia Constituinte, ao se referir à guerra de movimentos, Gramsci pontua que ela enfraquece as possibilidades de ação das classes subalternas na sociedade civil. Nesse sentido, defende que, antes da guerra de movimento, faz-se necessária a guerra de posições, através da qual ocorre a reforma intelectual e moral das classes subalternas. As massas populares são conformadas de acordo com a concepção de mundo que lhes é própria e abandonam as diferentes formas de espontaneísmo que corroboram para o conformismo burguês. Desse modo, é possível avançar no processo de constituição de uma nova hegemonia intelectual e política. Nessa perspectiva, Gramsci repete os questionamentos feitos às concepções de Rosa Luxemburgo. A teoria Trotskista, também, significa a defesa do espontaneísmo fundamentado em uma visão economicista e positivista de sociedade.

A III Internacional Comunista, no contexto da segunda metade da década de 1920, sob influência da maioria stalinista, assistiu à substituição da tática do fronte unico para a do muro contro muro ou classe contro classe. Isso implicou o fortalecimento da teoria Bukhariana dos estágios capitalistas que, segundo Gramsci, também tinha como fundamento o economicismo e o espontaneísmo.

No que se refere à educação, é importante chamar atenção para o fato que a questão educacional foi pautada como elemento integrado às atividades conduzidas pelos Partidos Comunistas no IV Congresso da III Internacional Comunista. No entanto, não se tratava da questão escolar, mas da formação dos quadros políticos em associações, faculdades e organizações operárias.

Gramsci, pressupondo uma interrelação dialética entre estrutura e superestruturas, aponta que a cultura também teria um papel ativo na sociedade. Porém, no que se refere à ação revolucionária, não se tratava de qualquer cultura, mas tratar-se-ia da filosofia da práxis. Essa perspectiva, composta de consciência histórica e de classe, bem como sustentada por um método de análise que possibilita compreender a realidade em suas contradições e possibilidades objetivas de transformações, poderia munir as classes subalternas para atuar na sociedade civil de modo a avançar de forma segura no processo de transformação social.

Nesse aspecto, Gramsci defende uma formação político-pedagógica dos membros das classes subalternas de modo a construir uma direção consciente, a qual ele chama de socialização, conformismo, catarse e reforma moral e intelectual. Para Gramsci, diante das complexidades e solidez da sociedade civil nos países ocidentais, é necessário que as classes subalternas adquirissem formação intelectual e disciplina moral antes da revolução política, ou seja, uma nova conformação, para, gradativamente, avançar na constituição de uma nova hegemonia social através de uma guerra de posições.

Nesse sentido, a atuação dos intelectuais orgânicos das classes subalternas é imprescindível, pois eles contribuem na construção das condições subjetivas para a revolução do proletariado e dos camponeses e para a sua manutenção histórica. Apenas uma reforma moral e intelectual das classes subalternas pode contribuir para que elas possam aderir à concepção de mundo que lhe é própria.

Por fim, destaca-se que Gramsci, em diversas passagens dos Cadernos do Cárcere, apresenta uma valoração positiva da categoria conformismo. Para ele, educar significa conformar. Todavia, a diferença do conformismo gramsciano em relação ao conformismo burguês encontra-se na introdução da categoria de luta de classe que também perpassa o espaço cultural e a própria escola. Assim, para ele, a educação, inclusive a escolar, encontra-se na luta entre dois conformismos: conformação às concepções de mundo da classe dominante ou conformação às concepções de mundo que são próprias das classes subalternas. No que se refere às classes subalternas, a conformação ocorre em perspectiva de transformação da sociedade. Aliás, e nesse sentido, é que se deve compreender o novo conformismo gramsciano.

Notas

1A tensão entre o deixar a natureza seguir seu curso (espontaneísmo) ou pela ação exterior lhe dar uma conformação ou direção consciente (conformismo) está presente já nos escritos juvenis ou pré-carcerários de Gramsci, mas torna-se uma das temáticas principais nos Cadernos e Cartas do Cárcere.

2Karl Johann Kautsky (1854-1938) foi um filósofo e político marxista que, na Alemanha, defendeu a necessidade de revisão das teorias de Marx.

3Eduard Bernstein (1850-1932) foi um teórico-político alemão que também defendeu a revisão das teorias marxistas.

4Leon Trótsky (1879-1940) foi um intelectual marxista e revolucionário russo. Primeiro aderiu ao partido menchevique e depois ao bolchevique. Participou ativamente da Revolução Russa de 1917 como organizador do Exército Vermelho. Após a morte de Lenin, discordou das posições stalinistas, foi expulso da União Soviética e morto no México em 1940.

5Rosa Luxemburgo (1871-1919) foi uma filósofa e economista marxista. Nasceu na Polônia, mas escreveu suas obras e realizou sua militância política na Alemanha. Tornou-se mundialmente conhecida pela militância revolucionária. Foi adepta do sindicalismo revolucionário.

6Frente única de todos os partidos de esquerda.

7A tática do bloco único prescreveu uma política de alianças entre os partidos comunistas, socialistas e sociais democratas nos países europeus.

8Tática do muro contro muro, ou classe contro classe, na segunda metade da década de 1920 e na primeira metade da década de 1930, significou a proibição de alianças com os socialistas e sociais democratas que passaram a ser designadas como socinazisti.

9Segundo Vacca (2003), as teses assumidas pela III Internacional Comunista no IV Congresso, influenciaram o PCI na aceitação da tática da classe contro classe ou muro contro muro.

Referências

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Recebido: 08 de Agosto de 2022; Aceito: 13 de Dezembro de 2022

Prof. Dr. Lorivaldo do Nascimento, Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Brasil)m Doutor em Teologia Dogmática pela Pontifícia Università Gregoriana de Roma, Membro do Grupo de Pesquisa História e Historiografia na Educação, Membro do Grupo de Pesquisa História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDOPR), Email: lorinasci@yahoo.com.br

Profa. Dra. Aparecida Favoreto, Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Coordenadora do Grupo de Pesquisa História e Historiografia na Educação, Email: cidafavoreto20@gmail.com

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