SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.61 issue67Identity (ies) and re-existence literacies through the negotiation of resistance narrativesPublic school administration: the distance between discourse and action author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Revista Educação em Questão

Print version ISSN 0102-7735On-line version ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.67 Natal Jan./Mar 2023  Epub Dec 05, 2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n67id31816 

Artigo

Os livros escolares no Liceu Maranhense pela imprensa local (1844-1876)

The schoolbooks in the Liceu Maranhense through the local press (1844-1876)

Los libros escolares en el Liceu Maranhense a través de la prensa local (1844-1876)

Samuel Luis Velázquez Castellanos1 
http://orcid.org/0000-0003-0849-348X

Cesar Augusto Castro1 
http://orcid.org/0000-0001-7650-895X

Mateus de Araújo Souza2 
http://orcid.org/0000-0001-6429-0631

1Universidade Federal do Maranhão (Brasil)

2Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (Brasil)


Resumo

Neste artigo, analisa-se a dinâmica estabelecida no uso dos livros escolares no Liceu Maranhense via imprensa local, usando os pressupostos teórico-metodológicos da história cultural para captar a materialidade dos artefatos como produtos e discursos. Cruzam-se normas instituídas, práticas recorrentes e inovações que acompanharam os programas de ensino via reformas para a manutenção do mercado escolar. Conclui-se que liceístas/autores se adequaram aos ideais de escolarização e conceitos técnicos, segundo as armaduras conceituais em voga, para além da própria representatividade, como intelectuais, garantindo a aprovação, a indicação e o consumo das obras na instrução e a concorrência com produções nacionais e internacionais.

Palavras-chave: Livro escolar; Cultura material escolar; História cultural; Maranhão Império

Abstract

In this article, we analyze the dynamics established in the use of textbooks at Liceu Maranhense through the local press, using the theoretical-methodological assumptions of cultural history, to capture the materiality of artifacts as products and discourses. We cross established norms, recurrent practices, and innovations that accompanied the teaching programs via reforms to maintain the school market. It is concluded that students/authors conformed to the ideals of schooling and technical concepts, according to the conceptual armatures in vogue, in addition to their own representativeness as intellectuals, ensuring the approval, indication and consumption of works in instruction and competition with national and international productions.

Keywords: Schoolbook; School material culture; Cultural history; Maranhão Empire

Resumen

En este artículo, se analiza la dinámica establecida en el uso de los libros escolares en el Liceo Maranhense vía prensa local, utilizando los principios teórico-metodológicos de la historia cultural para captar la materialidad dos artefactos como productos/discursos. Se cruzan normas establecidas, prácticas recurrentes e innovaciones que acompañaron los programas de enseñanza vía reformas para la subsistencia del mercado escolar. Se concluye que profesores liceístas/autores se adecuaron a los ideales de escolarización y conceptos técnicos, según las armaduras conceptuales en boga, y que la propia representatividad como intelectuales, garantizó la aprobación, la indicación y el consumo de los libros en la instrucción y la competitividad con producciones nacionales e internacionales.

Palabras clave: Libro escolar; Cultura material escolar; Historia cultural; Maranhão Imperio

Introdução

O Liceu Maranhense, como instituição com forte representação no oitocentos, inaugura o ensino público secundário institucionalizado na província do Maranhão em 18381. Com respeito à produção de livros escolares, vale destacar a estreita relação entre a imprensa periódica local e a instrução pública, sendo possível identificar que diversos autores também foram atuantes nos jornais e no ensino, destacando-se, por exemplo, livros escolares escritos por professores desse estabelecimento em detrimento daqueles produzidos por outras instituições e professores (SERRA, 2001; CASTELLANOS, 2017). Dessa forma, interessa-nos analisar a dinâmica estabelecida entre os livros escolares utilizados nesse espaço para o ensino secundário, seus respectivos autores e as ações colegiadas de avaliação, uma vez que o Liceu contava com dispositivos decisórios nos processos de adoção, indicação e veto da cultura material escolar via congregação de professores2.

O livro escolar, considerado uma obra menor, o primo pobre da literatura ou uma produção de pouco prestígio cultural, não aparecia nas biografias dos escritores ou era pouco referenciado pelos autores na primeira metade do oitocentos (LAJOLO, ZILBERMAN, 1996; CORRÊA, 2006; BITTENCOURT, 2008). A partir do gradual crescimento das vagas no ensino público, com o projeto brasileiro de nacionalização e depois da criação da Inspetoria Geral da Instrução Pública no Maranhão, em 1841, aos poucos o livro escolar transformara-se na carne da produção livresca (BITTENCOURT, 2008). Artefato que tomou um lugar de destaque no mercado escolar, aumentando sua produção, circulação e uso, e se tornou um canal de divulgação para autores anônimos e renomados que transformaram seus estilos, conceberam novas formas de interagir com um público específico e galgaram reconhecimento nos espaços de ensino. Nesse sentido, essas estratégias mercadológicas podem explicar “[...] em parte, porque autores eruditos, em número significativo, utilizaram a literatura escolar para divulgar os [seus] trabalhos [...]” (BITTENCOURT, 2008, p. 83).

A partir desses pressupostos, torna-se necessário questionarmos em que medida esses liceístas/autores influenciaram os processos de avaliação e uso dos livros escolares na instrução pública secundária da província? Em princípio, podemos afirmar que tais professores gozavam de grande influência na sociedade e na instrução pública/privada e que alguns tiveram destaque nacional via obras escolares, seja pela representatividade do Liceu como instituição de realce, seja pela própria congregação como principal banca avaliativa das produções para as respectivas projeções. Já com respeito à seriação das fontes e tendo em vista a abordagem de conjuntos da documentação sustentada na análise tópica e de identificação de recorrências e mudanças (BARROS, 2013), o período analisado corresponde àquele em que o Publicador Maranhense (1844 a 1876) divulga notícias/avisos sobre os livros escolares, mesmo que o periódico circulasse na província de 1841 até 1886 (Ver quadro 1).

Quadro 1 Frequência dos livros escolares no Publicador Maranhense (1844-1876) 

Publicador Maranhense
Data Forma Obras
1844 (ed. 229) Parecer Compêndio de geometria – Bezout
1844 (ed. 229) Parecer Compêndio de geometria - Euclides.
1863 (ed. 35, 102; 106; 114; 116; 117; 121; 132; 144; 150; 152; 155; 187). Anúncios Compêndio de gramática Philosophica da Lingua portuguesa

1863 (ed. 16; 17; 20; 22; 24; 26; 28; 30; 34; 46; 47; 48; 52;)

1863 (ed. 258)

Parecer avaliativo/ anúncios Metrologia moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal (1863/1º edição)

1863 (ed. 12; 42)

1869 (ed. 51)

Parecer avaliativo/ anúncios Postillas de grammatica Geral aplicada à língua potugueza pela Analyse dos classicos
1866 (ed. 147; 148; 156; 159; 161; 162; 170). Anúncios Compêndio de Gramática da Língua Franceza por Chapaal
1866 (ed. 151). Anúncios Compêndio aula de inglez do Lyceu-Marccauxchosis em prose et em vers des classiquesanglais.
1876 (ed. 85). Anúncio Compêndio de geografia

Fonte: (SOUZA, 2022).

Esta explanação de caráter histórico se embasa em fontes documentais, tendo como pressupostos teórico-metodológicos a história cultural, que nos auxilia a compreender as tensões instauradas entre a produção de autores maranhenses e as prescrições legais a partir de seus três eixos indissociáveis. No primeiro, na história do objeto na sua materialidade (os livros escolares), se capta a forma em que são apresentados, a frequência das publicações, a estrutura dos múltiplos registros e o dispositivo utilizado entre colunas, seções, páginas ou lugares específicos na topografia do suporte. No segundo eixo, a atenção volta-se para a história das práticas nas suas diferenças para avaliar as desigualdades nas formas de fazer dos sujeitos envolvidos, principalmente, dos autores/professores/legisladores que apontam para certa diferenciação. Por fim, explanam-se no último eixo as configurações sociais/culturais instituídas pelos sujeitos de uma maneira mais geral para percebermos as clivagens/ formações sociais dos indivíduos em pauta, tendo em conta as mudanças nas estruturas psíquicas ou nas formas de se pensar as produções escolares e os respectivos processos, assim como as armaduras conceituais em voga com respeito ao livro escolar, analisadas nas suas variações históricas (CHARTIER, 1989; NUNES, CARVALHO, 1993; CASTELLANOS, 2022a, 2022b).

A produção de livros escolares no Liceu Maranhense e sua divulgação na imprensa

O Liceu Maranhense foi uma instituição central na produção de obras escolares para a instrução local via professores/autores. Para atender a demanda da instrução pública primária e secundária, os liceístas divulgaram suas obras amplamente pela imprensa, que era o órgão responsável pelos anúncios e vendas de objetos e produtos de toda sorte, mesmo que se configurasse como um campo de disputa entre visões políticas contrastantes e como um meio de propagação de ideais, modelos de ensino e objetos culturais, tais como os livros de classes. Tal movimento resultou na divulgação e circulação de obras escolares na instrução pública local e nacional, chegando às mais importantes instituições de ensino, muito por conta das posições políticas e dos cargos ocupados por esses professores/autores que também tiveram influência sobre os processos de aprovação, adoção e veto no ensino público (CASTELLANOS, 2017); trâmites e negociações que estavam pautados “[...] na legislação vigente e nos programas de ensino, [em que] vários ideólogos dos programas e reformas [eram] os próprios autores [dos] livros [...]” (MACIEL; FRADE, 2003, p. 106).

Nesse sentido, foi preciso utilizar o Publicador Maranhense (1844-1876) para descortinarmos a forma, a frequência, a estrutura e o dispositivo em que aparecem os livros escolares procedentes do Liceu na imprensa (CHARTIER, 1989; CARVALHO, NUNES, 1993; CASTELLANOS, 2022a, 2022b). Periódico impresso e editado na tipografia do Sr. Ignácio José Ferreira (seu proprietário), o Publicador Maranhense foi fundado em 9 de julho de 1842 em substituição ao Jornal Maranhense (1840-1841), no qual se apregoava a substituição/ adoção dos livros escolares nas aulas e a respectiva circulação e consumo nas instituições de ensino da província, assim como os exames, as notas e a sua respectiva comercialização. Na lógica de analisar-se a forma utilizada nas mensagens (segundo o primeiro eixo da história cultural) identificamos duas: a) os pareceres avaliativos e b) os anúncios de obras.

A primeira trata de longas descrições sobre o conteúdo dos livros avaliados, apresentando nos parágrafos iniciais informações sobre a obra, o autor e os cumprimentos ao presidente de província para o qual seriam remetidos na busca por subsídios. Além disso, havia uma análise das obras segundo a sua estrutura e subdivisão, nas quais se indicavam os modos de organização, a possível utilidade dos assuntos, os erros tipográficos ou de conceitos, entre outros. No caso da obra Metrologia moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal (1863/1ª edição.), de João Antonio Coqueiro, por exemplo, era indicado que “na página 32 not[avam]-se dous erros de pouco valor, e [foram] os seguintes: a milha – 347, 3/4 braças em vez de 341, 3/4 braças, e a pipa - 26 em vez de 25 almadas” (METROLOGIA..., 1863, p. 4). Também foram registrados os excessos e/ou lacunas referentes aos conteúdos que tornariam uma obra passível de aprovação como indicativo de diferencial e/ou contribuição, assim como os resultados e critérios utilizados no veredito sobre a adoção ou veto: a obra de Coqueiro, “[...] se torna[ria] indispensável, visto ter-se de adoptar no Brazil o systema metrico decimal, e ser hoje a metrologia um dos preparatorios necessarios para a matricula de algumas das academias do império” (METROLOGIA..., 1863, p. 4).

Nos anúncios de livros escolares (segunda forma usada pelo jornal), os textos se caracterizam por serem curtos e elogiosos em relação às obras, pois objetivavam a divulgação de serviços e produtos. Era um espaço fundamental para a manutenção do periódico, já que representava a maior parte do faturamento que lhe garantia permanência e longevidade. Os anúncios para a venda mostravam quais características faziam um livro ser bem avaliado, passível de indicação para a aprovação e adoção pela instrução pública secundária.

Este compendio, que é adoptado na aula de francez do Lyceu e em vários collegios desta capital, sobre ser um dos melhores da língua franceza, acha-se hoje tão resumido e tão apropriado para ser lido nas escolas de instrução secundárias da província, que não deixará de ser procurado para isso, principalmente tendo no fim um aditamento da conversão franceza sobre vários assumptos do trato civil, cuja utilidade ninguém desconhecerá (LIVROS..., 1866, p. 4).

De forma geral, as informações apresentadas eram o título, o autor e a tipografia, assim como os lugares de venda, valores e conteúdo, além da aprovação pela congregação. O texto – repleto de adjetivos, como “um dos melhores da língua franceza”, “tão resumido e tão apropriado” e “cuja utilidade ninguém desconhecerá” – pode relacionar-se aos objetivos mercadológicos das publicações periódicas ou às estratégias dos jornais locais para convencer o leitor da qualidade do material ofertado. Por outro lado, o destaque dado à autoria dos liceístas, bem como a sua adoção pela instituição, era um recurso indispensável para atrelar a qualidade do ensino do Liceu à qualidade do livro, isto é, “[...] a supremacia do fabricante sobre o comerciante; da produção sobre a circulação” (SODRÉ, 1983, p. 5).

Das duas formas de expor-se os conteúdos dos livros, o anúncio foi a mais frequente. As pistas sobre as características mercadológicas do registro indicam certa responsabilidade pelo volume de menções da fonte, constituindo-se numa das principais estratégias de manutenção dos jornais. Já os pareceres avaliativos aparecem na contramão, pela constante renovação curricular imposta ao Liceu e pela necessidade de avaliar obras que pudessem ser adotadas nas aulas em consonância com as prescrições dos processos governamentais como fazer tácito e regular do circuito do livro escolar (CASTRO; FURTADO; CASTELLANOS, 2022). A partir dessas observações, elaboramos um quadro para evidenciar as citações e referências a livros escolares no jornal.

O Publicador Maranhense e suas seções destinadas à instrução pública tornam-se importantes dispositivos na medida em que revelam representações sobre o Liceu. Se por um lado as formas das publicações sobre o livro revelam o teor mercadológico anunciado como produto, por outro, aparecem relacionadas ao ensino de línguas e de gramáticas, o que indica indiretamente o seu papel enquanto meio formador de intelectuais locais, especialmente, nas áreas de humanidades. Seguidamente, surgem obras relativas ao ensino de matemática indicando as suas principais áreas de atuação; livros escolares dessa área popularizados e divulgados via jornais, que apresentam indicativos do caráter do ensino na província e da direção pensada para o estabelecimento e para a instrução pública.

Depois de identificarmos as obras e os seus autores, de avaliar-se a relação de proximidade com os espaços de poder, com os lugares de ensino e com a imprensa, se fez necessário analisar essas relações e os ambientes em que circularam para compreendermos como galgaram representatividade no cenário local que concorria com o mercado nacional. Para isso, analisamos o funcionamento dos processos avaliativos e das normas que os regulamentaram para descortinar as táticas e as inventividades em uso (DE CERTEAU, 2012) em função das estratégias de imposição de quem determinara os trâmites (segundo eixo da História Cultural).

Os livros escolares no Liceu e seus autores

Os livros escolares eram produzidos a partir de demandas criadas pelas disciplinas que estruturavam o currículo liceísta, constituídas via disputa entre professores e autoridades nas esferas política e administrativa da cultura da escola (ESCOLANO BENITO, 2017). Destarte, pode-se argumentar que tal ordenamento obedeceu a imposições feitas à escola advindas dos ideais de escolarização que se pretendiam hegemônicos enquanto estruturação escolar. No Brasil, esses ideais foram propagados principalmente pelo Collegio Pedro II que tem inspiração nos liceus europeus, notadamente na França, por meio do modus parisienses3. Esse foi um modelo de escola que atuou como armadura conceitual imposta pelo exterior às autoridades da província, ao qual teriam que atrelar-se e conformar um leque de ações para a estruturação do Liceu Maranhense como instituição de ensino. Aqui, registramos não apenas as áreas de conhecimento priorizadas pelo currículo escolar, como também os títulos e autores adotados na instituição para suprir tais demandas.

Quadro 2 Relação de livros/autores adotados no Liceu segundo o Publicador Maranhense (1842-1876) 

Autores Obras
Abbade Gualtier Lições de Geographia
Tissot Precis d’histoire universelle, vol. I de 1850
Padre Antonio da Costa Duarte Compêndio de gramática Philosophica da Lingua portuguesa
Francisco Sotero dos Reis. Postillas de grammatica Geral aplicada à língua potugueza pela Analyse dos clássicos
Christiano Benedito Ottoni Elementos de Aritmética; Elementos de Álgebra e Elementos de geometria e trigonometria rectilinea.
João Antonio Coqueiro Metrologia moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal (1863/ º edição)
Chapaal Compêndio de Gramática da Língua Franceza
J. G. Eichhoff Compêndio aula de inglez do Lyceu- Marccaux Chosis em prose et em vers des classiques anglais.

Fonte: (SOUZA, 2022).

Tais demandas se apresentavam em áreas específicas e distintas do conhecimento, a saber: as línguas, responsáveis pelas gramáticas, que se dividiam em nacionais e estrangeiras; as ciências exatas, através de autores de compêndios em geometria e matemática; e, por fim, as ciências humanas, cujos livros deveriam servir às áreas de geografia e, principalmente, história. Para as humanidades, identificamos duas obras estrangeiras traduzidas para uso na escola: as Lições de Geographia (1838/11ª ed.), do Abbade Gualtier e o Precis d’histoire universelle, v. I (1841/ 1ª ed.) de Tissot.

O primeiro compêndio foi originalmente publicado na França entre 1789 e 1820, foi traduzido pela primeira vez em 1838 por José Inácio Roquete4 e adotado no Liceu para as aulas de geografia. Na imprensa, encontramos discussões sobre a negação de sua possível substituição, uma vez que, “não [era] conveniente que na aula de Geographia e História do Lyceu desta cidade [fosse] substituído o Compêndio do Abbade Gualtier pelo de Luiz Paulino Cavalcanti Vellez de Guevara” (ANÚNCIO..., 1848, p. 4, grifo nosso). O segundo, Precis d’histoire universelle, v. I (1841/1ª ed.), compêndio de História de Tissot, usado no Liceu, encontrava-se no catálogo da Livraria Fructuoso figurando em diversos anúncios: “na Livraria Fructuozo [se] t[inha] a venda os seguintes livros novos: [...] TISSOT: Précis d’histoire universelle (obra adoptada nas escolas) 1 v.” (NA LIVRARIA..., 1850, p. 4) e seu autor aparece no Publicador Maranhense como um reconhecido médico suíço que proferia discursos sobre diagnósticos e tratamentos adequados a doenças.

Contudo, os sinais sobre diferentes práticas se fazem evidentes, ainda que tratem do mesmo objeto ou do mesmo livro. O consumo dessa obra está centrado no ensino de história em algumas notícias, coincidindo com a função pela qual foi concebida, produzida e posta em circulação. Mas outras utilizações foram cogitadas no Liceu, por exemplo, para o ensino de línguas estrangeiras, como evidencia o seguinte parecer: “[...] approvo que [para] a Aula de Francez do mesmo Lyceu se addicione aos Compêndios e autores de que se faz uso [...] o Compêndio de História Universal de Tissot” (LITERAURA..., 1848, p. 3). Essa diferenciação nas práticas referentes ao mesmo objeto depende de táticas inventivas e singulares que visam às desigualdades de tais práticas. A diversidade de usos dependia de várias motivações, entre elas: 1) do prestígio do autor na carreira médica, já que diversas notícias o referenciam: “O celebre Tissot declara[ra] singelamente, que todo aquelle, que prescreve[sse] qualquer medicamento só pela inspecção das urinas, [era] um velhaco” (ANÚNCIO..., 1848, p. 4); e 2) do interesse do Liceu Maranhense em utilizar nas aulas autores de renome na sociedade letrada para além do conteúdo técnico. Ou seja, a representação como autor célebre parece influenciar as decisões da congregação, mesmo que não se constitua diretamente num critério para a escolha das obras; livros de classes projetados para múltiplos usos que induzem à inventividade das práticas. Desse modo, evidenciam-se algumas das múltiplas funções do livro escolar defendidas por Choppin (2004), “[...] que podem variar consideravelmente segundo o ambiente sociocultural, a época, as disciplinas, os níveis de ensino, os métodos e as formas de utilização” (CHOPPIN, 2004, p. 553); função referencial, instrumental, ideológica ou cultural segundo quem consome o livro e de como o consome, mas aprofundar a respeito foge ao escopo deste trabalho.

Destarte, a produção de obras nacionais ou locais para suprir a demanda crescente pelas escolas secundárias brasileiras, coabita com a preferência de obras estrangeiras traduzidas e adaptadas em algumas áreas do conhecimento. A opção pelo Compendio de Tissot, utilizado na disciplina de história universal, por exemplo, parece ter em conta a representatividade do autor nesse campo e/ou a carência de produção similar. Já as disciplinas ligadas à língua portuguesa contavam com forte presença de autores locais e nacionais, como Sotero dos Reis e Antonio da Costa Duarte, que também eram professores do Liceu. Em outras palavras, a adoção de obras pode ser encarada enquanto campo de disputa em que, para além da influência externa dos conteúdos e dos autores mais representativos, aspectos como a posição social e status dos sujeitos interferiram diretamente (CHARTIER; BOURDIEU, 1996), uma vez que “[...] as lutas de representações têm tanta importância quanto as econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, [...] a sua concepção do mundo social, [seus valores] e o seu domínio” (CHARTIER, 1990, p. 17).

O domínio da língua escrita sinalizava o papel que a instituição ocuparia na sociedade maranhense, enquanto lugar de excelência para o estudo da língua materna e das línguas estrangeiras presentes no currículo (CASTRO, 2009). Desse modo, diversos títulos da área da linguística foram localizados entre destaques e ferrenhas disputas com respeito à adoção de obras para o ensino, embora a maioria seja dos liceístas. O Compendio da gramática Philosophica da língua portuguesa (1877/6ª ed.), do padre e lente Antonio da Costa Duarte, por exemplo, fora anunciado diversas vezes no Publicador Maranhense no ano de 1863 e adotado para as aulas do Liceu e das primeiras letras na província. No entanto, ainda que essa obra seja a primeira gramática brasileira e maranhense concebida desde 1829, mesmo antes da institucionalização desse estabelecimento, a sua adoção demorou 29 anos.

Compendio da grammatica philosophica da lingua portugueza escolhida pela congregação do lyceu do maranhão para uso do mesmo, e das aulas de primeiras letras da província, pelo padre Antonio da Costa Duarte lente da Grammatica Philosophica da Lingua, e Analyse dos nossos clássicos. (A GRAMÁTICA..., 1853, p. 3, grifo nosso).

No corpo do anúncio, diversos aspectos importantes sobre esse tipo de publicação podem ser identificados, entre eles, o realce dado ao processo de avaliação, uma vez que o aval da congregação era um atestado de qualidade. A conservação dos critérios de moralidade e os valores éticos mediados por obras dedicadas ao ensino da mocidade, como outro ponto a ser observado, pode sugerir que o exemplar levasse vantagens pelo fato de seu autor ser também um padre. Mas a demora em ser aceito pela instituição via congregação pode apontar para possíveis mudanças/revisões do conteúdo em função das reformas e exigências prescritas. Esse registro sobre o mercado do livro escolar e os critérios levados em pauta para que uma publicação fosse considerada bem-sucedida no meio local fornece indícios sobre os caminhos percorridos pelos autores visando aprovações e indicações de uso de suas obras, seja no ensino primário, seja no secundário ou mesmo nos dois níveis indistintamente.

As Postillas de grammatica Geral aplicada à língua potugueza pela Analyse dos classicos (1863/1ª ed.), de Francisco Sotero dos Reis5, também largamente utilizada nos dois níveis de ensino, foi elogiada por diversos periódicos, a exemplo do escólio no Publicador Maranhense (1863), que ressalta como seu autor as concebeu e escreveu, considerando-as:

[...] pelos toques magistrais do estylo cheio, firme e igual do exímio escritor maranhese, quando daquele chaos gramatical passamos para este primor de ordem, methodo e perspecuidade, parece-nos que subimos de um labyrinto subterraneio e tenebroso para a orvalhada e frescura de uma manhã rica de fragrâncias e esplendores (AS POSTILLAS..., 1863, p. 4).

Sotero teve extensa atuação na vida pública, circulando em diversos espaços que lhe legaram poder e representatividade nas letras e na instrução, com destacado envolvimento na política e na imprensa. Na instrução pública, exerceu o cargo de professor dentre os primeiros do Liceu Maranhense, o que nos faz supor que o conhecimento interno dos processos de aprovação, adoção e veto e, a teia de relações de interdependências nos espaços decisórios, contribuíam para que suas obras fossem avaliadas e indicadas; relações compostas por “[...] planos e ações, impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas [que] constantemente [se] entrelaçam de modo amistoso ou hostil” (ELIAS, 1993, p. 194).

Ainda sobre o ensino de línguas, identificamos dois: o Compêndio de Grammatica da língua Franceza (1866/1ªed.), de Chapaal, apresentado com comentários elogiosos que intencionavam convencer em relação à qualidade do livro, já que seria um dos melhores da língua francesa e se achava “[...] tão resumido e tão apropriado para ser lido nas escolas de instrução secundárias da província, que não deixará de ser procurado [...] Maranhão 23 de junho de 1866 (LIVROS..., 1866, p. 4); e a [...] proposta do inspector da instrucção publica, [sobre] a Selecta ingelza intitulada – Morceaux Chosis em prose et em vers des classiques anglais [...]–,de J. G. Eichhoff (LIVROS..., 1866, p. 2), usada para o ensino do inglês segundo a presidência que a mandara a adotar.

Talvez a Seleta inglesa (1859/1ª ed), de Eichhoff6, não tivesse os requisitos para ser adotada, bastando apenas a recomendação do inspetor da instrução para ser usada no Liceu, o que pode indicar que os sujeitos com postos hierárquicos menores, também conseguiam fazer valer suas ideias nas relações de poder ligadas aos processos de avaliação dos livros escolares. A adoção da obra, apenas por recomendação do Inspetor, constitui uma outra forma de avaliação, já que não se justifica a adoção sem parecer técnico da congregação, a não ser pelas posições em pauta e a hierarquização das funções. Essa diferenciação nas práticas que referendam os processos de aquisição de livros de classes em função das relações de poder instauradas alicerçam o segundo eixo de análise: responder à questão bourdieuriana sobre o que fazem os diferentes sujeitos com o mesmo objeto que lhes é imposto.

Desse modo, podemos afirmar que obras estrangeiras, traduzidas ou adaptadas, apesar de percorrerem os mesmos trâmites ditados pelos estatutos da instituição de 1838, obedeciam a caminhos próprios, pois as obras estrangeiras, ainda na década do 60 do oitocentos, compunham parte significativa do currículo das instituições de ensino secundário e do mercado dos livros, por mais que se pretendesse fortalecer a produção maranhense e fazer circular livros nacionais e locais (CABRAL, 1982). No entanto, mesmo que os livros estrangeiros pudessem servir de modelos à produção brasileira e maranhense, posteriormente, esta última assumiu contornos específicos, expôs sua singularidade e sua diversidade e, por conseguinte, deixou de ser uma produção modelada para se concretizar num produto nacional e local (CASTELLANOS; CASTRO, 2022).

Em se tratando das ciências exatas, podemos destacar os Elementos de Aritmética (1855/2ª ed.), Elementos de Álgebra (1853/8ª ed.) e Elementos de geometria e trigonometria rectilinea (1857/2ª ed.), de Christiano Benedito Ottoni, e a Metrologia moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal (1863/ 1ª ed.), de João Antonio Coqueiro. A geometria, por exemplo, era uma área do conhecimento inclusa nas escolas de ensino secundário por imposições curriculares advindas de ideais hegemônicos que inclusive faziam parte do Quadrivium e dos currículos das principais instituições de ensino no Brasil e Europa. Assim sendo, podemos supor que essa disciplina gozava de representatividade dentro da estruturação curricular do Liceu e era essencial para as funções pretendidas pela escola.

Com respeito aos compêndios de Benedicto Ottoni, encontramos um parecer favorável à sua adoção pelo inspetor José da Silva Maia, por ser um dos que “[...] estavam em uso em quase todos os estabelecimentos de importância do império pelo seu reconhecido mérito, como por exemplo, no Colégio de Pedro II no Rio de Janeiro” (MARANHÃO, 18 maio 1858). Ou seja, a sua adoção por outras instituições denota as formas de se pensar a escola pública secundária no período relativo à adequação do modelo praticado nesse colégio de referência. Já Metrologia moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal (1863/1ª ed.) de João Antonio Coqueiro7, afirmou sua adoção como imprescindível no parecer, “[...] visto ter-se adopta[do] no Brazil o systema metrico decimal, e ser hoje a metrologia um dos preparatorios necessarios para a matricula de algumas das academias do império” (METROLOGIA..., 1863, p. 4). Tal informação não apenas fornece sinais sobre as demandas que motivaram a produção das obras, como também as armaduras conceituais que ditavam os conteúdos válidos e orientavam os temas a tratar através das reformas e dispositivos legais. Nesse sentido, a atuação de Coqueiro como professor liceísta é um outro exemplo que nos permite afirmar como as relações estabelecidas entre sujeitos nos espaços de poder no âmbito da instrução pública, aliadas aos aspectos técnicos e metodológicos das produções, foram critérios considerados para as avaliações das obras via congregação mesmo que maquiadas para garantir a aprovação, a indicação e o consumo.

De tal modo, as relações de poder instituídas parecem ter permeado não apenas os espaços decisórios nas comissões avaliativas do Liceu Maranhense, como também nas escolhas que se davam pelas constantes pressões e imposições nas diversas áreas do conhecimento para as quais essas obras foram produzidas. No entanto, a presença e a influência da Igreja e a valorização de aspectos morais e religiosos, mesmo que em menor intensidade, contribuíram ainda para que as escolhas se concretizassem. Em vista desses pressupostos, torna-se necessário que nos centremos nos processos avaliativos do Liceu para entendermos de que forma e sob quais determinações/ critérios as escolhas se materializaram.

A gramática escolar e o processo de avaliação/adoção de livros no Liceu

A gramática escolar envolve uma série de aspectos atinentes à organização da escola, que automatizam processos e conformam o pensamento de uma época referente a suas funções como lugar de escolarização: conteúdos, normas, disciplinamento e ainda o que deve compor seus espaços (ESCOLANO BENITO, 2017). Esses aspectos são percebidos, por exemplo, quando o professor ministra diversas disciplinas em um mesmo ambiente, sofre a vigilância de um diretor que serviria, por sua vez, ao poder público e aos regulamentos internos das escolas, controlando, assim, toda a ação no ensino e prevendo situações e posturas que os sujeitos deveriam tomar (VICENTE; LAHIRE; THIN, 2001).

Com respeito ao Liceu Maranhense, um aspecto balizador da gramática da escola era a materialização dos saberes objetivados, em uma intensa e contínua produção de compêndios que, por determinação dos próprios Estatutos de 1838, auxiliariam na prática pedagógica dos lentes e serviriam como símbolo de modernidade e emblema da intelectualidade do corpo docente. Esses aspectos também demonstram a imagem que a escola desejava projetar como instituição formadora de intelectuais, uma ideia que seria reforçada pela atuação de seus ex-alunos nos espaços de poder, fato que fez do estabelecimento a mais representativa e influente instituição de ensino secundário do Maranhão no período imperial.

A congregação dos professores do Liceu Maranhense era o lugar de ações e decisões com respeito aos livros escolares. A esse colegiado competia “reunir-se em sessão ordinária na primeira quinta-feira do mês de janeiro para escolher os compêndios e autores para as aulas e distribuir as horas das lições” (CASTRO, 2009). Por meio das atas das reuniões, torna-se possível observar os diversos aspectos que envolviam a aprovação, a recomendação de uso e os vetos, para além dos valores que se desejava conservar e inculcar.

Inicialmente, percebe-se o uso de compêndios como manuais que orientariam a prática pedagógica dos professores da instituição, como também as condutas inculcadas, os hábitos disciplinares e os rituais escolares via seleção de conteúdos como um corpo de ações (JULIA, 1995). Essas práticas eram incentivadas não apenas pelos professores, mas por todos os agentes da vida escolar. Nesse sentido, nos estatutos de 1838 – elaborados pela congregação dos lentes – já vinha estipulado que os professores deveriam “[...] fazer as explicações das lições pelos compêndios e autores adaptados [por dita] Congregação para [seu] uso [...]” (CASTRO, 2009).

A determinação prescrita em normas da instituição, como colégio de ensino secundário, para explicar as lições pelos compêndios e autores nos permite perceber que a ação do professor, bem como a dos alunos, não era orientada pela relação de pessoa a pessoa configurada pelo uso do método de ensino individual. Pelo contrário, a obediência a regras impessoais, expressas no regulamento do estabelecimento e também nos conteúdos selecionados segundo as prescrições nos livros e compêndios aprovados, pautavam os aspectos que fariam parte da mudança na relação pedagógica que se instaurou pelo uso do método simultâneo nesse modelo escolar de socialização (VICENTE; LAHIRE; THIN, 2001). Manuais de vital importância, que por orientar/regulamentar a ação dos professores e alunos, deveriam ser produzidos de acordo com as armaduras conceituais imperantes na época; ideais de escolarização, moralização e modernidade, aos quais o espaço escolar público de ensino secundário procurava se atrelar.

Outra norma sobre a escolha dos livros e compêndios para uso no Liceu registrada no art. 12 da Lei n. 156, de 15 de outubro de 1843, determinava que tal decisão “pertencer[ia] à congregação [e que] uma vez escolhidos, só poder[iam] ser mudados com o consentimento do Governo, [depois de] ouvido o Inspetor” (CASTRO, 2009). A primeira reflexão possível aqui liga-se às características subjacentes ao ensino propedêutico e humanista (CABRAL, 1982). Logo, a transformação do ensino secundário da província com a institucionalização do Liceu se constituiu em uma profunda mudança nas estruturas psíquicas ou nas formas de se pensar esse nível de instrução — terceiro eixo da História cultural (CHARTIER, 1989). Inicialmente ministrado em matérias isoladas e a cargo dos professores passou a centralizar-se nas disciplinas, nos programas e nos regulamentos de um único espaço escolar que ajudava na implantação de um modelo próprio de instrução pública secundária. Um modelo que conformava uma mudança de paradigma, já que a produção de obras escolares pelos professores e intelectuais da sociedade local foi uma característica fundamental para essa configuração social específica (VICENTE; LAHIRE; THIN, 2001). Portanto, no mercado de livros escolares da província, as principais áreas do conhecimento sobre as quais se desenvolvia a produção das obras relacionavam-se às disciplinas ministradas pelo Liceu, pensadas pelas autoridades locais segundo o projeto de instrução que se pretendia legitimar.

Lições de Geographia (1838/11ª ed.), do Abbade Gualtier e os Precis d’histoire universelle, vol. I de 1850 (1850/1ª ed.), de Tissot, apontam para critérios díspares em suas avaliações na área de humanidades. Enquanto o primeiro livro apoiava-se na figura de homem de Deus do Abbade Gualtier, exaltando a adequação e a correção moral; o segundo, apontava para os critérios técnicos, ancorados na imagem do autor ilustrado que o inspirava por seu prestígio. Além desses elementos, adaptações ou traduções também parecem constituir-se em práticas regularmente utilizadas na instrução maranhense: a primeira, aceita por ser uma tradução usada não apenas na província; a segunda, por ser uma adaptação utilizada no Liceu, não apenas no ensino da disciplina de História, mas também nas aulas de francês (ANÚNCIO..., 1848). Destarte, para além dos aspectos morais e religiosos contidos nas obras, concordando com Bittencourt (2008), podemos afirmar que programas curriculares e livros escolares se articulavam de diversas formas no processo de constituição de uma instrução/educação escolar que se delineava na mediação entre Estado e Igreja Católica.

Se o Compendio da gramática Philosophica da língua portuguesa (1877/6ª ed.), do padre Antonio da Costa Duarte, aparentemente pela posição do autor no quadro de professores liceísta, foi amplamente utilizada pela instrução pública local, tanto no Liceu quanto nas primeiras letras da Província segundo a Congregação; para além dos critérios técnicos, a sua adoção denota que a sua carreira poderia influenciar o uso da obra – por vezes de forma crucial, mas nem sempre – isso porque existe uma defasagem entre a data de sua primeira edição e a aprovação pela instituição. Na contramão, Postillas de grammatica Geral aplicada à língua potugueza pela Analyse dos classicos (1877/6ª ed.), de Sotero dos Reis, parece obedecer a outra lógica, visto que a constante atuação do autor em diferentes espaços de poder na sociedade local – imprensa, política e instrução pública –, além do destacado primor técnico de suas publicações e do conhecimento interno dos processos de avaliação da instancia habilitada (o primeiro diretor do Liceu) parece tê-lo auxiliado a escalar uma posição de destaque na sociedade ludovicense e facilitado na adoção de suas obras no ensino secundário.

Se a adoção, aquisição e/ou veto dos livros escolares no Liceu em função do processo de escolha para o ensino de línguas estrangeiras traduzidos e adaptados parecem depender das relações de interesse mútuo entre membros da Congregação e autoridades locais, além das relações de poder instauradas que também parecem influenciar nas decisões—uma vez que esses grupos não lidavam unicamente com as demandas locais sobre a instrução —; imposições externas, advindas de ideais hegemônicos numa correlação de forças, se impuseram nesse campo de disputa enquanto armaduras conceituais: o que ensinar, como ensinar e por que instrumentos fazê-lo se centrava numa constante disputa entre disciplinas, professores e autores de livros de classes, embora o ensino ministrado fosse alicerçado no estudo de línguas e humanidades.

Desse modo, não acreditamos que tal fato seja fruto de coincidências ou tenha sido uma decisão inconsciente das autoridades que pensavam, atuavam e decidiam sobre a instrução secundária e primária. Pelo contrário, a abordagem humanista e propedêutica do estabelecimento foi deliberadamente concebida e planejada pelas autoridades locais. No escopo do planejamento, estiveram latentes os modelos de escolas pelos quais se desejava equiparar o Liceu e os conteúdos que esses estabelecimentos escolares priorizavam. Assim, podemos afirmar que, os autores de livros escolares atuavam em um modelo específico de escola, orientado por ideais hegemônicos de escolarização, tanto no sentido de atender às expectativas da Congregação quanto para tecer relações de poder e de influência com as autoridades locais com o intuito da aprovação e indicação das obras, além da sua distribuição e consumo.

Conclusão

O Liceu Maranhense se destacou no período oitocentista por uma extensa produção de livros escolares para a instrução pública primária e secundária que atendia às demandas da província e até nacionais em diversas áreas. A produção/ divulgação dos livros de classe na imprensa local segundo a forma em que foram anunciados, a frequência dos registros, a estrutura escolhida nos avisos e o dispositivo adotado no jornal — elementos constitutivos do primeiro eixo da história cultural —, possibilitaram identificar as obras mais utilizadas pelo Liceu no período enquanto formação social específica, os autores liceístas em voga na época, além das principais áreas de conhecimento para as quais as obras foram direcionadas em consonância com os papéis pensados para este espaço escolar em função das armaduras conceituais que permeavam ditas produções.

Se as obras escolares de autores locais, como Sotéro dos Reis e Antonio da Costa Duarte, que foram membros do corpo docente em períodos distintos, fizeram parte do repertório liceísta por serem indicadas e adotadas para o ensino do português; as obras estrangeiras, principalmente de origem francesa como de Tissot e do Abbade Gualtier, foram adaptadas e utilizadas na área de humanidades como livros de classe e apontam para a influência dos ideais europeus de escolarização, modernidade e progresso na criação e institucionalização do estabelecimento. Nas ciências exatas, as obras de João Antonio Coqueiro supriram a demanda criada pela adoção do sistema métrico decimal por todo o Império brasileiro, o que pode indicar a constante vigilância dos autores em função dos conteúdos exigidos pelas bancas avaliativas segundo as mudanças nos programas de ensino através das reformas; produção que estava intimamente relacionada com as finalidades pensadas para o Liceu e foi consecutivamente moldada pelos próprios sujeitos que se relacionavam com a escola e com a instrução pública das mais variadas formas.

Por fim, as demandas que motivaram as produções e os usos de obras para essas áreas específicas não podem ser tratadas como mero acaso ou consequência natural das pressões na instrução pública na província. É preciso considerar a postura que os autores assumiam em vista aos conteúdos exigidos e às necessidades do ensino em constante transformação, para além da atenção dada às armaduras conceituais em voga na época, já que as relações de interdependências construídas, levando-se em consideração as formações sociais e culturais, foram essenciais para chegarmos a esse entendimento; relações de poder negociadas a partir da atuação dos autores nos espaços públicos de ensino, do seu reconhecimento na sociedade local versus o currículo de formação e/ou mesmo da atuação na imprensa local, que se constituem em indicativos que poderiam influenciar a congregação dos professores do Liceu nos processos de aprovação, indicação, adoção e veto.

Notas

1O Liceu Maranhense foi criado pela Lei Nº 77 de 27 de julho de 1838 assinada pelo presidente Vicente Thomas Pires de Figueiredo Camargo (CASTRO, 2009).

2Formava-se pela reunião mensal dos professores de todas as disciplinas do Liceu Maranhense, com frequência superior a dois terços do efetivo (CASTRO, 2009).

3O Modus parisienses foi resultado de extensa evolução via reformas e adaptações ao longo de séculos, caracterizando-se pela divisão dos estudantes por classes, cada uma com um mestre e um programa preciso, ordenado e progressivo (STORK, 2016).

4José Inácio Roquete nasceu em 1801, em Alcabideche, Cascais, Portugal e faleceu em Santarém, Portugal, no ano de 1870. (BLAKE, 1883).

5Nasce em 22 de abril de 1800 e falece em 10 de março de 1875 em São Luís. Filho de Baltasar José dos Reis e D. Maria Teresa Cordeiro, foi professor de Gramática Geral e diretor do Liceu Maranhense, em 1838, e do Asilo de Santa Tereza, além de Inspetor da Instrução Pública, em 1843.

6Figura nas notícias com as iniciais J. G. Eichhoff, mas, na folha de rosto da referida obra aparece como F. G. Eichhoff referindo-se a Frederic Gustave Eichhof (1879).

7Nasce 30 em de abril de 1837 em São Luís. Bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas pela Faculdade de Ciências de Paris e Doutor na mesma área (CASTELLANOS, 2017).

Referências

A GRAMÁTICA philosophica da língua portuguesa. Publicador Maranhense. São Luís, p. 3, 10 abr. 1853. [ Links ]

ANÚNCIO. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 12 fev. 1848 [ Links ]

AS POSTILLAS de grammatica Geral aplicada à língua potugueza pela Analyse dos classicos. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 1 fev.1863. [ Links ]

BARROS, José de Assunção. Teoria da história: A Escola dos Annales e a nova história. Vozes: Petrópolis, 2013. [ Links ]

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Livro didático e saber escolar: 1810-1910. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. [ Links ]

BLAKE, Augusto Vitorino Alves Sacramento. Diccionario bibliographico brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia Nacional. 1883. [ Links ]

BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. A leitura: uma prática cultural. In: CHARTIER, Roger. (org.). Práticas de leitura. São Paulo: Estação liberdade, 1996. [ Links ]

CABRAL, Maria do Socorro Coelho. As propostas educacionais maranhenses no Império (1834-1889). 1982. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1982. [ Links ]

CASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez.; CASTRO, César Augusto. A imprensa de educação e ensino no Maranhão e Pará (1844-1954): primeiras aproximações. History Of Education & Children's Literature, v. 2, p. 293-318, 2022. [ Links ]

CASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. Childhood of the artificer apprentices in Maranhão Empire (1841-1899). Paedagogica Historica, v. 6, p. 1-17, 2022a. [ Links ]

CASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. Livros de leituras nos manuais de civilidade como cultura material da escola maranhense para o ensino do ler e do vir-a-ser. Cadernos De História Da Educação, v. 21, p. 1-21, 2022b. [ Links ]

CASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. O livro escolar no Maranhão Império (1821-1889). São Luís: EDUFMA/Café e Lápis, 2017. [ Links ]

CASTRO, César Augusto (org.). Leis e Regulamentos da instrução pública no Maranhão Império: 1835-1889. São Luís: EDUFMA, 2009. [ Links ]

CASTRO, César Augusto; CASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. O lugar do livro e da leitura no Maranhão oitocentista: o gabinete português de leitura. Revista Digital de Biblioteconomia & Ciência da Informação, v. 13, n. 2, p. 243-258, 2015. DOI: 10.20396/rdbci.v13i2.2118 Acesso em: 7 maio 2023. [ Links ]

CASTRO, César Augusto; FURTADO, Luciana Natália Morais; CASTELLANOS, Samuel Luis Velázquez. E não merecerá a Athenas Brasileira um Bolo de Noiva? Um prédio para a Biblioteca Pública do Maranhão. Cadernos de História da Educação, v. 21, p. e124-21, 2022. [ Links ]

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria M. galhardo. Lisboa: Difel; 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1990. [ Links ]

CHARTIER, Roger. El mundo como representación: estúdios sobre história cultural. Barcelona: Gedisa editorial, 1989. [ Links ]

CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa. v. 30, n. 33, p. 549 – 566, 2004. [ Links ]

CORRÊA, Carlos Humberto Alves. Circuito do livro escolar: elementos para a compreensão de seu funcionamento no contexto educacional amazonense (1852 – 1910). 2006. 240 f. Tese (Doutorado em educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006. [ Links ]

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 18. ed. Petropólis, Vozes, 2012. [ Links ]

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1993. [ Links ]

ESCOLANO BENITO, Agustin. A escola como cultura: experiência, memória e arqueologia. Campinas: Alínea, 2017. [ Links ]

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Paedagógica histórica. International Journal of the history of education. 1995. p. 353-382. [ Links ]

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, 1996. [ Links ]

LITERATURA e sciencias. Publicador Maranhense, São Luís, p. 3, 21 mar. 1848. [ Links ]

LIVROS baratos. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 30 jun. 1866. [ Links ]

LIVROS baratos. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, jul. 1866. [ Links ]

LIVROS baratos. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 10 jul. 1866. [ Links ]

LIVROS baratos. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 13 jul. 1866. [ Links ]

LIVROS baratos. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 16 jul. 1866. [ Links ]

LIVROS baratos. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 17 jul. 1866. [ Links ]

LIVROS baratos. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 26 jul. 1866. [ Links ]

LIVROS baratos. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 13 nov. 1866. [ Links ]

MACIEL, Francisca Izabel Pereira; FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Cartilhas de alfabetização e nacionalismo. In: PERES, Eliane; TAMBARA, Elomar. (org.). Livros escolares e ensino da leitura e da escrita no Brasil (séculos XIX-XX). Pelotas: Seiva, 2003. [ Links ]

MARANHÃO. Oficio de José da Silva Maya para o Presidente da Província Pedro Dias Vieira, em 18 de maio de 1858. (Manuscrito). [ Links ]

METROLOGIA moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 21 jan.1863. [ Links ]

METROLOGIA moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 22 jan.1863. [ Links ]

METROLOGIA moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 26 jan.1863. [ Links ]

METROLOGIA moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 28 jan.1863. [ Links ]

METROLOGIA moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 30 jan.1863. [ Links ]

METROLOGIA moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 7 fev.1863. [ Links ]

METROLOGIA moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 12 fev.1863. [ Links ]

METROLOGIA moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 26 fev.1863. [ Links ]

METROLOGIA moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 27 fev.1863. [ Links ]

METROLOGIA moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 28 fev.1863. [ Links ]

METROLOGIA moderna ou exposição circunstanciada do systema métrico decimal. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 5 mar.1863. [ Links ]

NA LIVRARIA do Fructuozo tem a venda os seguintes livros. Publicador Maranhense, São Luís, p. 4, 17 de set. 1850. [ Links ]

NUNES, Clarice; CARVALHO, Marta Chagas de. Historiografia da educação e fontes. Caderno Anped, Rio de Janeiro, n. 5, 1993. [ Links ]

SERRA, Joaquim. Sessenta anos de jornalismo: a imprensa no Maranhão. 3. ed. São Paulo: Siciliano, 2001. [ Links ]

SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1983. [ Links ]

SOUZA, Mateus de Araújo. A cultura material escolar no Lyceu Maranhense (1838-1889). 2022. 205f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Educação/CCSO) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2022. [ Links ]

STORCK, João Batista. Do modus parisiensis ao ratio studiorum: os jesuítas e a educação humanista no início da idade moderna. História da Educação, n. 20 v. 48. 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2236-3459/57630. Acesso em: 8 mar. 2023. [ Links ]

VICENTE, Guy; LAHIRE Bernard; THIN, Daniel. Sobre a história e teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo horizonte, n. 33, jun./2001. [ Links ]

Recebido: 16 de Março de 2023; Aceito: 03 de Maio de 2023

Prof. Dr. Samuel Luis Velázquez Castellanos, Universidade Federal do Maranhão (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Maranhão e do Pará (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Orcid id: http://orcid.org/0000-0003-0849-348X, E-mail: samuel.velazquez@ufma.br

Prof. Dr. Cesar Augusto Castro, Universidade Federal do Maranhão (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Biblioteconomia, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Maranhão e do Pará (Brasil), Orcid id: http://orcid.org/0000-0001-7650-895X, E-mail: ccampin.ufma@gmail.com

Ms. Mateus de Araújo Souza, Bibliotecário na Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (Brasil), Orcid id: https://orcid.org/0000-0001-6429-0631, E-mail: matt.araujo.souza@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution NonCommercial, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem fins comerciais e que o trabalho original seja corretamente citado.