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Revista Educação em Questão

Print version ISSN 0102-7735On-line version ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.68 Natal Apr./June 2023  Epub Dec 05, 2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n68id32758 

Artigo

O tempo e o drama no registro diário e na documentação pedagógica

El tiempo y el drama en el registro diario y la documentación pedagógica

Eduardo Pereira Batista1 
http://orcid.org/0000-0002-7606-9413

1Rede Municipal de Educação de Vinhedo (São Paulo, Brasil)


Resumo

Uma pergunta desconcertante, um olhar enigmático, um silêncio incômodo, uma baderna endiabrada, um gesto inesperado, uma fala que expõe o saber e o sujeito da cena educativa podem se tornar o ponto de partida para composição de uma pequena narrativa sobre o que fazemos e o que sofremos cotidianamente na companhia das crianças em uma escola da infância. A partir do enlace entre os aportes teóricos provenientes das pedagogias da infância e das críticas literária e teatral, busco neste artigo descrever os três tempos do registro diário e da documentação pedagógica, indicando a possibilidade de transfigurar narrativamente a experiência vivida com as crianças. Sustento ainda que a transfiguração do registro diário em documentação pedagógica constitui uma atitude ético-política, na medida em que, ao trazer à luz do mundo público a experiência vivida entre os sujeitos da cena educativa, expõe os princípios de ação encarnados pelo/a professor/a em sua prática pedagógica.

Palavras-chave: Educação infantil; Tempo; Registro diário; Documentação pedagógica

Resumen

Una pregunta desconcertante, una mirada enigmática, un silencio incómodo, un alboroto desenfrenado, un gesto inesperado, un discurso que expone el saber y el sujeto de la escena educativa pueden convertirse en el punto de partida para componer una breve narración sobre lo que hacemos y lo que sufrimos diariamente en compañía de los niños en un preescolar. A partir del vínculo entre los aportes teóricos de las pedagogías de la infancia y de la crítica literaria y teatral, busco en este artículo describir los tres tiempos del registro cotidiano y de la documentación pedagógica, indicando la posibilidad de transfigurar narrativamente la experiencia vivida con los niños. Argumento también que la transfiguración del registro diario en documentación pedagógica constituye una actitud ético-política, en la medida en que, al poner a la luz del mundo público la experiencia vivida entre los sujetos de la escena educativa, expone los principios de acción encarnados por el maestro en su práctica pedagógica.

Palabras clave: Educación infantil; Tiempo; Registro cotidiano; Documentación pedagógica

Abstract

A disconcerting question, an enigmatic look, an uncomfortable silence, an unbridled mischief, an unexpected gesture, a speech that exposes the knowledge and the subject of the educational scene can become the starting point for composing a short narrative about what we do and what we suffer daily in the company of children in a preschool. From the link between the theoretical contributions from childhood pedagogies and literary and theatrical criticism, in this article, I seek to describe the three moments of the daily record and pedagogical documentation, indicating the possibility of narratively transfiguring the experience lived with children. I also argue that the transfiguration of the daily record into pedagogical documentation constitutes an ethical-political attitude, insofar as, by bringing to light the experience lived among the subjects of the educational scene, it exposes the principles of action embodied by the teacher in his/her pedagogical practice.

Keywords Childhood education; Time; Daily register; Pedagogical documentation

Introdução

O registro e a documentação são duas maneiras distintas de se relacionar com aquilo que acontece cotidianamente na escola da infância. O registro diário reconhece os rastros das ações e os ecos das falas como signos, que possibilitam ao professor e à professora projetar novos encontros e novas descobertas na companhia de bebês e crianças. O suporte material do registro pertence a quem o produz, e se inscreve no âmbito privado da experiência docente. A documentação pedagógica tem outra intencionalidade, visa mostrar o que aconteceu na creche e na pré-escola a partir de e para além da experiência pessoal e imediata dos sujeitos envolvidos. Ao dar visibilidade ao cotidiano da escola da infância, a documentação traz à luz do mundo público os gestos e as falas dos protagonistas da cena educativa. À medida que possibilita um diálogo com todas as pessoas envolvidas na educação dos recém-chegados no mundo, a documentação pedagógica pode ser considerada uma prática democrática que envolve decisão coletiva, compromisso político e participação da comunidade escolar (Moss, 2009).

Além de dar visibilidade e de tornar público o que acontece na creche e na pré-escola, a documentação coloca uma questão ética do que e como configuramos, por meio da escrita, o visível e o audível que se passam entre nós, na qualidade de professoras e professores, e as crianças com as quais convivemos cotidianamente em nosso exercício docente. Se o registro diário é um instrumento do fazer pedagógico, como apresentaremos mais adiante (Osteto, 2012), a documentação pedagógica pode ser considerada um instrumento dos centros de Educação Infantil para colocar a questão filosófica acerca do que queremos para nossas crianças aqui, agora e no futuro (Dahlberg; Moss, 1999).

Neste artigo, pretendo mostrar como o registro pode se transfigurar em documentação pedagógica. Buscarei, primeiro, apontar as semelhanças do registro com a crônica, uma vez que produzimos igualmente um breve relato em permanente relação com o tempo. A seguir, procurarei apontar o caráter dramático da cena educativa que é produzida pelo registro e pela documentação do que acontece cotidianamente na escola da infância. Por último, apresentarei três cenas que dramatizam o fazer pedagógico e o protagonismo de bebês e crianças na cena educativa.

A crônica e o registro

A crônica é o gênero que mais se aproxima do que nós, professores e professoras, fazemos quando registramos o que acontece na escola. Talvez fosse mais preciso afirmar que há certa semelhança entre o registro diário, aquilo que escrevemos depois de recordar o que aconteceu na escola, e a crônica. Para Antonio Candido (2003, p. 89), a crônica é um gênero menor, porque “[...] fala de perto ao nosso modo de ser mais natural”. Ela recusa toda pompa discursiva e toma aquilo que acontece no cotidiano como tema. Assim como o registro diário do professor e da professora na escola da infância, a crônica reúne temas dispersos entre si, combinados em uma composição aparentemente solta, mas que por isso mesmo se ajusta tão bem à sensibilidade cotidiana (Candido, 2003).

A despeito de haver uma diferença fundamental entre o registro diário e a crônica, já que esta é filha do folhetim e, portanto, nasce para ser lida à luz pública do mundo, e aquele é um documento privado que serve apenas para anotar algumas paisagens de um itinerário ainda em andamento, ambos não têm qualquer pretensão de dar a última palavra acerca de um tema específico ou de revelar a verdade escondida por detrás do véu que cobre a realidade dos assuntos humanos. Os temas que foram recolhidos no rés-do-chão – ou no chão-da-escola – dispensam todo e qualquer expediente da grandiloquência retórica e requinte gramatical (Candido, 2003).

Com esse gesto despretensioso, o cronista humaniza a linguagem, na medida em que busca a oralidade na escrita (Candido, 2003). Essa humanização permite, conforme Candido (2003), recuperar a profundidade contida nos temas aparentemente triviais que brotam espontaneamente da vida cotidiana. O registro diário busca igualmente humanizar o fazer pedagógico, dando profundidade ao vivido no cotidiano da escola. Ele comunga com a crônica do mesmo gesto despretensioso. O registro não se propõe a explicar teoricamente o que aconteceu no chão-da-escola, nem a aplicar uma teoria que possa dar conta da experiência vivida pelo professor e pela professora em sua tarefa de educar e cuidar dos mais novos. Simplesmente relata para si fragmentos do cotidiano escolar e da experiência docente.

A palavra que nomeia esse gênero menor é de origem grega. Como bem observou Davi Arrigucci (1987), um leitor atual pode não se dar conta de que a palavra crônica tem a ver com a palavra χρόνος (khrónos), que fundamentalmente significa tempo. Costuma-se associar a palavra khrónos a um objeto técnico e uma maneira específica de medir o tempo, isto é, o relógio mecânico e o tempo cronológico, que obviamente eram estranhos aos falantes da língua grega. A clepsidra ou o relógio d’água podia medir a passagem do tempo em intervalos regulares, porém, não como intervalos homogêneos e idênticos entre si. Khrónos tem a ver com tempo, com a duração e a passagem do tempo; diz respeito também a uma época determinada e a um momento preciso, incluindo, em seu campo semântico, o tempo e as idades da vida (Bailly, 1901). De acordo com Arrigucci (1987, p. 51), o vínculo originário entre crônica e khrónos aponta para “[...] uma forma do tempo e da memória, um meio de representação temporal dos eventos passados, um registro da vida escoada”. O cronista moderno e o historiador antigo, por basearem suas práticas de lembrar e escrever no mesmo vínculo originário com khrónos, produzem um relato em permanente relação com o tempo. Quando registramos o que aconteceu conosco e com as crianças na escola da infância, produzimos igualmente um relato em permanente relação com o tempo.

É importante, para os nossos propósitos, assinalar o grau de parentesco, indicado por Davi Arrigucci (1987), entre o cronista e o historiador. No princípio, afirma Arrigucci (1987), a história não era uma ciência, como a Astronomia, mas uma crônica histórica, uma narração de fatos históricos segundo a ordem do tempo, que não é a mesma entre historiadores antigos e modernos. “Nessa acepção histórica, o cronista é um narrador. Como notou Benjamin, o historiador escreve os fatos, buscando-lhes uma explicação, enquanto o cronista, que o precedeu, se limitava a narrá-los [...]” (Arrigucci, 1987, p. 52). O cronista, tal como o narrador popular, afirma Arrigucci (1987), era um artesão da experiência que transfigurava a matéria-prima do vivido em narração; era um mestre na arte de contar histórias, em compor narrativas e tecer enredos. Em contrapartida, conforme Arrigucci (1987), o cronista moderno é atravessado por outra temporalidade, outro modo de produção, que o submete ao consumo e às inquietações de um desejo sempre não realizado, ao ritmo vertiginoso das metrópoles e à fugacidade da vida cotidiana.

Para que seja possível narrar os eventos cotidianos que acontecem na escola, é preciso desacelerar o tempo, suspender o tempo cronológico do relógio mecânico, e inventar outro regime de temporalidade no qual seja possível intercambiar experiências. A narração permite escandir o tempo em intervalos mais longos. Quem conta uma história pode se prender nos detalhes e descrever minuciosamente uma cena que durou apenas alguns segundos. Ao narrar dessa maneira minha experiência na escola da infância, posso perceber melhor o que aconteceu entre mim e as crianças. Com essa estratégia, a narrativa cria barragens para conter o escoamento do tempo e da memória, tornando possível dar profundidade aos eventos cotidianos. Narrar o que vivemos no cotidiano escolar possibilita um distanciamento de nossas tarefas ordinárias e um alargamento de nossa experiência temporal. Mas para tanto é preciso ver e ouvir mais devagar. “A aceleração provoca a ausência de sentido naquilo que se realiza cotidianamente na vida, na escola, pois, paradoxalmente, oferece uma sensação de muitas tarefas realizadas, mas de fracasso no sentido das realizações docentes [...]” (Barbosa, 2013, p. 217). Ao narrar o que fazemos e o que sofremos quando assumimos a responsabilidade pelo cuidado e pela educação dos mais novos, escandimos o tempo de modo heterogêneo e não linear.

De acordo com Denizart Fazio (2023), a narrativa é uma forma de comunicação artesanal. Como um vaso que está impregnado das digitais do oleiro que o produziu, a narrativa tem as marcas da experiência do narrador. Ela permite a transmissão daquilo que é singular no exercício do ofício docente, daquilo que não poderia ser transmitido através de relatórios repletos de informações sobre as crianças. Nesse sentido, a narrativa é o avesso da notícia e da informação, pois quem deseja se manter informado não tem tempo a perder (Larossa, 2002).

Ao lembrar e transmitir nossa experiência, damos tempo a certos acontecimentos passados em detrimento de outros, e a compartilhamos com outras pessoas. Recordar o vivido e dar tempo para a lembrança e a escrita são duas atitudes que dão profundidade à experiência docente. Quem dá tempo não o perde, como ensina o filósofo catalão Josep Esquirol (2009), mas ganha tempo. “Dar tempo é a exceção ao passar do tempo. A vida não diminui, ao contrário, aumenta, cresce ao dar [tempo]. Não perdemos tempo nem o deixamos passar quando damos tempo” (Esquirol, 2009, p. 92). O registro diário é, para quem exerce a docência na Educação Infantil, um modo de dar tempo, uma maneira de suspender a passagem fugidia do tempo.

O drama e a cena educativa

Assim como a crônica, o registro diário possui uma permanente relação com o tempo. Quem registra o que aconteceu na escola da infância produz um breve relato que tem a marca subjetiva de quem o produziu. Registrar o cotidiano possibilita que a experiência vivida por nós e as crianças possa aparecer para outras pessoas. Quando o registro consegue dar visibilidade e movimento ao que aconteceu diante de nós, tecemos um enredo que descreve o visível e o audível para outras pessoas que, na qualidade de espectadores, podem ver e ouvir o drama da vida cotidiana na escola. É como se fizéssemos parte de um espetáculo e, nesse sentido, o registro mantém uma estreita relação com o teatro. Quando produz um fragmento do cotidiano escolar, o registro não é outra coisa senão a construção de uma cena educativa que ocorreu na escola. Com esse gesto de narrar o que acontece na escola, inscrevemo-nos na cena educativa e, assim, aparecemos, ao mesmo tempo, como autor e personagem de um drama.

Do ponto de vista teatral, o drama é o que acontece no palco entre as persona dramatis, entre as personagens da peça que interagem umas com as outras. Na escola da infância, toda relação que acontece entre nós, professoras e professores, e as crianças pode ser vista como uma cena educativa. O registro se torna um gênero dramático, porque nele colocamos em cena as ações e as falas que aconteceram durante um momento específico de nossa jornada de trabalho. Porém, nem tudo o que acontece conosco e com as crianças no cotidiano da escola nos afeta igualmente. O que torna nosso registro mais ou menos dramático é a maneira como as coisas que acontecem na escola nos afetam. O caráter dramático do registro tem a ver com nossa capacidade humana de afetar e ser afetado pelas coisas que ocorrem ao nosso redor. A partir do registro, podemos fazer circular esses afetos para além de nossa experiência pessoal.

Se quisermos sustentar essa relação entre Dramaturgia e Pedagogia, é preciso observar que, no registro diário, ao contrário da experiência teatral, a construção da cena vem depois da ação das personagens, e não antes! Na produção de uma cena educativa, representamos a representação das crianças, seus modos de brincar e fazer de conta, seus diálogos e suas ações, suas perguntas e hipóteses. Trata-se, pois, de um expediente que busca um distanciamento dos eventos cotidianos e das fabulações lúdicas para melhor retratá-los por meio de uma composição narrativa. Para o crítico e dramaturgo norte-americano Eric Bentley (1981, p. 170), uma vez que vida é ação, brincar e representar são a mesma coisa para as crianças, mas, para nós, adultos, “[...] é difícil dizer, quando se observam crianças de três anos de idade, em que ponto acaba a brincadeira e começa a representação”.

Protagonizar a cena educativa é o papel das crianças na escola da infância. Elas desempenham extraordinariamente bem esse papel, quando não são sujeitadas pelo exercício do adultocentrismo. Esse protagonismo jamais se reduz à participação das crianças mais velhas em rodas de conversa e decisões coletivas. Ele pode acontecer em todos os momentos do cotidiano, até mesmo nos momentos em que a ação de cuidar e educar parece ser realizada somente pelo/a adulto/a, como no momento da troca de fralda de um bebê. Contudo, para que possamos perceber o protagonismo de um bebê no momento da troca de suas fraldas, é preciso reconhecer no drama da cena educativa a capacidade de agir e interagir do bebê. “O drama requer os olhos do espectador” (Bentley, 1981, p. 20). Dramatizar a cena educativa exige de nós o reconhecimento de seus elementos conflitivos, que constituem a ação humana. Para reconhecer o drama da cena educativa, é preciso destacá-lo do fundo opaco que torna homogêneos os eventos corriqueiros do cotidiano escolar. No registro, emprestamos nosso olhar para dar visibilidade ao que aconteceu diante de nossos olhos na escola da infância, e possibilitar diferentes arranjos para continuar o drama da cena educativa.

Para Bentley (1981), reconhecer a importância dos pequenos rituais que acontecem cotidianamente desde o início de nossas vidas é fundamental para a representação teatral. As práticas de higiene e alimentação são exemplos desses pequenos rituais, que se repetem todos os dias na vida de uma criança. Na escola da infância, é igualmente fundamental reconhecer a relevância desses pequenos rituais para observar os bebês e as crianças em suas ações cotidianas. Tudo o que acontece no cotidiano da escola da infância, se observado com atenção e sem preconceito, pode ser visto não como uma rotina que se repete em um tempo linear e homogêneo, mas como uma repetição que torna possíveis esses pequenos rituais do início de nossas vidas. “A repetição é também uma característica dominante de nossos prazeres. Aprender uma pequena dança é aprender uma pequena figura se repetirá ad libitum” (Bentley, 1981, p. 169). Olhar a experiência das crianças como algo que se repete a cada vez de maneira singular é reconhecer que o cotidiano na escola da infância importa; é reconhecer as práticas do cuidar e do brincar como pequenos rituais que só se inscrevem na ordem do rito porque são constantemente repetidos.

Poderíamos ler, nesse sentido, os registros diários de Madalena Freire (1999), em A paixão de conhecer o mundo, como uma crônica do fazer pedagógico que dramatiza os eventos e os pequenos rituais que ocorrem cotidianamente na escola da infância? Não resta dúvida de que os registros formam uma composição narrativa que possui uma permanente relação com o tempo e o drama. Ao inventar uma relação temporal e dramática entre teoria e prática, é criada uma região intermediária, na qual os conceitos podem contracenar com a narração do cotidiano e da experiência escolar. Encontramos, lado a lado, na composição narrativa de Madalena Freire, alguns conceitos fundamentais das teorias de Jean Piaget e Paulo Freire, com algumas descrições e reflexões referentes à formação do grupo e ao brincar no parque, à participação das famílias e à organização do espaço, ao papel da professora e à transmissão passional de conhecer o mundo. É como se a linguagem de Madalena falasse de perto ao nosso modo de ser mais natural, como se sua escrita e sensibilidade afetassem nosso modo de ser professor e professora na escola da infância. Por sua beleza e simplicidade, os relatos da professora Madalena podem ser considerados um modelo de documentação pedagógica que, ainda hoje, nos emociona e dá a pensar o que estamos fazendo e sofrendo quando assumimos nossa responsabilidade pela educação e os cuidados de bebês e crianças na escola da infância.

A transfiguração do registro e o aparecimento da documentação pedagógica

Conviver, lembrar e anotar são os três tempos do registro diário. Do cotidiano nascem os eventos que podem ser registrados pelo professor e pela professora da escola da infância. Os rastros que deixamos na convivência cotidiana com as crianças, suas falas e suas ações, suas demandas e seus desejos são signos que nos permitem, ao mesmo tempo, lembrar e imaginar nossa posição na cena educativa. Ao anotar esses signos em um suporte material, construímos a memória de nosso fazer pedagógico.

Segundo Luciana Ostetto (2012), o registro é um instrumento que alimenta e articula a relação entre teoria e prática, auxilia, organiza e orienta a ação docente. Mas o que significa pensar o registro como um instrumento de nosso fazer pedagógico? Desde o século XVIII, com o desenvolvimento das ferramentas e dos instrumentos, segundo Gilbert Simondon (2020), costuma-se entender uma ferramenta como um objeto técnico que permite prolongar e preparar o corpo para executar um gesto; e um instrumento como um objeto técnico que permite prolongar e adaptar o corpo para obter uma percepção melhor. Assim, podemos entender o instrumento como uma ferramenta da percepção (Simondon, 2020). O registro diário, na qualidade de uma ferramenta da percepção, permite preparar nosso corpo para a criação de novos gestos, para a liberação de movimentos ainda não percebidos; torna possível prolongar nosso olhar e nossa escuta para além do instante fugidio da ação docente que, muitas vezes, evanesce no fluxo de eventos que acontecem cotidianamente na escola da infância.

Não obstante a aproximação entre o registro e o objeto técnico, Luciana Ostetto (2012, p. 25) afirma que “[...] registrar não é uma técnica: é vida! E cada qual deve se responsabilizar por seus desígnios, por seus projetos. É lançar-se para frente. Ver-se e rever-se”. Registrar é antes de tudo uma ação reflexiva, uma ação que busca inscrever o professor e a professora como dramaturgos/as da cena educativa, cujo protagonismo é das crianças. Quando registro, relato para mim mesmo o que aconteceu. Anoto em um suporte material certos signos que me permitem reconstruir o vivido entre mim e as crianças. A transfiguração do registro em documentação pedagógica é uma atitude ético-política, que envolve a decisão de desprivatizar o vivido, a decisão de tornar visível e público aquilo que, se não fosse esse gesto de trazer à luz pública do mundo, jamais poderia ser compartilhado com o outro. A documentação surge dessa atitude que desapropria o vivido, que torna comum aquilo que somente o sujeito da experiência pode transmitir por meio da linguagem.

Compor, editar e publicar são os três tempos da documentação pedagógica. Do emaranhado de notas e fragmentos do cotidiano que o professor e a professora tecem para si nasce a documentação pedagógica. Ao tornar visível e público o que estamos fazendo e o que estamos padecendo no cotidiano da escola da infância, aparecemos para nós mesmos como um outro. Interpretamos nosso fazer pedagógico e construímos não apenas subjetivamente, mas socialmente nossa posição na cena educativa. Somos expostos por nossas concepções e nossos princípios de ação, nossas falas e atitudes, nossas práticas e nossos discursos. Com a documentação pedagógica, fazemos laço com uma comunidade de professoras e professores que compartilham a tarefa de educar e cuidar dos recém-chegados ao nosso mundo comum.

Segundo Gunilla Dahlberg e Peter Moss (1999), quando documentamos nosso fazer pedagógico, construímos uma relação entre nós mesmos, na qualidade de professoras e professores, e as crianças, cujo pensar, dizer e agir são documentados. Esse gesto de documentar é, portanto, uma atitude ético-política, uma escolha que implica quem documenta àquilo que é exposto publicamente pela documentação. Ao desprivatizar a experiência docente e dar visibilidade ao que pensamos, dizemos e agimos, a documentação pode contribuir para uma aprofundada autorreflexibilidade, isto é, pode nos auxiliar a sentir e entender como nos tornamos professores e professoras na escola da infância, como nos constituímos como docentes no convívio cotidiano com bebês e crianças na Educação Infantil (Dahlberg; Moss, 1999).

Documentar o cotidiano escolar: três cenas educativas

A seguir, compartilho três cenas educativas que pude vivenciar e construir como docente, em três Centros de Educação Infantil (CEI) da Rede Municipal de Vinhedo, interior de São Paulo, e em momentos distintos dos meus dezesseis anos de atuação com bebês e crianças. Esses relatos já foram lidos pelas Coordenadoras Pedagógicas de cada CEI, mas nunca haviam sido publicados para além do âmbito institucional. Portanto, trata-se de transfigurar o registro em documentação; de desprivatizar ou desinstitucionalizar o relato a respeito do que aconteceu em minha experiência docente com bebês e crianças. Como não há exposição de imagens, nem identificação dos Centros de Educação Infantil, mantive os nomes dos bebês e das crianças, a fim de evitar o anonimato das protagonistas e preservar a autoria de suas ações e falas (Kramer, 2002).

Vale lembrar de que a documentação da cena educativa, na medida em que documentar é um processo de visualização, não representa a verdadeira realidade (Dahlberg; Moss, 1999). Os enredos de cada uma das narrativas que se seguem foram produzidos em atos interpretativos, ou seja, poderiam ser tecidos de outras maneiras, configurados sob outras perspectivas. Com essa breve observação, quero insistir no fato de que quem documenta está implicado na documentação. É a partir de um ponto de vista singular que cada relato foi produzido a fim de dar visibilidade não apenas ao que aconteceu na escola, mas ao que me aconteceu na escola. A produção da documentação pedagógica pressupõe um gesto de pessoalidade que configura um estilo e um modo de olhar. Se documentar é tornar visível e audível o que se passou entre nós, professoras e professores, e as crianças no cotidiano da escola da infância, a documentação é construída por uma série de escolhas, de decisões do que e de como contar. Justamente por isso a documentação é seletiva, parcial e contextual (Dahlberg; Moss, 1999).

Cilindros para que te quero

Chego na entrada da sala com as mãos ocupadas. A porta está aberta da metade para cima e, com um pequeno trinco pelo lado de dentro, fechada da metade para baixo. Antes de entrar, sou recebido pelos olhos expressivos de Rebeca e um grito sonoro de Lucas. Alguns bebês não percebem minha presença enquanto permanecia por alguns segundos do lado de fora. Antes de entrar, retiro meus sapatos com os pés e os deixo na soleira da porta. Abro lentamente a porta e coloco a caixa no chão revestido de espuma vinílica acetinada (E.V.A) colorida. Dessa vez, não precisei desligar a televisão. A professora já havia desligado antes de sair da sala. Ligo minha caixa de som e a conecto ao celular que, hoje, tocava o álbum Mara, da banda instrumental alemã Fazer. Desloco um pneu para o centro da sala, um pneu que faz parte do mobiliário da sala, e coloco alguns canos de papelão apoiados no pneu, que estava revestido com um tecido florido de fundo branco. Ao redor do pneu, distribuo aleatoriamente as boias “macarrão”. Antes de terminar a organização dos materiais da maneira como havia planejado mentalmente, os bambus já estavam nas mãos de alguns bebês. Restava apenas um na caixa. Seguro esse bambu e, sentado no chão, de frente para o pneu, consigo alcançar um cano de papelão. Rebeca tenta pegar o bambu que estava na minha mão e, em vez de entregá-lo sem mais, perguntei a ela: – Cadê? Ao dizer isso, escondo o bambu dentro do cano de papelão e disse: – Sumiu! Rebeca sorria e buscava encontrar o bambu. Natalie se interessou também pela brincadeira. Gabi, que ainda não engatinha, mas conseguia ficar sentada sem fazer a transição da posição deitada, dividia sua atenção entre o bambu que segurava e o que acontecia diante dela. Às vezes ela sonorizava simultaneamente com o movimento do bambu. A atenção de Maia foi capturada pelas boias de “macarrão”. Seu olhar triangulava entre mim, o material e o que acontecia ao seu redor. Sua expressão sorridente se dirigia para mim e me comunicava que aquele jogo era agradável. Depois que todos os canos de papelão foram retirados do pneu, Natalie, que há algumas semanas começou a engatinhar e agora o faz com maestria, ocupou o centro do pneu. Com seus braços, escalou o pneu e seu rosto ficou encostado na parte interna do pneu. Seus pés não tocavam o chão e a educadora a ajudou para que ela se acomodasse no centro do pneu, como parecia ter sido inicialmente sua intenção. Repeti a brincadeira de esconder o bambu no cano de papelão: – Cadê? Sumiu! Nesse momento, Rebeca e Maia estavam escalando meu corpo. E quando voltei o olhar para Natalie, ela já estava engatinhando do lado de fora do pneu. Lucas, logo depois que entrei na sala, foi acolhido pela educadora e em poucos minutos adormeceu em seus braços. Ele se juntou aos outros bebês que já dormiam quando cheguei. Breno, um dos últimos bebês a ser matriculado na turma, ficou o tempo todo no colo de uma educadora, que estava sentada próxima à caixinha de som. Algumas vezes ele se levantava e buscava identificar de onde vinha aquele som, que pela primeira vez não disputava o espaço sonoro com seu choro. Ele estava calmo e bem familiarizado ao ambiente e ao corpo da educadora. Os encaixes do tatame de E.V.A. que revestia o piso da sala serviram de suporte para criar arcos com as boias “macarrão”, através dos quais eu mesmo podia passar de um lado para o outro. Bastou que eu os atravessasse uma única vez para que Rebeca também experimentasse atravessá-los. Natalie se sentou debaixo de um arco e ficou por alguns segundos observando aquela estrutura. O retorno da professora à sala me avisava de que meu tempo junto aos bebês tinha chegado ao fim. Recolho todos os materiais e, ao contrário do começo, apenas alguns bebês estavam acordados. Dez e cinco. Já estou atrasado para a próxima aula.

Como era gostoso meu cachecol de viadinho

Fazia frio. O vento gelado da manhã varria as folhas secas que dançavam em rodopios pelo chão da quadra. Apesar do frio, o sol brilhava em timidez. A temperatura logo estaria mais agradável. Mas, nessas primeiras horas do dia, ainda era preciso agasalhar-se um pouco mais do que de costume para sair da sala de referência e brincar do lado de fora do prédio. Os brinquedos estavam à espera. Logo mais uma turma de crianças desceria até a quadra para brincar. Uma menina, do lado de fora do alambrado, que dividia o espaço do parque e o espaço da quadra, gritou: − Professor, a gente tem aula de Educação Física hoje? Acenei positivamente com o polegar, enquanto sorvia um gole de água quase gelada. Em temperatura ambiente, parecia que água tinha saído da geladeira. Dessa vez, não tive tempo de me reunir com as crianças em roda e conversar um pouco antes de iniciar nosso encontro. Feito formiguinhas, iam se espalhando pelos brinquedos e transformando tudo o que eu havia organizado. Em poucos segundos, as crianças reconfiguravam o espaço e davam vida àqueles materiais. Alguns deles, sem as crianças, jamais se tornariam brinquedos. Em cima de um tapete, algumas crianças iam retirando do balde azul as pequenas peças de montar. Outras abriam uma porta de lençol, que deslizava sobre um pedaço de corda amarrado nas extremidades de dois cones de borracha, zebrados em preto e amarelo – somente por aí se podia acessar os cômodos da casa. Outras, sentando-se diante das latas de alumínio e dos baldinhos de plástico, começavam a experimentar timbres e desenhar figuras rítmicas. Outras ainda faziam do percurso até a quadra a própria brincadeira. Recusavam-se a descer pela escada, e preferiam serpentear pela rampa de acessibilidade recém-construída na creche que, naquele momento, não atendia a nenhuma criança cadeirante.

Enquanto seus colegas de turma brincavam, Davi, um menino de quatros anos, se aproximou de mim e disse: − Professor, meu pai me disse que quem usa cachecol é viadinho. Sorrindo, repeti silenciosamente para mim mesmo o que havia acabado de ouvir. As palavras ainda ressoavam em mim quando, após alguns segundos, respondi ao menino: – Estou usando cachecol porque faz frio. É gostoso usar cachecol. Inclinei-me na direção do menino e aproximei dele a ponta do meu cachecol xadrez, arrematado por uma franja de lã em preto, cinza e marrom. Ofereci o cachecol ao menino, como quem oferece um presente: – Passa a mão! E olhando-me sem dizer uma palavra, Davi tocou no cachecol como se acariciasse um gatinho. Diante daquele silêncio, perguntei retoricamente: – Não é gostoso? Acenou-me a cabeça positivamente. E devolvi a afirmação do menino em forma de pergunta: – Seu pai disse que quem usa cachecol é viadinho? E você sabe o que é viadinho? O menino me olhou um pouco desconcertado com minhas palavras e respondeu apressadamente: – Foi meu pai que disse! Depois saiu voando feito um passarinho, para brincar com as crianças que estavam construindo casas e robôs com as peças de montar. Percebi, por diversas vezes, ao longo daquele tempo que tínhamos juntos a cada semana para brincar, um olhar que me interrogava, um olhar que interrogava aquele cachecol de viadinho que envolvia o pescoço de seu professor.

Um dinossauro sonolento

Em uma manhã ensolarada de outono, vejo Fernando, aos prantos, repousando a cabeça no ombro de sua professora que, agachada na altura de seus murmúrios e soluços, diz tranquilamente, apostando mais na forma do que no conteúdo de sua fala, que o dinossauro não poderia ir com ele para a quadra. As crianças da turma de Fernando tinham atravessado o corredor, em formato de L, que liga um pátio a outro, passando pelo refeitório, onde havia pouco tinham tomado café da manhã. Me aproximo sem saber o que estava acontecendo, e ouço que Fernando queria levar para a quadra um brinquedo que trouxera de casa. A professora nega com doçura a demanda de Fernando, como se lamentasse aquela situação. Tento continuar o enredo que interditava a circulação daquele objeto transicional de Fernando e, apostando na sonolência do jurássico, digo que o dinossauro naquele momento estava dormindo. Tinha aproveitado que todo mundo havia saído da sala para tirar um belo cochilo, mas que na volta ele estaria bem-disposto e acordado para brincar com Fernando. Em resposta, recebi um breve e sonoro: − Não!

A professora lamentava que isso ocorrera de novo. A família já tinha sido orientada para evitar que Fernando trouxesse de casa um brinquedo de sua preferência. Fernando se apegava ao objeto e dele não se distanciava. Às vezes, isso ainda era motivo para desentendimento entre as crianças. A lei se impunha à demanda de Fernando. Não havia condições naquele momento para continuar uma conversa com ele. Seu choro se misturava com gritos e movimentos erráticos entre o pátio e o refeitório. Tento deslocar a demanda de Fernando e o convido para brincar comigo de girar bambolê na quadra. Em resposta, outro não. Minha última tentativa foi um novo convite, desta vez para jogar bola. Minhas palavras produziram algum efeito em Fernando. Ele ouve o que eu disse e me pede para ir com ele até a bola, apontando para o refeitório. Será que ele me levaria ardilosamente até sua sala para acordar seu dinossauro que estava dormindo? Deixo minha dúvida de lado e decido acompanhar Fernando até o lugar para onde ele apontava. Outras três crianças, além de mim, também decidiram seguir o itinerário que Fernando traçava até as bolas. Insisto que havia bolas na quadra e poderíamos voltar. – Não, tio! Vem, tio, vem! A brincadeira parecia divertida para as outras crianças; para Fernando, misturava-se com a angústia de que sua demanda não fosse atendida. A cada três ou quatro passos, Fernando voltava sua cabeça para trás, certificava-se de que eu estava mesmo seguindo seus passos. No corredor, Fernando me mostra quais bolas ele queria. Com dificuldade, ele abraça de uma só vez três bolas coloridas de látex. Com um sorriso no rosto, segue na direção da quadra.

A brincadeira com aquelas bolas parecia interessante para Fernando. As outras bolas com as quais Fernando costumava brincar estavam adormecidas, como o dinossauro que trouxera de casa. Em pouco tempo, porém, as bolas que Fernando tinha trazido para a quadra ficaram de lado, na companhia das outras bolas de cores, tamanho e pesos diversos. Fernando reencontra sua demanda jurássica nos dinossauros que, desde o começo, estavam na quadra. Ele se senta diante deles; e consigo mesmo começa uma nova brincadeira, combinando dinossauros e peças de madeira. Me aproximo para brincar um pouco com ele e, nesse momento, outras crianças também se aproximam e se sentam ao redor daquele mundo inventado por Fernando. Um dinossauro, o mesmo Tiranossauro Rex que estava estampado em sua calça de moletom, e que dormia sobre uma cama redonda de madeira.

Conclusão

A convivência com as crianças na escola da infância propicia toda sorte de situações inusitadas, que nos desafiam a pensar e agir de maneira singular e habitual. A lembrança do que fazemos e sofremos nesse espaço e tempo que compartilhamos com as crianças na escola da infância nos permite narrativamente compor a memória de nossa dupla responsabilidade pelos/as recém chegados/as e pelo mundo que apresentamos a eles/as. As anotações que diariamente produzimos de maneira fragmentária em nosso caderno ou bloco de notas nos deixam pistas para avaliar o vivido e planejar novas propostas. Conviver, lembrar e anotar são, pois, os três tempos do registro diário.

Do ponto de vista pedagógico, o registro diário é um importante instrumento para a realização do ofício docente na educação infantil. Não obstante a importância para o/a professor/a, o registro diário se inscreve no âmbito privado e, por isso, não pode ser visto nem ouvido por ninguém. Ainda que potencialmente permita a construção da memória a partir da experiência vivida pelos sujeitos da cena educativa, o registro não possui nenhuma relevância pública e, por conseguinte, nenhuma valência política.

A transfiguração desses registros em documentação pedagógica consiste em inscrever no âmbito público aquilo que fazemos e sofremos quando assumimos a responsabilidade pela educação das crianças. Por meio da composição de pequenas narrativas, é possível dar visibilidade a gestos e falas que nascem do encontro entre os mais velhos e os mais novos na escola da infância. Ao compor o enredo dessas narrativas, o/a professor/a se situa no horizonte aberto pelo texto como um outro, e pode se auto avaliar no drama de sua atuação docente.

A composição desses pequenos relatos em permanente relação com o tempo não pretende dizer a verdade, o que de fato aconteceu, mas antes com base em atos interpretativos tenciona contar aquilo que nos aconteceu. Nesse sentido, podemos afirmar que a composição pressupõe a edição da narrativa, a escolha do que e de como contar a partir da articulação de notas dispersas em um enredo que pode agora ser transmitido e, portanto, colocado à luz pública do mundo. Tornar pública a experiência docente significa tornar visível e audível o que fazemos e sofremos na qualidade de professor/a. Compor, editar e publicar são, pois, os três tempos da documentação pedagógica.

Ao contrário do registro diário, que por vezes deixa rastros inteligíveis somente para quem os produziu, a documentação pedagógica desprivatiza a experiência vivida, retira do âmbito privado e expõe os princípios de ação que o/a professor/a encarna em sua atuação docente. Dessa maneira, a documentação pedagógica permite colocar não apenas a questão filosófica acerca de que escola da infância queremos aqui, agora e no futuro, mas também a questão existencial acerca de que professor/a quero ser aqui, agora e no futuro. E na medida em põe em circulação as cenas educativas que produzimos narrativamente, com a documentação pedagógica, podemos criar uma comunidade de professores/as que compartilham a tarefa de educar e cuidar dos/as recém chegados/as em nosso mundo comum.

Referencias

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Recebido: 04 de Junho de 2023; Aceito: 08 de Agosto de 2023

Prof. Dr. Eduardo Pereira Batista, Rede Municipal de Educação de Vinhedo (São Paulo, Brasil), Membro do GEPEDISC – Linha Culturas Infantis (Faculdade de Educação da, Universidade Estadual de Campinas) Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação e Pensamento Contemporâneo (FE-USP), Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-7606-9413, E-mail: dupeba011107@gmail.com

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