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Revista Educação em Questão

Print version ISSN 0102-7735On-line version ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.68 Natal Apr./June 2023  Epub Dec 05, 2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n68id32167 

Artigo

Mbo’ehára rembiapo para além do alinhamento à lógica do capital

Mbo'ehára rembiapo más allá de la alineación con la lógica del capital

Adriana Oliveira dos Santos Siqueira1 
http://orcid.org/0000-0002-9189-610X

José Moisés Nunes da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-2799-6835

1Instituto Federal do Rio Grande do Norte (Brasil)


Resumo

O objetivo do artigo é analisar a trajetória da formação de professores (mbo’ehára rembiapo) no Brasil, a partir da década de 1990, e refletir sobre o devir de uma formação ampla, no sentido da ruptura com o alinhamento à lógica do capital. A pesquisa tem abordagem qualitativa, mediada pelas pesquisas bibliográfica e documental, e a dialética como referencial de análise. Discutem-se a lógica pragmatista, a perspectiva progressista e o retrocesso na mbo’ehára rembiapo. Os resultados apontam que as diretrizes curriculares nacionais para a mbo’ehára rembiapo foram um avanço à identidade dos cursos de licenciatura; e que é possível uma outra formação, fundada na formação humana integral, para além do alinhamento à lógica do capital.

Palavras-chave: Formação de professores; Diretrizes curriculares; Lógica do capital; Transformação social

Resumen

El objetivo de este artículo es analizar la trayectoria de la formación del profesorado (mbo'ehára rembiapo) en Brasil, a partir de la década de 1990 y reflexionar sobre el futuro de una formación amplia, en el sentido de ruptura con la alineación con la lógica del capital. La investigación tiene un enfoque cualitativo, mediado por la investigación bibliográfica y documental, y la dialéctica como criterio de análisis. Discute la lógica pragmática, la perspectiva progresista y el retroceso en el mbo'ehára rembiapo. Los resultados indican que las directrices curriculares nacionales para el mbo'ehára rembiapo fueron un avance en la identidad de los cursos de graduación; y que otra formación es posible, basada en la formación humana integral, más allá de la alineación con la lógica del capital.

Palabras clave: Formación del profesorado; Directrices curriculares; Lógica del capital; Transformación social

Abstract

The objective of this article is to analyze the trajectory of teachers’ education (mbo'ehára rembiapo) in Brazil, from the 1990s onwards, and to reflect on the development of a broad education, in the sense of breaking up with the alignment with of the logic of capital. The research has a qualitative approach, mediated by bibliographical and documentary research methodologies, and uses the dialectic as an analysis criterion. The pragmatist logic, the progressive perspective and the retrogression in the mbo’ehára rembiapo are discussed. The results show that the national curriculum guidelines for the mbo'ehára rembiapo were an advance for the identity of the degree courses; and that another education is possible, based on integral human formation, beyond alignment with the logic of capital.

Keywords Teachers’ education; Curriculum guidelines; Logic of capital; Social transformation

Introdução

A globalização é um fenômeno que reduziu distâncias geográficas e acentuou diferenças entre países centrais, periféricos e semiperiféricos (Diniz, 2020). Esse fenômeno também se reflete no processo de internacionalização da educação (IE), o qual, de maneira controversa, tem se tornado significativo em diversas instituições. Essa ocorrência é fortemente estimulada por documentos elaborados por organismos internacionais, como o Banco Mundial (BM), a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), que direcionam os sistemas educacionais no mundo. Dessa maneira, ressalta-se os aspectos exclusivamente positivos da internacionalização, que têm contribuído para que as instituições educacionais a adotem como uma estratégia necessária (Souza, 2018).

A mbo’ehára rembiapo (formação de professores, em língua indígena Guarani) para atuação na Educação Básica, tem ocupado destaque no debate educacional brasileiro, não apenas pela especificidade do tema – formação inicial e continuada de conhecimentos específicos, pedagógicos, estéticos, entre outros – como também pela disputa da concepção de formação e do desenvolvimento da educação com qualidade e da valorização dos profissionais da educação.

Assim, as reformas educacionais promovidas pelo Estado brasileiro, a partir da década de 1990, orientadas por organismos internacionais, tais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e que se alinham ao processo de globalização e à ideologia neoliberal, reservam para a educação superior uma lógica privatista, minimalista e pragmática, no sentido de tornar os gastos públicos mínimos com a educação pública, mas máximos para o capital, por meio das parcerias público-privadas e, assim, garantir os interesses do capital, em detrimento das demandas sociais.

Nesse sentido, o artigo tem por objetivo analisar a trajetória da mbo’ehára rembiapo no Brasil, a partir da década de 1990, e refletir sobre o devir de uma formação ampla, no sentido da ruptura com o alinhamento à lógica do capital.

No que diz respeito aos aspectos metodológicos, a pesquisa tem uma abordagem qualitativa, mediada por uma pesquisa bibliográfica e documental, e a dialética como referencial de análise. A abordagem qualitativa considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito, sendo mais importante a qualidade da informação, a interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados (Silva; Menezes, 2005).

A pesquisa bibliográfica, desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído de livros, artigos científicos, teses etc., permite ao investigador uma cobertura mais ampla do fenômeno que não seria possível pesquisar diretamente. Já a pesquisa documental, serve-se de materiais que não receberam ainda um tratamento analítico, ou podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa. E, a dialética, fornece as bases para uma interpretação dinâmica e totalizante da realidade, já que estabelece que os fatos sociais não podem ser entendidos quando considerados isoladamente, abstraídos de suas influências políticas, econômicas, culturais etc. (Gil, 2008).

A relevância do texto consiste em colocar em debate as políticas educacionais atreladas à formação inicial do docente, fornecendo a partir da análise crítica dos documentos legais, pistas sobre as concepções latentes na formulação dessas políticas, bem com, de suas trajetórias, materializadas nas diretrizes curriculares para a formação inicial de professores da educação básica, de 2002, 2015 e 2019.

Enfim, o artigo está organizado em três seções, além desta Introdução e das Considerações Finais. A primeira seção, intitulada A lógica pragmatista na mbo’ehára rembiapo, tem por objetivo identificar a concepção de formação manifesta na formação docente instruída pela Resolução CNE/CP nº 1/2002; a segunda, denominada A perspectiva progressista na mbo’ehára rembiapo, visa apreender os avanços na concepção de formação alcançados com a Resolução CNE/CP nº 2/2015, sob a perspectiva da organicidade da formação; e a terceira, O retrocesso na mbo’ehára rembiapo intenciona problematizar a Resolução CNE/CP nº 2/2019, que propõe a BNC-formação, sustentada pela base conceitual de racionalidade técnica e burocrática das competências e apontar para uma outra formação, na direção da transformação social e para além do alinhamento à lógica do capital.

A lógica pragmatista na mbo’ehára rembiapo

Com o fim do longo período de Ditadura Civil-Militar (1964-1985), o Brasil experimentou, no processo de redemocratização, a possibilidade do delineamento de políticas públicas educacionais em uma perspectiva de formação integral, visando ao imbricamento da qualificação para o trabalho e o exercício pleno da cidadania.

Esse processo foi consubstanciado pela Constituição Federal de 1988, que não apenas deu visibilidade aos direitos individuais e sociais, como também preceituou que a educação seria efetiva pelo Estado mediante a garantia, entre outras, de Educação Básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade, assegurada a sua oferta também gratuita a todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; valorização dos profissionais da educação; e gestão democrática do Ensino público (Brasil, 1988).

No final de 1996, foi sancionada a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB/1996) – que organizou a educação nacional em dois níveis – Educação Básica, constituída de três etapas: educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; e Educação Superior, compreendendo cursos sequenciais, graduação e pós-graduação. Além disso, estabeleceu sete modalidades de ensino: Educação Profissional e Tecnológica, Educação de Jovens e Adultos, Educação a Distância, Educação Especial, Educação do Campo, Educação Indígena e Educação Quilombola (Brasil, 1996).

Particularmente, em relação a mbo’ehára rembiapo para atuar na Educação Básica, a LDB/1996 preceituou que far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura plena, e que os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, entre outros aspectos, aperfeiçoamento profissional continuado; piso salarial profissional; e condições adequadas de trabalho (Brasil, 1996).

Em 2002, o Conselho Nacional de Educação, por meio do Conselho Pleno (CNE/CP), instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica (DCNFPEB) – Resolução CNE/CP nº 01, de 18 de fevereiro de 2002 – fundamentada no Parecer CNE/CP nº 9, de 8 de maio de 2001, que tratou do mesmo tema.

As DCNFPEB de 2002, alinhadas ao ideário neoliberal experimentado no país, tiveram por fundamento a perspectiva das competências e habilidades, tanto que estabeleceram que, na construção do projeto pedagógico dos cursos de formação dos docentes, seriam consideradas as competências referentes: aos valores inspiradores da sociedade democrática; à compreensão do papel social da escola; ao domínio dos conteúdos a serem socializados; ao domínio do conhecimento pedagógico; de processos de investigação que possibilitem o aperfeiçoamento da prática pedagógica; e as competências referentes ao gerenciamento do próprio desenvolvimento profissional (Brasil, 2002).

Segundo Scheibe e Bazzo (2016), essas Diretrizes, por um lado, trouxeram uma nova perspectiva para a formação de professores, permitindo uma maior diversidade nos modelos de cursos e, por outro, foram ao encontro de uma demanda do campo educacional, essencialmente, com a construção de uma identidade própria para os cursos de licenciatura.

Ainda que as referidas Diretrizes tenham rompido com o padrão conteudista e/ou tecnicista e apontado para a superação do tradicional modelo de mbo’ehára rembiapo vigente no Brasil até então – esquema 3+1 (três anos em um curso de bacharelado e um ano no curso de Didática) –, sofreram críticas dos professores e pesquisadores progressistas da educação, bem como de suas entidades representativas, tais como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), por adotarem uma perspectiva minimalista para a formação e negligenciarem os preceitos constitucionais da educação, sobretudo à gestão democrática e a valorização dos profissionais da educação.

Freitas (2002) ressalta que houve questionamentos a respeito de vários aspectos, tais como: a ênfase sobre a formação na prática e no conceito de competências, que levaram a assunção da concepção pragmatista; e a estipulação da carga horária mínima de 2800 horas dos cursos de formação de professores, por pressão do setor privado, e assim conduzindo ao aligeiramento da formação.

Isso, em conformidade com a orientação de organismos internacionais, como o Banco Mundial, que influenciou, inclusive, os rumos da educação brasileira em todos os níveis, mediante financiamento de políticas públicas de governo tanto econômicas quanto sociais pautadas pela lógica gerencialista. A esse respeito, Cabral Neto assevera que, na década de 1990,

[...] foram criadas as condições propícias para a elaboração de uma agenda global para a educação, sob a coordenação de organizações bilaterais e multilaterais de desenvolvimento, tendo como premissa a necessidade de formular diretrizes para orientar a definição da política educacional no que concerne, particularmente, ao currículo, às práticas pedagógicas, ao financiamento, aos padrões organizacionais de gestão, à formação docente, e à avaliação (Cabral Neto, 2012, p. 25).

A difusão das ideias de um Estado enxuto, eficiente, ágil e moderno no modelo gerencialista repercutiu no campo da educação e, particularmente, na mbo’ehára rembiapo, visto que, os problemas educacionais, sob a ótica do Banco Mundial, resultavam da ineficácia da gestão escolar, sendo necessária a profissionalização de gestores e professores dotados de competências para fazer mais com menos, na lógica do Estado mínimo neoliberal.

Constata-se por um lado, que os avanços e retrocessos na mbo’ehára rembiapo no Brasil, evidenciam a correlação de forças existentes no interior das políticas educacionais, expressamente no embate entre grupos que defendem a democracia vinculada ao grande capital internacional e os que professam a democracia popular e participativa e, por outro, que as DCNFPEB de 2002 conduzem, de fato, a uma formação pragmática, ao estabelecer princípios orientadores para o exercício profissional sustentados por competências e habilidades vinculadas estritamente ao mercado de trabalho e, portanto, alinhada à lógica capitalista, em detrimento de uma formação mais ampla, mediante o aprofundamento dos conhecimentos teórico-científicos que fundamentam à docência.

A perspectiva progressista na mbo’ehára rembiapo

Em 2007, o Ministério da Educação (MEC) realizou estudos e promoveu debates com a comunidade acadêmica, sindicatos e entidades organizadas, no âmbito da Câmara de Educação Básica, do Conselho Nacional de Educação (CEB/CNE) que resultaram no relatório intitulado Escassez de professores no ensino médio: soluções estruturais e emergenciais, onde se identifica um déficit no número de professores para o ensino médio, particularmente nas disciplinas de Química, Física, Matemática e Biologia, e a necessidade urgente de medidas para a sua superação.

Com efeito, coube à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), amparada pela Lei nº 11.502, de 11 de julho de 2007, subsidiar o MEC na formulação de políticas para a mbo’ehára rembiapo da Educação Básica, com o objetivo de expandir a oferta e melhorar a qualidade nos cursos de licenciatura.

Entre as ações desenvolvidas pela CAPES, destaca-se o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), lançado em 2007, mas regulamentado três anos depois, por meio do Decreto nº 7.219, de 24 de junho de 2010, com a finalidade de fomentar a iniciação à docência, contribuindo para o aperfeiçoamento da formação de docentes em nível superior e para a melhoria da qualidade da educação básica pública brasileira.

O PIBID, cuja essência é a inserção do licenciando na escola de Educação Básica pública, desde o início de sua formação, concede bolsas a alunos de licenciatura, inserindo-os no ambiente das escolas públicas, com o objetivo de: incentivar a formação de docentes em nível superior para a Educação Básica; contribuir para a valorização do magistério; elevar a qualidade da formação inicial de professores nos cursos de licenciatura; inserir os licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de educação; mobilizar os professores das escolas públicas de Educação Básica, para atuarem como coformadores dos futuros docentes; e contribuir para a articulação entre teoria e prática necessárias à formação dos docentes, elevando a qualidade das ações acadêmicas nos cursos de licenciatura.

Dados divulgados pela CAPES apontam a positividade do PIBID, uma vez que, até dezembro de 2021, foram beneficiados 35.234 estudantes de licenciatura com bolsas de iniciação à docência; 4.190 professores das escolas públicas de Educação Básica, 1.608 professores das IES e 258 coordenadores institucionais, na composição dos núcleos do Programa; atendendo 3.039 escolas públicas de Educação Básica, situadas em 711 municípios (Coordenação..., 2022).

No início de 2009, foi instituída, por meio do Decreto nº 6.755, de 29 de janeiro, a Política Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PNFPEB), com a finalidade de organizar a formação inicial e continuada dos profissionais do magistério para as redes públicas da Educação Básica, e os seguintes objetivos: promover a melhoria da qualidade da Educação Básica pública; apoiar a oferta e a expansão de cursos de formação inicial e continuada de professores; ampliar o número de docentes licenciados na Educação Básica pública; promover a formação de docentes na perspectiva da educação integral; e promover a atualização teórico-metodológica nos processos de formação dos profissionais do magistério (Brasil, 2009).

Percebe-se o compromisso do Estado com a mbo’ehára rembiapo, mediante novos contornos para além das DCNFPEB de 2002, a fim de assegurar, de um lado, um padrão de qualidade nos cursos de licenciatura, pela práxis fundada no domínio de conhecimentos científico e pedagógicos e, de outro, o direito das crianças e dos jovens e adultos à educação de qualidade socialmente referenciada, possibilitando a sua emancipação.

No âmbito da PNFPEB foi instituído, pela Portaria Normativa do Ministério da Educação nº 09, de 30 de junho de 2009, o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR), sob a responsabilidade da CAPES, com a finalidade de contribuir para a adequação da formação inicial dos professores em serviço na rede pública de Educação Básica, por meio da oferta de cursos de licenciatura correspondentes à área de conhecimento em que atuam, tendo a escola onde o professor trabalha como espaço privilegiado de formação e de pesquisa.

Desde então, a CAPES vem fomentando, para docentes da rede pública de Educação Básica, a implantação de turmas especiais por IES em curso de: primeira licenciatura – para os que não possuem formação superior; segunda licenciatura – para os que possuem licenciatura em área distinta de sua atuação em sala de aula; formação pedagógica – para os que possuem curso superior, sem habilitação em licenciatura. Os resultados apontam que até 2022 foram implantadas, no âmbito do PARFOR, 3.043 turmas, com 100.408 matrículas e 60.780 professores formados, envolvendo 104 IES, o que possibilitou atender, com pelo menos um professor matriculado, 3.300 municípios (Coordenação..., 2023).

Esses dados revelam que o PARFOR, ainda que tenha enfrentado desafios relacionados à gestão e a infraestrutura, apresenta aspectos positivos, como a grande abrangência nacional, o reconhecimento profissional dos docentes e a legitimidade proporcionados pela formação em curso de nível superior, melhoria salarial e, também, o despertar para o pertencimento ao universo acadêmico, que pode motivar ao prosseguimento dos estudos na pós-graduação, bem como à formação intelectual e prática necessárias ao enfrentamento dos desafios da docência, na perspectiva da transformação social.

Alargando a seara da mbo’ehára rembiapo, a Lei nº 11.892, de 20 de dezembro de 2008, criou os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, e estabeleceu entre os objetivos ministrar, em nível de educação superior, cursos de licenciatura, bem como, programas especiais de formação pedagógica, com vistas à formação de professores para a Educação Básica, prioritariamente, nas áreas de Ciências e Matemática, e a garantia de, no mínimo, 20% de suas vagas para atender a esses cursos.

Percebe-se a congruência desse determinante legal – a oferta de licenciaturas nos Institutos Federais – com o relatório Escassez de professores no ensino médio: soluções estruturais e emergenciais mencionado anteriormente. Tanto que, em todos os campi dessas Instituições há a oferta de cursos de licenciatura em Matemática, Física, Química e Biologia, entre tantos outros.

Em 2014, a Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014 instituiu o Plano Nacional de Educação (PNE), para o decênio 2014-2024, com a função de articular esforços em regime de colaboração entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios, para o desenvolvimento de todos os níveis e modalidades de ensino; a formação e valorização do magistério; e o financiamento e a gestão da educação nacional.

O PNE é constituído por 20 metas e 254 estratégias. Especificamente a Meta 15, que possui 13 estratégias, estabeleceu garantir a Política Nacional de Formação dos Profissionais da Educação Básica (que foi instituída pelo Decreto nº 8.752, de 9 de maio de 2016), visando assegurar aos docentes da Educação Básica a formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam (Brasil, 2014).

De acordo com o último relatório referente ao 4º Ciclo de Monitoramento do PNE, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a Meta 15, considerando os indicadores 15A, 15B, 15C e 15D, que correspondem à proporção de professores cuja formação superior está adequada à área de conhecimento que lecionam na Educação Básica (educação infantil, anos iniciais do ensino fundamental, anos finais do ensino fundamental e ensino médio, respectivamente), teve o desempenho apresentado na Tabela 1, no período de 2013 a 2021.

Tabela 1 Adequação da Formação Docente na Educação Básica – 2013-2021 

Etapa 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021
Educação Infantil 42% 44% 45% 47% 48% 50% 55% 59% 61%
Ensino Fundamental – Séries iniciais 54% 57% 58% 59% 61% 63% 66% 70% 71%
Ensino Fundamental – Séries finais 48% 50% 49% 51% 50% 52% 53% 57% 59%
Ensino Médio 58% 60% 59% 60% 61% 62% 63% 65% 67%

Fonte: Painel de monitoramento do PNE-2014-2024 (2022).

Os dados revelam que a meta prevista para 2024 – 100% dos professores da Educação Básica com formação superior obtido em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam – provavelmente não será alcançada, tendo em vista o grande distanciamento da adequação da formação apresentada em todas as etapas em 2021: 59% nos anos finais do ensino fundamental; 61% na educação infantil; 67% no ensino médio; e 71% nos anos iniciais do ensino fundamental (este o melhor resultado).

Isso permite inferir que, embora o PNE seja uma política educacional de Estado, constitucionalmente prevista, não se insere no conjunto das prioridades das ações governamentais, sobretudo após o golpe parlamentar de 2016, que pinçou à Presidência da República Michel Temer (2016-2018) e seu sucessor Jair Messias Bolsonaro (2019-2022).

A esse respeito, concorda-se com Dourado (2018), quando afirma que o reordenamento conservador das políticas e da gestão para a educação nacional pós-golpe, representa a retomada das políticas de governo, em detrimento de movimentos e processos que se organizavam em torno de políticas de Estado, resultando na secundarização do PNE e na adoção de políticas de ajuste fiscal restritivas, sendo a Emenda Constitucional nº 95/2016, que congelou os investimentos na área social por 20 anos, a prova inconteste dessa lógica.

Em 2015, foram instituídas, por meio da Resolução CNE/CP nº 2, de 1 de julho, novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada em Nível Superior de Profissionais do Magistério para a Educação Básica (DCNFPEB), depois de amplo debate com a sociedade civil organizada.

De acordo com as DCNFPEB de 2015, os cursos de formação inicial de professores para a Educação Básica em nível superior (cursos de licenciatura) passaram a ter, no mínimo, 3200 horas de efetivo trabalho acadêmico e duração de, no mínimo, 8 semestres ou 4 anos, compreendendo 400 horas de prática como componente curricular, 400 horas de estágio supervisionado, 2200 horas de componentes curriculares específicos e 200 horas de atividades teórico-práticas de aprofundamento (Brasil, 2015).

Além disso, estabeleceram como princípios da mbo’ehára rembiapo, entre outros: a formação docente para todas as etapas e modalidades da Educação Básica é um compromisso público de Estado; a garantia de padrão de qualidade dos cursos de formação de docentes ofertados pelas IES; a práxis no processo de formação docente, fundada no domínio dos conhecimentos científicos e didáticos; a articulação entre formação inicial e formação continuada; e a compreensão dos professores como agentes formativos de cultura (Brasil, 2015).

De fato, as Diretrizes apresentam uma concepção progressista de mbo’ehára rembiapo, uma vez que enfatizam o compromisso da formação com o projeto ético-político de sociedade, possibilitando a emancipação dos indivíduos; a indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão; a necessária articulação entre Educação Básica e Superior; o reconhecimento das escolas públicas de Educação Básica como espaços necessários à formação docente; a indispensável articulação entre formação inicial e continuada; e a defesa da valorização da profissão de professor no Brasil.

A esse respeito, concorda-se com Silva e Nunes (2020), ao afirmarem que a formação continuada docente, vinculada ao desenvolvimento profissional, se caracteriza pela aprendizagem contínua, cujo início se dá nos cursos de licenciatura. Além de que, possibilita aos professores discussões teórico-práticas que os colocam atualizados em relação aos aspectos educacionais, contribuindo com a melhoria das práticas pedagógicas.

Considerando o fato de que as escolas públicas de Educação Básica são espaços necessários à formação docente, o MEC, por meio da CAPES, anunciou, no final de 2017, no âmbito da PNFPEB, a criação do Programa de Residência Pedagógica (PRP), o qual foi instituído, no ano seguinte, pela Portaria CAPES nº 38, de 28 de fevereiro de 2018, com a finalidade de apoiar as IES na implementação de projetos inovadores que estimulem a articulação entre teoria e prática nos cursos de licenciatura, conduzidos em parceria com as redes públicas de Educação Básica (Coordenação..., 2018).

O PRP se alia ao PIBID na perspectiva de fortalecer a mbo’ehára rembiapo, à medida que possibilita o desenvolvimento da práxis promovida nos cursos de licenciatura nas escolas públicas de Educação Básica, quando da atuação dos licenciandos nas atividades específicas de sua área de conhecimento, planejadas e acompanhadas pelo professor preceptor.

Enfim, pode-se afirmar que, embora existam projetos de mbo’ehára rembiapo em disputa, tanto as DCNFPEB de 2015 quanto o PARFOR, o PIBID e o PRP contribuem para a condução de projetos formativos docentes, açodados na perspectiva da formação ampla dos licenciandos e, por conseguinte, emancipadora e progressista.

O retrocesso na mbo’ehára rembiapo

Logo após o golpe parlamentar de 2016, o governo Michel Temer, alinhado às recomendações do Banco Mundial e do Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef), editou a Medida Provisória nº 746, de 22 de setembro, a qual foi convertida na Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, instituindo a reforma do ensino médio, mediante uma nova organização curricular, ampliação progressiva da jornada escolar desta etapa e criação da Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, não sem o repúdio dos professores e pesquisadores progressistas do campo da educação e de suas entidades organizativas.

No final desse mesmo ano, o CNE instituiu, por meio da Resolução CNE/CP nº 2, de 22 de dezembro de 2017, a BNCC-Educação Básica, um documento de caráter normativo que deliberou o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais (definidas como conhecimentos, habilidades, atitudes e valores, expressando-se em competências) como direito dos adolescentes, jovens e adultos no âmbito da Educação Básica, e estabeleceu 10 competências gerais a serem desenvolvidas (Brasil, 2017).

No ano seguinte, o CNE instituiu, por meio da Resolução CNE/CP nº 4, de 17 de dezembro de 2018, a BNCC-Ensino Médio, reiterando seu fundamento nas aprendizagens essenciais (competências, habilidades, atitudes e valores), expressão dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos estudantes (Brasil, 2018).

Vale ressaltar, que o ensino médio, no final da década de 1990, sob o discurso ideológico governamental de que o ensino médio agora é para a vida, experimentou, também, um currículo baseado em competências e habilidades, em substituição ao modelo curricular instituído pela Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, que integrava formação geral (disciplinas propedêuticas) com formação técnica (disciplinas específicas) em um mesmo currículo.

Complementando o conjunto de medidas retrógadas, no final de 2019, o CNE instituiu, pela Resolução CNE/CP nº 2, de 20 de dezembro, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica (DCNFIPEB) e a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). E, no ano seguinte, a Resolução CNE/CP nº 1, de 27 de outubro de 2020, dispondo sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica e instituindo a Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores da Educação Básica (BNC-Formação Continuada).

A mbo’ehára rembiapo delineada pelas DCNFIPEB de 2019, tem como referência a implantação da BNCC (Educação Básica e Ensino Médio), pressupondo o desenvolvimento, pelo licenciando, das competências gerais previstas na BNCC-Educação Básica, bem como das aprendizagens essenciais a serem garantidas aos estudantes, quanto aos aspectos intelectual, físico, cultural, social e emocional de sua formação (Brasil, 2019).

Ademais, com base nessas competências, o licenciando desenvolverá as correspondentes 10 competências gerais docentes e as 12 competências específicas (vinculadas a três dimensões fundamentais: conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional) e as habilidades correspondentes a elas. Esse conjunto de competências e habilidades compõem a BNC-Formação (Brasil, 2019).

A configuração das DCNFIPEB de 2019 por um lado, desestrutura, literalmente, as questões epistemológicas e a práxis fundantes da mbo’ehára rembiapo e, por outro, fragiliza a formação, ao vinculá-la à lógica da racionalidade capitalista, com o aumento das atividades práticas e redução da formação teórica.

Assim, concorda-se com Veiga (2022, p. 97) quando assevera que a Resolução CNE/CP nº 2/2019 “[...] propõe mais um treinamento de competências e habilidades. Nesse sentido, os estudantes serão moldados nos termos do trabalho fabril, o que poderá gerar a alienação, passividade, mecanização do trabalho docente e a individualização.”

As DCNFIPEB de 2019 seguem em movimento diametralmente oposto às DCNFPEB de 2015, pois precarizam a mbo’ehára rembiapo, ainda que preconize superficialmente a articulação entre formação inicial e formação continuada, reforça a cisão, com a subtração da segunda no seu escopo, como se essa formação não prescindisse daquela. Tanto que a desvinculação ganhou respaldo legal com a Resolução CNE/CP nº 1/2020. Assim, fica evidente que as DCNFIPEB de 2019 rompem

[...] objetivamente, a articulação entre formação inicial e continuada com claras motivações privatistas, que perpassam seu texto em seu contexto político e econômico. As omissões pontuais, como a política de valorização docente e a formação profissional, tecnológica, reforçam essa política de privatização e precarização da formação de professores (Ferreira, 2022, p. 89).

Observa-se, ainda, que as Diretrizes de 2019 representam um retrocesso em relação as conquistas alcançadas com as DCNFPEB de 2015, pois se coadunam com o projeto de desmonte das políticas educacionais, onde se situa a mbo’ehára rembiapo, para a qual se impõe uma padronização que solapa a subjetividade e o sujeito docente, atende a outros interesses que não são os dos professores e não possibilita uma formação inicial na perspectiva da formação humana integral.

Ora, a mbo’ehára rembiapo delineada nas DCNFIPEB de 2019, que se coaduna com a reforma do ensino médio e com a BNCC, tem exatamente o viés, da flexibilização, da redução de custos, da formação minimalista desprovida de conhecimentos teóricos-epistemológicos-científicos, da vinculação ao ideário neoliberal e, por conseguinte, à lógica do capital.

Assim, infere-se que a precária mbo’ehára rembiapo decorrente das DCNFIPEB de 2019 não é um fato isolado e, sim, que faz parte de um projeto maior de sociedade ancorado na individualidade e nos interesses do capital, convergindo no campo educacional, com cortes no financiamento da educação pública, com a oferta de cursos aligeirados em todos os níveis de educação e com processos de ampliação da oferta de formação em instituições privadas.

Todavia, é imperioso romper com a lógica do capital que condiciona a educação da classe trabalhadora às demandas do processo produtivo, negando a apropriação da herança cultural historicamente construída e necessária ao desenvolvimento das capacidades humanas dos indivíduos.

Até porque aceitar imóvel as proposições interesseiras do capital para a educação como um todo e, para a mbo’ehára rembiapo em particular, significa abandonar a utopia de uma transformação qualitativa da sociedade, para além da lógica do capital.

Nesse sentido, e assumindo a educação como inerente à formação humana e constitutiva do ser humano, entende-se que a mbo’ehára rembiapo pode ser desenvolvida em uma perspectiva de transformação qualitativa da sociedade e, por conseguinte, para além do capital, ainda que seja desenvolvida em uma sociedade capitalista.

Isto significa por um lado, revogar os atuais dispositivos legais – Lei nº 13.415/2017; Resolução CNE/CP nº 2/2017; Resolução CNE/CP nº 4/2018; Resolução CNE/CP nº 2/2019; e Resolução CNE/CP nº 1/2020, que juntos concorrerem para um ensino e aprendizagem self-service – e, por outro, materializar a mbo’ehára rembiapo como um devir da práxis emancipatória e, neste caminho, mobilizar esforços na perspectiva da socialização integral dos conhecimentos historicamente construídos, da autonomia didático-pedagógica dos professores, do exercício das práticas educativas que conduzam à valorização da ciência e da cultura e à a luta política e formativa da classe trabalhadora.

Além disso, é imprescindível que o devir da mbo’ehára rembiapo para a Educação Básica, contemple efetivamente, na organização curricular, a tríade ensino, pesquisa e extensão; a prática social como ponto de partida e as demandas sociais como ponto de chegada; a interdisciplinaridade nas dimensões ético-política-metodológica; a contextualização enquanto relação entre a parte e o todo; e o imbricamento do trabalho como princípio educativo, ciência, tecnologia e cultura como fundamentos para a formação integral dos licenciandos, o que contribuirá para o rebatimento em suas ações pedagógicas no âmbito das escolas públicas e na formação dos adolescentes, jovens e adultos.

A respeito do exercício da prática social na mbo’ehára rembiapo, Saviani aponta a pedagogia histórico-crítica como uma formulação teórica, sintetizando que os professores têm

[...] uma contribuição específica a dar em vista da democratização da sociedade brasileira, do atendimento aos interesses das camadas populares, da transformação estrutural da sociedade. Tal contribuição se consubstancia na instrumentalização, isto é, nas ferramentas de caráter histórico, matemático, científico, literário etc., que o professor seja capaz de colocar de posse dos alunos. [...] tal contribuição será tanto mais eficaz quanto mais o professor seja capaz de compreender os vínculos da sua prática com a prática social global. Assim, a instrumentalização se desenvolverá como decorrência da problematização da prática social, atingindo o momento catártico que concorrerá a nível da especificidade da matemática, da literatura etc., para alterar qualitativamente a prática de seus alunos enquanto agentes sociais (Saviani, 2013, p. 238).

Por isso, os cursos de licenciatura precisam proporcionar aos licenciandos sólidos conhecimentos teórico-metodológicos em sua área específica, assim como no âmbito da educação como um todo e, da educação profissional e da educação de jovens e adultos, em particular, a fim de que o futuro professor seja capaz de [re]pensar continuamente a ação educativa, para além de uma formação restrita (Diogo; Christ, 2022).

Faz-se necessário, também, o estreitamento da relação das IES públicas formadoras com os sistemas públicos de Educação Básica. Para isso, o PIBID, que trata da inserção nas escolas públicas dos licenciandos que estão na primeira metade de sua formação nos respectivos cursos de licenciatura e o PRP, na segunda metade, são programas que, se consolidados como política de Estado e expandidos anualmente, contribuirão decisivamente para a sustentação dessa relação.

Vale ressaltar que esses programas, ao possibilitarem a articulação entre teoria e prática, desde o início da formação dos estudantes nos cursos de licenciatura, futuros professores, e o contato com a realidade escolar, por meio das experiências vivenciadas em salas de aula, a indução ao exercício da pesquisa como princípio pedagógico e a reflexão sobre os aspectos políticos, sociais, econômicos, culturais, afetivos e da prática pedagógica, os aportes técnico-científico-tecnológicos e as dimensões social e histórica da função da educação e da escola, decerto fortalecerão a política de mbo’ehára rembiapo.

Assim, a mbo’ehára rembiapo implica refletir sobre a prática educativa a partir do aporte teórico que a fundamenta, de modo a orientar a ação docente no sentido de uma nova leitura de mundo, de homem e de sociedade, e da dimensão política, na perspectiva da transformação social e da mudança da realidade.

Ainda no âmbito da política de mbo’ehára rembiapo é mister um olhar acerca do acesso, permanência e êxito dos estudantes nos cursos de licenciatura, isto porque o fenômeno da evasão evidenciado, de modo geral, nos cursos superiores, requer um enfrentamento, não somente pelo aspecto econômico do desperdício de recursos públicos, mas também pelo público atingido.

Segundo Azevedo (2019, p.195), “[...] a evasão tem atingido de forma mais cruel os estudantes das classes sociais de menor renda e capital cultural, justamente aqueles que historicamente tiveram – e ainda hoje têm – dificuldade de acesso ao ensino superior”. Ademais, o estudo desse autor apontou que a evasão foi, em média, maior nas licenciaturas em Matemática, Química e Física do que em Pedagogia, Geografia, Biologia, História e Línguas (Portuguesa e/ou Estrangeira).

Com efeito, percebe-se que há uma diversidade de situações e especificidades relacionados às causas da evasão, mesmo quando se trata de um mesmo agrupamento, como é o caso das licenciaturas. Em vista disso, é basilar conhecer, antes de tudo, as causas da evasão e da retenção para se pensar políticas, estratégias e ações adequadas a cada realidade, que promovam a permanência e o êxito, sem perder de vista a equidade de condições de aprendizado e participação na vida acadêmica, ou seja, a democratização do acesso e a qualidade da educação.

A política de mbo’ehára rembiapo que se delineia deve acolher os princípios estabelecidos na Constituição Federal de 1988, na LDB/1996, no PNE (2014-2024) e nas diretrizes curriculares nacionais que nortearão o currículo, a serem construídas, em regime de colaboração, entre as instituições formadoras, professores e pesquisadores da educação, entidades de classes, Estados, Distrito Federal, municípios e CNE.

Enfim, infere-se que uma outra mbo’ehára rembiapo, ampla, integral, integrada, participativa e emancipatória, é possível, em contraponto ao alinhamento à lógica do capital e no seio da sociedade capitalista, ou seja, para que uma outra formação seja alcançada não precisa esperar uma pós-revolução que conduza a um outro tipo de sociedade.

Considerações finais

A trajetória da mbo’ehára rembiapo, desde a LDB/1996, é representada por avanços e retrocessos, em função de embates e disputas promovidas pela divisão de classes presente na sociedade brasileira e, portanto, não segue uma linearidade no sentido de fortalecer uma concepção de formação docente na perspectiva de uma formação humana integral.

A similitude entre a mbo’ehára rembiapo capitaneada pelas DCNFIPEB de 2019 e a Reforma do Ensino Médio concebida pela Lei nº 13.415/2017, permite evidenciar que as políticas educacionais empreendidas no Brasil, desde a década de 1990, orientadas por organismos internacionais, não estão desarticuladas de um projeto mais amplo de sociedade baseado nos interesses do capital, prevalecendo os aspectos econômicos em detrimento dos direitos sociais.

Os desdobramentos desse projeto para a política de mbo’ehára rembiapo, concorrem para a consolidação da lógica privatista e do ideário neoliberal no âmbito da educação superior, consubstanciado na desvalorização da escola pública, na minimização do papel do Estado diante das políticas públicas, em especial das educacionais e do considerável avanço das IES privadas.

No âmbito da lógica do capital percebe-se o desenvolvimento de projetos pedagógicos vinculados ao regime de acumulação flexível, mediante o caráter aligeirado dos cursos que exigem recursos financeiros reduzidos precarizando a formação e, particularmente, na mbo’ehára rembiapo, negando o acesso do professor aos bens sociais e culturais historicamente construídos e a uma formação sólida, integral, ancorada no tripé ensino, pesquisa e extensão e na perspectiva da transformação social.

O estudo ora realizado constata que a instituição de diretrizes para a mbo’ehára rembiapo foi um avanço na construção de uma identidade própria para os cursos de licenciatura, superando o tradicional modelo 3+1. Não obstante, a trajetória das regulamentações e dispositivos legais contribuem, a exceção da Resolução CNE/CP nº 2/2015, para a precarização da formação docente, à medida que a atrela ao discurso oficial da formação por competências, presente tanto na proposta curricular quanto dos cursos de licenciatura quanto na gestão nas instituições formadoras e, por conseguinte, à prescrição dos organismos internacionais, vinculados a representantes do capital.

Uma outra concepção de mbo’ehára rembiapo é possível, mesmo no âmbito da sociedade capitalista, dada a sua função social, política e cultural e ao comprometimento com a transformação social. Para tanto, é indubitável a desvinculação da educação com as pautas econômicas; a equacionalização dos currículos dos cursos de licenciatura, contemplando a conexão da teoria com a prática, desde o início da formação; a imersão dos licenciandos (futuros professores), ao longo do curso, nas escolas públicas de Educação Básica; o comprometimento com o domínio e a integração dos conteúdos específicos com os fundamentos epistemológicos-didáticos-pedagógicos; e a definição de um perfil da identidade profissional de professor.

A ideia subjacente é, sem dúvida, a da concepção da mbo’ehára rembiapo na perspectiva da formação humana integral, de modo que a ação pedagógica docente seja desenvolvida no sentido de reconhecer o direito à educação de todos os indivíduos, nomeadamente, da classe trabalhadora, e conduzir à emancipação e transformação da sociedade.

Enfim, assumindo que o escopo das políticas educacionais é a qualidade da educação e o fortalecimento da formação dos estudantes, é imprescindível que a mbo’ehára rembiapo seja desenvolvida em condições materiais adequadas e concebida a partir da função social da educação: o pleno desenvolvimento dos estudantes, mediante a socialização dos conhecimentos historicamente acumulados, seu preparo para o exercício efetivo da cidadania, consolidando valores morais, éticos e estéticos coerentes com a vida em sociedade e a qualificação para o trabalho

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Recebido: 12 de Abril de 2023; Aceito: 13 de Agosto de 2023

Ms. Adriana Oliveira dos Santos Siqueira, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional, Instituto Federal do Rio Grande do Norte (Brasil), Núcleo de Pesquisa em Educação, Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-9189-610X, E-mail: adrianaifstm@gmail.com

Prof. Dr. José Moisés Nunes da Silva, Instituto Federal do Rio Grande do Norte (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional, Núcleo de Pesquisa em Educação, Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-2799-6835, E-mail: moises.silva@ifrn.edu.br

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