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Revista Educação em Questão

Print version ISSN 0102-7735On-line version ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.68 Natal Apr./June 2023  Epub Dec 05, 2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n68id32756 

Artigo

Quem não cola não sai da escola? Bricolagem de estudantes do ensino médio

Who doesn't cheat doesn't leave school? Bricolage of high school students

Quien no hace trampa no deja la escuela? El bricolaje de los estudiantes de secundaria

Eanes dos Santos Correia1  2 
http://orcid.org/0000-0002-9188-4336

Veleida Anahí Cápua da Silva Charlot3 
http://orcid.org/0000-0002-0920-5884

Willdson Robson Silva do Nascimento4 
http://orcid.org/0000-0002-2350-7731

1Universidade Federal de Sergipe (Brasil)

2Universidade Estadual da Bahia (Brasil)

3Universidade Federal de Sergipe (Brasil)

4Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Brasil)


Resumo

O artigo tem como objeto de estudo a questão subjetiva, a relação entre o saber dos estudantes e as bricolagens que eles sustentam nas aulas do ensino médio de uma escola estadual da cidade de Cumbe, Sergipe. Temos, como ponto de partida, duas questões: qual é a relação entre o saber dos estudantes e a bricolagem? Que sentido a cola tem para os estudantes? Utilizamos elementos da relação com o saber de Bernard Charlot, principalmente, desejo, posição subjetiva, figuras do aprender e relação epistêmica com o saber; e a noção de bricolagem a partir de Michel de Certeau. Conclui-se que cola é uma alternativa para a não reprovação do(a) estudante em uma determinada disciplina com a qual não tem afinidade ou sente dificuldade de estudar e aprender. É um dispositivo de motivação, com caráter de imediatez e mobilização, pelo fato de encontrar sentido em se sobressair às lógicas simbólicas da escola diante de uma prova escrita. Além disso, é um dispositivo de relação com o saber que confronta as normas e lógicas simbólicas da escola e de disciplinas específicas.

Palavras-chave: Bricolagem; Cola; Estudantes do ensino médio; Relação com o saber

Abstract

The article has as object of study the subjective question, the relationship between the students' knowledge and the bricolages they sustain in the high school classes of a state school in the city of Cumbe, state of Sergipe. We have, as a starting point, two questions: what is the relationship between students' knowledge and bricolage? What is the meaning of cheating on a test for students? We used elements of Bernard Charlot's knowledge, mainly, desire, subjective position, figures of learning and epistemic relationship with knowledge; and the notion of bricolage from Michel de Certeau. It is concluded that cheating is an alternative for the student not to fail in a particular subject with which he/she has no affinity or finds difficult to study and learn. It is a motivational device, with immediacy and mobilization character, because it finds meaning in overcoming the symbolic logics of the school in the face of a written test. In addition, it is a device of relationship with knowledge that confronts the norms and symbolic logics of the school and of specific subjects.

Keywords: Bricolage; Cheating on a test; High school students; Relationship with knowledge

Resumen

El artículo tiene como objeto de estudio la cuestión subjetiva, la relación entre los saberes de los estudiantes y los bricolajes que sostienen en las clases de enseñanza media de una escuela pública de la ciudad de Cumbe, Sergipe. Tenemos como punto de partida dos preguntas: ¿cuál es la relación entre el conocimiento de los estudiantes y el bricolaje? ¿Cuál es el significado de la trampa para los estudiantes? Utilizamos elementos de la relación de Bernard Charlot con el saber, principalmente, el deseo, la posición subjetiva, las figuras del aprendizaje y la relación epistémica con el saber; y la noción de bricolaje de Michel de Certeau. Se concluye que hacer trampa es una alternativa para que los(as) estudiantes no reprobar en una determinada disciplina con la que no tiene afinidad o le resulta difícil estudiar y aprender. Es un dispositivo motivacional, con carácter de inmediatez y movilización, debido a que encuentra sentido en la superación de las lógicas simbólicas de la escuela frente a una prueba escrita. Además, es un dispositivo de relación con el saber que confronta las normas y lógicas simbólicas de la escuela y de disciplinas específicas.

Palabras clave: Bricolaje; Trampas en las pruebas; Estudiantes de secundaria; Relación con el saber

Introdução

Provavelmente já ouvimos alguma vez a expressão “se não prestar atenção ou faltar às aulas vai reprovar!”, “preste atenção! Isso vai cair na prova!”. Dessa forma, os sentidos são produzidos nas lógicas simbólicas da escola, dos professores e dos estudantes matriculados regularmente nas instituições de ensino, principalmente na educação básica. Essas expressões são resultantes de uma escola que se encontra envolvida em uma lógica do desempenho e da concorrência a partir de uma perspectiva neoliberal que visa a competências e habilidades, esquecendo-se da educação como um triplo processo de singularização, socialização e humanização (Charlot, 2020).

A escola é lugar de saber e de socialização dos estudantes, lugar de relações, de atividade intelectual e de aprendizagem. Ela também é lugar de garantia de um emprego para os estudantes que concluem sua vida escolar básica. O saber científico é base fundamental no qual a escola se sustenta. É nesse saber que a escola cria sentido através das relações professor e estudantes na sala de aula e nas atividades escolares.

Não obstante, diante das cobranças por aprovação – tirar boas notas e progredir para um ano posterior –, os estudantes também se sentem na obrigatoriedade de não serem reprovados. Para isso precisam de boas notas, não somente na disciplina que gostam, mas também naquelas que odeiam ou sentem dificuldades. Por isso, os estudantes “colam” nas provas avaliativas. O que isso significa? Significa que eles se mobilizam e utilizam recursos possíveis para sobreviver e se sobrepor às lógicas da escola. Os estudantes têm uma relação com o saber e, a partir dessa assertiva, nos colocamos diante do seguinte questionamento: qual relação entre o saber dos estudantes e a bricolagem? Que sentido a cola tem para os estudantes?

A pesquisa sobre a relação entre o saber e a cola – tipo de bricolagem – se dá a partir das experiências dos pesquisadores/professores deste artigo a fim de discutir sobre esse fenômeno que ocorre no cotidiano escolar.

O desejo e a norma

O desejo está acima da lei. Ele movimenta o homem. Como seres faltantes, estamos à procura de algo que nos falta, à procura da completude. A norma é parte integrante da formação do desejo, o “nome-do-pai ou não-do-pai” dado pela triangulação cuidador(a), criança e “pai”. O desejo e a norma formam o sujeito (Charlot, 2020).

O desejo e a norma formam uma unidade dialética. Complementam-se na formação do sujeito que se estabelece em uma relação com o mundo. Uma pessoa em um mundo sem norma, não se constitui sujeito, é louco. O mesmo ocorre, também, quando não se dispõe do desejo. A formação psíquica e a constituição humana necessitam da norma e do desejo para se estabelecer como uma relação humana comum. Em relação a si mesmo, ao outro e ao mundo.

Sem desejo não há sentido para a aprendizagem do estudante, para que ele entre em uma atividade intelectual e para que possivelmente aprenda conteúdos intelectuais da escola. Já sem a norma não existe a construção do sujeito e sem o sujeito indissociavelmente não existe o desejo.

O desejo é a mola propulsora do sentido que mobiliza o estudante a entrar em uma atividade intelectual e em uma situação didática na sala de aula (Charlot, 2000; 2013). Esse mesmo desejo, sentido e mobilização faz com que o estudante encontre um bom motivo e a disponibilidade para colar em momentos de avaliação/prova regular da escola.

Para Charlot (2000) motivação e mobilização são conceitos distintos, por considerar que “motivação” é algo externo ao sujeito, efêmero, que vem de fora, não é determinante para que o estudante se movimente. Já a “mobilização” é um movimento próprio, que vem de dentro, uma dinâmica interna do sujeito, do desejo e do sentido, que focaliza os instrumentos mediadores para buscar novas informações e utilizar seus conhecimentos prévios para aplicar a novos contextos. Ou seja, “[...] o termo mobilização tem a vantagem de insistir sobre a dinâmica do movimento [...]” (Charlot, 2000, p. 55) na seara do desejo e do sentido que implica na utilização de si mesmo como recurso para colar e também para aprender.

A norma é a base, é o nome que dá formação ao sujeito que deseja, pois sem a norma o indivíduo entra em evidência e o sujeito em inexistência. Por isso, o desejo e a norma são tão importantes no entendimento e na formação desse sujeito – estudante – que antropologicamente é incompleto e a todo o momento é confrontado com a necessidade de aprender coisas, importantes ou úteis, de longo ou curto prazo (Charlot, 2000; 2020).

É a partir da problemática do desejo e da norma que os estudantes vão construindo formas de viver dentro e fora da escola, criam relações, tomam atitudes de ir para a direita ou esquerda, para trás ou para frente, de acatar e/ou desobedecer a regras, leis, acordos sociais, normativas da escola de comportamento, de avaliação e convivência comum no ambiente escolar. Esses estudantes são sujeitos de relações e são singulares em processo de socialização e sociais em processo de singularização, de humanização e subjetivação.

Posição subjetiva e bricolagem dos estudantes

A posição subjetiva dos estudantes é uma das faces da unidade dialética – posição objetiva e subjetiva. O que isso quer dizer? Há um sujeito que se encontra inserido ou faz parte de uma determinada classe social, econômica e intelectual por entender que cada pessoa vive e pertence a algum lugar na sociedade – posição objetiva. A partir da posição objetiva de um lugar de onde uma pessoa está inserida socialmente é que podemos partir para a discussão sobre a sua posição social subjetiva, que nada mais é do que as formas que essa posição funciona nas lógicas simbólicas e na forma de pensar de um determinado sujeito. É a maneira como funciona a sua cabeça, o seu modo de pensar sobre a vida, seus desejos, suas experiências e também suas projeções presentes e futuras, baseadas em uma lógica de objetivo e meta, numa ação ou num modo de pensar que envolve objetivo, ação e mobilização a partir desse sentido, alcançando uma meta, ou seja, o objeto que deseja obter por meios próprios mobilizados pelo desejo (Charlot, 2013).

A posição social subjetiva do sujeito subjetivo tem origem também a partir do existencialismo de Sartre (2002, p. 61), segundo o qual “[...] é preciso viver: não somos torrões de argila e o importante não é o que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos com o que fizeram de nós [...]" e que nos faz pensar sobre essa capacidade que o homem tem como ser que pensa e age no e sobre o mundo, com potencialidades de assimilar e sintetizar informações e saberes, que irão lhe constituir enquanto ser social, epistêmico e identitário, na noção da relação com o saber de Charlot (2000; 2005; 2013).

Já em Michel de Certeau (1998), esse sujeito subjetivo se investe no que ele vem designar como o insubmisso, que não se encaixa na ordem, pois nem todo agente é passivo, reprodutor e produto dessa produção, mas sujeito bricolante que se sobressai às lógicas simbólicas sociais que lhes são impostas de forma sutil e docilizadora. É nesse ponto que Certeau (1998) e Sartre (2002) coadunam para a gênese da posição subjetiva do sujeito de desejo desenvolvida por Charlot (2000; 2005; 2013). Todavia, se existe uma posição subjetiva, a lógica é que uma objetiva a sustenta nessa ortopedia.

A bricolagem está ligada ao conceito de tática, desenvolvido por Certeau (1998), dando lugar às suas formas de pensar, agir e se sobressair às determinadas situações de curto prazo com a intenção de solucioná-las. A tática, para Certeau (1998), não exige normas ou regras fundamentadas, embasadas para sua constituição, ela está na base do improviso, com resultado imediato ao que se pretende no momento que se utiliza. E que os estudantes utilizam como tática está implicado nas formas como eles se relacionam com o mundo, o outro e consigo mesmo e se configuram nas figuras do aprender.

As figuras do aprender e os estudantes

Para Bernard Charlot (2000), a necessidade de aprender está muito aquém da questão do saber, uma vez que ele considera que “[...] existem maneiras de aprender que não consistem em apropriar-se de um saber, entendido como conteúdo de pensamento” (Charlot, 2000, p. 59). Isto é, há figuras do aprender para as quais a relação com o saber está disponível no mundo para dominar, aprender e se relacionar em uma atividade ou na vida.

Do ponto de vista de Charlot (2000), destacam-se três figuras do aprender: objetos-saberes (são os conhecimentos intelectuais, saberes disponíveis em objetos, programas de computador, livros, monumentos, obras de arte e até mesmo nas pessoas); atividades a serem dominadas (domínio de uma atividade específica que geralmente estão interpeladas no corpo como ler, nadar, andar, manusear objetos específicos e atividades cotidianas das pessoas); e dispositivos e formas relacionais (imbricados nas relações sociais e de condutas como ser gentil, parar no sinal vermelho, atravessar na faixa de pedestre, não jogar lixo em locais impróprios, seguir normas sociais, direitos e deveres etc.).

Percebe-se que “[...] o que é diferente nessas três figuras do aprender é a relação com o saber e, não, características naturais e ontológicas do aluno ou do mundo” (Charlot, 2000, p. 71). Dessa forma, no objeto-saberes um estudante pode aprender um determinado conteúdo intelectual de uma disciplina da escola a partir dos sentidos que ele atribui a esse conteúdo ou disciplina. Nessa figura, há uma relação de não posse à posse de um conhecimento, na evocação de um saber-objeto inscrito em um material como livro, celular, computador, internet; nas pessoas com que se relaciona, como professor, colega de classe, amigos, parentes, diretor etc.; e em determinados lugares, como escola, teatro, museus, biblioteca e laboratórios.

Nessa figura, há uma forma de relação epistêmica com o saber a qual Charlot (2000) chama de objetivação-denominação, ou seja, entende-se que o aprender é a apropriação de um saber através da linguagem. Para esse autor, “[...] o processo epistêmico que constitui, em um mesmo movimento, um saber-objeto e um sujeito consciente de ter-se apropriado de tal saber” (Charlot, 2000, p. 68). É apropriar-se de um objeto virtual, o saber, que está nos objetos empíricos (livros), em lugares (escola) e inscritos nas pessoas (professores) de forma intelectual, diferentes de ações no mundo, nas emoções e na percepção.

Na figura de atividades a serem dominadas, está evocada a relação de não domínio ao domínio de uma atividade ou objeto. Não se envolve, aqui, a situação de não posse à posse de um conhecimento, mas aprender a dominar objetos e/ou atividades. Para Charlot (2000, p. 69), esse domínio se relaciona com o próprio corpo, pois “[...] o corpo é o sujeito enquanto engajado no movimento da existência, enquanto habitante do espaço e do tempo”. Existe uma forma de relação epistêmica com o saber denominada de imbricação do Eu na situação em um “[...] processo epistêmico em que o aprender é o domínio de uma atividade ‘engajada’ no mundo” (Charlot, 2000, p. 69).

Destaca-se que o que é aprendido nessa relação epistêmica com o saber não é constituído de maneira reflexiva, o aprender adquire sentido na determinada situação que está sendo dominada, na própria dinâmica do estudante, do Eu na situação, em que seu corpo, percepções e formas de agir estão engajados no domínio de uma atividade no mundo (Charlot, 2000).

Na figura dos dispositivos e formas relacionais estão implicadas as formas de se relacionar e de dominar uma relação ou atitude. Nessa figura, aprender é ter relações afetivas e emocionais definidas “[...] por sentimentos e emoções em situação e em ato [...]” (Charlot, 2000, p. 70) de relações consigo mesmo e com os outros.

Nessa figura, a última forma de relação epistêmica com o saber, a distanciação-regulação, implica as formas de subjetividade de relações de condutas com o outro e consigo mesmo e dominar comportamentos. Nesse processo, o produto do que se aprende é o “[...] conjunto de processos psíquicos implementados nas relações com os outros e consigo mesmo” (Charlot, 2000. p. 70). É nesse aspecto que devemos perceber que as emoções, as percepções, os sentimentos, os afetos e as relações que os estudantes têm os fazem refletir sobre aquilo que aprendem. O estudante que é capaz de regular essas relações de distanciação para reflexão pessoal dos sentimentos e emoções torna possível uma maneira de compreender a vida e refletir sobre ele mesmo e o mundo. Por último, aponta Charlot:

Em cada uma dessas três figuras do aprender, em cada um desses três processos epistêmicos, há uma atividade, mesmo que seja de natureza diferente (constituição de um universo de saberes-objetos, ação no mundo, regulação da relação com outros e consigo). Em cada uma dessas figuras, em cada um desses processos, há um sujeito, portanto, uma forma de consciência, o que impede a redução da aprendizagem a algo concreto (Charlot, 2000, p. 71).

Portanto, as figuras do aprender não evocam apenas um objeto de interesse, mas aprendem a apropriar-se de conteúdos intelectuais, a dominar uma atividade e uma relação. Dessa forma, de um ponto de vista pedagógico, o que se torna diferente nessas figuras é a relação com o saber do estudante, algo que é construído.

Eu colo, tu colas e ele cola: conjugando os estudantes e a pesquisa

Este artigo se configura em uma pesquisa de campo empírica, na qual cinco estudantes do terceiro ano do ensino médio de uma escola pública estadual participaram de forma voluntária via questionário disponível no Google Forms. O primeiro autor deste artigo entrou em contato com os estudantes, apresentou a proposta da pesquisa, convidou-os a participarem e a assinarem um termo de consentimento livre e esclarecido.

Utilizamos um questionário com três enunciados que deveriam ser completados com uma frase, enunciado, palavra ou uma redação que pudesse dar sentido à expressão inicial e nos possibilitasse a produção de dados para análise, discussão e conclusão da pesquisa diante de seus objetivos, problemática e noções abordadas. Para manter o anonimato e fins éticos, os estudantes são identificados pela letra E e um número de ordem de 1 a 5, isto é, de E1 até E5.

No primeiro enunciado explicitamos: “A cola, para mim, é...” e obtivemos as seguintes respostas no quadro 1 abaixo:

Quadro 1 A cola, para mim, é... 

Estudante participante Respostas ao enunciado
E1 Desnecessária, porém, válida em alguns momentos de perrengues.
E2 Insignificante, e não traz nenhum benefício a ninguém...
E3 Uma alternativa.
E4 A salvação para sair do colégio.
E5 Uma forma de burlar o teste de sua aprendizagem.

Fonte: elaborado pelos autores a partir do questionário (2022).

O objetivo do primeiro enunciado foi verificar o sentido que os estudantes atribuiriam à cola, uma vez que todos já fizeram tal prática. Além disso, traz um bojo de funcionalidade, de lógicas simbólicas que estão interpeladas nos seus discursos, as quais podemos verificar em suas próprias explicitações.

O estudante E1 inicialmente explicita que é uma prática “desnecessária”, mas, ao mesmo tempo, confirma a relevância de colar asseverando que é uma bricolagem “válida em alguns momentos de perrengues” que provavelmente são as ocasiões em que pode apelar ao uso da cola quando não sabe ou tem dificuldades com os assuntos da prova escrita. O estudante E2 afirma a irrelevância em colar, trazendo um tom de invalidade de seu uso. O E3 entende o uso da cola como uma “alternativa”, isto é, uma opção para ir bem na prova, tirar boa nota e não ser reprovado ao final do ano letivo. O E4 atribui à cola a sua “salvação” e um recurso para sair da escola. Em outras palavras, ele tem que usar de bricolagem para sair logo da escola, inclusive utilizando o auxílio da cola para se livrar das lógicas simbólicas de aprovação e reprovação por meio de atribuições de notas da cultura escolar. Por último, o estudante E5 traz em seu discurso uma deslegitimação da cola no que se refere à avaliação da aprendizagem.

Os sentidos direcionados à cola são múltiplos e suas funcionalidades também, pois as posições subjetivas são distintas, estão ligadas às experiências, desejos e às metas de cada estudante (Charlot, 2000). Diante disso, a bricolagem entra em cena, ela tem um fim, uma funcionalidade, uma razão lógica para ser fomentada (Certeau, 1998; Correia; Silva; Nascimento, 2021). Os estudantes utilizam-na como uma forma de escape das normas estabelecidas pela escola, a qual estabelece que apenas conseguem boas notas nas provas aqueles que respondem as questões de forma “correta”, sem pesquisar em livro, no celular, sem consultar colegas ou anotações feitas de maneira antecipada, escondidas em algum lugar ao alcance do estudante. Dessa forma, enquanto bricolagem, ela se torna um alívio dos “perrengues”, “insignificantes” sem benefícios, uma “alternativa”, “salvação para sair do colégio” e uma maneira de “burlar” a avaliação da aprendizagem, segundo as explicitações dos participantes.

Em suma, a cola é uma via de mão dupla, na qual há benefícios e ônus, segundo as explicitações dos estudantes. O que muda o sentido dessa determinação dupla é o próprio sentido que os estudantes atribuem a ela, positivo ou negativo. A cola, nesse sentido, é uma atividade dominada pelos estudantes, ou seja, uma configuração da figura do aprender (Charlot, 2000).

Assim, submetemo-nos ao segundo enunciado, o qual se direciona às disciplinas que os estudantes possivelmente se utilizaram da cola: “Eu já tentei e/ou colei na(s) disciplina(s)...” cujas transcrições se encontram no quadro 2 abaixo.

Quadro 2 Eu já tentei e/ou colei na(s) disciplina(s)... 

Estudante participante Respostas ao enunciado
E1 Grande maioria se não todas.
E2 Filosofia, matemática e física.
E3 Espanhol, inglês, português, física e matemática.
E4 Matemática, arte, filosofia, espanhol, biologia, química, história, geografia, educação física, inglês, sociologia, português, literatura.
E5 Já tentei colar na disciplina de matemática.

Fonte: elaborado pelos autores a partir do questionário (2022).

O objetivo desse enunciado foi analisar em quais disciplinas os estudantes já utilizaram a cola, uma vez que seriam essas sobre as quais eles, possivelmente, teriam mais dificuldades em estudar e aprender os conteúdos. No terceiro ano do ensino médio há 16 disciplinas que fazem parte do currículo dessa escola. Nessa análise, os estudantes declaram que já colaram ou tentaram fazer algum tipo de intervenção como essa. Isso mostra que eles já utilizaram algum tipo de bricolagem para burlar as normas do processo de avaliação por via das provas (Certeau, 1998). Mostrando que, de certa forma, eles já utilizaram com a finalidade de ter uma boa nota ou para não reprovar nas disciplinas mencionadas (Correia; Silva; Nascimento, 2021). Ou seja, a cola foi necessária, mesmo os estudantes mencionando que era desnecessária, insignificante ou uma forma de burlar a avaliação da aprendizagem como explicitado por eles na seção anterior.

Por se configurar em uma implicação de formas de subjetividades, de relações de condutas dos estudantes e de uma relação epistêmica com um determinado saber ou disciplina da escola, o fato de tentar colar ou o próprio ato de colar nessas matérias funciona sobre uma distanciação-regulação – um domínio de comportamento sobre o objeto-saber cola, onde há informações a serem consultadas, lidas ou interpretadas pelos estudantes para conseguirem responder as provas (Charlot, 2000).

As disciplinas mais explicitadas foram matemática, física, português, inglês e espanhol respectivamente. Isso mostra que as disciplinas de exatas são as mais utilizadas para as bricolagens dos estudantes. Isto é, são essas que eles encontram mais dificuldades em estudar e aprender na escola. Dessa forma, quando mencionam as disciplinas, falam sobre o não dito, sobre o confronto que eles têm com tais matérias e que a única forma de se sobressair é colando – mesmo que estudem para a prova ou disciplina – usando a mobilização de recursos próprios para tirar boa nota e passar de ano, objetivo principal dos estudantes, o sentido (Charlot, 2013).

Os estudantes não mencionam em nenhum momento que deixam de estudar, mas que encontram dificuldades nas disciplinas e, por isso, não sabem a respeito dos assuntos ou não encontram sentidos neles. Dessa forma, ainda estudam e tentam aprender os saberes escolares institucionalizados na grade curricular. Por isso, quando percebem que encontrarão dificuldades no processo de avaliação, utilizam da cola, organizando-a de forma antecipada e, caso não consigam responder a prova pela via normativa, apelam para a segunda via, a cola.

Dessa forma, adentramos com o último enunciado: “Eu já tentei colar e/ou colei porque...” cujo conteúdo produzido se encontra no quadro 3.

Quadro 3 Eu já tentei colar e/ou colei porque... 

Estudante participante Respostas ao enunciado
E1 Não sabia do assunto, era isso ou tirar O e ir pra uma possível recuperação.
E2 Influências de amigos, às vezes por não ser muito bom em determinada matéria... Mas ao longo do tempo fui aprendendo.
E3 Não sabia do assunto.
E4 Os professores ensinam pouco e cobram muitos assuntos específicos em muito pouco tempo.
E5 Já tentei colar porque a prova não é uma maneira muito eficaz de testar a aprendizagem do aluno.

Fonte: elaborado pelos autores a partir do questionário (2022).

Nesse enunciado, o objetivo foi saber o motivo, o móbil que levou os estudantes a usar de bricolagens com o dispositivo cola. Os estudantes entram em mobilização para um determinado fim e um dos meios pelo qual atingiriam essa meta é por meio da cola, pois, mesmo que estudem e tentem entrar em uma atividade intelectual, não encontram sentido no conteúdo estudado ou explicitado pelo professor em sala de aula ou até no próprio livro escolar. Dessa forma, não basta que os conteúdos sejam ensinados e estudados, eles devem fazer sentido para os discentes entrarem em uma atividade intelectual, mobilizando-se para aprender (Charlot, 2000).

Assim, sem sentido não há atividade intelectual e nem prazer em estudar e aprender (Charlot, 2000). Não obstante, tirar nota boa é uma meta que faz sentido para passar de ano e não ser reprovado. Dessa forma, os estudantes encontram recursos próprios para que tal necessidade seja sanada, recorrendo ao dispositivo de bricolagem. Eles fazem isso não porque apenas querem burlar normas e não gostam de estudar, mas porque “não sabia do assunto, era isso ou tirar O e ir pra uma possível recuperação” (E1); “não sabia do assunto” (E2); como também por “influências de amigos, às vezes por não ser muito bom em determinada matéria...” (E3), mas sempre voltando ao assunto de não conseguir entender, “não ser muito bom” nas disciplinas da escola, cujas lógicas simbólicas não se integram ou não fazem sentido para o estudante.

Há também um fenômeno comum de divergências nas lógicas simbólicas e de sentido sobre ensinar – na figura do professor – e aprender – na figura do estudante – no ambiente escolar (Correia; Silva; Nascimento; Charlot, 2020) que nos faz refletir diante da explicitação do estudante E4: “Os professores ensinam pouco e cobram muitos assuntos específicos em muito pouco tempo”, alertando para o que chamamos de não linearidade do ensino e aprendizagem em situações didáticas. O que isso quer dizer? Que nem sempre que o professor ensinar tal conteúdo ou saber no processo de mediação com o estudante significa que ele aprende. Há uma relação da dimensão epistêmica que ocorre nesse processo, em que o aprender e ensinar significam coisas diferentes entre esses dois personagens e que entre eles pode haver situações e formas distintas de ensinar e aprender, cujo movimento não é determinante, mas associativo e ligado a outras dimensões da relação social e identitária com o saber.

Essas dimensões são essenciais no processo de ensino e aprendizagem, pois, para Charlot (2021, p. 16), a “[...] relação epistêmica é também uma relação social e identitária. Aprender é aprender sob uma forma particular, em uma relação epistêmica (é fazer o quê?) [...]”, portanto, essa dimensão se relaciona com a social em que ensinar e aprender é “[...] compartilhar o mundo com outros, em uma relação social (é compartilhar o mundo com quem, em quais posições recíprocas?) [...]” e também a identitária que tem como disposição “[...] construir-se, querer-se, proteger-se e inventar-se, em uma relação identitária (é construir quem?) [...]”. Por isso, a relação do professor com o ensinar e o aprender do estudante além da relação com o saber de uma forma particular, ao mesmo tempo é epistêmica, identitária e social, quiçá, não linear entre os personagens envolvidos em uma cena didática na sala de aula.

Por último, há envolvimentos desses estudantes com as diferentes figuras do aprender: objeto-saberes (a cola com informações dos saberes das disciplinas nas provas); atividade a ser dominada (saber como fazer a cola, os lugares onde colocar as informações, saber manuseá-la sem que ninguém perceba, colocar as informações precisas que a façam funcionar); dispositivos e formas relacionais (a conduta do estudante em colar se tiver dificuldades em responder a prova ou por não ter entendido o assunto); além de uma relação epistêmica desses estudantes com a cola, pois há uma imbricação do Eu na situação em que esses estudantes de forma consciente também sabem quais são as informações precisas que devem ser anotadas, verificadas e posteriormente escritas na prova (Charlot, 2000).

Não é preciso, necessariamente, que os estudantes dominem um conteúdo intelectual para que possam ir bem nas disciplinas, os estudantes dominam outras atividades como o próprio ato de colar e formas de se relacionar em sala de aula como, por exemplo, o ato ou a destreza de saber colar e disfarçar quando estão colando e que outrem não percebam. Dessa forma, a cola se torna um dispositivo que o estudante aprende a dominar, além de um comportamento de se relacionar com esta, isto é, a própria ação, o desempenho, o ato da cola e conseguir seu resultado: tirar boa nota para não reprovar e passar de ano.

Conclusão

A cola entre os estudantes é uma alternativa para ser aprovado em uma determinada disciplina com a qual não tem afinidade ou sente dificuldade de estudar e aprender. Há uma relação íntima entre eles e o dispositivo da cola, encontrando nesta um sentido de fluxo para outro ano/série. Diante disso, é uma forma particular de cada estudante utilizar a bricolagem, a partir de necessidades específicas que tem em relação à disciplina que cursa na escola.

A cola também é um dispositivo de motivação e mobilização. Por seu caráter de imediatez é uma motivação e, também, se configura em uma bricolagem, em uma tática do estudante para infringir as normas da escola e do professor. É uma mobilização, pelo fato de encontrar sentido na não reprovação ou se sobressair às lógicas simbólicas da escola diante de uma prova escrita. É uma figura do aprender, se configurando no domínio do dispositivo de cola, de uma atividade de bricolagem, como também num dispositivo relacional, no qual encontra formas comportamentais de omitir, disfarçar e burlar normas para não ser percebido como pessoa que cola. Portanto, é uma forma e um dispositivo de relação com o saber que confronta as normas e lógicas simbólicas da escola e de uma determinada disciplina.

A análise dos dados mostra que há uma relação dos estudantes com o dispositivo da cola, uma forma de bricolagem diante das provas a que são submetidos, utilizando-a como forma de burlar e se sobressair a situações que poderiam lhes desfavorecer, como uma possível reprovação. Os estudantes agem subjetivamente a partir de suas posições de não posse de um saber para a posse de um possível saber e de uma nota a partir da cola. Ao atuar conscientemente com a cola, esses estudantes também têm uma relação epistêmica com o saber, uma vez que tem condutas comportamentais (ser discreto), de saber fazer a cola (as informações que são necessárias), o próprio ato de colar de forma sutil (o momento certo, em uma situação precisa) e onde fazer (no papel, na carteira, na própria pele, na mão, dentro de algum objeto, perguntando ao colega de classe).

Diante disso, os estudantes ainda aprendem e estudam, mesmo com a possibilidade de colar. A escola ainda continua tendo sentido para eles, pois nela também aprendem coisas que não se encontram em outro lugar, os saberes científicos.

Referencias

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CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber às práticas educativas. São Paulo: Cortez, 2013. [ Links ]

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Recebido: 04 de Junho de 2023; Aceito: 25 de Julho de 2023

Prof. Dr. Eanes dos Santos Correia, Universidade Federal de Sergipe (Brasil), Universidade Estadual da Bahia (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos da, Universidade Estadual da Bahia, Grupo de Estudo e Pesquisa Educação e Contemporaneidade (EDUCON/UFS/CNPq), Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-9188-4336, E-mail: eanescorreia1@gmail.com

Prof.ª Dr.ª Veleida Anahí Cápua da Silva Charlot, Universidade Federal de Sergipe (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática, Líder do Grupo de Pesquisa Educação e Contemporaneidade (EDUCON/UFS/CNPq), Orcid id: , E-mail: veleida@academico.ufs.br

Prof. Dr. Willdson Robson Silva do Nascimento, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, Grupo de Pesquisa Ensino de Ciências e Inclusão Escolar (ENCINE/UNESP/CNPq), Grupo de Estudo e Pesquisa Educação e Contemporaneidade (EDUCON/UFS/CNPq), Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-2350-7731, E-mail: willdsonnascimento@gmail.com

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