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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.60 no.66 Natal out./dez 2022  Epub 18-Abr-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2022v60n66id30005 

Artigo

Psicologia e formação docente: memórias evocadas acerca da disciplina psicologia educacional

Psychology and teacher training: evoked memories about the educational psychology subject

Psicología y formación del profesorado: memorias evocadas sobre la disciplina psicología educativa

Maria Fernanda Diogo1 
http://orcid.org/0000-0002-5936-0823

Charles Augusto Christ1 
http://orcid.org/0000-0002-9199-4404

1Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil)


Resumo

A disciplina psicologia educacional integra a matriz curricular obrigatória dos cursos de licenciatura. O objetivo deste estudo foi interpretar a potencialidade do ensino de psicologia contribuir para que futuros/as professores/as forjem uma práxis docente pautada em propostas pedagógicas que objetivem a emancipação humana. Com base no arcabouço teórico da Psicologia Histórico-Cultural e utilizando núcleos de significação, este artigo analisou as memórias espontâneas dos/as licenciandos/as relacionadas à disciplina psicologia ofertada para seus cursos. Os sentidos atribuídos ao ensino desta área específica revelaram que as aulas apresentaram os fundamentos teóricos deste campo do conhecimento, problematizaram temas cotidianos e valores subjacentes às relações sociais vivenciadas nos espaços escolares, propiciando o alargamento dos horizontes interpretativos dos/as futuros/as professores/as. Os relatos também revelaram que as aulas de psicologia foram permeadas por discussões e debates, destacando a diversidade, a interação, o intercâmbio de ideias e acentuando o caráter dialogado dessa vivência formativa.

Palavras-chave: Ensino de Psicologia; Licenciatura; Memória; Psicologia Histórico-Cultural.

Abstract

The subject Educational Psychology integrates the mandatory curricular matrix of teacher training courses. The objective of this study was to interpret the potential of the teaching of psychology to contribute to future teachers to forge a teaching praxis based on pedagogical proposals that aim at human emancipation. Based on the theoretical framework of Cultural-Historical Psychology and using cores of meaning, this article analyzed the undergraduate students' spontaneous memories related to the subject psychology offered in their courses. The senses attributed to the teaching of this specific area revealed that the classes presented the theoretical foundations of this field of knowledge, problematized everyday issues and values underlying the social relationships experienced in school spaces, leading to the widening of the future teachers’ interpretive horizons. The undergraduate students' reports also revealed that the psychology classes were permeated by discussions and debates, highlighting the diversity, the interaction, the exchange of ideas, and emphasizing the dialogic character of this formative experience.

Keywords: Teaching of psychology; Teacher training course; Memory; Cultural-Historical Psychology.

Resumen

La disciplina de psicología educativa es parte del plan de estudios obligatorio de los cursos de pregrado en enseñanza. El objetivo de este estudio fue interpretar la potencialidad de la enseñanza de psicología contribuir para que futuros/as profesores/as forjen una praxis docente basada en propuestas pedagógicas que apunten a la emancipación humana. Con base en el marco teórico de la Psicología Histórico-Cultural y utilizando núcleos de significación, este artículo analizó las memorias espontáneas de estudiantes de pregrado en enseñanza relacionadas con la disciplina de psicología ofrecida para sus cursos. Los significados atribuidos a la enseñanza de esta área específica revelaron que las clases presentaron los fundamentos teóricos de este campo del saber, problematizaron temas cotidianos y valores que subyacen en las relaciones sociales vividas en los espacios escolares, propiciando la ampliación de los horizontes interpretativos de los/as futuros/as docentes. Los relatos también revelaron que las clases de psicología estuvieron impregnadas de discusiones y debates, destacando la diversidad, la interacción, el intercambio de ideas y enfatizando el carácter dialógico de esa experiencia formativa.

Palabras clave: Enseñanza de Psicología; Pregrado en Enseñanza; Memorias; Psicología Histórico-Cultural.

Introdução

Os cursos de licenciatura precisam proporcionar aos/às licenciandos/as sólidos conhecimentos teórico-metodológicos em sua área específica e, também, no campo da educação, propiciando que o/a futuro/a professor/a seja capaz de [re]pensar continuamente a ação educativa. A disciplina psicologia integra a matriz curricular obrigatória das licenciaturas. Essa unidade visa subsidiar aos/às licenciandos/as conhecimentos sobre os processos de desenvolvimento e aprendizagem e outros temas relacionados à episteme da psicologia. Este estudo objetivou interpretar a potencialidade do ensino de psicologia contribuir para que os/as licenciandos/as forjem uma práxis docente pautada em propostas pedagógicas que busquem a emancipação humana.

A práxis sintetiza a teoria e a prática por meio de uma ação politicamente situada. Esta

[...] é a ação que, para se aprofundar de maneira mais consequente, precisa da reflexão, do autoquestionamento, da teoria; e é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de verificar seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prática (KONDER, 2018, p. 123).

Para Freire (1996), a práxis político-pedagógica deve se opor a um paradigma de educação que busca domesticar as consciências dos/as educandos/as, visando adaptá-las ao mundo. Stetsenko (2016) acrescenta ser preciso forjar uma epistemologia trans/formativa [trans/formative, no original] para o saber docente, desafiando ideologias de adaptação e controle. Claro que esta não é uma tarefa fácil ou rápida: a constituição da práxis docente é uma empreitada complexa e de longo prazo, que se inicia na formação inicial e se mantém em todo o percurso profissional do/a professor/a.

A psicologia geralmente integra as disciplinas pedagógicas nos currículos das licenciaturas e precisa apresentar aos/às futuros/as professores/as conteúdos teórico-metodológicos de qualidade, produzir reflexões críticas sobre os processos pedagógicos e debater a diversidade de sujeitos matriculados nos sistemas educativos, suas histórias e seus contextos, superando reducionismos e a aplicação utilitarista dos saberes deste campo. Nesse sentido,

É preciso considerar a especificidade epistemológica da Psicologia da Educação e as relações com as demais disciplinas e áreas do conhecimento, buscando-se possíveis articulações interdisciplinares, dada a complexidade envolvida na realidade educacional (GUERRA, 2016, p. 77).

Larocca (2007) debate que o ensino de psicologia falha quando se restringe aos fundamentos da ciência e apresenta as teorias de modo descontextualizado, pautadas numa racionalidade instrumental. Este formato reduz o ensino de psicologia à assimilação de conceitos e princípios que deveriam ser reproduzidos pelo/a futuro/a professor/a.

O modelo racional-técnico ignora teoria e prática como categorias indissociáveis; desconsidera os fins políticos e sociais que existem em toda prática educativa; reduz o professor a um mero executor de procedimentos e regras gestados fora de sua prática profissional; além de roubar-lhe a reflexão sobre sua própria ação e sobre os objetivos mais amplos que persegue em relação à vida social (LAROCCA, 2007, p. 301).

Almeida (2016) acrescenta que o ensino de psicologia deve estar atento à relação conteúdo-forma, refutando posturas metodológicas baseadas na transmissão-assimilação de conteúdos. O questionamento feito pela autora é contundente: “[...] como o futuro professor poderá realizar uma prática que articule os conteúdos escolares com a realidade e os interesses práticos dos alunos, se ele mesmo não vivenciou um ensino nesta perspectiva?” (ALMEIDA, 2016, p. 93). Para a autora, a formação docente deve confrontar os problemas originados nas situações de ensino, estabelecendo relações teórico-práticas por meio da problematização da realidade.

A base teórico-metodológica do estudo foi orientada pela Psicologia Histórico-Cultural, enfoque que contesta noções essencialistas, biologizantes, positivistas e considera a dinâmica entre a objetivação e a subjetivação o processo que caracteriza o gênero humano e cada sujeito particular. Vigotski (2009) atribui importância nodal à aprendizagem para a constituição humana e acentua sua natureza semiótica. O autor defende que as pessoas acessam os significados compartilhados por meio dos signos e da mediação social e estes se convertem em significados e sentidos para os sujeitos, em uma direção que vai da dimensão interpsíquica para a intrapsíquica. Os significados representam, pois, compreensões da realidade relativamente estáveis, compartilhadas, generalizadas e fixadas nas práticas sociais. Já os sentidos são aqueles que se singularizam pela experiência pessoal e social de cada sujeito, representando “[...] uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada” (VIGOTSKI, 2009, p. 465). Ao buscarmos interpretar a potencialidade da disciplina psicologia educacional contribuir para a formação da práxis docente, interessamo-nos pelos sentidos atribuídos pelos/as licenciandos/as ao ensino nessa unidade curricular e procuramos compreender como eles/as se apropriaram dos conteúdos e temas desse campo do saber.

Neste artigo, analisamos uma questão discursiva que evocava aos/às licenciandos/as uma memória espontânea relacionada à disciplina psicologia. A memória é uma função psicológica superior largamente estudada pela Psicologia Histórico-Cultural, compreendendo processos complexos, ativos, mediados e culturalmente desenvolvidos. Estudando a atividade e a formação da consciência, Leontiev (2021) postula que esta última não existe a priori e não configura um fenômeno natural:

[...] aquilo que no mundo objetivo aparece para os sujeitos como motivos, objetivos e condições de sua atividade deve ser, de alguma forma, por ele percebido, apresentado, compreendido, retido e reproduzido em sua memória, [pois] a realidade psíquica que se nos revela diretamente é o mundo subjetivo da consciência (LEONTIEV, 2021, p. 145).

Os autores da Psicologia Histórico-Cultural estabelecem relações entre a memorização e a atividade humana. Esse processo é complexo e o registro mnêmico não constitui um ato isolado, mas integra toda a estrutura da atividade (MARTINS, 2015). Para Vigotski (2021), a memória faz parte do sistema funcional superior e não pode ser tomada como uma função psicológica apartada das demais. Reafirmando esta posição, Leontiev (2021, p. 140) destaca que “[...] não se pode imaginar, por exemplo, a função mnemônica descolada da sensorial e o contrário”. Assim, a memorização mediada - fundada pelos signos - produz alianças entre as funções psíquicas, resultando em relações interfuncionais.

Nos/as adultos/as, a memória voluntária é prevalente por conta do desenvolvimento do pensamento abstrato. Martins (2015) aponta que a quantidade de informações que nos alcança é imensa e tendemos a memorizar melhor os elementos ligados às nossas necessidades e motivações. Nas palavras da autora: “O ato de memorização consciente desponta apenas quando o indivíduo compreende que a retenção de determinado conteúdo é necessária à sua atividade prática ou teórica” (MARTINS, 2015, p. 158, grifos nossos).

A memória integra o pensamento, mas essa não se forma livremente e depende de uma atitude ativa por parte dos sujeitos. Citando Espinosa, Vigotski (2021, p. 357) reforça que a memória sofre

[...] as limitações de nosso espírito. Ele [Espinosa] disse que não podemos fazer nada com relação ao nosso espírito se não nos lembrarmos dele. De fato, o papel decisivo da memória no estudo da intenção mostra como nossas intenções estão relacionadas ao aparato da memória, que deve posteriormente colocá-las em prática (VIGOTSKI, 2021, p. 357).

Desta forma, as memórias só são formadas mediante processos ativos de interiorização e esses “[...] não consiste[m] no deslocamento da atividade externa para o pré-existente ‘plano da consciência’ interior; trata-se do processo em que esse plano interior é formado” (LEONTIEV, 2021, p. 119, grifos no original). Além disso, cabe considerar que as memórias mantêm uma relação afetiva e volitiva entre o sujeito e os conteúdos que as constituem, “[...] qualidade que se revela condicionada pelas finalidades das ações nas quais a memorização ocorre e, sobretudo, pela importância que tais ações têm para a pessoa [...]” (MARTINS, 2015, p. 159, grifos no original).

Ora, por que evocar uma memória espontânea associada à disciplina psicologia? Acreditamos que esta descrição mnemônica poderia revelar aquilo que mais marcou os/as licenciandos/as naquele processo de ensino-aprendizagem - perfazendo sentidos e significados interiorizados - afinal a consciência individual é o reflexo subjetivo da realidade objetiva e só pode ser compreendida como produto das relações e mediações vivenciadas pelos sujeitos (LEONTIEV, 2021). Até mesmo a ausência de memórias traria informações valorosas para o estudo, pois nem todo processo de escolarização implica em desenvolvimento para os sujeitos. Segundo Prestes (2021), Vigotski não afirmou em seus escritos que o ensino garantiria o desenvolvimento cognitivo, mas que este poderia criar possibilidades para tal.

De acordo com Davidov (1988), os conteúdos ministrados aos/às estudantes são a base do ensino desenvolvimental e o conhecimento teórico é o principal objetivo da atividade educativa. De forma diferente do pensamento empírico, que é imediato e sensorial, o pensamento teórico é mediado e opera com conceitos - esses extrapolam as propriedades extrínsecas e observáveis dos fenômenos, indo além da aparência. Vigotski (2009, p. 293/4) inclusive se apoia em Marx para afirmar que “se a forma da manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente, toda ciência seria desnecessária”. Precisamos, pois, considerar que os conteúdos, conceitos e temas trabalhados na disciplina psicologia precisam ser lembrados para que possam fundamentar a práxis docente. Se memórias inexistem - ou seja, se os/as licenciandos/as não entraram em atividade e não interiorizaram os conteúdos trabalhados na disciplina - será impossível resgatá-las posteriormente para forjar um pensamento teórico-reflexivo e generalizar os conceitos do campo da psicologia para as atividades docentes, visando ao planejamento de ações com intencionalidade pedagógica. Neste caso, os/as docentes ficariam reféns da sensorialidade e da empiria, sem possibilidades de refletirem conceitualmente sobre a sua prática.

A seguir, descrevemos o método utilizado na pesquisa.

Método

O estudo que ora apresentamos teve metodologia qualitativa e exploratória. Nossa principal fonte de informações foi composta por licenciandos/as que tinham concluído a disciplina psicologia educacional e que estavam cursando ou já tinham completado o segundo semestre do estágio obrigatório. Definimos o segundo semestre do estágio em virtude de a experiência de regência já fazer parte do repertório do/a acadêmico/a e, dessa forma, seria possível para ele/a avaliar se o ensino de psicologia logrou contribuições à formação da práxis docente.

A Instituição de Ensino Superior (IES) que cedeu o campo para o estudo é uma universidade federal localizada no sul do Brasil, com cerca de 30 mil estudantes matriculados/as em 107 cursos presenciais e 13 cursos de Educação a Distância. A instituição possui 16 licenciaturas na modalidade presencial e o Departamento de Psicologia é o responsável pela oferta da disciplina psicologia educacional para todos os cursos.

Na coleta de dados, utilizamos questionários online elaborados e distribuídos em outubro de 2020 por meio da plataforma Google Forms. Participaram da pesquisa 98 (noventa e oito) licenciandos/as, distribuídos/as por todos os cursos da instituição. A questão dissertativa que analisamos neste artigo estava assim formulada: “Você cursou uma disciplina de psicologia na licenciatura. Gostaria de resgatar uma memória espontânea relacionada aos conteúdos ministrados. Por favor, descreva um tema marcante debatido nas aulas”.

As respostas para quaisquer perguntas não estão prontas na mente dos sujeitos. Quando solicitamos aos/às licenciandos/as memórias relacionadas à disciplina, instigamos que seu pensamento se realizasse em palavras (VIGOTSKI, 2009), desvelando os sentidos produzidos no e pelo ensino de psicologia. Os/As licenciandos/as foram muito generosos/as nas respostas elaboradas e o material analisado demonstrou-se extremamente rico. Buscamos a compreensão das relações intersubjetivas como processos dialógicos, afinal, segundo Vigotski (2009), os sentidos não são abstratos ou intrínsecos, mas são produzidos em relação aos significados nas tramas históricas e culturais.

Para empreender as análises, utilizamos os núcleos de significação, com inspiração em Aguiar e Ozella (2006; 2013). Esses expressam os pontos centrais que implicam os sujeitos e revelam suas determinações constitutivas. Buscamos evidenciar os sentidos expressos pelos/as acadêmicos/as nas respostas elaboradas, apreendendo seus movimentos em relação ao objeto da pesquisa e destacando os aspectos cognitivos, afetivos e volitivos que os constituem. Nas palavras de Aguiar e Ozella (2013, p. 303), “[...] nossa tarefa é apreender as mediações sociais constitutivas do sujeito, saindo assim da aparência, do imediato, indo em busca do processo, do não dito, do sentido”. Ao final das análises, os núcleos foram articulados entre si, buscando compreender a processualidade dos sentidos atribuídos pelos/as licenciandos/as, isto é, o movimento histórico-dialético na relação dos/as estudantes com a disciplina psicologia. Conforme sugestão de Aguiar e Ozella (2006; 2013), foram escolhidas frases escritas pelos/as respondentes para representar os núcleos.

A seguir, narramos os resultados obtidos nos questionários, analisando-os de acordo com o arcabouço da Psicologia Histórico-Cultural.

Resultados e Análise

Em relação ao ensino de psicologia para os cursos de licenciatura desta IES, os/as graduandos/as recordaram temáticas, conceitos, autores/as, debates e reflexões que a disciplina propiciou sobre o desenvolvimento humano e sobre a interface entre a psicologia e a educação. Cabe destacar que o Departamento de Psicologia oferta várias turmas da disciplina para os cursos de licenciatura em todos os semestres letivos, desta forma, percebemos que os sentidos atribuídos pelos/as licenciandos/as ao ensino de psicologia possuíram caráter por vezes contrastante e variaram em função das vivências particulares.

A maioria dos/as licenciandos/as construiu memórias relacionadas à disciplina, contudo seis respondentes alegaram não se lembrar de nada que foi abordado nesta unidade curricular. A ausência de memórias denota que eles/as não interiorizaram significados ou formaram sentidos para aquela vivência. Se considerarmos que “[...] a experiência determina a consciência [...]” (VIGOTSKI, 1996, p. 80), a inexistência de memórias que atribuam sentidos à uma vivência faz com que ela não integre o desenvolvimento da personalidade consciente, o que é sobremaneira fundamental para a elaboração da práxis docente.

A partir das memórias relatadas sobre os conteúdos ministrados em psicologia, foram elaborados três núcleos de significação, inspirados em Aguiar e Ozella (2006; 2013): ensino contextualizado de psicologia; saber-fazer docente numa perspectiva ético-política; e compreensão da diversidade de sujeitos nas instituições escolares. Apresentamos as análises de cada núcleo e, na sequência, articulamos os núcleos entre si. Trechos retirados dos questionários foram transcritos entre aspas duplas, seguidos da identificação do/a respondente.

No primeiro núcleo, ensino contextualizado de psicologia, escolhemos esta frase para representá-lo: “[...] na disciplina eu entrei em contato [pel]a primeira vez com formas de ensino e foi muito incrível” (S18, 2020). Buscamos compreender os sentidos atribuídos pelos/as futuros/as professores/as à intersecção entre a psicologia e a educação, almejando reconhecer se os conteúdos abordados pela disciplina propiciaram reflexões teóricas e debates sobre o saber-fazer docente.

Os/As licenciandos/as descreveram que a disciplina debateu a formação da subjetividade, o desenvolvimento cognitivo e psicomotor, fatores psicossociais que interferem na educação e algumas temáticas específicas, tais como: fracasso e evasão escolar, violência, afetividade, deficiência e inclusão, relações étnico-raciais, gênero, o papel do/a professor/a, medicalização etc. Muitos/as respondentes citaram que a disciplina lhes apresentou as teorias do desenvolvimento humano. Foram citadas, principalmente, as teorias de Vigotski e Piaget. Também foram referenciadas outras abordagens, tais como a teoria comportamental, a gestalt, a psicanálise e a teoria walloniana. Escolhemos uma frase para representar estes relatos: “[...] cursei uma disciplina na primeira fase intitulada Psicologia da Educação. Estudamos Freud, Piaget e outros pensadores. Me chamou muito a atenção a abordagem do ensino e os textos de apoio solicitados” (S45, 2020).

Os/As licenciandos/as destacaram a importância de conhecer as distintas interpretações sobre o desenvolvimento humano, conforme este relato: “[...] o mais relevante foi a demonstração das diferentes correntes em torno da psicologia e como elas influenciam o desenvolvimento nas diferentes fases da vida e as próprias dinâmicas em sala de aula” (S36, 2020). Um/a dos/as licenciandos/as escreveu: “[...] eu considero que não devemos rivalizar autores e sim compreender o seu tempo histórico e ideias e extrair o melhor de cada um para o discente [licenciando/a] construir para si, de forma coletiva ou não, uma práxis para a docência” (S67, 2020). Muitos/as respondentes valorizaram o fato da disciplina lhes apresentar a diversidade teórica da psicologia e citaram que isso lhes proporcionou um melhor posicionamento em relação à atuação docente, ampliando suas possibilidades de ação. Neste sentido, Guerra (2016) ressalta que conhecer diferentes explicações sobre como as crianças aprendem e se desenvolvem pode ajudar a refletir o que e como ensinar.

Os sujeitos também rememoraram as metodologias utilizadas nas aulas. Nas palavras de um/a respondente: “[...] uma experiência de aula inversa que a professora trouxe e achei muito interessante já que nunca havia trabalhado dessa forma” (S64, 2020). Outro/a citou que a professora formadora desenhou um boneco no quadro e “[...] perguntou o que formava o indivíduo de maneira social, [então] [...] ela foi desenhando setinhas que atravessavam o boneco, demarcando que aquilo fez parte para a formação dele [...]” (S24, 2020). Ao articular saberes teóricos e situações concretas, o/a professor/a formador/a contribui sobremaneira para que a teoria seja incorporada à prática (GUERRA, 2016), perfazendo um ensino contextualizado. Além disso, os/as licenciandos/as são apresentados/as a metodologias e procedimentos didáticos que poderão ser úteis à sua ação pedagógica futura, promovendo seu desenvolvimento docente.

O ensino de psicologia teve a mediação de diferentes professores/as e, por vezes, as memórias revelaram falta de aprofundamento, contextualização ou insuficiente articulação teórico-prática. Destacamos um dos escritos: “[...] a professora citava teóricos como Vigotski, Freud, Piaget, como se nós estudantes já tivéssemos uma base para saber quem eram tais teóricos, ao menos superficialmente” (S05, 2020). Um/a licenciando/a escreveu que vivenciou uma forma de ensino que empobreceu a sua formação: “[...] passamos um semestre vendo a história da psicologia e as principais linhas. Acho que seria pertinente que o conteúdo tivesse mais relação com a educação e o ensino. Achei pouco aproveitável na prática de sala de aula” (S08, 2020).

O/A professor/a formador/a precisa ter em mente que “[...] não existe a atividade de aprendizagem intencional se ela não se dá de forma consciente e organizada por meio da atividade de ensino” (MOURA; ARAÚJO; SOUZA; PANOSSIAN; MORETTI, 2016, p. 115). A disciplina psicologia precisa debater os problemas emergentes na realidade educacional brasileira em face às diferentes visões ou interpretações próprias de cada arcabouço teórico. Se o ensino se apresenta descontextualizado ou se alicerça exclusivamente nos fundamentos da ciência, não se problematizam as vivências escolares cotidianas iluminadas pelas diversas correntes psicológicas. Guerra (2016) destaca a ação mediadora dos agentes formadores na articulação entre os conhecimentos cotidianos e os saberes sistematizados. Nas palavras da autora: “[...] somente a qualidade dessas mediações pode assegurar a apropriação da instrumentalização básica para o entendimento do aluno na sua realidade e do conhecimento que deve ensinar” (GUERRA, 2016, p. 79). Quando não há boas mediações, os/as licenciandos/as acabam por significar a disciplina como “[...] demasiadamente puxada, [com] pouco aproveitamento no aprendizado do conteúdo” (S41, 2020).

No segundo núcleo de significação, saber-fazer docente numa perspectiva ético-política, escolhemos a seguinte frase para representá-lo: “[...] eu acho que tive uma boa disciplina de psico e possibilitou-me ter uma visão mais crítica do meu fazer como professor” (S21, 2020). Barbosa (2009, p. 37) aponta que “[...] o professor não oferece apenas aquilo que sabe, mas também aquilo que é”. Concordamos com a autora e buscamos compreender neste núcleo se e como esta disciplina viabilizou um saber-fazer docente politicamente contextualizado, ou seja, se os/as respondentes se apropriaram da psicologia como bússola para uma atuação pautada em valores ético-políticos, por meio de uma problematização crítico-reflexiva das hegemonias de poder historicamente construídas.

As memórias evocadas revelaram que a disciplina defendeu um olhar atento ao ambiente escolar e às questões históricas e sociais nele inseridas, conforme podemos ver nesta frase: “[...] pobreza e educação: desenvolvemos uma atividade que trabalhava a inclusão, foi uma experiência enriquecedora” (S37, 2020). Outra/a respondente relatou: “[...] o tema muito pertinente e relevante debatido foi a questão étnico-racial na sala de aula, o lado sombrio da escola [...]” (S48, 2020). Uma resposta remeteu à violência escolar: “[...] recordo que lemos e pensamos bastante sobre violência na escola e como a sociedade perpetua violências que reaparecem no ambiente escolar” (S42, 2020). Pudemos inferir nos relatos que os debates fomentados na disciplina colaboraram na construção subjetiva de futuros/as profissionais calcados/as em preceitos ético-políticos. O potencial emancipador das discussões promovidas pela disciplina se revela nas entrelinhas desta memória: “[...] a maior temática que me atraiu foi o debate sobre a dificuldade da educação brasileira e a construção da ideia de que é na educação que reside o potencial transformador da sociedade” (S38, 2020).

Os/As licenciandos/as relataram que a disciplina debateu os marcadores sociais da diferença, tais como: gênero, sexualidade, raça/etnia, classe e deficiência. Segundo os relatos colhidos, o reconhecimento das diferentes dimensões humanas pode subsidiar intervenções pedagógicas que se apropriem da noção de que o sujeito concreto é síntese de múltiplas determinações. As respostas ao questionário demonstraram que esta unidade curricular debateu a constituição das subjetividades no e pelo social, considerando que a diversidade humana depende da materialidade e das mediações que atravessam os sujeitos. Ao considerar os/as estudantes a partir da perspectiva da diferença, a disciplina pôde mobilizar transformações criativas e incitar propostas pedagógicas alinhadas a processos de emancipação humana, fugindo de psicologismos e universalismos normatizadores. Quando os marcadores sociais da diferença são debatidos na formação inicial, nas palavras de um/a respondente, o/a futuro/a professor/a se sentirá mais apto/a para “[...] tratar de temas sobre deficiência, desigualdade, gênero etc. na sala de aula” (S93, 2020).

Incluímos neste núcleo relatos sobre processos inclusivos. Selecionamos um deles: “[fizemos] [...] um trabalho de inclusão de um aluno cego nas aulas de matemática, com entrevistas de professores, psicóloga do colégio e do aluno em questão” (S26, 2020). Outra/a respondente destacou que “[...] a professora nos trouxe o tema inclusão e adaptou seu material para deficientes visuais, algo que me chamou bastante a atenção, pois até então não havia visto isso” (S59, 2020). Possibilidades se abrem para os/as futuros/as professores/as quando eles/as compreendem as deficiências não apenas como carências, mas como inerentes às formas como os seres humanos se apresentam. Vigotski (1997) afirma que funções deficientes podem criar estímulos para a elaboração de compensações que promovam o desenvolvimento. Segundo o autor, “[...] junto com as deficiências, estão dadas as forças, as tendências, as aspirações a superá-las ou nivelá-las” (VIGOTSKI, 1997, p. 14/15, tradução nossa). Assim, instrumentalizar os/as licenciandos/as para uma atuação inclusiva lhes possibilita olhar para além dos limites aparentes e perceber que as perspectivas de aprendizagem e desenvolvimento dependem de mediação.

Ainda em relação ao saber-fazer docente, muitos/as licenciandos/as destacaram que a maioria dos conteúdos abordados nesta unidade curricular não é trabalhada por outras disciplinas. Foram citadas como temáticas exclusivas: bullying, violência, relações étnico-raciais, gênero, deficiências, inclusão e medicalização. Um/a licenciando/a relatou que a disciplina abordou os “[...] problemas nocivos do bullying, homofobia, racismo e violência sexual/doméstica/entre outras [e isso lhe aprimorou] [...] o olhar docente para estas percepções que ajudam a salvar vidas” (S17, 2020). Várias respostas destacaram o debate das práticas escolares não medicalizantes, como neste exemplo: “[...] todos os conteúdos debatidos foram bastante pertinentes, mas gostei bastante da discussão sobre a medicalização, que não é tratada em outras disciplinas nem na mesa do bar (risos)” (S53, 2020). Outro/a licenciando/a destacou que “[...] o professor abordou a temática da medicalização infantil e o debate foi tão crítico-reflexivo que gerou em mim o anseio de me aprofundar no assunto” (S07, 2020). Debater temas presentes no cotidiano escolar tornou a disciplina mais consistente e propiciou vinculações teórico-práticas.

Além disso, os enfoques dados às temáticas, segundo os/as respondentes, buscaram o enfrentamento à composição de forças que comumente agem no âmbito educacional, geralmente baseadas em preconceitos arraigados, na manutenção do establishment e na culpabilização das pessoas com deficiência, pobres, negras ou homoafetivas (e suas famílias) pelo seu fracasso escolar. Os relatos revelaram que o ensino de psicologia nesta IES confrontou as significações normalizadoras que, de modo arbitrário, atribuem “[...] características positivas a uma identidade considerada parâmetro em detrimento das outras, ocasionando julgamentos e hierarquias que produzem naturalizações e preconceitos” (SOUZA; DORNELLES; MEYER, 2021, p. 286).

No terceiro núcleo de significação, compreensão da diversidade de sujeitos nas instituições escolares, escolhemos a seguinte frase para representá-lo: “[...] ajudou a compreender melhor, sem julgar” (S81, 2020). Buscamos analisar neste núcleo a potencialidade da disciplina propiciar reflexões sobre o fazer cotidiano do/a professor/a, oportunizando ações pedagógicas que considerem as singularidades dos sujeitos e a realidade multifacetada da escola. Um/a licenciando/a descreveu que a disciplina o/a ajudou a compreender “[...] quão fortemente pode ser consolidado determinado pensamento ou comportamento na pessoa em decorrência da cultura [em] que [ela] foi inserida [...] e que o mesmo pode ser muito difícil de ser retirado” (S81, 2020). Outro/a respondente narrou que a unidade curricular lhe possibilitou o reconhecimento das diferenças entre as pessoas: “[...] o que a gente percebe do mundo pode não ser o que o outro percebe. [Esta é] uma disciplina que te coloca como uma pessoa mais empática e ajuda no processo de formação de um bom professor!” (S32, 2020).

O debate e a valorização das diferenças são temas caros à psicologia. Segundo os/as licenciandos/as, as discussões sobre o desenvolvimento humano realizadas nas aulas trouxeram o devir, consideraram a periodização do desenvolvimento e os elementos sociais e culturais que constituem os sujeitos. Nas palavras de um/a respondente: “[...] um dos textos debatidos [...] falava sobre como não devemos tentar fazer com que a criança se encaixe nos nossos padrões adultos. A criança é seu próprio ser e modificar isso não faz sentido” (S25, 2020). Um/a licenciando/a descreveu que as discussões lhe permitiram construir um saber-fazer que levasse em conta as peculiaridades de seus/as alunos/as: “foi uma das disciplinas que considerei mais importantes das que já cursei até o momento para pensar a prática pedagógica e seguir nos estudos a respeito do desenvolvimento humano, em especial das crianças” (S05, 2020). Os conhecimentos de psicologia do desenvolvimento humano devem subsidiar a compreensão de que os sujeitos vivem transformações constantes e essas dependem dos encontros socialmente vivenciados - inclusive no contexto escolar. O ato educativo precisa, pois, considerar as distintas dimensões humanas: biológica, psicológica, cultural, social, econômica, histórica etc.

No aspecto da valorização das diferenças, o debate de ideias fomentado nas aulas foi significado como essencial. Um/a licenciando/a apontou: “[...] realizei a disciplina com estudantes de mais de 7 cursos, com muita diversidade de ideias e de idades” (S14, 2020). Outro/a indicou que “[...] a turma era composta principalmente por estudantes dos cursos de Física e Filosofia, o que fazia as discussões muito interessantes e enriquecedoras pela diferença de abordagem e leitura própria de cada área” (S27, 2020). Outro/a destacou: “[...] discutíamos muito sobre vários aspectos humanos, nossa turma era mesclada com a Filosofia o que tornava a discussão mais rica” (S92, 2020). Um/a licenciando/a, contudo, revelou falhas no processo dialógico, conforme podemos ler na frase: “[...] pensava por ser uma disciplina mais crítica e tals... poderíamos ter alguém [o/a professor/a] mais acessível a diálogos” (S74, 2020). É fundamental valorizar as diferenças e fomentar a troca de ideias e os debates entre os/as graduandos/as, assim os/as professores/as formadores/as devem estar vigilantes para não provocarem rupturas neste processo.

Concordamos com Guerra (2016) que a formação docente precisa promover a participação ativa dos/as licenciandos/as, discutindo seus julgamentos sobre os temas e conceitos expostos nas disciplinas. Nas palavras da autora: “[...] considerar os licenciandos como sujeitos do seu processo de aprendizagem implica vê-los não somente pelo aspecto cognitivo, mas também a partir de suas crenças, sentimentos, capacidade de relacionamento etc.” (GUERRA, 2016, p. 79). Assim, o encontro de diferentes sujeitos no cenário das aulas precisa ser, inexoravelmente, produtor de diálogo. O processo dialógico será fecundo e transformador - na acepção freireana - na medida em que proporcionar aprimoramento em relação aos sentidos atribuídos à experiência pedagógica, isto é, quando oferecer possibilidades para que os/as licenciandos/as (re)configurem suas práticas pedagógicas a partir do exercício da alteridade e do convívio com múltiplas existências.

Articulando os núcleos de significação entre si, as memórias revelaram que a disciplina psicologia educacional, de modo geral, buscou desenvolver a consciência crítica e reflexiva nos/as futuros/as professores/as de forma sistemática e intencional. Essa unidade possibilitou que os saberes da psicologia pudessem iluminar práticas pedagógicas emancipadoras. Os/As respondentes rememoraram que a disciplina lhes apresentou distintas interpretações teóricas sobre o desenvolvimento; os marcadores sociais da diferença; a diversidade e a singularidade humana - refutando universalismos normativos; processos inclusivos; um olhar atento para as questões históricas e sociais; temáticas que não são trabalhadas em outras unidades curriculares, tais como: relações étnico-raciais, violências, medicalização etc.; e propiciou debates importantes acerca dos saberes e fazeres do campo da psicologia. Somente seis respondentes alegaram não se lembrar de quaisquer conteúdos ou temáticas e as falhas ou problemas apontados estavam, majoritariamente, relacionados à atuação dos/as professores/as formadores/as. Assim, podemos afirmar que o ensino de psicologia para as licenciaturas nesta IES auxiliou na construção da práxis docente dos/as licenciandos/as que participaram deste estudo.

Tomando a teoria vigotskiana como base, Leontiev (2021, p, 161) postula que os significados são formadores da consciência, representando “[...] a forma ideal de existência do mundo objetal, transformada e convertida em matéria da língua, suas propriedades, conexões e relações, ocultas pela prática social conjunta”. Os significados são produzidos e objetivados nas sociedades, mas também permeiam a subjetividade de cada sujeito, podendo adquirir diferentes sentidos nas consciências das pessoas. Assim, os sentidos representam a parcialidade do pensamento, não sendo possível um sentido “puro” - este é sempre sentido “de algo”. Desta forma, segundo o autor, a consciência se constrói como produto das relações e mediações vivenciadas pelos sujeitos.

Resgatamos os excertos de Leontiev (2021) para fazer uma segunda afirmação acerca dos dados analisados no estudo: os/as professores/as formadores/as mediaram sentidos a respeito dos conteúdos de psicologia para a maioria dos/as licenciandos/as, pois estes/as formaram imagens mnemônicas que, quando evocadas, foram compartilhadas conosco nas respostas ao questionário. Conforme aponta Vigotski (2009, p. 289), “[...] perceber as coisas de modo diferente significa ao mesmo tempo ganhar outras possibilidades de agir em relação a elas. Como em um tabuleiro de xadrez: vejo diferente, jogo diferente”. Pudemos perceber nas análises que a maioria dos/as futuros/as professores/as se apropriou de teorias, temáticas e discussões deste campo do conhecimento, subsidiando o olhar docente e constituindo suas consciências.

Considerações Finais

O objetivo deste estudo foi interpretar a potencialidade do ensino de psicologia contribuir para que futuros/as professores/as forjem uma práxis docente pautada em propostas pedagógicas que objetivem a emancipação humana. Para alcançá-lo, analisamos memórias espontâneas relacionadas à disciplina, utilizando núcleos de significação, inspirados em Aguiar e Ozella (2006; 2013). Esses expressam os pontos centrais que mobilizaram os sujeitos em relação à disciplina psicologia educacional: o ensino contextualizado, o saber-fazer docente numa perspectiva ético-política e a compreensão da diversidade de sujeitos nas instituições escolares.

As memórias evocadas demonstraram que o ensino de psicologia atuou na compreensão crítico-reflexiva de como se constituem as subjetividades a partir de seus conteúdos específicos, mas as respostas também trouxeram a forma como tais conteúdos foram apresentados aos/às futuros/as professores/as. O ensino de psicologia se apresentou, de modo geral, com conotação positiva. Sua forma e seu conteúdo mediaram a constituição da práxis docente para os/as licenciandos/as quando se articularam com as vivências concretas do cotidiano escolar, propiciando o alargamento de horizontes interpretativos. Ao apresentar conhecimentos teóricos do campo psicológico, problematizar temas cotidianos e valores subjacentes às relações sociais vivenciadas nos espaços escolares e educar para os marcadores sociais da diferença, a disciplina trabalhou a emancipação humana na formação inicial docente.

Ao finalizarmos este texto, gostaríamos de ressaltar um ponto nodal para a pesquisa: os/as participantes estavam matriculados/as em cursos presenciais de uma universidade pública, ou seja, eram estudantes privilegiados/as no cenário nacional das licenciaturas. O corpo docente das IES públicas é composto, majoritariamente, por doutores/as, pesquisadores/as em sua área de atuação. É preciso considerar que mais da metade dos/as licenciandos/as brasileiros/as (53%) estavam matriculados/as em cursos a distância no ano de 2019, predominantemente no setor privado. “De 1,7 milhão de matrículas em licenciatura, 899.217 estão em cursos a distância” (SALDAÑA, 2020, s/p)1.

Não pertence ao escopo deste artigo comparar os cursos a distância e os presenciais, tampouco efetivar correlações entre IES públicas e privadas. Ressaltamos no decorrer do texto que a práxis docente é produto das relações e mediações vivenciadas pelos/as professores/as e que constituí-la é uma atividade complexa, de longo prazo, que exige crítica e reflexão. Chamou a nossa atenção na descrição das memórias evocadas acerca da disciplina psicologia ministrada nesta IES que muitos/as respondentes descreveram aulas permeadas por discussões, debates e diálogos, destacando a importância da diversidade, da interação e do intercâmbio de ideias, tanto entre os/as colegas como com o/a professor/a. Ao analisarmos as respostas dos/as licenciandos/as, não nos restaram dúvidas do quão marcante foi o caráter dialogado desta vivência pedagógica. As falhas, inclusive, estavam predominantemente relacionadas ao desempenho dos/as professores/as formadores/as, denunciando lacunas na organização didático-pedagógica: falta de aprofundamento, de contextualização, de articulação teórico-prática e/ou o não incentivo (justamente!) à troca de ideias e debates. Por esta razão, destacamos no parágrafo anterior que os/as participantes do estudo eram estudantes privilegiados/as no cenário nacional, tanto pela alta qualificação do corpo docente como pela possibilidade de estudarem no formato presencial, o que lhes permitiu mediações de melhor qualidade, discussões e debates.

Encerramos este texto destacando a necessidade de refletirmos criticamente acerca da educação que temos e da educação que queremos. Não se separa forma e conteúdo (MARX; ENGELS, 2007), assim, tão importante quanto o cuidado na seleção dos tópicos da ementa é a forma como o/a professor/a formador/a os apresenta aos/às futuros/as docentes. Inclusive, os/as próprios/as licenciandos/as reiteraram a dialética estabelecida entre forma e conteúdo, pois quando convocados/as a descrever uma memória espontânea relacionada aos conteúdos ministrados na disciplina psicologia, muitos/as superaram a solicitação e detalharam a forma como a disciplina foi ministrada, relatando estratégias pedagógicas, interações em sala de aula e/ou atividades específicas que auxiliaram na constituição de sentidos em relação à psicologia. Por meio das respostas, tornou-se possível a assunção de que o conteúdo e a forma estão configurados reciprocamente, de modo que aparecem indissociavelmente vinculados. Na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, a consciência assume uma tensão dialética entre os aspectos objetivos e subjetivos, entre os significados e os sentidos, pois sujeito e social não são opostos, mas mutuamente constituídos. Assim, faz toda diferença o conteúdo e o modo como este formou (e se formou) sentidos para os/as futuros/as professores/as serem capazes de (re)pensar sua atividade docente.

Nota

1 Estes dados refletem um cenário anterior à pandemia do Coronavírus que se instaurou no Brasil e no mundo desde 2020.

Referências

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Recebido: 17 de Agosto de 2022; Aceito: 16 de Dezembro de 2022

Profa. Dra. Maria Fernanda Diogo, Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil), Departamento de Psicologia, Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional (LAPEE/UFSC), Grupo de Estudos Trabalho e Conhecimento na Educação Superior (TRACES/UFSC), Núcleo de Estudos do Trabalho e Constituição do Sujeito (NETCOS/UFRG), E-mail: mafediogo@gmail.com

Charles Augusto Christ, Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil), Estudante de Graduação em Psicologia e Bolsista PIBIC/UFSC, Laboratório de Psicologia Escolar e Educacional (LAPEE/UFSC), E-mail: charles.christ19@gmail.com

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