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Revista Educação em Questão

versión impresa ISSN 0102-7735versión On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.68 Natal abr./june 2023  Epub 05-Dic-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n68id32550 

Artigo

Do que é feita a diversidade na EJA? Compreensões a partir das Epistemologias do Sul

¿De qué está hecha la diversidad en la Educación de Jóvenes y Adultos (EJA)? Entendimientos desde las Epistemologías del Sur

Emanuella de Azevedo Palhares1 
http://orcid.org/0000-0002-8438-2290

Francisco Canindé da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-5089-284X

1Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Brasil)


Resumo

Este artigo consiste em reconhecer a diversidade dos sujeitos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) como forma de credibilizar e legitimar saberes, fazeres e lutas de grupos socialmente marginalizados presentes nessa modalidade de ensino, mas que têm sido invisibilizados. Nesta pesquisa de natureza qualitativa, apresentam-se maneiras de como os conhecimentossignificações (Andrade, Caldas, Alves, 2019) acerca da diversidade vêm sendo produzidos no âmbito das pesquisas acadêmicas. Teoricamente, utiliza-se a abordagem das Epistemologias do Sul (Santos, 2009, 2020) e da Colonialidade do Poder (Quijano, 2005, 2009), enquanto referências possíveis de melhor perceber-destacar e construir inéditos-viáveis (Freire, 2002) à modalidade, evitando o epistemicídio de saberes e o desperdício de experiências. Esperamos que este estudo possibilite reviravoltas epistemológicas que resultem na superação de categorias unidimensionais que têm orientado práticas pedagógicas, curriculares da EJA.

Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos; Diversidade; Epistemologias do Sul; Colonialidade do poder

Resumen

Este artículo pretende reconocer la diversidad de los sujetos de la Educación de Jóvenes y Adultos (EJA) como forma de dar credibilidad y legitimidad a los saberes, acciones y luchas de grupos socialmente marginalizados, presentes en esta modalidad de enseñanza, pero que han sido invisibilizados. En esta investigación de naturaleza cualitativa, se presentan maneras de cómo se han producido los conocimentossignificaciones (Andrade, Caldas, Alves, 2019) acerca de la diversidad en el ámbito de las investigaciones académicas. Teóricamente, se utiliza el enfoque de las Epistemologías del Sur (Santos, 2009, 2016, 2020) y de la Colonialidad del Poder (Quijano, 2005, 2009) como referencias posibles de mejor percibir-destacar y construir inéditos-viables (Freire, 2002) a la modalidad, evitando el asesinato de la epistemología de saberes y el desperdicio de experiencias. Esperamos que este estudio posibilite giros epistemológicos que resulten en la superación de categorías unidimensionales que han orientado prácticas pedagógicas, curriculares de la EJA.

Palabras clave: Educación de Jóvenes y Adultos; Diversidad; Epistemologías del Sur; Colonialidad del poder

Abstract

This article consists of recognizing the diversity of people of Youth and Adult Education (EJA) as a way to give credibility and legitimacy to the knowledge, actions and struggles of socially marginalized groups present in this modality of teaching, but which have been invisible. In this qualitative nature research, we present ways of how knowledge-significations (Andrade, Caldas, Alves, 2019) have been produced in the context of academic research. Theoretically, we use the approach of Epistemologias do Sul [Epistemologies of the South] (Santos, 2009, 2012, 2020) and Colonialidade do Poder [Coloniality of Power] (Quijano, 2005, 2009), as possible references to better perceive-highlight and build unprecedented-viable (Freire, 2002) to the modality, avoiding the epistemology killing of knowledges and the waste of experiences. We hope that this study enables epistemological turnarounds that result in overcoming one-dimensional categories that have guided EJA’s pedagogical and curricular practices.

Keywords Youth and Adult Education; Diversity; Epistemologies of the South; Coloniality of power

Introdução

O presente artigo é resultante de uma pesquisa realizada compreendendo o período de março a setembro de 2022. O estudo consiste em reconhecer a temática da diversidade envolvendo praticantespensantes (Oliveira, 2013) da Educação de Jovens e Adultos (EJA), na base de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e nos Repositórios Institucionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA) como maneira de legitimar grupos e saberes existentes e ao mesmo tempo invisibilizados pela interpretação dominante no campo educacional.

Por reconhecer que a diversidade do mundo é inesgotável e excede em muito a compreensão canônica monocultural da modernidade, parte-se da seguinte questão problematizadora: quais sentidos emergentes são produzidos pela diversidade dos praticantespensantes da EJA? É importante destacar que os sentidos emergentes da diversidade, aos quais se faz referência, não formam categorias isoladas e distintas de investigação. Ao contrário, são interdependentes e se transversalizam, formando um todo indissociável que resiste criativamente à hegemonia monocultural da modernidade. Desse modo, não há sentido expresso pela diversidade que não seja, simultaneamente, político, estético, cultural, ético, social.

O trabalho se fundamenta na discussão político-epistemológica insurgente, descolonial, fundamentada nas desobediências epistêmicas (Mignolo, 2008); nas concepções de colonialidade do poder de Quijano (2005, 2009) e nas epistemologias do Sul, de Santos (2009, 2020), para o qual o pensamento moderno eurocêntrico e nortecêntrico criou abissalidades radicais e profundos na sociedade, mas não impediu que os grupos marginalizados, por meio das lutas e movimentos sociais, também criassem alternativas de resistências epistêmicas contra-hegemônicas pautadas por princípios que apontam e convergem para aquilo que o autor designa por Epistemologias do Sul – experiências e práticas sociais e culturais outras.

Desse modo, associando o pedagógico ao decolonial, argumentamos como as concepções de diversidade, eivada de relações complexas de poder, podem ser melhor capturadas, compreendidas, dilatadas com as Epistemologias do Sul, articulando tais concepções à EJA, modalidade educativa que acolhe em seu interior pessoas pertencentes a grupos social e culturalmente marginalizados.

Epistemologias do Sul para articular e dilatar as concepções de diversidade na EJA

O tema da diversidade na EJA, bem como seus sentidos, perpassa pela investigação do pensamento moderno ocidental, sob as formas de colonialismo europeu e colonialidade, que tem repercutido social, epistemológica, política e culturalmente por meio de práticas excludentes, determinadas por relações de poder orientadas por padrões heteronormativos, racistas, patriarcais, capitalistas etc.

A discussão realizada por Santos (2009, 2020) propõe enquanto alternativa contra-hegemônica de resistência e enfrentamento às abissalidades produzidas por esse modelo homogeneizante, uma nova racionalidade denominada por ele de pensamento pós-abissal. Este é uma maneira de colaborar solidariamente com os processos de justiça cognitiva e social por meio de marchas (no sentido de lutas) de descolonização e decolonização, uma vez que o projeto de colonização desperdiçou muito a experiência social na tentativa de homogeneizar o mundo, reduzindo a diversidade epistemológica, cultural e política.

Um conceito importante para a compreensão do pensamento abissal é o de linha abissal, termo metafórico, criado por Santos (2009, 2020), para ilustrar a profunda cisão na humanidade, provocada pelo projeto colonialista, capitalista e patriarcal que “[...] impede a copresença do universo ‘deste lado da linha’ com o universo ‘do outro lado da linha’ [...]” (Santos; Araújo; Baumgarten, 2016, p. 16).

“Este lado da linha”, refere-se ao Norte global e à toda sua hegemonia, enquanto que “o outro lado da linha”, por sua vez, refere-se ao Sul global, colonizado, mas ao mesmo tempo constituído de lutas e resistências às diferentes formas de opressão/dominação/exploração impostas.

O pensamento abissal subsiste através da negação da humanidade do “outro lado da linha” – condição fundamental para a afirmação de sua universalidade – produzindo periferias geográficas, culturais, políticas, raciais e de conhecimentos (Gomes, 2012). Além disso, cria fronteiras invisíveis que atravessam diversos espaços, desde a fronteira do saber até as das formas autorizadas e aceitas de existências, determinando e regulando as relações sociais de forma explicitamente violenta e desumana (os massacres a povos originários e a escravidão de povos negros, por exemplo).

Sob uma premissa homogeneizante, a humanidade civilizada “deste lado da linha” e, portanto, em condição de superioridade, amparada pelo pretexto em forma de projeto civilizatório da sub-humanidade primitiva “do outro lado da linha”, passa a pôr em prática as suas ações colonizadoras, como afirma Quijano (2005, p. 117): “Essa ideia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia.”

Assim, o processo de colonização resultou numa configuração social com base na hegemonia eurocentrada e no seu poder capitalista/racista/patriarcal/moderno, uma vez que tal hegemonia concentrou formas de dominação/controle das subjetividades, das culturas e, especialmente, da produção de conhecimentos (Quijano, 2005).

Nesse contexto de hegemonização e de negação surgem, enquanto alternativa contra-hegemônica, as Epistemologias do Sul, que partem do reconhecimento da riqueza inesgotável da diversidade do mundo, “[...] que continua desprovida de uma epistemologia adequada” (Santos, 2009, p. 43), uma vez que “[...] os saberes e as práticas do outro lado da linha desaparecem ao espelho do cânone monocultural definido do lado de cá” (Santos, Araújo, Baumgarten, 2016, p. 16). Nesses termos, as Epistemologias do Sul configuram-se enquanto alternativa epistemológica prudente em relação à epistemologia dominante do Norte.

Em entrevista ao Boletim Dobradiça, da Escola Brasileira de Psicanálise, Santos, (2020) ressalta que as Epistemologias do Sul são uma proposta para identificar, reconhecer e legitimar conhecimentos outros, que emergem do contexto de lutas e resistências ao paradigma moderno que, arrogante, reivindica para si o monopólio absoluto da verdade, partindo de concepções cristalizadas de sociedade, de ser humano, de natureza etc.

Partindo dessa concepção, percebe-se que as Epistemologias do Sul são a possibilidade coerente e viável para articular e dilatar a compreensão acerca da diversidade na EJA, especialmente, quando são levadas em conta as formas de dominação/violência/exploração às quais os povos colonizados foram subjugados, provocando o desperdício e a invisibilização de seus saberes, de suas práticas, de seus conhecimentos e de suas culturas. As Epistemologias do Sul advêm, principalmente, das maneiras como esses povos resistiram e ainda (re)existem, criativamente, às opressões impostas.

Tratar a questão da diversidade, nesse caso, em nada se aproxima da ideia universalista de diversidade. Ao contrário, trata-se, conforme Gomes (2018), de ultrapassar a leitura romantizada ou universalista da diversidade para compreendê-la, inserindo-a em sua complexa problemática, eivada das relações de poder, ou seja, de forma política ou politizada.

Diferentemente da riqueza que a ideia de diversidade traz embutida, reafirma-se que quanto mais diversas as pessoas, mais desiguais na sociedade que reafirma sua intolerância com os diferentes (Paiva, 2019a, p. 1153).

Portanto, o reconhecimento, a valorização e a legitimação da riqueza da diversidade comporta a noção de justiça social, cultural e cognitiva, bem como abriga a vontade política, ética, epistemológica e social de superação das tantas contradições produzidas no bojo das sociedades modernas orientadas pelo projeto capitalista, patriarcal e racista, que também é mortificante.

Nesse contexto, outras configurações de desigualdade, diferentes da clássica desigualdade de classes, vão se delineando: desigualdade de sexo, de raça, de idade, de gênero, de origem, constituem um conjunto que pode predeterminar o lugar na escala social ou a condição na qual são submetidos os indivíduos. Isso porque, de acordo com Santos (2020), o colonialismo deixou de existir de uma forma bem específica, mas tem continuado de diversas outras maneiras, reproduzindo e operacionalizando dinâmicas de desigualdades nas relações sociais.

E por isso contesta a ideia de que o colonialismo terminou com as independências. Não. O colonialismo manteve-se sob outra forma. O racismo é colonialismo. A concentração da terra é colonialismo. A expulsão de camponeses e de indígenas para os megaprojetos, sejam barragens, sejam grandes projetos de agricultura industrial, é colonialismo. E o patriarcado continua, apesar de todas as vitórias do movimento feminista. O feminicídio aumenta porque o capitalismo não existe sem colonialismo nem patriarcado (Santos, 2020, p. 23).

Esse fenômeno de continuidade do colonialismo é designado por Quijano (2005, 2009) de colonialidade do poder capitalista. Segundo o referido teórico “[...] no capitalismo mundial, são a questão do trabalho, da ‘raça’ e do ‘gênero’, as três instâncias centrais a respeito das quais se ordenam as relações de exploração/dominação/conflito” (Quijano, 2009, p. 104). A naturalização dessas relações é determinante para a manutenção das desigualdades e seus desdobramentos nas formas de xenofobia, homofobia, transfobia etc., todos resultantes de uma concepção canônica de sociedade, de ser humano.

De acordo com o pensamento abissal, capitalista/racista/patriarcal, a diversidade passa a ser considerada um problema a ser superado (Neufeld, 2006). A autora destaca que o conceito de diversidade não deve ser reduzido ao conceito de diferenças que se definem em relação oposta a seus pares (homem-mulher, branco-negro, Norte-Sul). Essa tem sido a leitura feita pela racionalidade dominante, que estrutura a sociedade, coloca esses pares em relação de dicotomia, hierarquizando-os, legitimando uns e inferiorizando outros.

Em seu texto A construção do discurso sobre a diversidade e suas práticas, Sacristán (2002) argumenta que a diversidade indica a circunstância dos indivíduos serem singulares, diferentes. No entanto, essas diferenças, podem aludir às desigualdades.

A diferença não é somente uma manifestação do ser único que cada um é; em muitos casos, é a manifestação de poder ou de chegar a ser, de ter possibilidades de ser e de participar dos bens sociais, econômicos e culturais (Sacristán, 2002, p. 14, grifos do autor).

A diversidade nas sociedades modernas, reconfiguradas pela globalização capitalista, implica em desigualdades resultantes das relações de poder que as configuram e, por sua vez, constituem mecanismos de violências sociais explícitas e implícitas que ocasionam o sofrimento (Heller, 1999) da humanidade, cevando a opressão, a fome, a discriminação, o preconceito e as interdições, precisamente porque as linhas abissais do pensamento moderno, apesar de serem fronteiras invisíveis, estão bem presentes e são inscritas no corpo e na vida das pessoas (Santos, 2020).

Partindo da investigação acerca do princípio da igualdade nas sociedades modernas, o sociólogo Dubet (2001) aponta para as contradições que emergem desse sistema: à medida que se afirmam democráticas, pressupondo uma condição de igualdade e liberdade entre os indivíduos, as sociedades capitalistas não param de produzir hierarquias e efeitos não-igualitários, aprofundando as desigualdades sociais.

De acordo com Dubet (2001, p. 6), “[...] na modernidade, os indivíduos são considerados cada vez mais iguais”. A ampliação da igualdade – princípio essencial para conceber a democracia ocidental – ocorre à medida que há um processo de homogeneização da sociedade, baseado pelo princípio da meritocracia. O sucesso ou o insucesso do indivíduo passa a ser de sua inteira responsabilidade, dependendo exclusivamente do resultado de seus esforços voluntários individuais e a mobilidade social configura-se enquanto “[...] produto da competição entre indivíduos iguais [...]” (Dubet, 2001, p. 6) com acesso a oportunidades iguais.

O referido autor, assinala a dupla face da modernidade: ao mesmo tempo que a igualdade cresceu, seja pelo acesso massivo à educação ou até mesmo aos bens culturais e materiais, antes raros ou proibidos, seu contexto ainda é de contradição, pois “[...] a estrutura social das nossas sociedades se ‘latino-americaniza’ com o crescimento da pobreza, da incerteza, da economia informal [...]” (Dubet, 2001, p. 9, grifo do autor). Esta atinge grupos sociais bem específicos, o que sugere o caráter cultural e histórico do acúmulo das desigualdades produzidas pelo projeto massificador e unidimensional de sociedade. Assim, as segmentações sociais passam a ser determinadas em função, não só da classe, mas do gênero, da raça, da origem etc.

A partir da multiplicidade das desigualdades sociais, surgem os movimentos sociais enquanto potência de ação emancipatória no processo de participação social, demandando por justiça, respeito e reconhecimento: “[...] o tema do respeito é necessariamente indexado às particularidades individuais, naturais ou reivindicadas, exigindo o reconhecimento de características e de experiências específicas” (Dubet, 2001, p. 18, grifos do autor).

A luta inconformista pelo reconhecimento, valorização e legitimação reivindicada pelos grupos sociais, historicamente marginalizados, por meio dos movimentos feministas, antirracistas, operários, trabalhadores rurais sem-terra, LGBTQIA+ pressupõe uma revisão nos conceitos de igualdade e diferença, expondo seus limites modeladores de vidas e, por isso, excludentes. A ideia de igualdade difundida pela racionalidade moderna cria o anômalo, o diferente, a partir de um ideal de ser humano, de sociedade, enfim, de uma cultura de padronização que elimina o direito às diversas maneiras de ser, de existir, de pensar, de viver, de sentir e de estar no mundo.

O movimento [social] é significado como algo que interrompeu a reposição da mesmidade [...], criou condições de enfrentamento do sofrimento psicossocial, aqui entendido como sintoma de uma das carências mais profundas da modernidade – desamparo/impotência, o que significa não ser reconhecido e não reconhecer a própria integridade humana e o seu poder de ação (Sawaia, 1997, p. 152).

Partindo dessa concepção, compreende-se com Sawaia (1997, p. 150) que os movimentos sociais se constituem enquanto negação rebelde do projeto homogeneizador de sociedade, bem como espaçotempo de reconhecimento de identidades, sobretudo por “[...] criarem uma diversidade de estratégia de enfrentamento da racionalidade tradicional da exclusão e uma diversidade de intersubjetividades portadoras de clara demanda de participação [...]” em direção a ações que produzem efeitos potencialmente emancipatórios e solidários de cidadania e responsabilidade social coletiva.

Destaca-se, ainda, que os movimentos sociais, para além da eficácia de ação de participação política, podem se apresentar enquanto possibilidade, latência, gestos de ruptura e sonhos emancipatórios. Se apresentam

[...] como potência de ação e como legitimidade subjetiva, o que significa ter direito a sentir-se com direito a ser ouvido e reconhecido como membro de comunidades argumentativas, definidoras de políticas coletivas do ‘bem-comum’ (Sawaia, 1997, p. 155, grifos da autora).

Por meio da dimensão pedagógica dos movimentos sociais, que suscitam debates e reflexões – educando e reeducando a sociedade, o Estado e a si próprios –, se reconhece a potência de ação emancipatória das lutas e dos movimentos sociais, bem como sua força educativa, uma vez que questionam as relações de poder, tensionando as estruturas rígidas do capitalismo, do patriarcado e do racismo em favor da “[...] construção de uma sociedade mais democrática, onde todos, reconhecidos na sua diferença, sejam tratados igualmente como sujeitos de direitos” (Gomes, 2012, p. 731).

Gomes (2012, 2020), ao discorrer sobre o movimento negro no Brasil, reforça seu caráter político-epistemológico, enquanto produtor de conhecimentos emancipatórios nascidos na luta. A pesquisadora considera a interseccionalidade entre os marcadores sociais de raça, gênero, orientação sexual e classe nesse processo, ajudando na dilatação da compreensão para outros movimentos sociais que lutam por dignidade, reconhecimento e justiça social.

Acerca do conhecimento político-epistemológico nascido na luta, Gomes afirma:

Um conhecimento que quanto mais se consolida, mais tem a capacidade de transformar a sua própria forma de perceber e interpretar os problemas que motivam a sua luta. Um conhecimento que se organiza na forma de produção intelectual e de práticas políticas, sociais e pedagógicas (Gomes, 2020, p. 365).

São saberes, conhecimentos, pedagogias de insurgência e resistência que têm articulado possibilidades subjetivas e diversas de ser, de estar, de viver, de existir, rompendo com o pensamento moderno ocidental e o poder colonial/capitalista/racista/patriarcal.

Pedagogías que animan el pensar desde y con genealogías, racionalidades, conocimientos, prácticas y sistemas civilizatorios y de vivir distintos. Pedagogías que incitan posibilidades de estar, ser, sentir, existir, hacer, pensar, mirar, escuchar y saber de otro modo, pedagogías enrumbadas hacia y ancladas en procesos y proyectos de carácter, horizonte e intento decolonial (Walsh, 2017, p. 28).

Nessa trama de saberes, pedagogias, insurgências e resistências descoloniais se afirma que a noção de diversidade se insere, simultaneamente, em contextos sociais, culturais, históricos, políticos mais amplos, o que implica uma postura epistemológica subversiva e complexa de natureza, de ser humano, com suas identidades e sua uni-diversidade como afirma Morin (2012). Não se constitui tarefa simples, desafiando aqueles e aquelas que lutam por justiça cognitiva para fazer justiça social. No entanto, é tarefa urgente, necessária e vital articular o pedagógico e o descolonial (Walsh, 2017) para reconstruir a condição de existência digna e semear constelações de vida, no sentido mais profundo, diverso, humano e não-humano que essa palavra abriga.

A circulação de conhecimentossignificações sobre diversidade na EJA

Nesta seção, apresenta-se a circulação de conhecimentossignificações (Andrade; Caldas; Alves, 2019) acerca da diversidade na EJA, a partir da investigação de pesquisas acadêmicas que discutem a temática, numa tentativa de conhecer como a diversidade tem sido escrita, pensada e compreendida no âmbito dessas pesquisas, considerando o contexto educacional.

Para tal propósito, foi realizada uma pesquisa, de tipo bibliográfica, denominada Estado da Arte (Ferreira, 2002), com o intuito de analisar maneiras de como a problemática mencionada tem sido estudada a partir de teses, dissertações e artigos, tendo em vista os trabalhos disponíveis na base de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e nos Repositórios Institucionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Foram considerados 8 trabalhos, mais especificamente 4 dissertações, 3 teses e 1 trabalho de conclusão de curso, obtidos por meio de duas buscas, considerando os seguintes descritores: Diversidade AND EJA e EJA AND Diversidade AND Identidade; outro critério ponderado, além dos descritores e o operador booleano AND, foi o recorte temporal, tomando como referência o período de 2015 a 2021.

No primeiro trabalho, denominado de Entre idas e vindas: uma diversidade de sentidos para a escola de EJA (Santos, 2018), identificou-se que o objetivo da pesquisa foi entender os sentidos que os estudantes da EJA atribuem à escola, levando em consideração as razões pelas quais esses sujeitos retornam à escola com a intenção de dar continuidade aos estudos após diversas intercorrências que atravessam suas vidas.

A autora destaca que a maioria dos praticantespensantes, são colocados às margens da sociedade por razões econômicas, sociais, políticas, culturais. Nesse sentido, Santos (2018) busca conhecer quais são as perspectivas de futuro que a escola pode oferecer, ainda que por meio do retorno ou ingresso “tardio” dessas pessoas que foram impedidas do direito à educação.

O termo “tardio” utilizado por Santos (2018) está grafado entre aspas como forma de chamar atenção para o fato de que a expressão pode sinalizar mais um fator de exclusão, de cunho culpabilizador, atribuído aos jovens e adultos que foram interditados do direito à educação. Nesse caso, a idade torna-se mais um fator de exclusão para essas pessoas.

Isso posto, percebe-se que a idade pode se configurar em mais uma das tantas ausências criadas pela modernidade, no sentido de fixar, determinar um tempo “certo” e legitimar um único lugar para se aprender. Outro aspecto importante a ser destacado é que o termo “tardio” pode limitar a compreensão filosófica de aprendizados ao longo da vida que tem sido assumido por Paiva (2019b).

Dentre as características que se considera enquanto constitutivas das identidades e diversidade desses sujeitos, a pesquisa revelou que há uma variedade de gênero (com predominância do gênero feminino), de faixa etária, de cor, de estado civil etc. Os sentidos atribuídos pelos sujeitos à escola são diversos, assim como suas características identitárias, e se inscrevem no processo de subjetividade que busca uma maneira de melhorar as condições de vida na escola; ingressar no ensino superior, obter um emprego melhor, restaurar o direito à educação e o acesso aos demais direitos civis negados.

No segundo trabalho, uma tese intitulada Diversidade sexual na Educação de Jovens e Adultos (EJA): limites e possibilidades da efetivação do direito à educação, Silva (2016) busca identificar as especificidades dos estudantes LGBTs que chegam à EJA. A pesquisa tenta compreender o quanto a homofobia pode ser impeditiva para a livre expressão quanto à orientação sexual dos sujeitos, além de ser uma barreira para a efetivação do direito à educação de pessoas jovens, adultas ou idosas. O autor ainda ressalta a necessidade de se construir e implementar uma prática anti-homofóbica na EJA, visto que a homofobia tem representado um obstáculo para a garantia do direito à educação.

O estudo revela a diversidade sexual presente na EJA, constatando que as temáticas de identidade de gênero, sexualidade e homofobia têm sido pouco discutidas na modalidade, dada a sua complexidade e, também, por serem “[...] do ponto de vista teórico, relativamente, jovens, sobretudo em sua articulação com o campo da EJA” (Silva, 2016, p. 286).

Na discussão, ressalta que o padrão heteronormativo, reafirmado por meio das instituições modernas, eivadas de relações de poder, como família, escola e igreja, tem destinado às pessoas que não se encaixam em seus moldes normativos lugares de marginalização, ativamente produzindo-as enquanto inexistentes e invisíveis, interditando-as do direito a uma vida digna. Além disso, há o prejuízo do bem-estar subjetivo e do processo de construção identitária dessas pessoas que se desviam da norma dominante.

Fundada a partir da ideia da heteronormatividade compulsória, a homofobia na escola de EJA pode se materializar em vários aspectos, de modo interseccional, quando articulada a outros marcadores sociais de exclusão, que são determinados a partir das linhas abissais do pensamento moderno. Silva, (2016) argumenta que as expressões dessas abissalidades, que estamos compreendendo por diversidade, estão bem presentes e corporificadas na EJA, o que pressupõe um trabalho pedagógico que considere as especificidades de seus praticantespensantes de maneira imbricada, de modo a produzir uma lógica de enfrentamento às discriminações e preconceitos.

Nesse contexto, o autor defende a concepção de uma pedagogia do acolhimento, que possui uma perspectiva anti-homofóbica, que busca perceber e legitimar a diversidade dos sujeitos da EJA, visto que a escola pode representar um lugar hostil para pessoas LGBTQIA+, culminando no abandono escolar dessa população por reproduzir, majoritariamente, processos discriminatórios por meio de discursos e/ou práticas pedagógicas homofóbicas.

A pedagogia do acolhimento, em nosso entendimento, se alinha à natureza epistemológica do Sul, por possuir uma função estratégica na colaboração e efetivação do processo de transformação das relações sexistas presentes no cotidiano escolar e na sociedade; por questionar o padrão heteronormativo dominante; e por propor a construção de uma sociedade mais justa, com condições de existência digna, desde a formação escolar, considerando as trajetórias de vida, as particularidades, as experiências e as expectativas dos educandos.

No terceiro trabalho, O não-lugar do lugar da escola: sentidos produzidos por jovens de 15 a 17 anos na Educação de Jovens e Adultos (Silva, 2019), a autora parte da perspectiva da diversidade dos sujeitos da EJA de modo imbricado às suas histórias de vida, experiências, singularidades, identidades, características, sociabilidades, diferentes pertencimentos, entre outros fatores que se enredam e repercutem na escola, formando uma trama subjetiva maior que está relacionada às permanências desses jovens na escola, tornando esse espaço múltiplo de sentidos.

Na trama dos sentidos atribuídos à escola por esses jovens, há fios como gênero, pertencimento étnico-racial, família, trabalho e relações de sociabilidade que se cruzam, definindo este espaçotempo que designa texturas e intensidades singulares, percebidas por meio dos sentidos emergentes nos depoimentos recenseados (Silva, 2019).

Semelhante ao primeiro trabalho, de Santos (2018), percebe-se que a escola de EJA é um lugar de resistências, de possibilidades e de convergência da diversidade expressas pelas subjetividades individuais ou coletivas dos praticantespensantes que a povoam, cotidianamente, reinventando e ressignificando este espaçotempo de tramitação do coletivo como alternativa criativa frente ao desafio de dar conta de suas existências atravessadas por ausências históricas, produzidas “deste lado da linha abissal”.

Em A construção de igualdade de gênero no currículo da educação de adolescentes, jovens e adultos na rede municipal de ensino de Goiânia (Gomes, 2016), quarto trabalho selecionado e analisado, destacam-se a necessidade e a urgência de reconhecer a EJA enquanto espaço de diversidade, bem como considerar os grupos que majoritariamente a formam, atentando para suas características, subjetividades, especificidades e identidades. Estas têm sido historicamente atravessadas por processos de exclusão, decorrentes da estrutura do poder colonial que tem persistido e continuado sob a forma de colonialidade do poder capitalista/racista/patriarcal, produzindo o contingente daquelas e daqueles que ficam de fora do mapa (Santos; Araújo; Baumgarten, 2016).

A autora revela que, enquanto professora de EJA, sempre se inquietou com a constatação do abandono ou afastamento escolar, principalmente entre as mulheres que frequentam essa modalidade educativa. O casamento e a maternidade estão entre as justificativas alegadas pelas alunas que se afastam da escola.

Gomes (2016, p. 156) argumenta que as “[...] relações de gênero entre mulheres e homens da EJA são efetivamente afetadas por esse modelo heteronormativo [...]”, chamando a atenção para o fato de que a temática de gênero ainda tem sido abordada de forma simplista, limitando-se a temas generalizantes como direito, cidadania ou a partir de datas comemorativas, como o Dia Internacional da Mulher, por exemplo, de forma reducionista.

Tais situações evidenciam a estruturação injusta do modelo patriarcal que traz implícito relações de poder e de dominação eminentemente masculinas, sobretudo em relação aos papéis social e culturalmente construídos, que tomam como referência o gênero. Sendo assim, o patriarcado e a heteronormatividade atuam no sentido de regular as demais manifestações que constituem a diversidade cultural, sexual e de gênero da sociedade, repercutindo, também, na organização escolar.

Considerando a EJA enquanto espaçotempo heterogêneo, constituído pela multiplicidade de subjetividades, trajetórias e experiências de vida articuladas às questões de gênero, raça, classe e origem de seus praticantespensantes, compreende-se que tais relações de poder não se dão fora de conflitos, tensionamentos e embates. Isso configura essa modalidade de ensino como um lugar privilegiado para o enfrentamento das exclusões e assimetrias sociais, bem como para a inclusão daqueles socialmente produzidos como invisíveis, podendo configurar-se num ambiente reconstrutor da dignidade humana, desde que articulado a um projeto pedagógico que semeie justiça social e democracia na perspectiva da pedagogia do acolhimento (Silva, 2016).

Nessa esteira de processos, práticas e situações que articulam a diversidade, o trabalho As Inter-Relações entre Discriminação Racial, de Gênero e Exclusão Social na Trajetória de Mulheres Negras da EJA (Leal, 2017) enfatizou os marcadores sociais: raça, gênero e classe e o modo como tais marcadores atravessam a trajetória de mulheres negras da EJA, a fim de compreender a complexa teia de deslegitimação que envolve as suas vidas, atrelada à estereotipação negativa, ao racismo, ao preconceito, à manutenção da condição histórica de subalternização, entre outros aspectos.

A pesquisadora aponta que as formas de preconceito vivenciadas pelas mulheres negras estudadas não são originadas somente a partir de um dos marcadores sociais, mas da interseccionalidade entre eles, afetando de modo complexo a vida dessas mulheres, que relataram, inclusive, o desejo de serem invisíveis para fugir da discriminação.

Santos (2009) evidencia que o pensamento abissal moderno se universaliza e se afirma enquanto único, legítimo e socialmente válido pela sua capacidade de produzir e aprofundar diferenças. Tais diferenças surgem do contexto de estigmatização, estereotipação e inferiorização dos aspectos que escapam do modelo hegemônico racista, patriarcal, colonial, eurocentricamente orientado, afetando negativamente os processos de construção e afirmação positiva dos saberes estético-corpóreos (Gomes, 2020) das mulheres negras.

No processo de pesquisa, um dos fatos que causaram estranhamento à autora foram as práticas racistas e sexistas que atravessam a vida dessas mulheres durante suas trajetórias escolares. Nesse sentido, reforça-se a necessidade de se construir práticas pedagógicas antirracistas e antidiscriminatórias que apontem para a desinvisibilização e valorização da diversidade corporificada na EJA, que produzam redes interseccionais de solidariedade e afetividade, politizando as lutas pela construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, pautada pelo “[...] princípio do reconhecimento da diferença” (Santos, 2009, p. 42).

Uma alternativa viável para a efetivação do reconhecimento das diferenças enquanto direito encontra-se nas teorizações a respeito da função pedagógica do movimento negro. Gomes (2012, 2018, 2020) tem sustentado a ação político-pedagógica do movimento negro, enquanto ator coletivo de produção de saberes emancipatórios, educador da sociedade, de si mesmo e do Estado, ao indagar as relações do poder colonial, trazendo para o debate e para a reflexão temas como o racismo estrutural, juventude negra, discriminação racial etc.

Já o trabalho Trajetórias de alunos e alunas transgêneros na educação de jovens e adultos do município de Nova Iguaçu (Silva, 2015) revela, a partir do mapeamento das escolas do município e de entrevistas com os professores, a ausência de alunos e alunas travestis e transexuais na EJA e a postura transfóbica das escolas de educação básica, que interdita e não assegura o direito da população trans de frequentar e permanecer na escola.

A postura intolerante da escola é reflexo de uma sociedade heteronormativamente orientada e, por isso, transfóbica, configurando esse lugar num espaço hostil àqueles(as) que se desviam dessa norma e que, consequentemente, passa a excluí-los do direito à educação. Tal postura acaba repercutindo na decisão das pessoas trans em não permanecerem na escola por se sentirem inseguras, por serem alvos de preconceito, discriminação ou estigmatização.

É importante ressaltar que a escola pública é uma instituição que emerge e se consolida com a modernidade e, por essa razão, pode colaborar com os processos de manutenção de desigualdades provenientes das relações injustas de poder. No entanto, para além das abissalidades do pensamento moderno, não se pode negar a escola enquanto direito essencial e necessário à produção de cidadania.

Em sua pesquisa, Silva (2015) destaca que a pluralidade de identidades sexuais para além dos binarismos e reducionismos impostos pelo padrão heteronormativo deve ser reconhecida e dialogada na escola, como conteúdo e pauta permanente, a fim de minimizar e romper com esse pensar-praticar abissal.

Na dissertação Trajetórias de mulheres da e na EJA e seus enfrentamentos às situações de violências, Barreto (2021) discorre sobre os processos de violências estruturais sofridos e enfrentados por mulheres em razão da organização social, notadamente, patriarcal, racista e capitalista, culminando no impedimento ou no afastamento dessas mulheres no que se refere ao acesso e ao direito à educação.

À questão de gênero, são associados outros marcadores sociais (classe, raça/etnia) que refletem assimetricamente e negativamente na vida de mulheres, quando da intersecção de uma ou mais condições que, na sociedade normatizada pelo pensamento abissal patriarcal/racista, se caracterizam enquanto fatores de opressão, exclusão e subalternização, conforme se discute ao longo da dissertação. Assim, Barreto (2021) afirma que ser mulher numa sociedade atravessada pelas questões de gênero, raça e classe constitui-se condição de desigualdade e de impedimento do processo de escolarização das estudantes, tanto na infância e adolescência quanto na fase adulta.

Barreto (2021) estabelece relação entre educação e política, considerando, sobretudo, as relações de poder injustas e desiguais que configuram a organização estrutural da sociedade, determinando as condições materiais de existência de mulheres, pobres, negras e periféricas. Desse modo, as trajetórias de enfrentamento das situações de violências vivenciadas por mulheres negras e periféricas se entrecruzam na EJA, formando redes de solidariedade emancipatórias e de resistência às exclusões instituídas pelas desigualdades de gênero, classe e raça/etnia.

Descolonizar o corpo, reinventar o currículo: memórias de luta e resistência é um outro trabalho selecionado por este estado da arte, atravessado por memórias de um corpo colonizado no qual Silva (2016) produz uma reflexão acerca dos processos de violência sofridos e reforçados na escola e seus moldes normativos, heterossexistas e racistas. A autora descreve como vivenciou, a partir da dor, do sofrimento, da luta e da resistência, essa trajetória marcada por negação, silenciamento, estigmatização e ridicularização no âmbito escolar.

Essa monografia, como bem ressalta Silva (2016, p. 52), caracteriza-se enquanto força mobilizadora e potente de denúncia e luta “[...] contra as opressões mortificantes! [...]”, ao problematizar a suposta neutralidade da educação e o modo como as opressões atualmente vem sendo esvaziadas, generalizadas e reduzidas a uma única definição: bullying.

A definição generalizante dos processos de violência e deslegitimação sofridos por aqueles(as) que foram alocados “do outro lado da linha” constitui-se em mais um modo de silenciamento a ser enfrentado pelos povos colonizados, que têm lutado para se afirmarem, reivindicando a valorização e a “[...] inclusão das formas culturais que refletem a experiência de grupos cujas identidades culturais e sociais [que] são marginalizadas pela identidade europeia dominante” (Silva, 2022, p. 126).

Os trabalhos investigados apontam que a EJA é um campo favorável para a convergência da diversidade – seja por meio dos sentidos que os próprios praticantespensantes atribuem à escola, seja por meio dos inúmeros marcadores sociais, tais como gênero, raça, classe, sexualidade, entre outros, constituindo-se em espaçotempo fértil de diferenças a serem consideradas na formação de identidades e subjetividades.

Considerações finais

O presente estudo, fundamentado nas Epistemologias do Sul, demonstra que a escola, enquanto instituição que emerge da modernidade, tem reproduzido processos de exclusões, negando a diversidade que a compõe. Ao inserir tal problemática na EJA, a situação ganha maior amplitude e complexidade, pois ao tentar compreender e aproximar-se dos sujeitos que a compõem – mulheres e homens que frequentam a escola pela primeira vez ou que retornam à escola após períodos de interdição ao direito à educação no acesso, na permanência ou no sucesso escolar – percebe-se que, em sua maioria, são pessoas com trajetórias de vida atravessadas por inúmeras formas de exclusão, frutos das hierarquias, dicotomias e binarismos do pensamento abissal eurocentrado.

Como resultado desta análise, conclui-se que nem sempre a escola da EJA tem demonstrado estar preparada para o trabalho político-pedagógico com a diversidade, reforçando processos de exclusão, silenciamento, invisibilização, preconceito e intolerância. Todavia, cabe reforçar que, para além de suas abissalidades, a escola possui papel relevante para a transformação social do público jovem, adulto e idoso da EJA, bem como, se integra enquanto direito, sendo necessária para a constituição dos processos de emancipação social e humana. É significativo reconhecer que, por se configurar enquanto espaçotempo privilegiado para a convergência da diversidade, uma vez que é constituída por realidades de vidas heterogêneas, representadas pelas chamadas minorias, a EJA possui força, natureza e simbologia política, cultural e estética capaz de valorizar e legitimar as múltiplas dinâmicas identitárias de seus praticantespensantes.

A diversidade dos praticantespensantes da EJA – considerando seus sentidos éticos, estéticos, culturais e políticos – reverbera na escola por meio dos sujeitos que cotidianamente habitam, vivem e povoam a escola, fabricando criativamente maneiras de resistências à normatividade social imposta como forma de desinvisibilização e ressignificação de suas experiências.

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Recebido: 13 de Maio de 2023; Aceito: 26 de Julho de 2023

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Prof. Dr. Francisco Canindé da Silva, Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação (POSEDUC), Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação de Jovens e Adultos (GEPEJA), Orcid id: 0000-0002-5089-284X, E-mail: canindesilva@uern.br

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