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Revista Educação em Questão

Print version ISSN 0102-7735On-line version ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.66 Natal Oct./Dec 2022  Epub Apr 18, 2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n66id29802 

Artigo

Projetos de sobrevivência: trabalho e assistência estudantil para estudantes LGBTI+ na universidade

Survival projects: work and student assistance for LGBTI+ students at university

Proyectos de supervivencia: trabajo y asistencia estudiantil para estudiantes LGBTI+ en la universidad

Júlio César de Oliveira Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-8882-2310

1Universidade Federal de Pernambuco (Brasil)


Resumo

O presente artigo objetiva analisar as relações entre diferenças e desigualdades na composição das experiências de trabalho e de acesso à assistência estudantil para estudantes LGBTI+ na universidade. Para tanto, recorro a narrativas de cinco estudantes LGBTI+ da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) sobre as suas trajetórias acadêmicas, reunidas através de entrevistas individuais, semiestruturadas e em profundidade, realizadas entre julho e setembro de 2020. Os resultados da investigação foram analisados a partir de referenciais teóricos como Judith Butler, Avtar Brah e Anne McClintock. Destaca-se como gênero, sexualidade, classe e raça se entrecruzam na tessitura das experiências de trabalho e nos modos como acessam a assistência estudantil. Nessas tramas narrativas, a assistência estudantil constitui projetos de sobrevivências. Com o contexto de crise da educação superior, reforça-se a importância da assistência estudantil e os riscos envolvidos em seu atual desmonte.

Palavras-chave: Universidade; Trabalho; Estudantes LGBTI+; Gênero e sexualidade.

Resumo

This paper aims to analyze the relationships between differences and inequalities in the composition of work experiences and access to student assistance for LGBTI+ university students. To do so, I resort to the narratives of five LGBTI+ students from the Federal University of Pernambuco (UFPE) about their academic trajectories, gathered through individual, semi-structured and in-depth interviews, carried out between July and September 2020. The research results were analyzed from theoretical references such as Judith Butler, Avtar Brah and Anne McClintock. We highlight how gender, sexuality, class and race intersect in the texture of work experiences and in the ways they access student assistance. In these narrative, student assistance constitutes survival projects. With the context of crisis in higher education, the importance of student assistance and the risks involved in its current dismantling are reinforced.

Keywords: University; Work; LGBTI+ students; Gender and sexuality.

Resumen

Este artículo pretende analizar las relaciones entre diferencias y desigualdades en la composición de las experiencias laborales y el acceso a la asistencia estudiantil para estudiantes universitarios LGBTI+. Para ello, me baso en las narrativas de cinco estudiantes LGBTI+ de la Universidad Federal de Pernambuco (UFPE) sobre sus trayectorias académicas, recogidas a través de entrevistas individuales, semiestructuradas y en profundidad, realizadas entre julio y septiembre de 2020. Los resultados de la investigación fueron analizados con base en referentes teóricos como Judith Butler, Avtar Brah y Anne McClintock. Se destaca cómo género, sexualidad, clase y raza se entrecruzan en el tejido de las experiencias laborales y en las formas en que acceden a la asistencia estudiantil. En estas tramas narrativas, la asistencia a los estudiantes constituye proyectos de supervivencia. Con el contexto de crisis de la educación superior, se refuerza la importancia de la asistencia al estudiante y los riesgos que implican su actual desmantelamiento.

Palabras clave: Universidad; Trabajo; Estudiantes LGBTI+; Género y sexualidad.

Introdução

A partir do início do século XXI, a educação superior brasileira vivenciou o que ficou conhecido como processo de democratização, com uma sequência de políticas públicas que, por um lado, ampliaram o número de instituições (públicas e privadas), cursos, vagas, matrículas, incluindo, e por outro, buscaram viabilizar o acesso e permanência de sujeitos historicamente sub-representados nesse nível de educação, entre os quais, pobres, negros/as, indígenas e pessoas com deficiência.

O perfil do público universitário mudou nos últimos anos. Mais pessoas negras, pobres e LGBTI+1 passaram a habitar essas instituições, “[...] trazendo outras experiências e olhares, demandando novos temas e interesses para dentro da academia” (SIMÕES, 2020, p. 11). Com isso, passaram também a questionar o direito de aparecer e de habitar os espaços universitários, reivindicando o reconhecimento de suas existências, condições de permanência e alargando as fronteiras das lutas democráticas. Dessa maneira, gradativamente a chamada população LGBTI+ passou a também disputar a democratização, mobilizando lutas em torno de questões fundamentais como igualdade, inclusão e reconhecimento.

Mais recentemente, esse ciclo de democratização da educação superior encontrou seus limites. A ampla articulação envolvendo demandas de diferentes setores como movimentos sociais, academia, parlamento, empresas, entre outros, vivencia uma dinâmica de desestruturação frente a outros projetos de sociedade e de universidade, especialmente a partir de 2014 (SANTOS, 2022). Nesse contexto, a forte articulação entre demandas conservadoras e neoliberais que emergiu na conjuntura política brasileira nos últimos anos tem tensionado o processo de democratização da educação superior.

Com a ascensão do Governo Bolsonaro a partir das eleições de 2018, uma ampla aliança entre setores neoliberais e conservadores veio impulsionando profundas transformações na educação superior brasileira. Nela articula-se, de um lado, uma moral conservadora, destacadamente de matriz judaico-cristã, que se concentra especialmente nas relações de gênero e sexualidade, e do outro, a defesa e intensificação das políticas econômicas neoliberais que amplia uma lógica de privatização da vida social, em todas as suas esferas, efetivando uma degradação de direitos sociais e de instituições públicas; o aprofundamento das desigualdades socioeconômicas, fundada na superexploração do trabalho; e a ampliação de uma lógica econômica como reguladora das vidas humanas, inclusive na dimensão das relações consigo mesmo (BROWN, 2019).

Nessa perspectiva, há conexões importantes entre sentidos de trabalho e universidade, em um cenário de forte antagonismo, e relações de gênero e sexualidade, que medeiam as dinâmicas de ingresso e permanência na educação superior. Conexões essas que, como argumentarei a frente, articulam diferentes diferenças na compleição de desigualdades e de modos de viver a universidade.

Este artigo se configura como um recorte de uma pesquisa de doutorado que buscou compreender como processos políticos mais amplos e formas de subjetivação se perfazem no âmbito da educação superior, através de narrativas de estudantes LGBTI+ que ingressaram na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) nos últimos anos. Neste texto, analisa-se as relações entre diferentes diferenças e desigualdades na composição das experiências de trabalho e de acesso a assistência estudantil entre estudantes LGBTI+ na universidade, através de narrativas de seis estudantes da UFPE, de diferentes áreas do conhecimento, reunidas através de entrevistas individuais, semiestruturadas e em profundidade, realizadas entre julho e setembro de 2020.

Organizado em três partes, esse estudo discute inicialmente sobre como gênero, sexualidade, classe e raça se coproduzem na construção das experiências de trabalho e de acesso a assistência estudantil universitária. Na segunda parte, focaliza-se a importância da assistência estudantil nas trajetórias de pessoas LGBTI+, sobretudo quando envolvem comprometimentos ou rompimentos das relações familiares. Em seguida, passa-se a uma discussão sobre as “monitorias pagas” e “encontros pagos” como alternativas de trabalho acionadas por um dos interlocutores em um contexto de extensa precarização.

Gênero, sexualidade, classe e raça na compleição do trabalho

Natural de Caruaru, Íris2, 26 anos, gay3, pardo e estudante da área das Ciências Humanas no Campus Acadêmico do Agreste, me contou que desde muito cedo a vida tem sido uma luta para ele. Ele passou a maior parte da sua trajetória escolar em escolas públicas da região e quando concluiu o Ensino Médio pensou em estudar Medicina. Não conseguindo ser aprovado, ele foi trabalhar em uma central de atendimento de telemarketing em Caruaru, empresa que, como ele conta, “a maioria das pessoas LGBT da cidade acabava trabalhando lá, ou trabalharam lá” e que ele trabalhou até o segundo período da graduação na UFPE. Por mais que houvesse o desejo, Íris não conseguiu ingressar na educação superior assim que concluiu o ensino médio, e a necessidade de trabalhar o fez entrar para o mercado de trabalho, em um setor que ele percebe ter um número enorme de pessoas LGBTI+.

Essa presença marcante de pessoas LGBTI+, com destaque a homens gays, no setor de teleatendimento foi também observada em outros estudos, que, em geral, exploraram uma hipótese de que esse processo estaria ligado a uma menor rejeição dessa população nesse setor, já que lidariam com o público através do telefone ou por trocas de mensagens de texto, e a aparência “não-normativa”, entendida como o que leva às discriminações, importaria pouco ou nada (VENCO, 2009). Haveria nesse setor uma oportunidade de inserção no mercado formal de trabalho, com uma menor exposição a violências em relações de gênero e sexualidade, para uma população que historicamente enfrenta dificuldades - ainda que também diferencialmente, em função de suas inserções em relações de classe e raça, por exemplo. Não se trata de negar que existam explorações de classe nesse contexto, mas reconhecer suas articulações com outras relações de poder, como gênero, sexualidade e raça.

Bennie, 37 anos, gay, negro e estudante da área das Ciências Humanas, conta que durante a trajetória escolar na educação básica precisou parar de estudar por alguns anos porque a família se mudava muito, mas enfatiza que nunca repetiu um ano na escola, nem ficou de recuperação. Foi no ensino médio que começou a pensar em vestibular.

Mas, antes de planejar isso, minha mãe começou a dizer assim: 'você tem que fazer alguma coisa! você tem que trabalhar! você não pode ficar pensando agora só em estudar, você já está uma pessoa adulta, então, você tem que pensar em trabalhar'. E aí foi quando eu comecei a fazer curso de cabeleireiro, porque, óbvio, gay e cabeleireiro, tudo a ver assim, oh! [tom de ironia]. Então, fiz curso de cabeleireiro e a minha professora dizia assim 'você não dá para isso. Você até gosta de pintar um cabelo, de dar umas luzes no cabelo, mas você não nasceu para isso, você não gosta disso'. Não sabia cozinhar. [...] E aí, também minha mãe dizia 'você não vai ser cozinheiro'. Meus irmãos todos, fora minha irmã, são marceneiros, trabalhavam numa marcenaria. Eu também não sabia mexer, minhas mãos... eu nunca mexi nessas coisas. Nada que fosse pesado eu nunca gostei (BENNIE, 2020).

Ele concluiu o ensino médio e naquele ano não fez o vestibular. Começou a vender cosméticos porque era uma forma mais “legal” de conseguir algum dinheiro. Nesse contexto, ele passou a trabalhar como “babá” de uma menina com deficiência auditiva. E foi levando-a para a escola no centro do Recife, que decidiu começar a fazer um curso de inglês entre 2003 e 2004, o que foi responsável por “abrir os horizontes para pensar o que queria de fato”. Bennie começou, então, a fazer o curso de magistério. Nesse curso, conheceu uma professora que o incentivou a “fazer faculdade”. No mesmo período ele começou um curso de pré-vestibular e em 2008 foi aprovado no vestibular.

As experiências narradas por Bennie sobre trabalho me pareceram bastante significativas, porque dizem da trajetória de ingresso no curso de graduação em que estudou na UFPE, mas, especialmente, porque expressam formas de atravessamento entre gênero, classe, sexualidade e raça. Junto com a mãe, ele cogitou ser cabeleireiro, afinal “gay e cabeleireiro, tudo a ver”, como ele comenta ironizando, e avaliou a possibilidade de ser cozinheiro. Trabalhou vendendo cosméticos e como babá. Cursou magistério. Todos esses episódios, importantes na trajetória dele, falam de experiências de classe, mas também de experiências de gênero, sexualidade e raça. Cabeleireiro, cozinheiro, vendedor de cosméticos, babá. Profissões historicamente “feminilizadas”.

Com essa afirmação anterior não estou apontando qualquer “essência” que seria própria a essas profissões. Parto da compreensão de Butler (2017), de que gênero é o sistema pelo qual se produz performaticamente uma série de sentidos acerca da percepção de uma diferença entre os sexos. Gênero não fala da existência de uma natureza interna aos corpos, mas de uma multiplicidade de atos, gestos e fantasias sociais que, na medida em que são reiteradas, buscam fixar noções de “feminino” e “masculino”, em uma dicotomia que opera como norma regulatória (BUTLER, 2017). Assim, para a autora, gênero não é algo fixo e acabado, mas permanentemente dinâmico e maleável, e cujo sentido se (re)constitui nas experiências humanas. Nessa perspectiva, podemos reconhecer como certas práticas, atos, objetos e também profissões, entram no complexo jogo da linguagem em que sentidos de gênero são produzidos e negociados.

No caso de Íris, o teleatendimento compõe uma profissão que também é histórica e majoritariamente ocupada por mulheres o que, narrativamente, explicaria as razões da presença de uma parcela destacável de homens gays: se trataria de um trabalho também “feminilizado”. As experiências de classe se perfazem mutuamente através de experiências de gênero e sexualidade (BRAH, 2006) e é nessas tramas que ambos, Bennie e Íris, se constituem, e tecem suas trajetórias para chegar na universidade.

Destaco essa dimensão da experiência a partir de Avtar Brah (2006, p. 360), para quem “a experiência é o lugar da formação do sujeito”, “um espaço discursivo onde posições de sujeito e subjetividades diferentes e diferenciais são inscritas, reiteradas ou repudiadas” (p. 361). Dessa maneira, é nas relações sociais, nos acontecimentos que nos atravessam e produzem efeitos sobre o que somos, que significamos o mundo e a nós mesmos, e assim nos formamos. Com isso quero destacar que gênero, sexualidade, raça e classe, são formas de significar certas experiências sociais, por meio das quais os sujeitos se formam, e são formados. Mais do que um “dado” que informaria certas posições de sujeito, gênero, sexualidade, raça e classe, tecem experiências, e são por elas construídas, de tal modo que nos formamos nos interstícios dessas múltiplas dimensões.

No caso de Bennie, as experiências de trabalho por ele narradas, expressam ainda relações de classe que são racializadas. Como Quijano (2005) ressalta, no percurso de construção da modernidade colonial na América Latina, a invenção da raça, como um sistema que passaria a compor e naturalizar certos padrões de dominação e exploração, assumiu um papel fundamental na organização do mundo do trabalho.

No contexto brasileiro, o trabalho escravo e a servidão se tornaram as principais expressões desse processo, importante tanto na constituição das classes médias e altas, quanto na formação e controle das classes trabalhadoras. As relações de trabalho fizeram-se racializadas, o que significou a produção de sentidos para determinadas formas de exploração no sistema capitalista, assim como a organização de modos de inserção nesse sistema. Entre outras coisas, se traduziu numa ocupação majoritária de mulheres negras no trabalho doméstico remunerado (LIMA; PRATES, 2019), que, mesmo com variações e importantes transformações nos últimos anos, é marcado por profundas precarizações e formas contundentes de exploração.

Em suma, as relações raciais que marcaram e produziram os quase quatro séculos de escravidão das pessoas negras no Brasil foram assumindo outras conformações ao longo da história e o fez, também, em conflitos e relações de gênero e classe engendradas no interior de uma sociedade capitalista marcada pelos efeitos deixados pelo colonialismo. Logo, o trabalho como babá, desempenhado por Bennie, que é uma das formas do trabalho doméstico, é emblemático dos cruzamentos entre gênero, raça e classe. Não porque, simplesmente, diferentes opressões se somam, porque não se dão isoladamente para depois se sobreporem (McCLINTOCK, 2010). Mas, sim, porque há formas de constituição recíprocas entre gênero, classe e raça que são oportunizadas nas experiências desse trabalho (McCLINTOCK, 2010).

Partindo da perspectiva proposta por McClintock (2010), na narrativa de Bennie torna-se evidente também o caráter complexo e ambivalente das dinâmicas de identificação, especialmente nas tensões entre ser um homem, numa ocupação que se pressupõe “feminina”, porque é um gay afeminado e porque é negro e pobre como a maioria das mulheres brasileiras nesses postos.

Essa perspectiva de articulação entre diferentes diferenças remonta uma sofisticada e pujante produção teórica e epistemológica dos feminismos negros, que tensionaram as relações entre patriarcado e racismo, denunciando as formas perversas como esses sistemas de dominação e opressão se entrecruzam, e os limites e silenciamentos dos movimentos e estudos raciais e feministas da época em perceber essas articulações (HOOKS, 2019; DAVIS, 2016; LORDE, 2019). Os feminismos negros vieram denunciando que em uma estrutura social racista as dinâmicas de gênero e as lutas de classe produzem diferentes experiências raciais entre as pessoas. Trata-se de notar que a raça é profunda e reciprocamente constituída por relações de gênero - ainda que por vezes também de modos conflituosos e contraditórios.

No Brasil, podemos encontrar uma difusão de estudos em um campo heterogêneo, marcado centralmente por expressões como articulação, interseccionalidade e consubstancialidades (BRAH, 2006; McCLINTOCK, 2010; KERGOAT, 2010; HIRATA, 2014; AKOTIRENE, 2018), em perspectivas que abrigam ainda encontros potentes e criativos com estudos transfeministas, decoloniais e queers (VERGUEIRO, 2015; JESUS, 2018; IAZZETTI, 2021).

Assistência estudantil em tempos de desdemocratização

Se a democratização da educação superior visava corrigir as formas de exclusão da universidade, que afligem historicamente grupos sociais mais vulneráveis, a expansão de programas de assistência estudantil teria como efeito intervir nos processos de exclusão na universidade (MAGALHÃES, 2013). Os relatos de meus interlocutores acrescentam elementos a essa questão.

Na medida em que as entrevistas foram acontecendo, fui notando que as bolsas, auxílios, estágios, entre outros programas criados pela UFPE, assumiam uma relevância especial para algumas dessas pessoas. Se como percebi nas narrativas de Íris e Bennie a universidade figurava como uma alternativa importante a formas de trabalho mais precarizadas - como registrado também por Lemos (2017) em sua pesquisa com estudantes da Universidade Federal do Pará (UFPA) -, e que apareciam quase como incontornáveis em seus contextos, a efetivação disso foi viabilizada pelo acesso a esses programas. Destacadamente, é claro, a importância desses programas através da universidade se mostrava muito maior para aqueles e aquelas que eram mais pobres. No entanto, não se tratava apenas de uma questão de desigualdades socioeconômicas, mas de processos constituídos entre relações de classe, gênero, sexualidade e raça.

Paulo, 27 anos, gay, branco e estudante da área das Ciências Biológicas, que se descreveu como pobre, relatou que são as bolsas que estão sustentando-o na universidade. Hoje Paulo está “vivendo de bolsa”. Ele conta: “essa bolsa de manutenção acadêmica é muito importante. Ela literalmente me mantém aqui. Várias vezes eu pensei em sair para voltar depois, claro. Não sei se voltaria com tanta facilidade. Mas, ela me ajudou muito. Se não fosse ela, provavelmente eu teria passado por algumas dificuldades”. Ao mesmo tempo, Paulo comenta que se sente “muito desamparado”, por viver de bolsa, por se tratar de algo instável, sobretudo com os cortes nos programas nos últimos anos. Por isso, ele ressalta enfaticamente que precisa “arrumar um emprego pra me sentir mais calmo na minha vida” e completa comentando que se sente um pouco solitário, por não poder contar com um suporte familiar. As relações familiares dele foram, ao menos parcialmente, rompidas por questões que envolvem a não aceitação de sua homossexualidade. Assim, há uma relação entre a (homo)sexualidade, a falta de suporte familiar, a dependência de bolsas para viver e certas posições de sujeito em relações de classe.

Luna, 23 anos, travesti, branca, estudante da área das Ciências Biológicas, também falou da importância dos auxílios e bolsas na trajetória dela:

Mas assim a universidade ela serviu muito para que eu construir a minha identidade e, também, ela me auxiliou muito na questão de subsídio, de permanência nela, porque foi também através da universidade que eu consegui bolsa de auxílio, foi através da universidade que eu consegui bolsas de estágio. A universidade ela foi essa ponte financeira para que eu pudesse me estabelecer. Porque a partir do momento em que eu me reconheci num corpo que não era cis, aí eu fui expulsa de casa. E aí, tipo, a universidade foi que serviu como um sustento. Foi ela que trouxe esse sustento para que pudesse estar pagando meu aluguel hoje, que eu estar fazendo a minha feirinha do mês. Todos esses rolês assim foi a universidade que propiciou. Se eu não tivesse entrado na universidade, eu não sei qual seria a minha narrativa hoje. E é super importante isso porque o ingresso da gente, por mais que eu não tinha ingressado enquanto uma pessoa trans, né. Mas, fez com que eu permanecesse na universidade e pudesse ocupar, assim, uma nova narrativa do que se espera do meu corpo. Isso é tudo (LUNA, 2020).

Como se percebe, a importância das bolsas e auxílios vinculados à universidade se reforçou depois que ela contou para a família que se identificava como travesti. Filha de uma família pobre, como descreveu, essas fontes de renda já tinham uma importância para a manutenção dela na universidade. Mas, é quando as relações familiares são afetadas pelas reações à assunção dela enquanto travesti, que essa importância se aprofunda. Luna foi expulsa de casa e teve suas relações familiares também rompidas, o que fez com que ela não pudesse mais contar com o apoio financeiro da família. Para “levantar uma grana”, ela trabalhou em alguns “freelances de bargirl de festas LGBT”. Nesse contexto, as bolsas se tornaram não apenas um meio de mantê-la na universidade, como passaram a subvencionar aspectos fundamentais de sua vida: “graças a Deus hoje eu estou na minha casinha, no meu lugarzinho, no meu cantinho, com minhas plantas, meu gato. E assim é a universidade que tem me fornecido isso, eu pagar o meu aluguel, eu comprar minhas coisas”. E completa: “Se eu não tivesse entrado na universidade, eu não sei qual seria a minha narrativa hoje”.

Essa importância das bolsas e auxílios nas trajetórias de estudantes universitários foi observada também por outros estudos (SILVA, 2016; LEMOS, 2017; GANAM; PINEZI, 2021). Isabele Lemos (2017), por exemplo, investigando os sentidos atribuídos por estudantes que ingressaram na Universidade Federal do Pará (UFPA) por meio de cotas raciais, lidou com narrativas sobre a importância dessas bolsas, como a bolsa de permanência, paga pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) a estudantes de baixa renda. Entre seus/suas interlocutores/as, acessar a essa assistência estudantil era parte fundamental da manutenção da permanência na universidade porque, entre outros motivos, permitia o acesso a materiais de estudos, ou porque possibilitava deixar empregos precarizados para se concentrar na formação universitária. No entanto, acredito que no caso das narrativas aqui analisadas existem elementos que cruzam relações de gênero, sexualidade e classe.

O desamparo que viveram e que, de diferentes formas, a assistência estudantil oferece uma saída, se faz não apenas por relações de classe. No caso de Luna isso torna ainda mais evidente. Ela passou por uma expulsão de casa, pelo rompimento das relações familiares, que cumpriam uma função de suporte financeiro, e encontrou na assistência estudantil uma saída tanto para se manter na universidade quanto para a própria subsistência. Isso ocorre nos entremeios de relações de gênero, sexualidade e classe. Mais do que a manutenção da permanência na universidade, o que por si já se mostra de grande importância, a assistência estudantil está ligada a “projetos de sobrevivência”, algo que me atentarei melhor na próxima seção.

Nesses termos, essas experiências de acesso a assistência estudantil são parte da organização das experiências de classe dessas pessoas. Isto porque, classe não é apenas um modo de hierarquização e exploração social, mas consiste em um “fazer-se” como Thompson (2001) sustenta. É na ação das pessoas, no modo como se relacionam com aquilo que se passa em suas vidas, nas experiências humanas, que a classe se realiza. Assim, pensar o acesso a assistência estudantil como parte das experiências de classe, significa focalizar não só as dificuldades colocadas pelas de desigualdades socioeconômicas - não diminuindo a importância desse aspecto -, mas toda a trama de experiências tecidas em torno das relações de classe que constituem os sujeitos.

A maneira como contam sobre o acesso às bolsas e auxílios, as adversidades nesse processo, os efeitos em suas trajetórias, a possibilidade que ofereceram para sair de contextos de trabalho precarizado, falam dos modos como vivenciam e fazem-se através das experiências de classe. Um fazer-se que, insisto, se dá de modo imbricado a como se fazem também em relações de gênero e sexualidade (McCLINTOCK, 2010).

Monitorias e encontros pagos

Entre meus e minhas interlocutores/as que destacaram a importância dessas bolsas e auxílios em suas trajetórias, a narrativa de Thauan, 25 anos, homem trans, branco, estudante da área das Ciências da Saúde, se destacou de modo bastante particular.

Thauan contou que a família “nunca teve muita condição pra custear de fato o ensino” e, por essa razão, embora ele tenha estudado, graças a um desconto, em uma escola privada nos anos iniciais do ensino fundamental, os anos finais do ensino fundamental e o ensino médio foram em escolas públicas. Tentou o Programa Universidade Para Todos (PROUNI), mas foi o Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) que viabilizou o acesso a uma faculdade privada em Caruaru (PE). Conseguiu uma bolsa de 80% de financiamento do curso e o restante ele pagava com uma “bolsa-trabalho” na mesma instituição. Mas Thauan explicou que precisava de uma “mudança de vida”, e a migração para o Recife viabilizava isso. Ele então decidiu transferir o curso para o Recife em 2017.

Contou que, no início, dividiu uma casa por alguns meses “até conseguir passar no edital de moradia”.

Nesse rolê de dividir casa foi um tempo em que eu não tinha... meus pais já não estavam muito em contato comigo. Minha mãe é que chegou a mandar uma vez uma caixa com algumas coisas para eu me manter. Tipo, alguns mantimentos básicos mesmo de comida. Mas, depois ela também parou de falar comigo e não continuou porque eu já estava iniciando o processo de não me identificar mais com quem eu achava que era, enfim, todo o rolê da transição. E aí, foi na época que eu morei com esse meu amigo, passei por uns dias assim, tipo ‘oh, eu não tenho mais dinheiro para me manter’. Eu estava na casa desse meu amigo, tipo, de favor. Ele falou: ‘se eu vier a precisar de ajuda no aluguel eu vou te pedir, mas eu vou tentar ao máximo deixar você de boa aqui porque eu entendo a sua situação’. Só que, tipo, não era só aluguel né, você tinha que comer, enfim, e eu não era bolsista, e nem tinha passado em nada, nem na assistência estudantil. E a gente sabe como é edital na federal, que abre no começo do semestre, mas só vem começar a receber no final. Então, nesse tempo você tem que se virar (THAUAN, 2020).

Como já tinha sido monitor de uma disciplina na faculdade em que estudava em Caruaru, ele chegou em Recife com um “domínio desse conteúdo”. Isso acabou viabilizando o que se tornou fundamental para ele durante um tempo, as “monitorias pagas”.

[...] eu dizia 'olha, eu não cobro pelas aulas, mas se vocês puderem, sei lá, deixar uns almoços pagos no RU para mim, me ajuda'. Na época, era ótimo porque podia pagar a refeição, né, quando você não era bolsista. Então tipo, foi o que me salvou. Era 3 reais assim que valiam mais que tudo. E aí eu procurava comer o máximo que eu podia, quando dava eu levava vasilha para levar comida para casa. E eu fui me mantendo por um tempo assim (THAUAN, 2020).

Mas, esse trabalho com as “monitorias pagas” não durou muito tempo. Aos poucos os estudantes que participavam foram aprendendo o conteúdo e “e [ele] não tinha com quem contar mais”. Thauan explica que chegou a passar alguns dias “a base de água e biscoito”, ou do que lhes era oferecido de comida por amigos, porque era o que ele tinha naquele momento. Dias de fome.

Eu não comia, não dormia. Eu chegava atrasadíssimo nas aulas porque eu não conseguia dormir, e quando eu conseguia tirar um cochilo era muito cedo e eu acordava tarde. Eu quase perdi umas duas disciplinas nesse primeiro período que eu cheguei porque foi tudo bem complicado (THAUAN, 2020).

Período de extrema dificuldade. Nesse contexto, um amigo apresentou uma “saída”, que poderia ajudá-lo, os “encontros pagos”.

E aí ele disse: ‘olha amigo, você faz um perfil no Tinder4, dá match com quem você quiser e coloca no seu perfil que você cobra por encontros’. Aí fiquei pensando: ‘carai, onde é que eu vim parar’ [fala sorrindo]. Aí, enfim, chegou a rolar. Eu coloquei um perfil, cheguei a sair com algumas meninas e cobrei por isso. A maioria delas eu passei a noite conversando. Não parece, mas as pessoas só precisam de alguém para ouvir elas, então tipo... Era um rolê muito curioso. Eu acho que se eu tivesse me dedicado a escrever alguma coisa sobre a experiência teria sido interessante o artigo. Mas aí, foi o que me ajudou por um tempo, para me manter. Era, 80 reais, 50 reais, o que dava assim pelo tempo, pela hora, pelo que precisava, que me socorreram por um tempo, por mais de um mês assim, me mantendo, sabe (THAUAN, 2020).

Depois da perda do apoio de sua família de origem, e com a mudança para estudar no campus Recife da UFPE, se manter se tornou muito difícil. Para persistir na universidade, Thauan lançou mão de uma série de estratégias, entre elas as “monitorias pagas” e os “encontros pagos” que se constituíram, antes de mais nada, como tentativas de sobreviver em um contexto em que o caos da precarização de sua existência se desdobrava.

Recorrer aos “encontros pagos”, ou o que podemos aqui chamar de prostituição, como uma das poucas alternativas para subsistência tem sido algo recorrente em trajetórias de mulheres trans e travestis no Brasil (PELÚCIO, 2005; VERGUEIRO, 2015; BARBOSA, 2015; EFREM FILHO, 2017, por exemplo). Contudo, ainda há uma enorme lacuna de estudos que tenham abordado a prostituição entre homens trans. Alguns trabalhos vêm apontando que os homens trans enfrentam uma menor dificuldade de se inserir no mercado de trabalho formal quando comparados com as mulheres trans e travestis (MARTINELLI; QUEIROZ; ARARUNA; MOTA, 2018; SILVA; LUPPI; VERAS, 2020), o que significaria que a prostituição não se torna a única alternativa, ou a menos excludente, de inserção no mundo do trabalho. Mas, esse me parece ser só um dos elementos nessa relação entre homens trans e a prostituição.

A dimensão da passabilidade de gênero comentada por Thauan assume uma relevância nesse aspecto. Por incorporarem uma passabilidade de gênero mais rápido do que mulheres trans e travestis, eles conseguem “se perder na multidão”, o que reduziria as dificuldades para acessar o mercado formal de trabalho (MARTINELLI et al., 2018; PONTES; SILVA, 2018). Ainda que envolva uma relação crítica entre visibilidade e invisibilidade (VERGUEIRO, 2015), por enfrentarem menos obstáculos nesse acesso, eles não recorreriam a prostituição com a mesma frequência que as mulheres trans e travestis, embora também convivam com o histórico processo de marginalização no mundo do trabalho (NOGUEIRA, 2018; IAZZETTI, 2021).

Mas, isso implica uma questão importante e que acende um debate caloroso entre os movimentos feministas e de prostitutas e trabalhadoras do sexo, que é a configuração da prostituição como um “trabalho” ou como uma “violência” (PISCITELLI, 2012; EFREM FILHO, 2017). A despeito do largo embate acerca do sentido da prostituição, que envolve vertentes feministas com diferentes perspectivas5, os “encontros pagos” de Thauan constituem uma forma de trabalho que opera como uma resposta à necessidade que se apresentava naquele momento.

Embora estejamos falando de diferentes modos de se constituir, quando pensamos as relações entre as trajetórias de homens trans e de mulheres trans e travestis e a prostituição, alguns aspectos parecem comuns. Assim como muitas das mulheres trans e travestis que adentram à prostituição, Thauan recorre aos “encontros pagos” por necessidade, após ser expulso de casa, como muitas delas, e depois de migrar de cidade, como estratégia de reconstrução de uma vida mais vivível. Nesse contexto, os “encontros pagos” se tornaram uma das poucas alternativas de trabalho para alguém que é pobre; passou por um rompimento com a família de origem; está em um curso universitário de período integral, o que também impõe dificuldades para acessar um trabalho durante o dia; e tem que lutar para se manter e persistir nesse espaço.

Nesse período, Thauan conheceu uma amiga que ofereceu a possibilidade de ele ir morar no quarto de hóspedes da Casa de Estudantes Femininas. Estando nesse quarto, era possível comer gratuitamente no Restaurante Universitário e era o que ele mais precisava naquele momento, como enfatizou. Em 2018, foi aprovado no edital de Assistência Estudantil, passando a receber uma bolsa e, no segundo semestre, a ser morador da Casa dos Estudantes, e “a partir daí, tipo, foi só um processo de andar”. Depois de um tempo, Thauan começou também um estágio na universidade que tinha uma bolsa, o que, ele afirma, ajudou muito, tanto na manutenção de materiais de estudos, quanto na “conquista de um pouco de independência”, o que foi fundamental no próprio processo de transição de gênero:

Consegui comprar roupas para mim, porque o processo da transição, eu acho que o mais difícil no começo é essa transição radical do seu guarda-roupas, principalmente porque, tipo, apesar de eu já ser antes uma menina lésbica meio, tipo, machinho, eu não tinha tantas roupas assim folgadas, que eu me sentisse melhor usando depois da transição. As minhas roupas remetiam muito a minha identidade anterior, então eu me sentia muito mal com isso, eu quase não saía e quando eu saía era sempre com a mesma roupa, que eram duas camisas que eu tinha ganhado de um amigo e eram as únicas roupas que eu tinha né (THAUAN, 2020).

Thauan afirma veementemente a importância “de cada centavo de bolsa” para moradia, móveis, alimentação, roupas, calçados, e todo suporte de existência que ele necessitava e ainda necessita. É importante atentar que Thauan destaca que os pais nunca puderam ajudá-lo na universidade. Não era apenas uma questão de rejeição à identidade de gênero dele, porque as relações com o pai e a mãe, mesmo que entre conflitos, ainda existia, mas também uma questão de classe. Thauan é filho de uma família da classe trabalhadora, com poucas condições financeiras, e conta que nunca pôde depender dos pais.

Eu, como nunca pude depender dos meus pais, nem de auxílios nem de empregos nem nada, eu realmente dependi da universidade por muito tempo. Ainda hoje eu recebo bolsa né. Então tipo, eu sei que essa bolsa da moradia foi um projeto de sobrevivência. Não era só sobre a graduação. Eu sei que eu estou aqui porque eu precisava de uma casa, até conseguir arrumar um jeito de me virar. E eu estou conseguindo, sabe (THAUAN, 2020).

Como é possível notar, as relações de classe aparecem como um elemento de grande importância na trajetória de Thauan e que não se fazem em separado a outras relações, como as de gênero e sexualidade (McCLINTOCK, 2010). Comprar novas roupas é uma das expressões disso. Não se tratava apenas de uma questão de classe, ou de pobreza, também não se tratava só de padrões estéticos, os quais ele desejava acessar. Mas, envolvia as condições de possibilidade do trânsito de gênero performado (BUTLER, 2017) por ele, e do que as roupas produzem em termos de enquadramentos e reconhecimentos de gênero.

Em trajetórias como a dele, a assistência estudantil está relacionada a “projetos de sobrevivência”. Muitos/as estudantes relatam a dependência das bolsas e auxílios, como o Programa de Bolsa de Permanência, que concede auxílio financeiro a estudantes quilombolas, indígenas e em situação de vulnerabilidade socioeconômica matriculados em instituições federais de ensino superior (DANTAS, 2015; GALINDO, 2018; FLORES, 2022).

Muitas vezes, essa manutenção da permanência na universidade, está imbricada com questões amplas de subsistência, que para algumas delas se torna ainda mais sensíveis em função dos modos como são atravessadas por outras relações de poder, como gênero, sexualidade e raça. Na narrativa de Thauan percebe-se como as experiências de classe dele são tecidas por entre precariedades, fome, desabrigo, “monitorias pagas” e “encontros pagos”, bolsas, estágios e outros trabalhos. Muita luta e persistência. E essas experiências são constituídas nos cruzamentos entre experiências de gênero, sexualidade e classe (McCLINTOCK, 2010).

Decorre que Thauan constitui a si mesmo no curso dessas relações e experiências (BRAH, 2006). Isto é, enquanto experiencia precariedades, como a fome e o desabrigo, no próprio corpo, lugar de performatização de um (trânsito de) gênero, da afirmação enquanto homem, assim como matéria e espaço de trabalhos, inclusive sexual, o que implica formas diversas de relação com o próprio corpo e com os corpos dos outros (McCLINTOCK, 2010).

Considerações finais

Como destacou-se anteriormente, a universidade aparece como uma alternativa importante a formas precarizadas de acesso ao mercado de trabalho (LEMOS, 2017; SANTOS, 2022), que figuram quase como incontornáveis para muitas pessoas, e que mesclam classe, raça, gênero e sexualidade. Isso se agudiza no contexto de precarização do trabalho no Brasil, impulsionada pelo aprofundamento de políticas neoliberais, que marcam o mundo do trabalho com altas taxas de desemprego, informalidade, instabilidades e inseguranças (ANTUNES, 2010; BROWN, 2019). Mas, esses processos afetam as trajetórias de vida de maneiras distintas, como entre a população LGBTI+.

Nesse cenário, acessar a universidade e a assistência estudantil se tornam fundamentais, compondo “projetos de sobrevivência” para as pessoas LGBTI+, sobretudo entre as mais pobres, ou quando as relações familiares, que frequentemente cumprem um papel de suporte material e financeiro, são comprometidas. Destacadamente, isso assumiu uma relevância maior entre as pessoas trans e travestis interlocutoras desse estudo, que enfrentam dispositivos de poder cisnormativos, institucionais e não institucionais (VERGUEIRO, 2015), que tendem a precarizar suas condições de existência na universidade e fora dela.

No entanto, o acesso às políticas de assistência estudantil não tem sido fácil, e envolve uma série de percalços tanto pessoais, como os conflitos familiares, quanto coletivos, como a morosidade das instâncias burocráticas e a diminuição dos recursos destinados aos programas (IAZZETTI, 2021; SANTOS, 2022). Mas, existe uma transformação em curso nas universidades brasileiras, que passa pelo combate às discriminações, invisibilizações, ausências e violências, assim como pelo próprio campo de produção do conhecimento, com o reconhecimento de uma série de outras epistemologias (VERGUEIRO, 2015; JESUS, 2018; IAZZETTI, 2021).

Por fim, o que se destaca por entre essas narrativas são os efeitos das relações com o mundo do trabalho nas experiências tecidas com e através da universidade. Sejam as experiências de trabalho antes de ingressar na universidade, que medeiam sentidos sobre a educação superior; sejam as experiências de trabalho durante a universidade, como os estágios, os trabalhos temporários e informais; ou ainda as relações com a assistência estudantil, cuja importância chega a configurar “projetos de sobrevivência”. Narrativas que ressaltam como nas experiências universitárias muitas coisas se passam, constituindo os sujeitos em dinâmicas complexas, conflitivas e multiformes.

Notas

1Nesse texto, optei por utilizar o acrônimo LGBTI+, que se refere a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais, entre outras possíveis formas de identificação em termos de gênero e sexualidade que o símbolo + se refere.

2Interessado em manter o anonimato dos/as meus/minhas interlocutores/as, visto que quase todas ainda estavam no início de seus cursos e algumas das questões eram sensíveis para eles/as, optei pelo uso de pseudônimos, escolhidos pelas próprias pessoas ao término das entrevistas.

3Mantive e grifei em itálico as categorias êmicas mobilizadas pelos sujeitos em suas caracterizações.

4O Tinder é um popular aplicativo digital de encontros e relacionamentos.

5Para uma análise sobre esses embates entre as vertentes feministas acerca do sentido da prostituição, conferir Piscitelli (2012).

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Recebido: 08 de Agosto de 2022; Aceito: 16 de Novembro de 2022

Ms. Júlio César de Oliveira Santos, Universidade Federal de Pernambuco (Brasil), Grupo de Pesquisa: Discurso, Subjetividade e Educação (CNPq/UFPE), E-mail: julio.santos@ufpe.br

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