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Revista Educação em Questão

Print version ISSN 0102-7735On-line version ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.68 Natal Apr./June 2023  Epub Dec 05, 2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n68id31811 

Artigo

Indagação acerca dos sentidos do fenômeno educativo

Indagación sobre los significados del fenómeno educativo

1Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Brasil)

2Universidade Federal da Fronteira Sul (Brasil)


Resumo

Diferentes perspectivas abordam a educação para além da racionalidade instrumental dominante. Uma delas é o diálogo entre a hermenêutica e a educação que produz termos alternativos para pensar o fenômeno educativo. Que sentidos queremos para o fenômeno educativo de nosso tempo? O objetivo aqui é refletir sobre as contribuições da hermenêutica para a educação. Parte-se do entendimento que a hermenêutica permite desvelar os muitos sentidos velados/entulhados presentes na educação. Aquilo que é instituído no âmbito da educação escolar e do trabalho educativo deve ser tomado como um fenômeno a ser reiteradamente questionado e refletido. Se hoje vivemos mergulhados na cultura do tédio, então, a hermenêutica pode ajudar a pensar na cultura do sentido para o fenômeno educativo, um contexto em que a definição de balizas mínimas voltadas à formação de autonomia cognoscitiva e moral parece bastante razoável. Este texto é um ensaio que entende que a matriz de racionalidade tem muito a contribuir à compreensão do fenômeno educativo de nosso tempo.

Palavras-chave: Hermenêutica; Educação; Cultura do tédio; Cultura do sentido

Palavras-chave Hermeneutics; Education; Culture of boredom; Culture of meaning

Resumen

Diferentes perspectivas abordan la educación más allá de la racionalidad instrumental dominante. Una de ellas es el diálogo entre hermenéutica y educación que produce términos alternativos para pensar el fenómeno educativo. ¿Qué sentidos queremos para el fenómeno educativo de nuestro tiempo? El objetivo aquí es reflexionar sobre las contribuciones de la hermenéutica a la educación. Partimos del entendimiento de que la hermenéutica permite revelar los múltiples sentidos velados/abarrotados presentes en la educación. Aquello que es instituido en el ámbito de la educación escolar y del trabajo educativo debe ser tomado como un fenómeno a ser reiteradamente cuestionado y reflexionado. Si hoy vivimos inmersos en una cultura del aburrimiento, entonces la hermenéutica puede ayudar a pensar una cultura de sentido para el fenómeno educativo, contexto en que la definición de pautas mínimas orientadas a la formación de la autonomía cognitiva y moral parece bastante razonable. Este texto es un ensayo que entiende que la matriz de racionalidad tiene mucho que aportar a la comprensión del fenómeno educativo de nuestro tiempo.

Abstract

Different perspectives approach education beyond the dominant instrumental rationality. One of them is dialogue between hermeneutics and education that produces alternative terms to think about the educational phenomenon. What meanings do we want for the educational phenomenon of our time? The objective is to reflect on the contributions of hermeneutics to education. We start from the understanding that hermeneutics allows to unveil the many veiled/crowded meanings present in education. That which is established in the field of school education and educational work requires being taken as a phenomenon to be repeatedly questioned and reflected upon. If today we live immersed in a culture of boredom, then hermeneutics can help us to think a culture of meaning for the educational phenomenon, a context in which the definition of minimum guidelines for the formation of cognitive and moral autonomy seems quite reasonable. This text is an essay that understands that this matrix of rationality has much to contribute to the understanding of the educational phenomenon of our time.

Keywords: Hermenéutica; Educación; Cultura del aburrimiento; Cultura del sentido

Refletir sobre as possibilidades de diálogo entre hermenêutica e educação é um desafio para quem se aventura a pensar filosoficamente o fenômeno educativo, contudo, o enfrentamos enquanto interessados em conhecer mais as possibilidades dialógicas e reflexivas da hermenêutica relativas à educação. Tomar a linguagem como horizonte em que se inscrevem as coisas humanas demarca, por si só, a crítica às abordagens metafísicas e/ou instrumentais do ser humano e da educação.

Assumir a perspectiva da linguagem significa compreender que somos sujeitos jogados no mundo, produtos e produtores de nós mesmos, portanto não destinados por um ser exterior ou por uma razão inerente à natureza e/ou à história. Se há mazelas, e as temos de todas as ordens, elas são produções humanas e, assim, necessitam ser compreendidas, uma vez que também estão na condição de uma constante revisão. Desse modo, somos temporalmente projetos lançados1. Eu, tu, nós e a humanidade somos lançados no tempo e no espaço.

É pela linguagem que assumimos a educação das novas gerações e as inscrevemos no mundo comum. É por seu intermédio que nos humanizamos, nos apropriamos das coisas dos humanos, produzimos a própria existência e compreendemos o mundo. Significa que fundamos o mundo humano no âmbito da linguagem, de modo que somos criaturas biológicas e simbólicas, construções da linguagem. Somos indelevelmente marcados pela linguagem. O reconhecimento de que o fenômeno educativo assume feições no tempo e no espaço implica assumir a finitude das coisas humanas. A diferenciação e a pluralidade fazem com que inscrevamos as coisas humanas em diferentes perspectivas: elas podem ser metafísicas, religiosas, naturalistas, idealistas ou materialistas, teleológicas ou deontológicas, mais ou menos deliberadas, contudo, sempre revisáveis.

Assim, situar a educação no âmbito da produção humana, na condição de sua finitude, não significa ausência de referências. O consenso de que a tarefa da educação é a transmissão de uma tradição, voltada à formação de autonomia cognoscitiva e moral, parece bastante razoável. Nesse consenso, poderíamos situar referências como a liberdade, a democracia, a justiça social, o respeito à diversidade – étnica, religiosa e de gênero –, a responsabilidade, o cuidado, a sustentabilidade etc., valores fundamentais aos que compartilham o mundo comum. Se hoje vivemos uma cultura do tédio, como pondera La Taille (2009), então, a hermenêutica pode nos ajudar a pensar uma cultura do sentido para o fenômeno educativo.

O percurso proposto para este ensaio visita conceitos da hermenêutica e, na sequência, dialoga com a educação como produção de uma cultura do sentido. Tomar a hermenêutica como referência para essa reflexão, reivindica reafirmar a questão: Que sentidos queremos para o fenômeno educativo de nosso tempo? Este é um ensaio em diálogo estreito com o mundo das práticas educativas com as quais convivemos cotidianamente.

Linguagem e mundo comum

Reportar alguns conceitos da hermenêutica, ainda que de modo preliminar, contribui para alargar a compreensão dos sentidos do fenômeno educativo. Entre os conceitos pertinentes, destacamos a linguagem, a interpretação, a compreensão, a provisoriedade, a verdade, a conversação e o diálogo. A intenção é estabelecer uma relação entre os conceitos para compreender a educação como uma produção de homens e mulheres no mundo. Seria um equívoco abordar ou discutir esses conceitos isoladamente, uma vez que há uma circularidade que os alimenta (HEIDEGGER, 2005a; 2005b).

É pela linguagem que nomeamos as coisas e lhes atribuímos predicados. É também por ela que nos pronunciamos sobre as coisas e nos entendemos com os outros no e acerca do mundo. Nesse sentido, o ser das coisas se desvela (e se vela) no horizonte da linguagem compartilhada. É pela linguagem que desvelamos o mundo e possibilitamos o desvelamento do ser das coisas nos diferentes sentidos pelos quais a palavra “ser” está presente em nossas falas e ações: ser-o-caso-que (sentido veritativo), “ser” como verbo de ligação, “ser” como existir, “ser” como conotação de “eu sou...” (sentido autoimplicativo) etc. (TUGENDHAT, 2013). Para Heidegger:

Um fenômeno pode-se manter encoberto por nunca ter sido descoberto. Dele, pois, não há nem conhecimento nem desconhecimento. Um fenômeno pode estar entulhado. Isto significa: antes tinha sido descoberto, mas, depois voltou a encobrir-se. Este encobrimento pode ser total ou, como geralmente acontece, o que antes se descobriu ainda se mantém visível, embora como aparência (HEIDEGGER, 2005a, p. 67).

O mergulho no ser/estar-aí (Dasein) nos apresenta possibilidades de ser, ou melhor, a-ser (zu sein) ou a-fazer. O acesso ao ser/estar-aí se dá mediante a condição de estarmos sempre mergulhados na linguagem. Bem mais que um meio pelo qual, a linguagem é um meio no qual podemos acessar o ser das coisas. Se um fenômeno não foi descoberto é porque não foi tocado pela linguagem. Uma vez inscrito na linguagem pode voltar a encobrir-se, a entulhar-se, a velar-se, o que requer que se interrogue novamente pelo seu ser. Desse modo, desvelar o ser/estar-aí significa inscrevê-lo ou reinscrevê-lo no horizonte da linguagem. Se em algum momento de nossa tradição o fim da educação era a salvação da alma, em outro era a formação do homem gentil ou a formação para a autonomia e a emancipação. Parece-nos que, hoje, o fenômeno ficou obscurecido ou o termo está entulhado. Se significamos a educação de modo plural ao longo da tradição, que sentido ela assume hoje? Para que educamos? Das políticas educacionais às práticas docentes, tal encobrimento ou entulhamento não é difícil de visualizar.

Assim, atribuir sentido ou desvelar os sentidos da educação só é possível no horizonte da linguagem. Ou seja, como afirma Hermann (2002, p. 64), “[...] o nosso acesso aos objetos só se realiza pela linguagem, pela linguisticidade de ser/estar-no-mundo, que se articula sob o horizonte de toda a nossa experiência”. Lawn (2010) afirma que

[...] não podemos encontrar um ponto arquimediano fora da cultura e linguagem em nossa busca pela verdade, pois assim como nossos preconceitos, as condições de entendimento fazem parte daquilo que procuramos tornar compreensível (LAWN, 2010, p. 14).

Assim, compreendemos as coisas a partir da nossa condição de ser/ estar-aí, e é por meio da linguagem que a interpretamos e a compreendemos. Assim, compreendemos a educação como um fenômeno cultural, que acessamos pela linguagem.

A interpretação da tradição permite-nos buscar os sentidos da educação no tempo. Essa tradução da tradição ajuda-nos a ler o fenômeno em nosso tempo. A ponderação de Cortella (2015, p. 41) acerca da tradição é pertinente: “aquilo que vem do passado e temos de guardar, proteger, levar adiante, chamamos de tradição. Aquilo que vem do passado e tem de ser descartado, que é superado, chamamos de arcaico”. No entender do autor, no âmbito da educação, utilizamos de modo equivocado os termos tradição, novidade e novo. Assim,

[...] uma escola tradicional protege o antigo, em vez de se iludir com a mera novidade. Há uma diferença entre o novo e a novidade. Novidade é aquilo que vem, faz um pouco de fumaça e sai. Novo é aquilo que vem, revoluciona e persiste (CORTELLA, 2015, p. 41).

Parece-nos que temos feito terra arrasada da tradição em nome da novidade, dos modismos na educação. Ou, como, pondera Stein (1996, p. 28), “[...] não temos mais vínculos de compromisso com os fatos, com as coisas, com os acontecimentos que nos rodeiam”. Acrescenta que “há como que uma erosão dos elementos da tradição que sustentava, em grande parte, a vida humana até a metade do século”2.

Heidegger (2006, p. 52) entende que “[...] somente se nos voltarmos pensando para o já pensado, seremos convocados para o que ainda está para ser pensado”. Temos um crescente movimento de fazer terra arrasada “[...] da tradição, confundindo-a com o arcaico, em nome de uma sempre novidade estéril e utilitária”. Hoje, essa novidade, a mistificação, como diria Charlot (2013), está disfarçada de “neuro-educação” e “informatização”, como se fosse possível resolver os problemas da educação por estas vias. No entender de Charlot (2013), tratam-se de novas formas de entulhamento e de velamento da educação. Assim, quem vive no horizonte da constante novidade, dos modismos, necessita destituir a tradição, tornando-a antiquada, para tornar legítimas suas defesas, marcas presentes na educação contemporânea. Olhar para a tradição não significa negar o movimento do mundo, mas aprender com os que vieram antes de nós, para compreendermos o presente e assumirmos o compromisso e a responsabilidade com a nossa continuidade.

Portanto, retomar a interrogação acerca do que já foi pensado permite pôr-nos a caminho. Visitar a tradição da educação é condição para desvelarmos seu(s) sentido(s), o que só possível através da linguagem. Dessa forma, concordamos com Waddington (2002, p. 171) que “[...] não existe conhecer, pensar ou ser fora da linguagem”. É ela que nos permite não apenas negociar os sentidos, como também desmascarar aqueles sentidos encobertos. Reiteramos o entendimento de Lawn (2010, p. 112) de que “[...] sem a linguagem não haveria mundo [...] e que [...] a linguagem trata da negociação e do ato de fazer sentido de um mundo humano de nossa própria construção”. A busca pelo sentido, ou sentidos, hoje, mais do que nunca, é imprescindível. Educar para o mundo comum requer referências que balizam a tarefa educativa da escola e dos educadores.

Estabelecer referências comuns, legítimas, requer negociação, o que só é possível no âmbito do encontro comunicativo. Referências, no fundo, são deliberações – razões e justificações – que aceitamos como razoáveis. Tugendhat (2007) afirma que, quando deliberamos sobre as coisas,

[...] nós nos perguntamos pelas razões a favor ou contra ao que se está dizendo ou pensando [...], contexto em que as nossas ações não são mais dirigidas [...] simplesmente pelos desejos, senão também por aquilo que se pensa que é bom ou verdadeiro, isto é, pelos resultados da deliberação. Isso pressupõe, por sua vez, a capacidade de suspender os desejos, a capacidade que se chama de liberdade e responsabilidade (TUGENDHAT, 2007, p. 190).

Sob esse prisma, a ação educativa é sempre uma tarefa pensada coletivamente e só temos um modo de fazê-lo: conversando e estabelecendo consensos mínimos. Stein (1996, p. 70) sugere que esses consensos mínimos poderiam se fundar na luta contra as “[...] injustiças sociais”, afirmando a “solidariedade humana”, a “dignidade humana” e a “afirmação da vida humana”.

Portanto, a formação humana que se realiza no face-a-face dos sujeitos da escola deveria, antes de acontecer, interrogar-se pelo seu sentido. Infelizmente, o que se constata nas andanças pelas escolas e na formação continuada de professores é que a pergunta pelo sentido do fazer educativo está encoberta, se não abertamente repudiada. Muitas coisas são ditas, tais como formação para o trabalho, para o vestibular, para empreender, para o domínio de conteúdos culturais, para a cidadania, para a responsabilidade, para a felicidade etc. Tratam-se, muitas vezes, de expressões vazias e que não interrogam as questões de fundo da educação3. Como sinaliza Heidegger (2005a), trata-se de um fenômeno entulhado. Taylor (1997) atribui essa falta de sentido, ao individualismo, à prevalência da razão instrumental e ao declínio da aspiração das pessoas de participarem do governo de suas sociedades.

Nesse sentido, é pela palavra, pelo diálogo, que se oportuniza a reflexão acerca do que compreendemos por educação, mesmo que sempre provisória. Conforme afirma Lawn (2010)

[...] a linguagem esclarece aspectos do ser [...], tornando-os compreensíveis à consciência humana. Ela manifesta o dito e o não-dito. Nesse sentido, acrescenta que uma proposta, ou mesmo [...] uma declaração sobre o mundo, contém ambos, o dito e o não-dito. O dito é obviamente aquilo que a proposta apresenta, mas o não-dito é aquilo que a motiva, o que questiona aquilo que a proposta em si responde (LAWN, 2010, p. 113).

Assim percebido, o fenômeno educativo, ou qualquer fenômeno humano, permanece sempre entre o dito e o não-dito. Uma vez aceita essa proposição, pode-se afirmar que “[...] o discurso humano é necessariamente inacabado, o que exige dizer e redizer os sentidos dos significados vividos, sem que tenhamos a ideia de que tudo foi dito” (BUENO, 2003, p. 29). É a compreensão de que o sentido último não foi encontrado e, tampouco, o será definitivamente. Esse entendimento motiva-nos a investigar, sempre e novamente, um fenômeno e também as questões que sempre são postas novamente, pois a possibilidade de novos sentidos é inerente ao próprio questionamento pelo sentido do ser.

Nesse sentido, ao retornarmos à tradição, permitimos que ela nos entregue mensagens que podem ter sido soterradas pela vida cotidiana, inclusive a escolar. Waddington (2002, p. 174) compreende que o “[...] interpretar abriga uma tensão constituinte e revigorante entre abertura e fechamento”. Tal entendimento reconhece que é o

[...] conhecimento que efetivamente permitirá a reinvenção da existência para além da alienação coletiva, da globalização da miséria, da desigualdade e da injustiça, da lógica do capital volátil, sem pátria, sem lei, sem ética, precisará realizar crítica e radicalmente seu enraizamento no tempo e no mundo, o que somente será possível se o conhecer for revigorado pelo interpretar (WADDINGTON, 2002, p. 183).

Pensar uma outra existência humana só se fará possível se interpretarmos os sentidos entregues pela tradição a ouvidos aguçados e atentos. Que racionalidade tem sido predominante no mundo contemporâneo? Dardot e Laval (2016, p. 30) entendem que há uma nova razão orientando a existência humana. Definem-na como um “[...] conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens”, orientado pelo princípio da competição e “[...] produzindo uma subjetividade ‘contábil’ pela criação de concorrência sistemática entre os indivíduos”.

Essa racionalidade anunciada pelos autores é expressa em nossa linguagem empreendedora, em nossas políticas públicas, nas políticas educacionais, nas práticas educativas dos professores, nos processos avaliativos etc.

Para Teixeira (2005, p. 53), “[...] a condição de possibilidade está fundamentalmente associada ao contexto histórico onde o Dasein está ‘inserido – lançado’”. Assim, o contexto em que estamos mergulhados nos “[...] proporciona certos instrumentos conceituais que constituem essa própria abertura. Em outras palavras, há uma pré-compreensão que o homem não escolhe, mas que o constitui enquanto ser/estar-aí”. Como diria Heidegger (2005a, p. 45) “[...] o tempo como horizonte de toda compreensão e interpretação do ser”. Certamente, só é possível questionar os sentidos para a educação em nosso tempo na medida em que conversamos com a tradição. Nada do que é posto nos fenômenos está livre dos ruídos da linguagem e, portanto, está manifesto em nossa interpretação.

É pela linguagem que nos compreendemos como sujeitos históricos. Somos, cada um de nós e a própria humanidade, projetos temporais sem a garantia de efetividade. No compreender de Gadamer (1997, p. 493), a experiência humana é a experiência da finitude. O homem “[...] sabe que não é dono nem do tempo nem do futuro, pois conhece os limites de toda previsão e insegurança de todo plano”. As coisas humanas são produções humanas na condição de um projetar circunstanciado, portanto, estão destituídas de qualquer teleologia ou verdade previamente estabelecida.

Reconhecer a nossa historicidade também implica admitir a provisoriedade das coisas humanas. Se a historicidade reconhece a finitude, a provisoriedade reconhece que o dizer sobre as coisas deste mundo se situa entre o dito e o não-dito. Portanto, cai por terra a compreensão de uma verdade absoluta e definitiva. Nesse sentido, a hermenêutica, conforme Stein (1986, p. 32), “[...] procura penetrar cautelosamente em seu tempo” e “procura tornar-se consciente dos condicionamentos que determinam sua posição dentro da constelação histórica”. Desse modo, as pretensões de verdade necessitam ser compreendidas, portanto, em sua historicidade, o que as torna provisórias. Assim, aquilo que dizemos sobre as coisas é precário, o que permite sempre revisitarmos os entendimentos que produzimos. Hermann (2002, p. 24) reitera que “[...] ao inserir-se no mundo da linguagem, a hermenêutica renuncia à pretensão de verdade absoluta e reconhece que pertencemos às coisas ditas, aos discursos, abrindo uma infinidade de interpretações possíveis”.

Assim, o que compreendemos como tradição, ou avaliamos como legítimo, permanece no horizonte do provisório. Heidegger (2005a, p. 49), deixou escrito que “[...] a tradição assim predominantemente tende a tornar tão pouco acessível o que ela ‘lega’ que, na maioria das vezes e em primeira aproximação, o encobre e esconde”. Para Kandinsky apud Almeida (2003):

Tudo o que parece morto palpita. Não apenas as coisas da poesia, estrelas, luta, bosque, flores, mas também um botão brilhando numa poça de lama de uma lua [...]. Tudo tem uma alma secreta, que guarda silêncio com mais frequência do que fala. [...]. Uma rua pode ser observada através do vidro de uma janela, de modo que seus ruídos nos cheguem amortecidos, seus movimentos se volvam fantasmagóricos, e toda ela, apesar da transparência do vidro rígido e frio, apareça como um ser do outro lado. Ou se pode abrir a porta, sair do isolamento, aprofundar-se no ser-de-fora, tornando-se parte e as pulsações da rua são vividas com sentido pleno. [...]. O homem não é um espectador através de uma janela, mas penetra na rua. A vista e ouvidos atentos transformam mínimas comoções em grandes vivências. De todas as partes fluem vozes e o mundo inteiro ressoa. Como um explorador que se aventura por territórios desconhecidos, fazemos nossas descobertas no cotidiano. O ambiente quase sempre mudo começa a expressar-se em um idioma cada vez mais significativo. Assim, tornam-se símbolos os signos mortos e o que era morto ressuscita (KANDINSKY apud ALMEIDA, 2003, p. 47-48).

Assim, Kandinsky brinda seus leitores com um esclarecimento raro sobre a compreensão de temporalidade e provisoriedade. As coisas estão lançadas no tempo, como também está a provisoriedade de nossas compreensões. O que compreendemos como verdade é, portanto, linguagem. Gadamer Lawn (2010) afirma que

[...] a verdade, como um produto do método infalível, ignora as verdades da experiência contida dentro de uma tradição cultural comum [...]; e ainda que a verdade [...] nunca é algo que finalmente alcançamos e obtemos. Todas as nossas atividades no mundo social estão “no caminho da” verdade, mas nunca finalmente a alcançam (GADAMER LAWN, 2010, p. 61-62).

Se concordarmos com o entendimento de que a verdade está no âmbito da linguagem, temos que ter presente a sua finitude, portanto, sua precariedade.

Para explicitar a compreensão de verdade da hermenêutica, Teixeira (2005) propõe a metáfora do habitar.

Habitar, enquanto metáfora para falar da verdade hermenêutica, deveria ser entendido como morar em uma biblioteca, enquanto a ideia de verdade como conformidade representa um conhecimento verdadeiro como a posse certa de um “objeto”; a verdade do habitar é mais a competência do bibliotecário, que não possui inteiramente a totalidade dos livros entre os quais vive, e nem sequer os princípios primeiros de que dependem tais conteúdos (TEIXEIRA, 2005, p. 102).

A crença na verdade como totalidade, que poderia ser apreendida, é, portanto, ilusória. Ela é parcial e provisória como é o domínio do bibliotecário sobre as obras da biblioteca e de seu conteúdo. A tradição que tomamos como referência na educação, por exemplo, não é sinônimo de verdade, em seu sentido absoluto. Habitamos entre um conjunto de referências e assumimos algumas destas como “verdades”, como legítimas, mesmo entendendo-as como provisórias. É o que ponderamos como legítimo para as novas gerações. Tugendhat (2007, p. 194) compreende que “[...] embora a vida humana não seja possível fora de tradições, o mero fato de que uma concepção é justificada pela tradição não pode ser uma razão para aceitá-la”. Acrescenta ainda que “[...] em relação à tradição, encontramo-nos na mesma situação que em relação a qualquer opinião: podemos aceitá-la, mas também podemos criticá-la, isto é, perguntar por suas razões, por sua justificação”. Nesse sentido, a escolha entre esta ou aquela referência se faz em um universo plural de possibilidades4.

Assim, a questão de fundo que se coloca não pode ser reduzida a uma postura maniqueísta de escolha entre duas possibilidades apenas, uma certa e a outra errada. Convém compreender com o máximo de lucidez possível que neste momento, são estas as nossas referências e as consideramos legítimas. No caso da educação, o que seriam proposições legítimas? Se entulhamos os sentidos da educação com superficialidades e perdemos as dimensões fundantes do humano, a hermenêutica, enquanto escuta e interrogação, pode auxiliar-nos a interpretar o dito e o não-dito. Como afirma Teixeira (2005, p. 109), “[...] tal atitude permite e revela o ser das coisas no seu ‘velado’ ‘desvelamento’. Este acento na escuta é um convite ao homem para abandonar a estrutura fechada das proposições”. Nesse sentido, podemos nos interrogar sobre a legitimidade da educação ou da formação de professores que se pauta por diretrizes, por exemplo, de uma racionalidade econômica e instrumental, como nos alerta Flickinger (2010).

A hermenêutica não é apenas uma forma de compreensão fundada na linguagem, trata-se de uma crítica à racionalidade objetificadora. Para Flickinger (2010, p. 172), a hermenêutica é também uma alternativa ao método causal-explicativo da ciência objetificadora5. O autor afirma que, enquanto doutrina de compreensão, a hermenêutica “[...] pressupõe a inserção do homem na sua história e linguagem, horizontes estes perante os quais ele deveria buscar o sentido, tanto dos fatos, quanto de seu próprio agir e a inter-relação entre ambos”. A hermenêutica alarga o horizonte de compreensão e permite que outras coisas sejam ditas para além da experimentação e da replicação6, o que também se estende ao fenômeno educativo.

Em sua crítica à ciência objetificadora e totalizante, Waddington (2002, p. 179) pondera que “[...] a alteridade não é uma categoria da ciência, pois a ciência não sabe o que fazer de outra forma de conhecimento, senão depreciá-lo, rejeitá-lo ou excluí-lo”. Tal modo de entendimento cessa o diálogo e inibe a emergência do diverso. Dizer a última palavra depõe contra a própria ciência. A experiência interpretativa presente nas ciências sociais e humanas razoabilizou sobejamente que algo não dito – em termos lógicos, conceituais e metodológicos – também está subentendido, até mesmo nas ciências experimentais7. Regidas pelo interesse técnico-instrumental, as ciências experimentais, descartam o que não parece pertinente e promissor para o controle de algum âmbito de objetos. Reconhecer os limites da ciência objetificadora não a torna menos válida, mas a inscreve no horizonte da historicidade e da finitude de qualquer produção humana.

Nesse sentido, se compreendemos a ciência como produção humana, linguística e histórica, os possíveis sentidos atribuídos pela interpretação, tidos como verdadeiros, se aproximam dos entes visados a partir da compreensão do ser8. É por essa via que a hermenêutica se distingue das perspectivas metafísicas, racionalistas e positivistas. Para Hermann (2002, p. 24), “[...] ao inserir-se no mundo da linguagem, a hermenêutica renuncia à pretensão de verdade absoluta e reconhece que pertencemos às coisas ditas, aos discursos, abrindo uma infinidade de interpretações possíveis”. Nesse sentido, como pondera Gamboa (2007, p. 137) no marco teórico-metodológico da hermenêutica, “[...] conhecer é compreender os fenômenos em suas diversas manifestações e nos contextos onde se expressam” e, portanto, não há uma verdade última. Assim, o diálogo é a possibilidade de validarmos algum sentido entre outros possíveis.

No que tange ao fenômeno educativo, o diálogo é a abertura, é o espaço privilegiado de produção de sentido, como também é marca distintiva do ato educativo. Assim, mais do que transmitir verdades, o diálogo com a tradição para fins pedagógicos realiza a possibilidade da reinterpretação e da construção do novo. Segundo Lawn (2010, p. 82), “[...] todo entendimento é necessariamente um diálogo”. Assim, mais do que transmitir fielmente a tradição, a tarefa educativa da escola é inscrever as novas gerações nas produções humanas através da narrativa da nossa tradição.

Nesse sentido, é importante recordar que, “[...] apesar de não podermos escapar das coordenadas da ‘vida histórica’, não somos os fantoches da história, controlados por preconceitos herdados” (LAWN, 2010, p. 90). Tal compreensão permite aos novos se reconhecerem “[...] como identidades construídas, socialmente e culturalmente atribuídas. E estas identidades se estendem a um passado ao qual estão intimamente conectadas”. Em última instância, cabe a nós “[...] conduzir nossa vida. Estamos entregues a nós mesmos. Somos aquilo que nos tornamos” (HERMANN, 2002, p. 33). É por essa via que construímos aquilo que entendemos como sentido da educação e da formação humana. É fundamental tornar comum essa compreensão aos que a ela se dedicam.

Educação para uma cultura do sentido

A hermenêutica tem muito a dizer sobre o fenômeno educativo, enquanto racionalidade que conduz à verdade pelas condições humanas do discurso e da linguagem, A educação enquanto ato de humanização é fundamentalmente um processo linguístico. Além de auxiliar na compreensão dos possíveis sentidos da educação, a hermenêutica “[...] permite que a educação torne esclarecida para si mesma suas próprias bases de justificação, por meio do debate a respeito das racionalidades que atuam no fazer pedagógico” (HERMANN, 2002, p. 83).

A compreensão do processo de formação humana é a prerrogativa para quem se ocupa da tarefa educativa. Desvelar os sentidos do que se compreende por educação hoje, só é possível se mergulhamos na tradição. Assim, para Marques (1990, p. 18), cabe à pedagogia enquanto hermenêutica “[...] penetrar no tempo da educação para desvendar-lhe o sentido histórico”. Em seu entendimento, “[...] trata-se de um ‘refazer para trás’ do processo pelo qual se sedimentaram os sentidos que agem na subjetividade presente e nas condições materiais que os sustentam”. Escavar os sedimentos que se acumularam ao longo de nossa história da educação e se encobriram com o tempo oportuniza que se compreenda a nossa realidade educativa9.

Se cabe à educação, por meio da docência e de outras práticas educativas, apresentar o mundo dos homens às novas gerações, a pergunta pelo sentido da educação continua pertinente e se torna ainda mais pertinente em um contexto de efemeridade de referências. É pela formação que as crianças e os adolescentes aprendem a tradição, o universo de referências que consideramos legítimas, abrindo a possibilidade deles participarem do mundo comum. Assim, contar a história do ser humano enquanto criatura e criador abre a possibilidade de romper com o instituído do ainda-não, no sentido criativo. Apresentar o mundo aos novos significa acolhê-los na humanidade, introduzi-los no mundo comum (torná-los humanos) e, por fim, individualizá-los, como escreveu Rorty (2000). Uma educação que se restrinja somente à socialização e à adaptação seria mutiladora do humano frente às múltiplas possibilidades que se podem lhe abrir enquanto ser da liberdade.

Assim, uma primeira contribuição da hermenêutica à educação é a compreensão de que o ato educativo é fundamentalmente um ato linguístico e que não pode acontecer fora do horizonte da experiência do encontro dialógico da formação humana. Nesse sentido, Marques (1989, p. 29) sugere que a educação enquanto ação proposital, “[...] como intervenção pedagógica, impõe-se como emancipação do ser humano em oposição a essa inserção espontânea a que está o ser humano passivamente submetido”. A educação assume-se como tarefa socializadora, mas também criadora.

Do educador, espera-se o entendimento de que a educação é uma produção temporal, da mesma forma que os conhecimentos são produções temporais e, desse modo, precisam ser compreendidos. Marques (1993, p. 110) pondera que as coisas (conceitos) que se ensinam ou se aprendem na escola são construções históricas “[...] nunca dadas de vez, mas sempre retomadas por sujeitos em interação e movidos por interesses práticos no mundo em que vivem”. Desse modo, a provisoriedade do conhecimento habita na tarefa educativa do professor e da escola. Portanto, não há verdades absolutas a serem ensinadas.

Embora constituída em espaço e tempo de transmissão da tradição, ou naquilo que consideramos legítimo para as novas gerações, cabe à escola e ao professor entender que aquilo que o ambiente escolar apresenta às novas gerações está marcado pelo dito e pelo ainda não-dito. Assim, a tarefa da escola em sua dimensão socializadora é apresentar para os novos aquilo que os homens fizeram antes deles. Portanto, o professor é aquele que dialoga com os novos acerca da tradição. Mesmo quando tomada como “verdade”, é imperativo reconhecê-la em sua provisoriedade, que sempre pode ser visitada e interrogada. Mas não se trata somente de socializar, mas também de assumir uma postura crítica e reflexiva diante do mundo.

Assim, a educação compreendida desde a hermenêutica constitui-se em crítica a qualquer fundamentalismo e dogmatismo epistêmico e ético. Uma crítica epistêmica que pode ser dirigida à escola tradicional se relaciona com o seu teor estático que os seus conhecimentos, as suas verdades e o seu intelectualismo assumiram. O dogmatismo epistemológico racionalista e positivista, materializado na racionalidade instrumental, largamente presente em nossa tradição educativa, aborta qualquer forma de diálogo sobre a tradição como abertura. Nesse sentido, o diálogo, a conversação, é sem dúvida a marca distintiva de contribuição da hermenêutica à educação. Aprender pressupõe o ato comunicativo, ou seja, é necessário que ocorra comunicação entre professor e aluno acerca de algo. Caso a comunicação não estabeleça uma relação compreensiva, não haverá, nem comunicação, nem aprendizagem. Dessa forma, a conversação é condição imprescindível à aprendizagem. A passividade intersubjetiva atribuída à escola tradicional é um limite ao dizer, e ao deixar o outro dizer a palavra.

Conforme Gadamer (1997), o entendimento é o resultado do engajamento na comunidade, no mundo e todo engajamento só se efetiva por meio da aquisição linguística de tudo o que representa a comunidade. Nada mais correto do que ver o mundo como linguisticamente constituído e sua apropriação só é possível pela linguagem. Pois a linguagem, como o autor a compreende, não é senão comunicação e entendimento. A escola entendida como construção de conhecimentos acerca do mundo, da natureza e dos homens é um espaço e um tempo privilegiado de diálogo intersubjetivo, de engajamento de sujeitos na linguagem para a apreensão do mundo.

Assim, a linguagem só se concretiza no processo de comunicação, na construção/negociação de sentidos. Aprender significa compartilhar com os outros o entendimento acerca do mundo. Enquanto a linguagem não se tornar “comum”, uma comunicação na sala de aula, o estudante dificilmente aprenderá e ampliará o seu universo de relações, mesmo que decore, memorize e até passe de ano. Assim, os objetos a serem ensinados e aprendidos no contexto escolar são os conceitos das ciências, sempre em mutação,

[...] reconstruídos pela razão ativa, reflexionante, diligente e normatizadora. Não se ensinam coisas ou saberes prontos, mas relações conceituais em que se articulam as práticas sociais com as razões que as impulsionam e delas derivam (MARQUES, 1995, p. 115).

Assim, o processo de construção que cria entendimento acerca do mundo, dos homens e dos fenômenos, nesse caso, é o diálogo. O signo linguístico forja a possibilidade de comunicação e, portanto, o entendimento que nos permite acessar o mundo que se nos apresenta. Nesse sentido, Brayner (2008, p. 14) compreende que, além de ler, escrever e contar, a escola deve propiciar “[...] o acesso a saberes, à capacidade de pensar, de argumentar e julgar e de poder fazer escolhas que propiciem uma inserção consciente nos processos sociais e políticos e a participação na esfera pública”. Para Young (2007), por sua vez, a tarefa da escola é “empoderar os sujeitos”, de forma que participem livremente da vida pública, o que só é possível pela sua inserção no mundo da linguagem.

O processo de entendimento se constitui numa conversação contínua. Significa inscrever-se numa comunidade linguística, numa comunidade de falantes, conforme Marques (1995). Dessa forma, as aprendizagens intersubjetivas se realizam no espaço do diálogo, do perguntar e do responder, do dizer e do deixar dizer, do construir significados e relações. Assim, um contexto educativo voltado às aprendizagens, à apropriação de conhecimentos, à reflexão e à construção de conceitos deve incitar a pergunta, que conduz à investigação. Quando o professor se coloca como autêntico transmissor do conhecimento, a educação fica presa à razão monológica e fenece a experiência educativa que se alimenta da linguagem, do diálogo e da conversação. De acordo com Hermann (2002, p. 58), “[...] o diálogo possibilita condições de reflexão sobre um entendimento ainda não disponível; ou seja, concede aos participantes a oportunidade de fazer uma autorreflexão sobre seus pontos de vista”. É na/pela conversação que produzimos nossos acordos e entendimentos.

Os reveses da pretensão de inteligibilidade levantada por atos de fala produzem a comunicação deformada, cuja retificação exige a conversação. No caso das aprendizagens formais, professor e aluno, mediados pela linguagem, produzem entendimento sobre o mundo, sobre a realidade ou sobre o campo de saber em questão. A superação do ruído na comunicação exige a participação dos envolvidos, expondo as suas posições, os seus pré-conceitos e conceitos. Nesse processo franco e aberto, professor e aluno constroem o espaço das aprendizagens, do entendimento. Ou, como diria Freire (1992), a elaboração de qualquer processo cognitivo não se realiza senão na prática intersubjetiva do diálogo entre sujeitos mediatizados pelo mundo.

No entendimento de Marques (1989, p. 28), a educação escolar, em sua sistematicidade e intencionalidade, se constitui “[...] como lugar, tempo e recursos reservados à mediação de outrem socialmente qualificado na facilitação social da aquisição/construção de conhecimentos”, de modo que ocorra a “[...] progressiva inserção/domínio nas e das condições sociais de existência humana e nos modelos sociais que se configuram no mundo humano-social historicamente transformado e em transformação”, dos sujeitos. Assim, pela formalidade que a prática educativa assume, cabe à pedagogia pensá-la de modo sistemático no âmbito coletivo, uma vez que se trata de uma instituição pública, destinada à formação de sujeitos para o mundo. No que tange à compreensão hermenêutica da sala de aula, cabe ao professor “[...] a leitura do mundo da sala de aula, para que nele se desvelem os muitos sentidos que nele atuam e se percebam na unidade em que se constituem” (MARQUES, 1990, p. 21-22). O autor acrescenta que é tarefa da hermenêutica desconstruir a reificação da sala de aula, ler os diversos sentidos “[...] que agem ocultos na subjetividade dos sujeitos e na aparente objetualidade das condições materiais que os sustentam”.

O olhar hermenêutico como possibilidade de dialogar com o mundo, com a tradição, com o instituído, permite desvelar os muitos sentidos velados presentes nas práticas educativas. Nesse sentido, o instituído no âmbito do fenômeno educativo necessita ser interrogado. Para Marques (1990),

[...] aquilo que aparece como coisas dadas, formas naturais, as únicas reais e as únicas possíveis, necessita ser desmontado para trás, a fim de que se revele em suas origens e motivações, no processo histórico que o gerou e nos interesses que o mantém (MARQUES, 1990, p. 23).

Se hoje vivemos uma cultura do tédio, como pondera La Taille (2009), então, a hermenêutica pode nos ajudar a pensar possíveis sentido(s) para o fenômeno educativo.

A cultura do tédio “[...] se traduz em uma ‘vida pequena’, porque é uma vida sem sentido, sem aprendizagem, sem conhecimento, sem criação, sem projeto, sem fluxo, sem energia, sem potência” (LE TAILLE, 2009 apud FÁVERO, 2018, p. 416). Para Le Taille (2009), experimentamos o tédio “[...] quando não temos nada para fazer, ou quando estamos fazendo algo que, para nós, carece de significação”. Em decorrência dessa “[...] carência de significação”, o nosso tempo pode ser caracterizado como a “cultura do tédio” (FÁVERO, 2018, p. 416). O que o cotidiano como professores do ensino médio manifesta é a presença insistente dessa cultura de tédio na escola. O encontro com problemas de indisciplina de alunos, conflitos existenciais, angústias, alunos chorosos sem aparente motivo, famílias que perguntam o que fazer com seus filhos, um alto índice de estudantes medicalizados em razão da síndrome do pânico, de crises de ansiedade, de depressão, suicídio, alunos que se mutilam em casa e na escola, entre outros conflitos.

Le Taille (2009) e Fávero (2018) enunciam alguns sintomas produzidos por essa cultura do tédio: vivemos

[...] um clima de mal-estar existencial [...] alta incidência da depressão e a alta frequência de suicídios; 121 milhões de pessoas diagnosticadas como depressivas [...]; [...] a taxa de suicídios entre jovens de 14 a 25 anos triplicou na segunda metade do século XX; [...] dois tipos de tédio: o tédio situacional ou superficial e o tédio existencial ou profundo (FÁVERO, 2018, p. 420-421).

O autor ainda pondera que “em outros tempos, tais indícios tinham outros nomes (cansaço de viver, melancolia, tristeza, acídia, desespero, pessimismo, niilismo, náusea, desgosto)” (FÁVERO, 2018, p. 420). Assim, constata-se que a cultura do tédio, em suas múltiplas formas de expressão, interfere no cotidiano escolar dos estudantes e nos processos de ensino e aprendizagem.

No entender de Fávero (2018, p. 419), “[...] a ausência de hierarquização de valores é muito mais perversa e perigosa que a indicação de certos valores que servirão de indicadores para balizar nossos projetos de vida”. Mais do que isso, vivemos um tempo sem valores ou referências estáveis, contexto que Stein (2011, p. 181) chama de desreferencialização. A todo momento e em qualquer tempo, “[...] podemos mudar as referências, entrar num jogo diferente”. Isso não significa ausência de valores, “[...] mas sim (viver) em um mundo sem valores estáveis, em um mundo de valores que se equivalem e que se revezam” (LE TAILLE, 2009 apud FÁVERO, 2018, p. 419). Portanto, é bastante razoável perguntar: Que sentidos queremos para o fenômeno educativo de nosso tempo?

Admitindo o vigor imponente de uma cultura contemporânea do tédio, cabe à educação escolar a leitura crítica dessa cultura, visando a “[...] instaurar uma cultura do sentido” e a neutralizar o que Han (2016, p. 60) chama de “violência da positividade” (FÁVERO, 2018, p. 425). Notoriamente, tal interpretação crítica exigiria muito mais que “[...] a simples introdução de atividades isoladas no cotidiano escolar”. Fávero (2018, p. 425) destaca que a hermenêutica da cultura do tédio, como exercício crítico-pedagógico permanente, levada a efeito com professores capacitados e comprometidos em promover e implantar a “cultura do sentido”, poderá se tornar um “[...] importante veículo para enfrentar os dilemas educacionais da contemporaneidade”. A educação, nesse sentido, constitui-se em uma possibilidade de construção de uma cultura do sentido, ou seja, de um espaço de partilha de referências comuns à formação humana das novas gerações.

A propósito, Fávero (2018) propõe algumas diretivas que consideramos relevantes à construção dessa cultura do sentido na escola: fornecer ferramentas intelectuais para examinar a vida; criar espaços para a prática de virtudes que possibilitem a construção de significações para a vida; tematizar reflexivamente a crise do tempo que produz a cultura do tédio; tornar o tempo de formação um espaço de apropriação dos valores culturais; compor a bagagem intelectual dos educandos, dando lugar de destaque àquilo que de mais rico a humanidade criou. Desse modo, tornando a memória do passado uma referência importante para perceber o fluxo do tempo, que presta uma homenagem à humanidade e explicita a admiração no sentido de espanto que gera curiosidade e superação, fazendo da educação um processo que dá sentido à vida.

Considerações Finais

Nesse sentido, é procedente concluir, centrando na análise teórica sobre os sentidos do fenômeno educativo, que as escolas antes de serem instrumento a serviço de interesses e valores mercadológicos efêmeros, se vinculam a valores de vida, que são bem mais amplos que a materialidade do mundo do consumo. Conhecer a base material da vida e os seus desafios, significa antes a possibilidade de pensar a educação para além da dimensão estritamente econômica. Compreendemos que não cabe à escola a função de conformação ativa de subjetividades à lógica hegemônica de ser do homem pragmático e do individualismo contemporâneo. É pertinente, desse modo, a ponderação de Stein (1993, p. 42): “[...] na aprendizagem sempre existe a transmissão de um elemento ético, de um elemento relacional, de um elemento de compromisso [...]” com os outros, com o mundo comum.

Sustentamos que o espaço da escola é um lugar privilegiado para o diálogo no sentido da construção de novos horizontes de entendimento e compreensão do mundo comum. As escolas são ambientes importantes à construção de subjetividades comunicativas, assentadas no diálogo, na comunicação, na construção de uma cultura do sentido. É pelo encontro das múltiplas vozes que os participantes desse processo qualificam o sentido e o significado de suas atividades e do próprio mundo.

Parece-nos legítima a ponderação de Dardot e Laval (2016, p. 402): “cabe a nós permitir que um novo sentido do possível abra caminho. O governo dos homens pode alinhar-se a outros horizontes, além daqueles da maximização do desempenho, da produção ilimitada, do controle generalizado”. Podemos reinventar o nosso mundo a partir dos princípios da suficiência (tenho mais do que me falta) e da transcendência (pensar nas futuras gerações). Nessa perspectiva, é possível pensar um mundo para todos os seres humanos, em que todos tenham o direito de saborear as conquistas da humanidade. Responsabilidade e cuidado com o mundo comum poderiam ser dois princípios basilares para uma educação voltada a cultura do sentido em uma sociedade em risco como se apresenta a nossa.

Notas

1Ontologicamente determinado pelo cuidado (Sorge; cura), cada um de nós existe como projeto lançado: ao mesmo tempo que “se projeta em possibilidades”, já está “entregue ao mundo da ocupação” (HEIDEGGER, 2005a, p. 265).

2O fragmento refere-se à passagem para a pós-modernidade como perda de referências que asseguravam uma certa estabilidade ao existir humano. Ou, como afirma Stein (1996, p. 29), “[...] não há mais uma perspectiva de continuidade para além de certos fatos importantes ou para além das vidas individuais”.

3Poderíamos supor, com Taylor (1997, p. 33-34), que essas questões de fundo estão soterradas por uma cultura da “falta de sentido”, ou seja, por um medo generalizado do “[...] vazio aterrorizante, com uma espécie de vertigem, ou mesmo uma fratura do nosso mundo e do nosso corpo-espaço”.

4De acordo com Heidegger (2005a), a possibilidade detém prioridade ontológica sobre a realidade.

5Convém sublinhar a distinção formal entre, por um lado, a hermenêutica como reflexão (e crítica) acerca das condições de possibilidade de produção do sentido e do conhecimento e, por outro, a hermenêutica como abordagem teórico-metodológica de investigação científica, regida pelo interesse prático-dialógico de consenso. Essa exposição elucidativa encontra-se em ARENHART, Livio O.; HAHN, Noli B.; ARENHART, Amabilia B. P.; ROTTA, Edemar, 2022, p. 62-66.

6A respeito dos pressupostos da hermenêutica como abordagem teórico-metodológica, ver ARENHART, Livio O.; HAHN, Noli B.; ARENHART, Amabilia B. P.; ROTTA, Edemar, 2021, p. 95-98 e 107-109. Sobre as possíveis articulações da hermenêutica com outras abordagens teórico-metodológicas, consultar ARENHART, Livio O.; HAHN, Noli B.; ARENHART, Amabilia B. P. ; ROTTA, Edemar, 2022.

7Sobre os pressupostos da abordagem empírico-analítica como abordagem teórico-metodológica, ler ARENHART, Livio O.; HAHN, Noli B.; ARENHART, Amabilia B. P.; ROTTA, Edemar, 2021, p. 91-95 e 107-109.

8Toda a vasta obra de Heidegger, em especial Ser e tempo, publicada em 1927, procura tornar plausível a hipótese de que o conhecimento dos entes pressupõe a compreensão do ser. A distinção entre “ser” e “ente” foi por ele designada mediante o termo “diferença ontológica”.

9Note-se que, numa concepção hermenêutica, o termo “realidade” se aproxima bem mais de “intersubjetividade” que de “objetividade”. Sobre a problemática da objetividade versus intersubjetividade conferir Rorty (1996, p. 41).

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Recebido: 15 de Março de 2023; Aceito: 29 de Maio de 2023

Prof. Dr. Martin Kuhn, Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Santa Catarina, Brasil), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, Grupo de Pesquisa Diversidades, Educação Inclusiva e Práticas Educativas, Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-8107-0814, E-mail: martin.kuhn@unochapeco.edu.br

Prof. Dr. Livio Osvaldo Arenhart, Universidade Federal da Fronteira Sul (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Políticas Públicas, Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Movimentos Sociais e Instituições, Orcid id: https://orcid.org/0000-0003-2554-5480, E-mail: livio.arenhart@uffs.edu.br

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