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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.67 Natal jan./mar 2023  Epub 05-Dez-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n67id32576 

Artigo

Condorcet e a profissionalização docente na origem da escola pública

Condorcet and teacher professionalization at the origin of the public school

Condorcet y la profesionalización docente en el origen de la escuela pública

Marcos Pereira Coelho1 
http://orcid.org/0000-0002-5563-4217

João Paulo Pereira Coelho1 
http://orcid.org/0000-0003-2289-6701

1Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (Brasil)


Resumo

Neste artigo, analisamos as proposições do filósofo Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquês de Condorcet (1743-1794), para a profissionalização dos professores no contexto da Revolução Francesa. A intenção foi compreender, historicamente, as asserções de Condorcet a respeito do recrutamento, seleção e organização do trabalho docente para o futuro sistema de ensino público francês. Para isso, foram examinados os critérios estipulados pelo autor para que os postulantes ao cargo pudessem concorrer às vagas, as qualidades almejadas dos futuros profissionais e as especificidades das tarefas atribuídas ao Estado e às sociedades científicas na organização dos trabalhos pedagógicos e administrativos. Conclui-se que Condorcet articulou critérios técnicos e políticos para a escolha e profissionalização docente em sociedades democráticas. O Marquês situou a liberdade de ensino, a relevância da ciência, o papel do Estado e as condições de trabalho dos professores como temas centrais para a escola pública, que permanecem relevantes atualmente.

Palavras-chave: Profissionalização docente; Revolução Francesa; Condorcet; Educação pública

Abstract

In this article, we analyze the propositions of the philosopher Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marquis de Condorcet (1743-1794), for the professionalization of teachers in the context of the French Revolution. The intention was to historically understand Condorcet's assertions regarding the recruitment, selection, and organization of teaching work for the future French public education system. To this end, the criteria stipulated by the author were examined so that applicants for the position could compete for vacancies, the qualities desired of future professionals and the specificities of the tasks assigned to the State and scientific societies in the organization of pedagogical and administrative work. It is concluded that Condorcet articulated technical and political criteria for the choice and professionalization of teachers in democratic societies. The Marquis placed freedom of teaching, the relevance of science, the role of the State and the working conditions of teachers as central themes for public schools that remain relevant today.

Keywords: Teaching professionalization; French Revolution; Condorcet; Public education

Resumen

En este artículo analizamos las propuestas del filósofo Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, Marqués de Condorcet (1743-1794), para la profesionalización de los docentes en el contexto de la Revolución Francesa. La intención fue comprender, históricamente, las afirmaciones de Condorcet sobre el reclutamiento, la selección y la organización del trabajo docente para el futuro sistema de educación pública francés. Para ello, se examinaron los criterios estipulados por el autor para que los aspirantes al cargo pudieran competir por las vacantes, las cualidades deseadas de los futuros profesionales y las especificidades de las tareas asignadas al Estado y a las sociedades científicas en la organización del trabajo pedagógico y administrativo. Se concluye que Condorcet articuló criterios técnicos y políticos para la elección y profesionalización de los docentes en sociedades democráticas. El Marqués situó la libertad de enseñanza, la relevancia de la ciencia, el papel del Estado y las condiciones de trabajo de los docentes como temas centrales para la escuela pública, que siguen vigentes en la actualidad.

Palabras clave: Profesionalización docente; Revolución Francesa; Condorcet; Educación pública

Introdução

O filósofo, matemático e político francês Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, o Marquês de Condorcet (1743-1794), defendeu a organização de um sistema de educação pública em seu país no contexto da Revolução Francesa (1789). A sua contribuição se deu por meio da produção de obras filosóficas, educacionais e na atuação parlamentar como deputado constituinte na Assembleia Nacional. Em seus escritos, tratou das várias dimensões que integrariam as iniciativas em favor do ordenamento de um sistema universal, laico e gratuito de educação. Suas reflexões abarcaram desde as ponderações filosóficas sobre a importância política de se educar a todos na nascente sociedade capitalista até a organização administrativa e pedagógica das instituições escolares. Refletiu a respeito das finalidades da educação escolar na sociedade liberal democrática que se constituía na França, do papel do Estado nesse processo e acerca dos arranjos administrativos, pedagógicos e conteúdos que deveriam compor a nova educação.

Sem desconsiderar as questões filosóficas, políticas e educacionais que norteiam os escritos de Condorcet, o recorte adotado neste artigo tem por objetivo analisar, historicamente, as proposições do filósofo para a profissionalização docente no contexto da Revolução de 1789. Suas argumentações foram uma resposta à necessidade de se organizar um sistema público de ensino em acordo com os princípios liberais democráticos em detrimento da influência das antigas instituições ainda presentes na França. Apesar da expulsão dos jesuítas na década de 1760, a influência da religião nos assuntos educacionais ainda se fazia presente e, além disso, havia uma multiplicidade de corporações de professores sob a influência política do antigo regime. Tratava-se de um momento de transformação em que emergiu a necessidade de criação de novas instituições, dentre elas, a escola pública universal, que estivessem em acordo com o capitalismo liberal-democrático.

No interior desse processo, Condorcet considerou o professor e a sua profissionalização como elementos fundamentais para o sucesso do empreendimento herdado da filosofia das luzes, que deveria ser concretizado pelo Estado: legar aos indivíduos a razão necessária para o constante aperfeiçoamento individual e das novas instituições. Por conseguinte, Condorcet dedicou particular atenção às qualidades e aos pré-requisitos para a admissão dos futuros profissionais, à forma de seleção, à remuneração e ao modelo de vínculo empregatício. Articulou suas propostas com a elaboração de críticas referentes às práticas docentes pré-revolucionárias, influenciadas ou vinculadas à Igreja, e atribuiu papéis específicos ao Estado e às academias científicas no processo de seleção, manutenção e fiscalização das possíveis interferências, externas e internas, que pudessem corromper a atuação dos professores.

Em suas dimensões filosóficas, as reflexões em defesa da difusão das luzes aparecem de maneira difusa nos escritos de Condorcet. Já as suas análises conceituais e propositivas a respeito da escola pública e da profissionalização docente emergem, particularmente, na obra “Cinco memórias sobre a Instrução pública” que servirá de fonte para as análises pretendidas. Desse modo, trataremos inicialmente dos problemas relativos à educação formal que emergiram na França após a expulsão dos jesuítas, na década de 1760, e que se acirraram com a crise do antigo regime e a deflagração da Revolução Francesa. Em seguida, trataremos dos critérios e das qualidades almejadas dos futuros profissionais e que deveriam ser observados pelo poder público e pelas sociedades científicas no processo de profissionalização docente. Por fim, analisaremos as considerações de Condorcet a respeito das especificidades do magistério e as suas implicações na definição das tarefas a serem desempenhadas pelo Estado e pelas sociedades científicas no processo de recrutamento, seleção, regime de trabalho, remuneração e fiscalização do professorado.

Das escolas religiosas do antigo regime à defesa da educação pública laica, universal e gratuita: a questão docente

A organização da educação na Europa, especialmente na França, entre os séculos XVI e o início da segunda metade do século XVIII era composta pela oferta individualizada do ensino das primeiras letras por professores laicos e pelas escolas religiosas voltadas aos estudos posteriores. Nesse período, o ensino equivalente ao “[...] ensino secundário [...] vai ser assegurado fundamentalmente pelas congregações religiosas, com especial destaque para os jesuítas” (Nóvoa, 1989, p. 436). A educação institucional, nesse período, era fundamentalmente um empreendimento religioso e os professores atuavam como agentes fundamentais para o processo de formação e de difusão da fé católica. Tratava-se de um contexto em que as ações iniciadas pela Reforma Católica, em 1545, fomentavam a criação de novas ordens religiosas e, em especial, da Companhia de Jesus, que se destacava pelo trabalho missionário e educacional.

Já o ensino das primeiras letras, quase em sua totalidade, ficava sob a responsabilidade de professores laicos que, por meio de “[...] acordos com as famílias ou com os notáveis locais, ou através de contratos com os municípios, exercem o ensino quase sempre como atividade secundária ou acessória” (Nóvoa, 1989, p. 436). Em seu conjunto, observava-se uma diversidade de práticas e situações educativas que atingiam uma pequena parcela da população. A situação se tornaria, no final do século XVIII, objeto de críticas frente às novas necessidades que se impuseram em face das demandas econômicas, políticas e sociais que se avolumaram no contexto de crise do antigo regime e concorreram para a deflagração revolucionária em 1789.

O quadro de predominância religiosa na educação se manteve estável até a expulsão dos jesuítas nos anos de 1760. Com a supressão da Companhia de Jesus na França, se tornara urgente repensar a formação institucionalizada e a seleção dos professores. Com o intuito de equacionar o problema do ensino “secundário”, o Rei Luís XV propôs, no ano de 1766, a criação de um processo seletivo denominado Concurso de Agregação com o intuito de reestruturar o corpo docente com professores leais à coroa. Ocorre que, três décadas depois, os revolucionários identificaram o sistema educativo existente como forças conservadoras leais ao antigo regime e puseram fim à organização multissecular dos colégios parisienses. Nesse contexto, os professores foram chamados a corroborarem a consolidação dos ideais liberais em uma perspectiva que entendia os indivíduos enquanto agentes políticos em uma sociedade livre voltada ao progresso.

Tratava-se de uma crise que demandava uma completa reestruturação na formação humana por meio de ações republicanas. Em síntese, foi instituído no decorrer do processo revolucionário que os professores, anteriormente ligados ao antigo regime, prestassem juramento cívico à Revolução e à República nascente. A maioria o fez, de modo que apenas “[...] um terço do pessoal ativo recusa a prestação do juramento ao novo regime político e perde seu cargo no início de 1791” (Noguès, 2011, p. 170).

A necessidade de se educar a todos posta pela Revolução não seria resolvida apenas pelo acesso formal à educação. Ademais, o ensino das primeiras letras encontrava-se disperso, limitado e contrariava as ambições revolucionárias de difusão do conhecimento como instrumento de perfectibilidade humana e, consequentemente, de aprimoramento da República. Era necessário, criar novas instituições fundadas em princípios adequados à nova sociedade que buscava se consolidar.

Não por acaso, a França do século XVIII foi responsável por legar instituições, temas e boa parte do léxico liberal democrático para o mundo ocidental. As ações empreendidas na Revolução Francesa foram modelares no processo de organização “técnica e científica para a maioria dos países” (Hobsbawm, 2012, p. 8). Nesse contexto, os esforços dos filósofos iluministas franceses para a difusão do conhecimento resultaram na produção de enciclopédias, organização de sociedades científicas e, sobretudo, na defesa incondicional do ordenamento de um sistema público de ensino com o intuito de educar a todos. Foi imbuído desse espírito que Condorcet sistematizou as suas propostas para a organização da escola pública francesa e estabeleceu como um dos pontos cruciais para o sucesso do empreendimento a profissionalização docente.

O pensador se opôs a quaisquer influências da religião e destacou a necessidade de que o ensino público se fundamentasse nos progressos da ciência e os docentes fossem orientados exclusivamente pela razão individual (Barbosa; Fontes; Souza 2020). Tratava-se, na perspectiva do autor, de definir o perfil dos professores a serem selecionados de acordo com as novas concepções de homem e de sociedade, em detrimento das práticas educativas pré-revolucionárias. A tradicional vinculação da educação institucional aos padres jesuítas e a multiplicidade de corporações de professores das primeiras letras, que ainda persistiam na França, tornavam a tarefa de Condorcet complexa. Isso porque, apesar de dois terços dos antigos professores jurarem fidelidade à Revolução, era fundamental a seleção de outros milhares e, em geral, esses também tiveram a sua formação realizada pelos padres jesuítas.

Não por acaso, as atividades vinculadas diretamente à formação foram as que apresentaram mais resistência diante do processo de racionalização deflagrado na modernidade e potencializado na Revolução de 1789 (Santos, 2013). A necessidade de se iniciar algo novo, em um contexto de transformação, em que o antigo ainda se fazia presente e o papel dos indivíduos era ressignificado, tornava o processo formativo peculiar e complexo. Juntava-se a isso a peculiaridade dos processos formativos que, por definição, ocorriam em um transcurso compartilhado. Em vista dessas dificuldades, Condorcet construiu suas reflexões e propostas a respeito da profissionalização docente na nascente República francesa. Ele o fez a partir de duas perspectivas: por um lado, teceu críticas ao exercício profissional dos professores no antigo regime e, por outro, propôs as novas bases para a seleção, a regulamentação e o exercício da docência, desde a seleção e contratação até a fiscalização e remuneração dos mestres. A atenção de Condorcet ao papel a ser desempenhado pelos professores na organização do futuro sistema público de ensino foi o prenúncio de que a

[...] grande operação histórica da escolarização não teria sido possível sem a conjugação de diversos fatores de ordem econômica e social; mas é preciso não esquecer que os grandes agentes deste empreendimento foram os docentes (Nóvoa, 1991, p. 121).

As recomendações anunciadas por Condorcet (2008) a respeito do futuro professorado corroboravam as expectativas a respeito do papel desses profissionais na nascente sociedade. Tratava-se de um momento histórico em que a civilização, pautada na palavra e nos sentidos, característica do persistente período medieval, tornara-se em certa medida obsoleta no antigo regime. As transformações em curso exigiam conhecimentos voltados a uma nova consciência política, fundada na razão individual e em acordo com a consolidação da economia capitalista manufatureira, caracterizada pela produção em larga escala, pelo trabalho livre e pela expansão do comércio e das cidades. Nessas circunstâncias, o filósofo considerou a escola pública, patrocinada pelo Estado e em conformidade com os princípios fundamentais da democracia e da ciência, a instituição por excelência capaz de promover a perfectibilidade humana e o progresso do capitalismo, entendido por ele como a forma final e de organização social (Boto; Souza, 2021).

Em seu conjunto, esse quadro de racionalização econômica e de redefinição política não podia prescindir de instituições especializadas em transmissão de conhecimentos, pois tratava-se de um ambiente de rápidas mudanças tecnológicas e de difusão de textos escritos (Petitat, 1994). Ademais, tais mudanças também produziam um novo arcabouço jurídico/ político, de modo que, em seu conjunto, as renovações observadas na França apontavam para a necessidade de “[...] fazer a nação para essas leis; e isso, através da educação pública” (Boto, 1996, p. 101). Para o filósofo em questão, o novo sistema público de ensino, ao deixar-se guiar pela ciência, se protegeria das opiniões e dogmas contrários à verdade.

Tais opiniões, originavam-se no meio social, nas instituições religiosas ou no interior do próprio poder executivo do Estado. No caso do poder público, os erros poderiam contaminar toda a organização do trabalho pedagógico, desde a seleção e fiscalização dos professores até a definição dos conteúdos e das qualidades almejadas dos futuros profissionais. A desconfiança em relação ao poder executivo se dava em um momento conturbado em que, apesar da proeminência da Assembleia Nacional a partir de 1791, a figura do rei ainda existia. Condorcet foi um filósofo e político profissional que envolveu-se com as questões do seu tempo e buscou respostas aos novos problemas que apresentavam-se. Ele o fez sem tirar os olhos do passado que estava demasiadamente próximo e, ao mesmo tempo, vislumbrou o futuro ao qual esperava que a sociedade poderia chegar. Desse modo, ao pensar o recrutamento e a seleção dos futuros professores, teve em perspectiva a razão individual, a ciência e as qualidades almejadas para o trabalho docente, além de definir o papel do poder público e das sociedades científicas no processo, além de criticar as corporações docentes estruturadas no antigo regime. É o que trataremos no item seguinte.

Condorcet e a oposição às corporações: a consciência individual como critério para seleção de professores

A supressão das velhas instituições que ainda persistiam na França revolucionária foi efetivada a partir de duas frentes: pela profusão de críticas fundadas no ideal liberal iluminista e pela contundente reordenação jurídica do país. E, nesse espírito, uma das tarefas que a Revolução Francesa se impôs foi a de extinguir legalmente as corporações de ofícios persistentes no país, que foram predominantes no período medieval. Condorcet não estava alheio a esse processo e o tema emergiu ao elaborar suas propostas para a organização de um sistema de educação, principalmente, quando abordou a profissionalização docente e o papel dos professores na República. A preocupação era que ideais políticos arbitrários, eventualmente presentes em agrupamentos de professores, pudessem comprometer a organização e a incumbência do sistema público de ensino.

Em geral, o filósofo considerou que as conjecturas que poderiam prejudicar a organização da educação pública teriam origens exógenas, mas, a elas, poderiam se juntar fatores internos potencialmente corruptores. Entre os elementos que poderiam ser prejudiciais, o autor destacou as corporações e/ou agrupamento de mestres com objetivos políticos e recomendou que: “O poder público deve pois, sobretudo, evitar confiar a instrução à corporação de professores que se recrutam a si mesmos.” (Condorcet, 2008, p. 120). As críticas às corporações docentes na França parecem comuns, antecederam o século XVIII e não se limitaram ao filósofo em questão: “De Richelieu - primeiro ministro de Louis XIII de 1624 a 1642 - a Condorcet [...] cada um está de acordo sobre a pujança do corporativismo dos professores em Paris - em geral para os combater” (Noguès, 2011, p. 159).

Às convicções filosóficas da razão individual, que justificavam a contrariedade quanto à seleção de professores membros de corporações, se juntavam os motivos de ordens legais, políticas e econômicas que orientavam a reorganização do trabalho na França. A Lei Le Chapelier determinara a aniquilação de quaisquer tipos de corporações de cidadãos “[...] do mesmo estado ou profissão, sendo uma das bases fundamentais da constituição francesa [...]” (França, 1791, p. 1). Atento a essas questões, o comprometimento de Condorcet em defesa da educação pública e da profissionalização dos seus principais agentes – os professores - o motivou a pensar o problema para além das questões didático-pedagógicas presentes nas salas de aulas. Ademais, essas inquietações demonstravam a existência de professores com algum nível de organização antes da criação dos sistemas públicos de educação, que eram motivados por objetivos políticos e educacionais.

De fato, até o final da primeira metade do século XX, a perspectiva de que a gênese da profissionalização docente coincidia com a emergência dos sistemas públicos de ensino foi predominante na historiografia educacional. No entanto, novos estudos demonstraram que, no decorrer do século XVIII, era possível encontrar uma série de agrupamentos de professores que faziam do ensino a sua principal ocupação, frequentemente em tempo integral, e agiam na defesa dos seus interesses corporativos (Nóvoa, 1989). Diante desse quadro, Condorcet (2008) argumentou em favor da proibição da contratação de professores pertencentes a agrupamentos, para ele, o espírito corporativo provocaria interferências políticas que extrapolariam a missão única de ensinar o que fosse consolidado pela ciência.

Além do mais, a consciência almejada pelos iluministas para os partícipes da sociedade deveria ser individual, autônoma e guiada exclusivamente pela razão, de modo que a futura educação pública não deveria prescindir desses princípios. Em vista disso, Condorcet (2008) argumentou que os mestres deveriam pensar e trabalhar individualmente para que pudessem cumprir aquela que seria a função primeira dos professores: a de, enquanto homens de razão, servir aos alunos e lhes transformar em cidadãos autônomos e capazes de agir corretamente na vida pública. Tais objetivos ficariam comprometidos se houvesse associações formadas por agrupamento de professores, fossem elas oriundas de um único estabelecimento, fossem de um território, de modo que os professores:

Não devem governar nada em comum [...] cada um deve existir à parte, e este é o único meio de manter entre si uma emulação que não degenere em ambição nem em intriga, [...] de impedir que a instrução, que é instituída para os alunos, seja regulada segundo o que convém aos interesses dos mestres (Condorcet, 2008, p. 120-121).

A defesa do indivíduo aparece de forma contundente na obra do autor e traduz um exercício político de salvaguardar a autonomia e a liberdade de consciência. Para ele, essas características a serem preservadas e desenvolvidas eram tidas como naturais e, eventualmente, estavam ou poderiam ser aprisionadas pela tirania (Coelho, 2006). Destarte, as ideias oriundas de agrupamentos com fins políticos e pedagógicos também poderiam ser antinaturais e, portanto, corruptoras da perfectibilidade humana e do progresso da sociedade. As críticas elaboradas por Condorcet não se limitaram à presença das corporações de professores ou às instituições religiosas. Seu juízo a respeito do tema tinha em vista a liberdade individual para exercício da razão. Nesse sentido, o Marquês estendeu a sua crítica a todos os agrupamentos que pudessem ter no horizonte uma possível difusão de ideais políticos contrários às liberdades individuais. Em suma, considerou que as corporações de qualquer ordem têm sempre por objetivo impor aos indivíduos um jugo cuja finalidade seria aumentar o poder e a riqueza de tais agrupamentos, portanto:

[...] sejam essas corporações ordens de monges, congregações de irmãos, universidades, simples confrarias, o perigo é o mesmo. A instrução que darão terá sempre por finalidade, não o progresso das luzes, mas o aumento de seu próprio poder (Condorcet, 2008, p. 48).

Para o autor, tais corporações e/ou agrupamentos elaboravam ou perpetuavam opiniões errôneas, já superadas pelos homens esclarecidos, e objetivavam a manutenção e a ampliação dos seus próprios poderes políticos (Condorcet, 2008). Desse modo, a não participação em quaisquer tipo de organizações políticas deveria ser o primeiro critério a ser estabelecido para que os candidatos pudessem concorrer aos postos de professores do futuro sistema público de ensino. Definida essa questão, o filósofo fez recomendações a respeito da condução do processo seletivo e definiu as responsabilidades para os agentes envolvidos no seu transcurso: o Estado, a sociedade e as academias científicas.

Condorcet e o processo de seleção dos professores: o papel das academias científicas, do Poder Executivo e da Assembleia Nacional

O filósofo articulou as suas propostas para a organização e a execução do processo seletivo com as atribuições a serem desempenhadas pelas academias de ciências e pelos Poderes Executivo e Legislativo. É oportuno sublinhar que, além da defesa entusiasmada da ciência e da propagação das luzes em suas obras filosóficas, Condorcet foi um parlamentar de destaque na Assembleia Constituinte que elaborara a Carta Magna de 1791 e membro da Academia de Ciências. Essas duas posições parecem tê-lo motivado a defender a limitação do Poder Executivo no processo de seleção de professores e a eleger o parlamento como o representante do poder público responsável por se relacionar com o vindouro sistema público de ensino. Além disso, sua trajetória como filósofo iluminista e membro da Academia de Ciência contribuiu para que conferisse às sociedades científicas as incumbências mais relevantes no processo de seleção de professores e posterior fiscalização do trabalho docente.

Desse modo, “Condorcet admite duas instâncias reguladoras da instrução, a Assembleia Nacional, como expressão legítima da razão comum e a Academia Nacional das Ciências” (Silva, 2004, p. 21). À primeira atribuiu o controle jurídico e à segunda, o epistemológico, de maneira que a Academia de Ciência organizaria a seleção e, posteriormente, exerceria a tarefa de dialogar, fiscalizar e julgar os eventuais problemas que aparecessem no exercício profissional dos docentes. Ao Poder Executivo, caberia apenas o financiamento do futuro sistema.

Ademais, é relevante sublinhar que, no ano de 1792, momento em que escreveu as “Cinco Memórias Sobre a Instrução Pública”, a monarquia ainda existia, apesar de seu poder ser limitado pela Assembleia. Esse fator, aliado a outras questões já mencionadas, nos ajuda a compreender a sua defesa incondicional de uma instrução organizada sem a participação do Poder Executivo para além do financiamento. O temor era de que a monarquia instrumentalizasse a rede de educação pública que se pretendia construir e atuasse em desacordo com os princípios revolucionários (Boto, 1996). Diante desse cenário, Condorcet foi claro quanto à primazia das sociedades científicas na operacionalidade do sistema de ensino, mas não descartou completamente a ingerência do poder governamental. Para ele, a Assembleia deveria ser a representante do poder público para tratar das questões relativas à educação, ainda que não tenha definido precisamente o papel a ser desempenhado pelo Poder Legislativo. Condorcet considerou que o poder parlamentar, como “representante do povo”, é o menos passível de corrupção e é o que mais se submete à influência das opiniões gerais e a dos homens ilustrados,

[…] sobre todo, porque siendo aquel de quien emanan esencialmente todos los cambios, es por eso el menos enemigo del progreso de las luces, el menos opuesto a las mejoras que este progreso debe traer (Condorcet, 2001, p. 282).

Já a forma de colaboração das sociedades científicas na condução do futuro sistema público de ensino foi melhor definida pelo filósofo. Desde 1666, a França possuía a Académie des Science que fora fundada por Luís XIV a partir da sugestão do ministro da Economia Jean Baptiste Colbert (1619-1683). Em 1769, Condorcet se integrou à Academia como matemático, após a publicação, em 1765, do seu trabalho intitulado “Essai sur le calcul integral” que chamou a atenção dos membros da congregação. O autor herdou dessa experiência a convicção de que era necessário criar outras sociedades científicas, mais próximas da população e capazes de colaborar para o progresso das luzes. Isso era essencial, para a organização de um “[...] sistema bem combinado de instrução, que exista uma sociedade de sábios em cada primeira divisão de um grande estado” (Condorcet, 2008, p.128). Além disso, ao se referir às sociedades já existentes e propor a criação de novas, destacou a importância da autonomia dessas sociedades e argumentou que elas, até então, não precisavam do “[...] poder público para se formar. O poder público as reconheceu, não as criou” (Condorcet, 2008, p.137). Essa visão parece contraditória, quando consideramos que a iniciativa para a criação da Academia de Ciências partira de um ministro do rei há mais de um século.

Tratava-se de um outro momento em que as contradições entre as instituições do antigo regime e as possibilidades revolucionárias tornavam-se irreconciliáveis. Nesse sentido, era necessário destacar a autonomia das sociedades científicas frente à monarquia decadente. Mas a notabilidade atribuída por Condorcet às sociedades científicas não o eximiu de tecer críticas e destacar a possibilidade de eventuais descaminhos, ainda que temporários, em suas composições. Lembrou que muitas vezes as academias valeram-se de artifícios para excluir “homens de mérito superior, os quais, pela independência de seu caráter e de suas opiniões haviam ferido a vaidade e a arrogância desses autores [...] e desses cientistas privilegiados” (Condorcet, 2008, p. 130). No entanto, argumentou que os favores que tornaram algumas escolhas arbitrárias não puderam persistir mais do que uma ou duas eleições, até que um grande talento fosse reconhecido. As exclusões nunca foram duráveis, de modo que “[...] a amizade ou o ódio puderam, algumas vezes, retardar uma admissão, mas não a impedir” (Condorcet, 2008, p. 130). Para ele, tais agremiações possuem os predicados para definir o perfil, as qualidades almejadas dos futuros mestres e fiscalizar a instrução pública.

A sistematização do processo seletivo presente nas propostas de Condorcet apresentam características peculiares quando cotejadas com o modo de seleção dos professores presente no antigo regime, logo após a expulsão dos jesuítas. O filósofo defendeu que a escolha se desse por meio da elaboração de uma lista prévia de candidatos realizada pelas sociedades científicas, seguida das escolhas entre aqueles listados por inspetores, conselhos ou eleição direta da população. Esse processo se daria em detrimento dos concursos públicos e variaria de acordo com o grau de instrução do professor. Isso garantiria a primazia das sociedades científicas sobre a escolha dos professores e, desse modo, a responsabilidade da seleção não seria entregue aos setores administrativos do Estado que, por suas características, não poderia ser feita exclusivamente por cidadãos votantes em geral (Condorcet, 2008).

Para ele, a organização de um concurso poderia não alcançar todas as variações positivas que, qualitativamente, formam o homem ideal para o trabalho pedagógico. Justificou que, na medida em que os homens são constituídos de várias qualidades, as virtudes que dão legitimidade ao candidato seriam mais bem percebidas se submetidas a um conjunto de homens capacitados para tal julgamento (Condorcet, 2008). Desse modo, argumentou que os cargos para os três graus de instrução deveriam ser dados a homens que a sociedade científica de cada região considerasse “[...]dignos de ocupá-los e colocados por ela numa lista feita separadamente para cada um dos graus [...] (Condorcet, 2008, p. 39). No caso dos professores a serem escolhidos para os cargos do primeiro grau, a escolha entre os indicados da lista se daria por meio de votação dos chefes de família de cada região. Para os do segundo e terceiro graus, a escolha entre os listados se daria pelos inspetores de estudo do distrito e do departamento, respectivamente. Ao tomarem suas decisões tais indivíduos as fariam sob o interesse de “[...] adquirir honra por suas escolhas, cuja adequação é de responsabilidade da própria natureza de suas funções” (Condorcet, 2008, p. 140). A escolha dos inspetores de estudos de cada distrito se daria entre os membros da sociedade científica local. Já os inspetores de departamento poderiam ser escolhidos tanto entre os membros das sociedades locais como entre os da sociedade da capital.

A organização das listas prévias, que seriam submetidas à votação dos chefes de família ou à escolha dos inspetores, deveria se pautar por critérios objetivos. Para o exercício da função, Condorcet considerou que seria necessário conjuntar duas questões fundamentais: a capacidade e a conveniência do candidato para o cargo. E, entre os que reunissem tais características, o melhor deveria ser escolhido ou eleito, prevalecendo a capacidade como o princípio incondicional. Sobre essa forma de escolha dos mestres, o filósofo francês escreveu:

Em geral para preencher um posto, deve-se procurar reunir três condições: primeira, que aquele que é eleito tenha capacidade suficiente; segunda, que ele convenha ao posto por características locais e regionais; terceira, que seja o melhor daqueles que reúnem a capacidade e a conveniência (Condorcet, 2008, p. 125).

Em termos práticos, argumentou que se um concurso fosse realizado privadamente por juízes esclarecidos, poder-se-ia comprometer a idoneidade do processo por meio de desconfianças em relação aos avaliadores. Por outro lado, se os concursos fossem públicos, os espectadores incapazes de julgar apropriadamente os candidatos favoreceriam aqueles que fossem mais ousados ou se expressassem com maior facilidade. Como consequência, os professores mais capacitados poderiam perder de antemão a fé pública para o trabalho, de modo que se substituiria o critério da razão pela verborragia. Em vista disso, Condorcet justificou que a seleção dos futuros docentes por meio de uma eleição prévia realizada pelas sociedades científicas e posteriormente submetida aos inspetores, conselhos e à população era preferível a um concurso, uma vez que

[...] nada pode garantir que as formas do concurso assegurem uma boa escolha, sobretudo quando não se trata de decidir do grau maior ou menor de uma só qualidade, mas de um conjunto de qualidades diversas e até mesmo independentes (Condorcet, 2008, p. 147).

Os postulantes aos cargos de professores deveriam ser avaliados a partir de diversas qualidades independentes. Além dos conhecimentos objetivos, a admissão englobava aspectos subjetivos, morais e próprios da prática pedagógica. Para ele, entre as virtudes que deveriam compor o rol dos pré-requisitos para o exercício da função, estavam atributos comportamentais e da personalidade, considerados imprescindíveis para lidar com indivíduos em uma sociedade liberal democrática. Além do mais, defendeu uma divisão entre o trabalho do professor, do investigador científico e as exigências para cada uma dessas funções (Condorcet, 2008).

Dos atributos dos futuros mestres à defesa das diferenças entre o trabalho docente e a investigação científica

As transformações em curso na França do final do século XVIII, fundadas no pensamento liberal iluminista do período revolucionário, apontavam para a reorganização da sociedade pautada no indivíduo e na liberdade. Na defesa da escola pública, laica e universal, o filósofo destacou a capacidade dos professores em trabalhar com a diversidade de espíritos que compunham a sociedade e, por conseguinte, com o ambiente escolar, como o predicado fundamental a ser verificado nos pretendentes ao cargo. Além disso, defendeu que estes fossem habituados a uma vida regrada e que seus costumes fossem orientados pela simplicidade, dignidade e firmeza de caráter. Em suma, o trabalho do professor exigiria “[...] espírito de exatidão e de fineza, flexibilidade e método” (Condorcet, 2008, p. 120).

No momento em que a atividade educacional escapava do controle da Igreja para iniciar um processo de centralização via Estado, o que observamos nas propostas de Condorcet é uma redescoberta da natureza política da educação para formar os novos cidadãos. Pode-se afirmar que, apesar dessa ruptura, a educação preservara a aura que a tradição lhe reservara, “[...] mantendo a imagem de um ofício que implicava forçosamente uma sublime vocação, uma dedicação total e sem limites” (Santos, 2013, p. 15). Isso significou pensar as qualidades dos futuros mestres vinculadas a uma nova percepção dos procedimentos pedagógicos e que, em última instância, levava em conta as características dos alunos reunidos em sala e as habilidades dos professores em lidar com eles na nova sociedade.

No exercício profissional, o conjunto das qualidades mencionadas possibilitariam que o professor pudesse “[...] resolver e prever de antemão as dificuldades que podem surgir nos espíritos muito dessemelhantes de seus discípulos” (Condorcet, 2008, p. 120). Desse modo, ao definir certos pré-requisitos para o cargo, o pensador o fez em vista das diferenças que seriam encontradas nas escolas. Tratava-se da defesa de uma pedagogia em que o sucesso dependeria da identificação dos elementos que potencializavam a aprendizagem. A preocupação de Condorcet não era solitária, ao contrário, compunha um panorama do pensamento pedagógico que, a partir do século XVIII, intensificou a preocupação com a atitude educativa, de modo que

Das relações mestre e discípulo às determinações políticas do ato pedagógico, tudo isso seria considerado decorrente de um fator preliminar, concernente à identificação dos mecanismos propulsores do aprendizado humano (Boto, 1996, p. 21-22).

Destarte, as preocupações com as questões pedagógicas presentes no pensamento de Condorcet se evidenciavam já no processo de seleção dos professores, mas não se limitavam a esse procedimento. A garantia de uma seleção adequada aos seus ideais, por si, não seria suficiente para o bom andamento da educação pública, seria necessário definir claramente as funções a serem desempenhadas pelos docentes. Para o autor, há uma diferença entre o trabalho docente, dedicado à difusão dos conhecimentos científicos já consolidados, e as pesquisas que objetivariam contribuir para o avanço da ciência. Em sua perspectiva, tais tarefas requeriam talentos específicos, de modo que se exigia da docência, sobretudo, clareza e método de exposição, ao passo que se demandava da produção científica, sobretudo, força e sagacidade:

Um bom professor deve ter percorrido de modo mais ou menos igual os diferentes ramos da ciência que quer ensinar. O cientista pode ter grandes sucessos, desde que tenha aprofundado um só desses ramos. Um é obrigado a fazer um trabalho longo e contínuo, mas fácil; outro é obrigado a despender longos esforços, mas que permitem longos intervalos de repouso (Condorcet, 2008, p. 139).

Ao destacar a força e a sagacidade como predicados para o fazer científico, o autor o faz qualificando os esforços necessários a cada uma das tarefas que compõem a produção e a difusão dos conhecimentos. Para ele, o trabalho de produzir ciência exigiria longos esforços e necessitaria de intervalos extensos, ao passo que o trabalho docente seria contínuo, mas de fácil execução. Além disso, os hábitos cultivados por essas diferentes categorias ocupacionais seriam diferentes. No caso dos professores, a missão seria o de arrazoar o que está ao redor, ao passo que aos homens da ciência caberia o hábito de avançar. Para o autor, a produção científica impactaria positivamente a educação, mas seria oportuno não confundir as duas perspectivas, pois isso significaria enfraquecer o espírito investigativo e as glórias que deveriam animar as sociedades científicas, de modo que:

A mediocridade hábil se aproveitaria dessa opinião para usurpar os homens de gênio e essas sociedades, perdendo seus benefícios, adquiririam os vícios de corporações de dedicadas à instrução. Entretanto, é preciso que elas tenham influência sobre o ensino por meio das luzes, seus trabalhos, pela confiança merecida dos seus julgamentos (Condorcet, 2008, p. 139).

A produção de saberes e técnicas voltadas à educação foram consequências do interesse pela infância e da preocupação com os processos que envolviam a intencionalidade educativa que se avolumaram a partir do início da modernidade (Chapoulé, 1974). A pedagogia estabeleceu uma relação de ambiguidade entre os professores e o conhecimento, de modo que “[...] este corpo de saberes e de técnicas foi quase sempre produzido no exterior do mundo dos professores por teóricos e especialistas vários” (Nóvoa, 1989, p. 16). As observações de Condorcet a respeito das funções do cientista e do professor parecem se adequar a essa ambiguidade que caracterizou a modernidade. Tal divisão é, atualmente, problematizada a partir da defesa de uma formação e do exercício profissional pautados na perspectiva de um professor pesquisador, comprometido com a docência e também com os avanços do seu campo de atuação (Ludke, 2001).

A participação das sociedades científicas não se limitaria à seleção dos mestres, caberia a elas a tarefa contínua de acompanhar o futuro sistema público de ensino. A sua atuação seria distinta do papel a ser desempenhado pelo Estado, de modo que caberia às sociedades a observação da conformação do trabalho docente com os princípios da ciência, além de, em casos específicos, julgar eventuais desvios e recomendar a deposição do cargo ocupado pelo mestre infrator. Já ao ente público competiria remunerar, garantir a dedicação exclusiva e a estabilidade dos professores no cargo.

Ocorre que, nas proposições de Condorcet (2008), o trabalho docente foi considerado incompatível com o desenvolvimento de quaisquer outras ocupações profissionais e necessitaria de dedicação exclusiva dos profissionais selecionados. Para ele, as peculiaridades do magistério impediriam a realização concomitante de atividades que requeressem um exercício continuado, sobretudo daquelas referentes às incumbências eclesiásticas. Em um momento em que a Revolução se consolidava sob novos fundamentos jurídicos e políticos, a negação sistemática de quaisquer possibilidades de influência da religião, base espiritual do antigo regime, no exercício profissional docente foi uma preocupação constante nas ações do filósofo. Dessa forma, ele entendeu que o magistério era

[...] incompatível com todas aquelas [atividades] que exijam um exercício contínuo, e o mestre que aceitá-las deve ser obrigado a optar, sem poder ser substituído. É sobretudo entre as funções eclesiásticas e as da instrução que se deve estabelecer uma incompatibilidade absoluta [...] os povos que tem padres como professores não podem permanecer livres; insensivelmente, caem sob o despotismo de um só, que, segundo as circunstâncias, será o chefe ou o general do clero (Condorcet, 2008, p. 121-122).

Além da dedicação exclusiva ao cargo, Condorcet argumentou em defesa de uma certa estabilidade para a função de professor. Para ele, a utilidade pública e a importância da função exigem uma preparação duradoura e, portanto, é fundamental alguma perpetuidade no cargo. Em vista disso, defendeu “[...] fixar a duração da função dos professores em quinze anos para certos lugares, e vinte, para outros. Contudo, após esse tempo, esses prazos poderiam ser prolongados (Condorcet, 2008, p. 123). A continuidade no cargo dependeria da qualidade do trabalho do profissional e da não incidência de faltas graves. Desse modo, a destituição dos professores, fossem eles vinculados ao primeiro grau de ensino ou aos demais, só seria possível mediante a detecção de falhas graves e previstas em lei que ocorressem no exercício profissional. E em caso de desvios, caberia apenas aos inspetores de ensino e ao procurador síndico solicitar o desligamento. No entanto, este não seria automático, as possíveis faltas seriam analisadas e julgadas por um júri, “[...] cujos membros seriam escolhidos entre os da sociedade científica e os professores de diversas ordens” (Condorcet, 2008, p. 144).

Além da estabilidade a ser conferida aos futuros professores, outra preocupação de Condorcet a respeito dos deveres do Estado foi a remuneração. Nesse sentido, argumentou que o ente público não se deixasse seduzir por uma aparente economia de recursos no processo de organização do sistema público de ensino. Segundo ele, a remuneração dos professores não deveria ser responsabilidade das famílias atendidas, uma vez que a instrução é útil não apenas aos que a recebem ou às suas famílias, mas, ao contrário, ela é útil a todos que vivem em sociedade e, por isso, “[...] se aceita que a instrução indispensável a todos deve ser gratuita” (Condorcet, 2008, p.148). Inclusive, defendeu que as recompensas ao trabalho dos professores extrapolassem os limites do exercício profissional e não se limitasse ao indivíduo em seu período como docente. Deveria se estender, também, à aposentadoria e aos seus familiares, de modo que:

[...] uma soma igual a um terço dos salários fosse reservada para constituir a aposentadoria dos professores [...] metade dessa soma serviria para uma pensão vitalícia e a outra metade para constituir um fundo de acumulação. Se o professor morresse na sua função, esse fundo pertenceria a seus filhos, à sua mulher e até mesmo a seus pais, se estes estivessem vivos (Condorcet, 2008, p. 124).

Condorcet, em suas proposições a respeito da organização da educação pública, estabeleceu os conhecimentos científicos e a laicidade como fundamentos para se alcançar os objetivos de formar os indivíduos para o exercício da razão e da cidadania. Ao defender e lutar pela organização da escola pública como instituição central para a nova sociedade, o filósofo reservou à profissionalização docente um capítulo importante em suas reflexões. Definiu os atributos desejáveis para o exercício do magistério e entendeu que os futuros professores, tal qual a massa de cidadãos, também deveriam se orientar pela razão individual em detrimento de crenças religiosas e associações que pudessem produzir e difundir ideais políticos contrários à perspectiva iluminista e liberal. Por outro lado, o filósofo não se furtou a defender a necessidade de o Estado investir na organização do sistema público de ensino e na profissionalização docente com o intuito de garantir remuneração adequada, estabilidade e segurança previdenciária aos professores.

Considerações finais

As propostas de Condorcet para a profissionalização docente foram estruturadas em um contexto em que os revolucionários franceses procuravam demarcar as diferenças culturais e institucionais do novo mundo em relação ao antigo regime. Como partícipe desse processo histórico, compreendeu que a educação pública deveria aperfeiçoar as transformações deflagradas na Revolução e fixar uma nova sociabilidade, com o intuito de recriar os costumes e dar vazão à vida perfectível na democracia nascente.

Para Condorcet, a escola pública era a instituição revolucionária por excelência e o seu sucesso dependeria das ações dos seus agentes fundamentais: os professores. A difusão de um universo simbólico novo, fundado na ciência e no exercício da cidadania liberal, era a tarefa da qual os professores seriam encarregados. Essa dupla função atribuída pelo filósofo ao professorado colaborou na sua definição do papel do Estado e das sociedades científicas desde o processo de seleção até o acompanhamento do trabalho docente.

Havia o temor de que, eventualmente, professores ainda tributários ao antigo regime e às suas instituições, fossem indevidamente selecionados e destruíssem as novas representações fundamentais para a consolidação da Revolução. Desse modo, Condorcet defendeu que se atentasse às questões subjetivas que compusessem a personalidade dos futuros profissionais, além das questões políticas e econômicas que perpassassem a escolha e o trabalho dos selecionados. A preocupação do autor com a profissionalização docente foi o prenúncio da centralidade dos professores frente à ambição de se educar a todos.

Nos séculos seguintes, esse debate permaneceu, adquiriu novos contornos e, ainda hoje, questões como liberdade de ensino, o papel do Estado na educação, a relevância dos conhecimentos científicos, remuneração e a estabilidade profissional se fazem presentes nas discussões acadêmicas, sociais e políticas.

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Recebido: 16 de Maio de 2023; Aceito: 13 de Julho de 2023

Prof. Dr. Marcos Pereira Coelho, Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (Brasil), Grupo de Pesquisa GEPinfâncias – Grupo de estudos e pesquisa em práticas pedagógicas escolares, trabalho docente e formação de professores para infâncias, Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-5563-4217, E-mail: marcos.coelho@uems.br

Prof. Dr. João Paulo Pereira Coelho, Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (Brasil), Grupo de Pesquisa GEPEFI – Grupo de Estudos e Pesquisa em Políticas, Educacionais, Gestão e Financiamento da Educação, Grupo de Pesquisa GPTSPE – Transformações Sociais e Pensamento Educacional, Orcid id: https://orcid.org/0000-0003-2289-6701, E-mail: joao.coelho@uems.br

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