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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.69 Natal jul./set 2023  Epub 19-Dez-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n69id32310 

Artigo

Pesquisa contrastiva pela lente da dialética

La investigación contrastiva por la lente de la dialéctica

Augusto Cesar Rios Leiro1  2 
http://orcid.org/0000-0002-6075-5187

Adriana Pinheiro Santos3 
http://orcid.org/0000-0001-5947-8293

Daniela Santana Reis4 
http://orcid.org/0000-0001-8043-5335

1Universidade Federal da Bahia (Brasil)

2Universidade do Estado da Bahia (Brasil)

3Instituto Federal da Bahia (Brasil)

4Faculdade Adventista de Minas Gerais (Brasil)


Resumo

A permanente produção (e profusão) científica no âmbito das ciências sociais e da educação, em meio ao contexto macrossocial de grandes incertezas e mudanças que o mundo vivencia, requer reflexões e debates contínuos acerca de antigas e novas questões sobre o(s) método(s) de pesquisa nas ciências sociais em geral e na educação em particular. O presente artigo pretende evidenciar problematizações em torno de abordagens metodológicas tradicionais e apresentar delineamentos teórico-metodológicos da pesquisa contrastiva, concebida aqui pela lente de três categorias nucleares - a totalidade, a contradição e a mediação -, tomando como ponto de vista epistemológico e metodológico a perspectiva materialista e dialética. Em busca da finalidade supracitada, foi realizado um estudo das categorias teóricas em tela, bem como análise de delineamentos metodológicos, com vistas a proposição que singularize os estudos de natureza contrastiva. Como indiciam os fundamentos deste texto, o diálogo com o leitor é essencial para o corpus do estudo.

Palavras-chave: Metodologia científica; Pesquisa contrastiva; Dialética; Materialismo histórico-dialético

Resumen

La permanente producción (y profusión) científica en el ámbito de las ciencias sociales y de la educación, en medio del contexto macrosocial de grandes incertidumbres y cambios que el mundo vive, requiere reflexiones y debates constantes sobre el(los) método(os) de investigación en las ciencias sociales en general y en la educación en particular. El presente artículo pretende evidenciar las problematizaciones en torno a los abordajes metodológicos tradicionales y presentar delineamentos teórico-metodológicos de investigación contrastiva, concebida aquí por la lente de tres categorías nucleares - la totalidad, la contradicción y la medición -, tomando como punto de vista epistemológico la perspectiva materialista y dialéctica. En busca del propósito mencionado, se realizó un estudio de las categorías teóricas en cuestión, así como un análisis de los lineamientos metodológicos, con miras a la proposición que singulariza los estudios de carácter contrastivo. Como indican los fundamentos de este texto, el diálogo con el lector es fundamental para el corpus del estudio.

Palabras clave: Metodología científica; Investigación contrastiva; Dialéctica; Materialismo histórico-dialéctico

Abstract

The permanent scientific production (and profusion) in the field of social sciences and education, amid the macro-social context of great uncertainties and changes that the world is experiencing, requires continuous reflections and debates regarding old and new questions about the research method(s) in the field of social sciences in general, and education in particular. This article aims to highlight problematizations around traditional methodological approaches and to present theoretical and methodological outlines of contrastive research, conceived here through the lens of three core categories - totality, contradiction, and mediation -, taking as its epistemological and methodological point of view the materialist and dialectical perspective. In search of the goal, a study of these theoretical categories was carried out, as well as analysis of methodological outlines, with a view to the proposition that singles out studies of a contrastive nature. As the foundations of this text indicate, the dialogue with the reader is essential for the corpus of the study.

Keywords: Scientific methodology; Contrastive research; Dialectics; Historical and dialectical materialism

Introdução

A procura por referências sobre a abordagem contrastiva nos estudos da pesquisa social, particularmente na educação, levou à constatação de uma certa dispersão conceitual sobre o seu significado, sua fundamentação e sua práxis. Essa constatação nos instigou a aprofundar leituras e desenvolver um texto-base capaz de sintetizar sua compreensão e seus usos. A proposta de uma síntese guarda relação direta com os princípios do materialismo histórico-dialético, eixo teórico que ancora a perspectiva deste estudo.

O desafio permanente de produzir e socializar conhecimentos na ambiência do macrocampo da educação é uma realidade para a qual todos estamos convocados. Entretanto, os fundamentos, as trilhas e os caminhos da pesquisa e do debate são diferentes e implicados com distintas realidades e possibilidades argumentativas. Em tempos de grandes (in)certezas e de ampliação das fronteiras do mundo, reitera-se a exigência de renovados olhares por parte da ciência. Nesse sentido, multiplicam-se os estudos que pretendem analisar os fenômenos sociais, problematizar questões e indicar novos referenciais para a pesquisa científica.

No conjunto de delineamentos investigativos situados na contemporaneidade, o contraste figura como categoria estruturante e composição metodológica. Sublinha-se que, neste texto, à medida que são capturadas sínteses conceituais sobre a pesquisa e a análise contrastivas, vão se tornando possíveis novas leituras sobre o constructo teórico em tela.

Este artigo parte da ideia abrangente de contraste, que, de algum modo, perpassa por todas as áreas do conhecimento, para, em seguida, apresentar seus fundamentos teóricos e, por fim, compor uma trilha que aponte possibilidades de apreciação da realidade a partir da ideia de contraste. As questões aqui debatidas se relacionam com o aporte teórico do materialismo histórico-dialético, eixo paradigmático que fundamenta a análise da ação humana e, portanto, dos fenômenos educacionais, com ênfase na dialética.

Primeiras capturas: o contraste

Tendo em vista o caráter polissêmico da palavra “contraste”, sua compreensão parte de distintos pontos. O termo “contraste” é um verbete da língua portuguesa utilizado em diversos contextos da escrita e da linguagem. Sua significação é parte da prática social vivenciada em cada contexto, no entanto, percebe-se que é possível construir um alicerce acerca do termo, tomando-se como base diferentes ciências e óticas.

No campo da publicidade e da arte gráfica, por exemplo, o contraste de cores e luzes é empregado com a finalidade de despertar o interesse do espectador para o que se quer destacar, uma vez que a cor é elemento básico da comunicação visual e um aspecto importante da construção de imagens. Na área da saúde, é reconhecido como substância química utilizada nos exames de imagens, com o objetivo de facilitar a visualização de estados normais e/ou patológicos de células, tecidos e órgãos em pacientes, proporcionando diagnósticos mais eficazes e tratamentos mais precisos por parte da medicina ocidental. Em ambos os exemplos, ao evidenciar as partes que constituem um todo sem destacá-lo do seu contexto, o contraste conduz a uma compreensão ampliada desse todo.

No âmbito das ciências humanas e sociais, a ideia de contraste comporta ambivalências que a aproximam do sentido da dialética, permitindo conotações e denotações provenientes da sua dinâmica de pensamento. Esse entendimento realça o que existe de essencial em cada realidade identificada: a relação simultânea de oposição e complementaridade, que revela as similitudes e singularidades dos fenômenos, transpõe a aparência e conduz a uma aproximação à essência. Sobre esse aspecto, depreende-se que:

O mundo da pseudoconcreticidade é um claro-escuro de verdade e engano. O seu elemento próprio é de duplo sentido. O fenômeno indica a essência e, ao mesmo tempo, a esconde. A essência se manifesta no fenômeno, mas só de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ângulos e aspectos. (Kosik, 1969, p. 11).

O excerto acima explicita que a composição de significados que se baseia no fenômeno como referência única e coesa é ambígua e propensa a equívocos. Em contraposição, a composição de significados fincada na dialética conduz à ideia de movimento, contrária às generalidades fixas dos métodos empiricistas das ciências naturais e matemáticas, que, ao serem transpostas para as ciências sociais, atribuem ao fenômeno uma existência em si.

A pseudoconcreticidade referenciada (Kosik, 1969), que supostamente conduz a uma ideia de exatidão, foi reivindicada pelas ciências sociais, em seu nascimento, para conferir legitimidade à refutação da inevitável relação entre pesquisador(a) e objeto como partes indissociáveis da mesma matéria: a sociedade. Com isso, para conferir às ciências sociais seu caráter de objetividade, a tentativa de coisificação da realidade sobrepôs seu propósito de conhecer a um patamar superior à própria compreensão da vida, visto que a multiplicidade de formas manifestas é uma marca incólume da existência humana.

É papel da ciência questionar as verdades ontológicas e epistemológicas que consolidaram os processos de construção do conhecimento, visto que a realidade não pode ser contida em verdades estáticas, pois o ser está em constante vir a ser. É preciso desvelar seu conteúdo interno em relação e interação com suas determinantes e respectivas categorias constituintes, a fim de que se possa alcançar o conhecimento ontológico do ser em sua imanente provisoriedade.

A partir dessa perspectiva, deflagra-se a necessidade de construir possibilidades que considerem o real concreto, que apenas existe na relação com as dimensões que o constituem e com as quais se relaciona. É desse ponto que se erige a pesquisa contrastiva como abordagem alternativa ao que está posto.

É preciso, no entanto, resolver a persistente dificuldade de distinguir, contrastar e comparar. Embora as palavras “contraste” e “comparação” possam ser tomadas como sinônimas em certos contextos, objetiva-se, com este artigo, afirmar o contraste como um tipo de pesquisa que supera os limites postos pela comparação. Entretanto, a necessidade de afirmar e consolidar a singularidade da pesquisa contrastiva não exclui o reconhecimento da importância da pesquisa comparada para o desenvolvimento das ciências sociais e para a educação.

Tendo em vista as particularidades das ciências sociais, tais estudos apontam para a comparação a partir de múltiplas nuances, sob diferentes denominações: pesquisa comparada, método comparativo, análise comparativa, abordagem comparativa, história comparada, educação comparada etc.

Os precursores das ciências sociais, cada qual em seu tempo e com sua visão, encontraram na comparação um caminho para a objetividade e o rigor científico. Segundo os autores,

O uso da comparação, enquanto perspectiva de análise do social, possui uma série de implicações situadas no plano epistemológico, remetendo a um debate acerca dos próprios fundamentos da construção do conhecimento em ciências sociais (Schneider; Schimitt, 1998, p. 1).

Com isso, buscam-se nos clássicos das ciências sociais os fundamentos que constituem a base da comparação aplicada à pesquisa social, englobando os demais campos das ciências humanas. Desse modo, parece pertinente retomar aqui alguns pontos centrais desse processo histórico, iniciando pela abordagem positivista de Comte, a fim de tornar mais evidente as determinações que fundamentam a argumentação em torno da defesa da pesquisa contrastiva.

O positivismo comtiano foi inspirado na física, pois o autor considerava que a sociedade deveria ser estudada segundo os rigores metodológicos aplicados às ciências naturais, tendo como base a observação, a comparação e a experimentação (Giddens, 2012; Quintaneiro, 2002). Nessa perspectiva, Comte defendia que a sociologia, inicialmente denominada de física social, deveria descobrir suas leis gerais e invariáveis, assim como a física fazia em relação ao mundo natural, por intermédio da comparação, no tempo e no espaço, entre diferentes épocas históricas ou diferentes agrupamentos humanos (Schneider; Schimitt, 1998).

Mas foi Durkheim quem aprofundou a pesquisa comparada no âmbito das ciências sociais, definindo que o método comparativo é o único que convém à sociologia, para que se possam extrair as relações de causalidade que possibilitam ao pesquisador estabelecer generalizações acerca do estudo da sociedade por meio dos fatos sociais (Durkheim, 2004). Nesse sentido, a comparação entre dois fatos sociais permitiu ao sociólogo determinar o que seria fundamental investigar a partir das regularidades existentes entre ambos, estabelecendo as causas, os efeitos e as consequências (Durkheim, 2004; Schneider; Schimitt, 1998).

Weber, por sua vez, negava a visão da sociedade como um sistema que pode ser apreendido em sua totalidade. Ressalta-se que os Ensaios de Sociologia, que reúnem constructos de Weber, concluem na sua introdução que seus escritos sobre o método rejeitam os significados objetivos (Gerth; Mills, 1982). Assim, inferem que a compreensão e a interpretação do significado das ações dos indivíduos só podem ser explicadas por meio das intenções subjetivas do agente. Seria por meio da compreensão da menor partícula da sociedade, o indivíduo, que se extrairia o sentido da ação social, considerada por Weber como o objeto de estudo da sociologia.

Por outro lado, para que essa “captura” ocorra, são criados os tipos ideais, que possibilitam adequações de sentido, numa tentativa de definir modelos conceituais “puros”, a fim de extrair aproximações a realidades distintas por meio da comparação (Weber, 2022). Ao se deter nos sentidos difusos que os sujeitos atribuem à ação, assim como na multiplicidade de suas formas, Weber reconhece que a complexidade da vida social impediria quaisquer generalizações, por isso, afirmava ser necessário subordinar a realidade ao conceito, a fim de comparar aquilo que é qualitativamente igual.

Tem-se repetido a premissa de que a ciência da sociologia tenta formular conceitos tipológicos e regras gerais dos processos empíricos. Desse modo, está em contraste com a história, que se esforça para a análise e explicação causal da ação culturalmente significativa de indivíduos, de instituições e de certas personalidades. Os dados que alicerçam as conceituações da sociologia consistem essencialmente, embora não com exclusividade, dos mesmos processos relevantes de ação com os quais trabalham os historiadores. Seus conceitos e generalizações baseiam-se na premissa de que a sociologia reivindica dar uma contribuição à explicação causal de alguns fenômenos históricos e culturalmente importantes. Como é verdadeiro para qualquer outra ciência generalizadora, o caráter abstrato dos conceitos sociológicos é responsável pela relativa ausência de conteúdo concreto, quando comparado à verdadeira realidade histórica. Mas o que a sociologia oferece, ao contrário, é um aumento na precisão dos conceitos (Weber, 2002, p 33).

Nesse sentido, a comparação entre realidades concretas e tipos ideais destituiu das primeiras seus elementos diferenciadores, contraditórios e difusos, a fim de assegurar comunalidades e fazer com que a clarividência científica se estabelecesse.

Para diferenciar o método comparativo da pesquisa contrastiva, é necessário demarcar que o primeiro busca estabelecer nexos que possibilitem explicações comuns e invariáveis. Isso ocorre quando esses nexos estão inspirados nas ciências naturais, destacando, portanto, o objeto do seu contexto, atribuindo-lhe o caráter de “coisa” e, consequentemente, descartando as múltiplas conexões que estabelece com o seu contexto, e quando o analisam por meio de tipos ideais, que jamais existiram (e, quiçá, jamais existirão), em detrimento dos aspectos contraditórios que o particularizam.

Já na pesquisa contrastiva, busca-se dar visibilidade às partes da realidade, incluindo suas contradições e admitindo-as como pertencentes e pertinentes à unidade. Com isso, refuta-se a coisificação da realidade e admite-se seu permanente devir, suas pluralidades manifestas e suas interações contextuais como movimentos históricos e socialmente produzidos. É possível reconhecer essa ideação sobre a pesquisa contrastiva nas seguintes ponderações:

[...] as formações materiais do mundo simplesmente existem e nada mais. Elas encontram-se em contínua interação. Nesse processo de interação manifestam-se suas propriedades, que as caracterizam como corpos isolados, determinados, fenômenos que, em certas circunstâncias, passam uns pelos outros. O resultado disso é que todos os fenômenos da realidade se encontram em um estado de correlação e de interdependência universais. Mas, nesse caso, os conceitos, pelos quais o homem reflete, em sua consciência, a realidade ambiente, devem ser igualmente interdependentes, ligados uns aos outros, móveis e, em determinadas circunstâncias, passar uns pelos outros e transformar-se em seus contrários, porque é somente dessa maneira que eles podem refletir a situação real das coisas (Cheptulin, 1982, p. 19).

Essa relação complexa entre as partes e o todo e entre o todo e as partes, bem como o rompimento com o pensamento binário de que as coisas são “isto” ou “aquilo” para admitir a coexistência com o seu contrário - isto é, aquilo em simultaneidades antagônicas e complementares -, requer um pensamento que considere a totalidade como ponto de partida e chegada. Busca-se, na perspectiva da dialética, o entendimento da contradição, que confere movimento contínuo à realidade objetiva por meio das transformações históricas, com seus antagonismos e suas sínteses.

Categorias teóricas capturadas no percurso

No materialismo histórico-dialético, tomado como lente que apreende as relações sociais, a realidade é concebida como unidade, em relação à qual as partes são composições que possuem contornos particulares, porém interdependentes, em uma interação contínua, conferindo um caráter dinâmico a essa realidade. Esse dinamismo advém das contradições presentes no interior de toda realidade, que, em permanente disputa, têm como resultado o desequilíbrio, o choque e a contínua busca por superação. Caso não ocorresse assim, “[...] a mente tenderia a erradicar todas as sensações, criando um clima de morte e de ausência de ser” (Dondis, 2015, p. 108).

Logo, torna-se fundamental compreender a realidade e o caráter complexo, múltiplo e transitório da matéria e da materialidade da vida, sem o qual toda e qualquer inferência constituir-se-ia em narrativa ficcional. A matéria compreende a realidade objetiva, já a consciência humana, condicionada ao seu tempo histórico, age como mediadora da realidade. Ou seja, não há relatividade para a existência material e a vida se produz e se reproduz nas interações do ser humano como materialidade e com essa materialidade.

A compreensão do materialismo em oposição ao idealismo é fundamental para que se possa compreender o materialismo histórico-dialético como estrutura metodológica que ancora e dá significado à pesquisa contrastiva. É oportuno destacar que, “[...] do ponto de vista filosófico, a oposição e a incompatibilidade de materialismo e idealismo são absolutas” (Lefebvre, 1991, p. 58). Ou seja, duas correntes filosóficas essenciais estão em constante conflito: uma pressupõe a matéria como fator primário e a outra exatamente o seu oposto, isto é, a ideia.

Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século 18, compreendia sob o nome de “sociedade civil”. Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na Economia Política. [...] O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência (Marx, 2008, p. 47).

O materialismo parte da compreensão de que a matéria antecede a ideia, portanto, advoga que a consciência nasce das interações de homens e mulheres com a natureza e de ambos entre si, ou seja, das relações materiais que possibilitam a (re)produção contínua da sua existência. Mas não apenas isso. A consciência é material e histórica porque essas interações estão situadas no tempo e no espaço, submetidas, portanto, às possibilidades e impossibilidades do seu tempo.

Por fim, a consciência é material, histórica e dialética porque seu fluxo é de movimento contínuo e dinâmico. A coerência entre a perspectiva contrastiva e o materialismo histórico-dialético dá-se a partir da necessária apreensão de que existe uma realidade objetiva fora da consciência. A matéria é o princípio primeiro e a consciência o aspecto secundário, derivado. Desse modo, a consciência é uma propriedade da matéria, a mais organizada que existe, e sua função é refletir a realidade objetiva (Triviños, 1987). Demarca-se, portanto, uma contrariedade ao pensamento idealista, para o qual,

[…] embora a realidade externa exista em si e por si mesma, só podemos conhecê-la tal como nossas ideias a formulam e a organizam e não tal como ela seria em si mesma. Não podemos saber nem dizer se a realidade exterior é racional em si, pois só podemos saber e dizer que ela é racional para nós, isto é, por meio de nossas ideias. Essa posição filosófica é conhecida com o nome de idealismo e afirma apenas a existência da razão subjetiva. A razão subjetiva possui princípios e modalidades de conhecimento que são universais e necessários, isto é, válidos para todos os seres humanos em todos os tempos e lugares. O que chamamos realidade, portanto, é apenas o que podemos conhecer por meio das ideias de nossa razão (Chaui, 2000, p. 84).

Ou seja, a ideia antecede a matéria, porque só se pode atribuir status de existência ao que o pensamento reconhece. Disso decorre que as problematizações filosóficas sobre realidade e razão, materialidade e ideia são fundamentais para a concepção dialética, que Marx apreende de Hegel como referência para criar o materialismo dialético.

A noção de dialética emerge da Antiguidade, com a filosofia grega, inicialmente como a arte do diálogo (Clément, Demonque, Hansen-Love, Kahn, 1999), para, em seguida, a partir de Heráclito, apontar para a interação fecunda entre elementos opostos, produzindo a ideia de mutabilidade do mundo pelo confronto com a contradição, que habita tudo o que existe. A percepção desses jogos de contrários, que vão tecendo tramas e sínteses ao mesmo tempo singulares e plurais, resulta na admissão do caráter multidimensional, mutável e transitório do mundo.

A partir de Hegel, o conceito passa a ter um sentido radicalmente novo, em cujo âmbito o pensamento adquire “[...] um ritmo ternário: afirmação (ou tese), negação (ou antítese), negação da negação (ou síntese)” (Clément, Demonque, Hansen-Love, Kahn, 1999, p. 98). Nesse sentido, a dialética é um conceito que cria em torno do movimento da contradição uma ideia de processo, estabelecendo uma ligação interna da qual deriva o movimento e a transformação, no âmbito do espírito, do pensamento e da história concreta. Hegel entendia a dialética numa perspectiva idealista, por meio da qual as contradições que animam a história humana proveriam do espírito e das ideias.

Trata-se de uma compreensão passível de crítica, na medida em que, fincada no pensamento idealista, mistifica essa trajetória de sucessão de estados dando ao espírito o caráter de princípio e fim. Ou seja, ao se sobrepor a ideia (espírito) à materialidade do mundo, subtraem-se as relações concretas entre a natureza e os seres humanos (reciprocamente), e destes entre si, que se estabelecem de diferentes modos e por diversas vias como elementos deflagradores que criam, em torno do movimento da contradição, o movimento da história.

Dessa forma, a dialética histórica, porém idealista, de Hegel é contraditada pela dialética histórica e materialista de Marx e Engels, que fundamenta o pensamento marxiano. Ao se apropriarem do conceito da dialética hegeliana, Marx e Engels (2001) fazem uma inversão significativa, que inaugura um novo campo epistemológico, ao afirmarem que o motor da história são as contradições desencadeadas pela materialidade do mundo e da vida social humana. No posfácio à segunda edição de O Capital, Marx esclarece os pressupostos que explicitam o ponto exato em que ele inverte a dialética idealista hegeliana e a converte em uma dialética materialista:

Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de Ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem. [...] A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede em absoluto que ele tenha sido o primeiro a expor, de modo amplo e consciente, suas formas gerais de movimento. Nele, ela se encontra de cabeça para baixo. É preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico.

Em sua forma mistificada, a dialética esteve em moda na Alemanha porque parecia glorificar o existente. Em sua configuração racional, ela constitui um escândalo e um horror para a burguesia e seus porta-vozes doutrinários, uma vez que, na intelecção positiva do existente, inclui, ao mesmo tempo, a intelecção de sua negação, de seu necessário perecimento. Além disso, apreende toda forma desenvolvida no fluxo do movimento, portanto, incluindo o seu lado transitório; porque não se deixa intimidar por nada e é, por essência, crítica e revolucionária (Marx, 2013, p. 78-79).

Para a compreensão da ideia de contraste e a discussão sobre a pesquisa contrastiva, é necessário um aprofundamento do estudo da dialética marxiana e das suas categorias e leis. Para Marx, as categorias superam a prática de definição de conceitos ideais para se constituírem enquanto formas de ser que existem e interagem com a realidade concreta, bem como exibem sua riqueza de determinações. Assim, por meio da categoria da mediação, ao se elevar o real ao nível da abstração, supera-se o conhecimento imediato dado pela simples contemplação do fenômeno. É nesse interjogo crítico e criativo entre a singularidade e a totalidade do real concreto que se torna possível a construção do conhecimento da realidade (Cheptulin, 1982; Kosik, 1969).

O que caracteriza o estudo dos conceitos, em geral, relaciona-se igualmente, é claro, ao estudo das categorias - dos conceitos que refletem as formas universais do ser, os aspectos e os laços universais da realidade objetiva. Desvendar a riqueza das leis dialéticas só é possível se analisarmos as categorias que as refletem em sua correlação e em sua interdependência, se fizermos um sistema no qual cada uma delas ocupará um lugar rigorosamente definido e no qual terá o relacionamento necessário com todas as outras (Cheptulin, 1982, p. 19-20).

Toda essa processualidade, que confere à realidade seu caráter dinâmico-contínuo, é explicitada por Engels na Dialética da Natureza, obra em que sistematiza as leis estabelecidas por Hegel para reger o pensamento dialético. Engels ressalta a materialidade das leis da dialética, uma vez que estas não produzem a realidade no plano da ideia, mas originam-se do real concreto, refletido pelo pensamento. São, notadamente, três as leis da dialética materialista: 1) a lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa; 2) a lei da interpenetração dos contrários; e 3) a lei da negação da negação (Engels, 1979).

Todo esse arcabouço explicativo conduz à noção de contraste, na medida em que a realidade, em sua forma fenomênica, não se revela como se ela mesma fosse o real, mas, sim, como figura que pode se apresentar como algo que na verdade não é, ou ainda, sob outra luz, apresentar-se de forma distinta.

O fenômeno é um conjunto dos aspectos exteriores, das propriedades, e é uma forma de manifestação da essência. [...] Embora sendo uma forma de expressão da essência, o fenômeno não coincide com ela, mas dela distingue-se e chega mesmo a deformá-la. A deformação produz-se pelo fato de que a essência do objeto manifesta-se mediante a interação desse último com outros objetos, que o rodeiam, que têm influência sobre o fenômeno, introduzem certas modificações em seu conteúdo e, exatamente por isso, o enriquecem. Em decorrência disso, o fenômeno aparece como a síntese do que vem da essência, do que é condicionado por ela e do que é introduzido do exterior, do que é condicionado pela ação da realidade que rodeia o objeto, isto é, dos outros objetos que lhe estão ligados (Cheptulin, 1982, p. 278).

Nesse sentido, o fenômeno é variável conforme o contexto e contrastar significa dar relevo às partes constituintes do todo em interação, em movimento, considerando que seus aspectos internos se relacionam invariavelmente aos aspectos externos, os quais (re)produzem uma aparência peculiar e podem conduzir ao erro, a uma falsa compreensão da essência. Aparência/fenômeno e essência são opostos, mas a compreensão da essência não pode prescindir da captura dos fatores contingentes que configuram a aparência do fenômeno, pois do contingente emergem as pistas que conduzem à apreensão da essência, que se concretiza nas totalidades parciais, embora não seja o resultado da soma das partes, pois cada parte contém algumas das características presentes no universal. O contraste atuaria, então, destacando o fenômeno sob a luz da teoria, que possibilitaria sua interpretação.

A pesquisa contrastiva, tomando essa lógica como base, enfatiza os diferentes pontos de vista do objeto, considerando o seu movimento e percurso históricos. Desse modo, amplia sua abrangência, tornando-a mais concreta e real, sem privilegiar um aspecto em detrimento de outro, uma vez que tudo o que constitui o real possui relevância. A harmonia se encontra exatamente no contrário: eles concordam entre si, pois se complementam, não existindo exclusão nem oposição dicotômicas, conforme anunciado por Marx. A essência supera a aparência. Sobre isso, Marx e Engels afirmam que:

[...] a produção real da vida aparece na origem da história, ao passo que aquilo que é propriamente histórico aparece como separado da vida comum, como extra e supraterrestre. As relações entre os homens e a natureza são, por isso, excluídas na história, o que engendra a oposição entre a natureza e a história (Marx; Engels, 2001, p. 47).

Além disso, importa considerar todas as categorias e leis da dialética, em especial a lei da unidade e luta dos contrários. Essa relação de oposição, inerente à existência material da vida guia a passagem de um estado a outro. Assim, a vida e a morte, o passado e o futuro, a doença e a cura são opostos que não se excluem. Eles interagem, complementam-se e originam o novo, que não é outro em si, mas a síntese. Nesse sentido, pode-se incluir a necessidade de distinguir as contradições - interiores e exteriores, essenciais e não essenciais, fundamentais e não fundamentais, principais e acessórias (Cheptulin, 1982) - como formas de abstração da realidade.

Nesse contexto, abstrair não é tornar incompreensível, conotação comumente conferida à abstração, mas o contrário: elevar a realidade ao pensamento, tornando-o capaz de apreendê-la em suas contradições, de destacá-la do fundo sem esvair sua concreticidade histórica. Fundo e cena estão continuamente em contraste.

A partir desse arcabouço teórico, a pesquisa contrastiva emerge e se conclui, temporariamente, na prática social. Essa alusão a uma temporalidade efêmera resulta da consciência do fluxo contínuo da história, das relações materiais e do pensamento, o que exclui a ideia de verdades estáticas e absolutas, que estigmatiza a ciência.

Caminhos para a pesquisa contrastiva

A pesquisa contrastiva propõe-se a constituir uma modalidade de investigação qualitativa, tendo em vista o pressuposto de indissociabilidade entre qualidade e quantidade como atributos que incidem simultaneamente sobre a realidade, sustentada na abordagem materialista histórico-dialética, que procura interpretar o objeto de análise de maneira crítica e histórica, a partir de suas contradições e suas inter-relações sociais, políticas e econômicas.

Ao superar os pressupostos da pesquisa comparada, a pesquisa contrastiva poderá se apoiar em diferentes epistemologias de pesquisa que venham a lançar mão da noção de contraste. Porém, reivindicamos seu uso vinculado às categorias da totalidade, da contradição e da mediação, todas no âmbito da perspectiva dialética como lógica central para a abordagem dos problemas do conhecimento, da história e da própria realidade.

Articulando estas três categorias nucleares - a totalidade, a contradição e a mediação -, Marx descobriu a perspectiva metodológica que lhe propiciou o erguimento do seu edifício teórico. Ao nos oferecer o exaustivo estudo da “produção burguesa”, ele nos legou a base necessária, indispensável, para a teoria social (Paulo Netto, 2011, p. 58).

O entendimento do contraste na perspectiva da dialética reporta-se à articulação entre três categorias nucleares, que constituem a tríade metodológica elaborada por Marx para compreender a realidade objetiva, conforme explica o autor (Paulo Netto, 2011). A categoria totalidade diz respeito a um complexo de múltiplas totalidades específicas e interdependentes umas das outras, que constituem a totalidade concreta e macroscópica. É importante destacar que a totalidade concreta e macroscópica não resulta da justaposição ou da soma de outras totalidades, mas, precisamente, da relação que se estabelece entre elas, o que requer a identificação e a análise de cada um desses complexos enquanto singularidades que se constituem na relação entre as partes. Esse é um aspecto fundamental para a compreensão e o desenvolvimento da pesquisa contrastiva, pois demarca fronteiras inegociáveis com outras abordagens metodológicas, do ponto de vista da concepção do modus operandi que conduz a compreensão da realidade. Assim,

[...] para Marx, o método não é um conjunto de regras formais que se “aplicam” a um objeto que foi recortado para uma investigação determinada nem, menos ainda, um conjunto de regras que o sujeito que pesquisa escolhe, conforme a sua vontade, para “enquadrar” o seu objeto de investigação. [...] O método implica, pois, para Marx, uma determinada posição (perspectiva) do sujeito que pesquisa: aquela em que se põe o pesquisador para, na sua relação com o objeto, extrair dele as suas múltiplas determinações (Paulo Netto, 2011, p. 52).

Para a pesquisa contrastiva, na perspectiva do materialismo histórico-dialético, o método aparece envolto no propósito de aproximar-se ao máximo da totalidade concreta, o que implica compreender que a realidade é complexa e constituída por outros complexos. Portanto, não existe forma (ou fórmula) de conhecê-la por meio de uma simplificação, como pretendera o positivismo, ao partir das coisas mais simples e da clarividência cartesiana (Descartes, 2001). É necessário reconhecer que toda realidade é parte de um todo, a totalidade. A partir disso, faz-se necessário esclarecer que a totalidade é entendida como:

[...] totalidade concreta, isto é, como um todo estruturado em curso de desenvolvimento e de autocriação [...]. Totalidade significa: realidade como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimento da realidade se são compreendidos como fatos de um todo dialético - isto é, se não são átomos imutáveis, indivisíveis e indemonstráveis, de cuja reunião a realidade saia constituída -, se são entendidos como partes estruturais do todo. O concreto, a totalidade, não são, por conseguinte, todos os fatos, o conjunto dos fatos, o agrupamento de todos os aspectos, coisas e relações, visto que a tal agrupamento falta ainda o essencial: a totalidade e a concreticidade. Sem a compreensão de que a realidade é totalidade concreta - que se transforma em estrutura significativa para cada fato ou conjunto de fatos - o conhecimento da realidade concreta não passa de mística, ou a coisa incognoscível em si (Kosik, 1969, p. 36).

Diante disso, não se pode conhecer o todo por meio de suas partes em separado, uma vez que o todo é maior que a soma das partes. Nesse sentido, refere-se à totalidade a partir da qual nenhum fato ou objeto pode ser apreendido isoladamente, fora do seu contexto e das suas relações interacionais.

Sabendo que esses complexos de totalidades são articulados, a abordagem da categoria da contradição como produtora da dinamicidade, do movimento e da contínua transformação de cada uma e de todas as totalidades é realizada, conquanto evidencie-se que “[...] a natureza dessas contradições, seus ritmos, as condições de seus limites, controles e soluções dependem da estrutura de cada totalidade [...]” (Paulo Netto, 2011, p. 57). O objetivo desta pesquisa é identificá-las e ressaltá-las. Nessa mesma direção, ressalta-se que,

Analisando a contradição, Hegel mostra que ela é geral, que entra no conteúdo de cada coisa, de cada ser. “Tudo o que existe, escreve Hegel, é alguma coisa de concreto e, logo, alguma coisa de diferente e oposta em si. O caráter finito das coisas, continua Hegel, consiste em que seu ser imediato não corresponde a sua essência!”, por isso, elas esforçam-se sempre para resolver esta contradição e realizar o que elas têm nelas mesmas e, em decorrência, elas modificam-se constantemente. A modificação das coisas é, pois, a consequência de seu caráter contraditório. Em outros termos, a contradição é a fonte do movimento e da vitalidade; “... é apenas na medida em que alguma coisa comporta em si uma contradição que ela se move; que ela possui um impulso, uma atividade!”. Opondo-se aos autores que consideravam que não se pode pensar a contradição, Hegel exclama: “É a contradição que, na realidade, põe o mundo em movimento, logo, é ridículo dizer que é impossível pensar a contradição!” (Cheptulin, 1982, p. 28).

A contradição, nesse sentido, não é apenas a negação, mas uma condição de existência de tudo o que existe. Ou seja, faz parte da formação orgânica das coisas, o que a torna parte da própria coisa. Nessa relação orgânica, tese e antítese compõem a unidade dos contrários.

E, finalmente, a categoria mediação é fundamental ao processo investigativo, uma vez que, por meio dos seus sistemas internos e externos, articula as referidas totalidades. Sem capturar e compreender as relações mediadoras, tomadas nas suas diversidades, a totalidade se tornaria indiferenciada, ou seja, perderia o seu caráter concreto (Paulo Netto, 2011, p. 57).

O progresso da abstratividade à concreticidade é, por conseguinte, em geral movimento da parte para o todo e do todo para a parte; do fenômeno para a essência e da essência para o fenômeno; da totalidade para a contradição e da contradição para a totalidade do objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto. O processo do abstrato ao concreto, como método materialista do conhecimento da realidade, é a dialética da totalidade concreta, na qual se reproduz idealmente a realidade em todos os seus planos e dimensões. O processo do pensamento não se limita a transformar o todo caótico das representações no todo transparente dos conceitos; no curso do processo o próprio todo é concomitantemente delineado, determinado e compreendido (Kosik, 1969. p. 30).

De acordo com o mesmo autor, portanto, para que possa conhecer e compreender o todo, torná-lo claro e explicá-lo, o homem tem de fazer um détour: o concreto se torna compreensível por meio da mediação do abstrato; e o todo, por meio da mediação da parte (Kosik, 1969). Ainda é apresentado que a mediação, “[...] uma categoria central da dialética que, em articulação com a ‘ação recíproca’, compõe com a ‘totalidade’ e a ‘contradição’ o arcabouço categorial básico da concepção dialética da realidade e do conhecimento” (Saviani, 2015, p. 26). Desse modo,

[...] o acesso ao concreto não se dá sem a mediação do abstrato. Assim, aquilo que é chamado de lógica formal ganha um significado novo e deixa de ser a lógica para se converter num momento da lógica dialética. A construção do pensamento ocorre, pois, da seguinte forma: parte-se do empírico, passa-se pelo abstrato e chega-se ao concreto. Ou seja: a passagem do empírico ao concreto se dá pela mediação do abstrato. Diferentemente, pois, da crença que caracteriza o empirismo, o positivismo etc. (que confundem o concreto com o empírico) o concreto não é o ponto de partida, mas o ponto de chegada do conhecimento. E, no entanto, o concreto é também o ponto de partida. Como entender isso? Pode-se dizer que o concreto-ponto de partida é o concreto real e o concreto-ponto de chegada é o concreto pensado, isto é, a apropriação pelo pensamento do real-concreto. Mais precisamente: o pensamento parte do empírico, mas este tem como suporte o real concreto. Assim, o verdadeiro ponto de partida, bem como o verdadeiro ponto de chegada é o concreto real. Desse modo, o empírico e o abstrato são momentos do processo de conhecimento, isto é, do processo de apropriação do concreto no pensamento. Por outro lado, o processo de conhecimento em seu conjunto é um momento do processo concreto (o real-concreto). Processo, porque o concreto não é o dado (o empírico) mas uma totalidade articulada, construída e em construção. O concreto, ao ser apropriado pelo homem sob a forma de conhecimento, é a expressão, no pensamento, das leis que governam o real. A lógica dialética se caracteriza, pois, pela construção de categorias saturadas de concreto. Pode, pois, ser denominada a lógica dos conteúdos, por oposição à lógica formal, que é, como o nome indica, a lógica das formas (Saviani, 2015, p. 28).

A mediação, desse modo, permite a análise dos fenômenos, conduzindo à construção dos conceitos, à abstração e às determinações simples. Uma vez feita essa elaboração teórica, em direção oposta, a mediação favorece a síntese, a partir da qual a teoria será apresentada aos objetos, entendidos como portadores de totalidades de determinações.

Esta recíproca conexão e mediação da parte e do todo significam a um só tempo: os fatos isolados são abstrações, são momentos artificiosamente separados do todo, os quais só quando inseridos no todo correspondente adquirem verdade e concreticidade. Do mesmo modo, o todo de que não foram diferenciados e determinados os momentos é um todo abstrato e vazio (Kosik, 1969, p. 41).

Para a ampliação do arcabouço de produção de conhecimento das ciências sociais, a perspectiva contra-hegemônica demanda a reflexão histórica e a dinâmica dos fenômenos, a fim de capturar sua totalidade, posta em movimento pela contradição, sem se render aos reducionismos hierarquizantes da vida humana. É, portanto, uma abordagem qualitativa, porque, conforme é explicitado, a pesquisa qualitativa procura investigar a realidade humano-social pela similaridade e a completude na diversidade, valorizando e destacando o que é fundamental e singular, bem como superando o aspecto puramente classificatório e hierárquico da diferença, uma vez que esta não se opõe à pesquisa quantitativa, visto que quantidade é propriedade e, portanto, parte da matéria (Minayo, 2001):

A diferença entre qualitativo-quantitativo é de natureza. Enquanto cientistas sociais que trabalham com estatística apreendem dos fenômenos apenas a região “visível, ecológica, morfológica e concreta”, a abordagem qualitativa aprofunda-se no mundo dos significados das ações e relações humanas, um lado não perceptível e não captável em equações, médias e estatísticas. O conjunto de dados quantitativos e qualitativos, porém, não se opõem. Ao contrário, se complementam, pois a realidade abrangida por eles interage dinamicamente, excluindo qualquer dicotomia (Minayo, 2001, p. 22).

Nossa perspectiva considera a qualidade e a quantidade como dimensões da pesquisa e como categorias que podem se amalgamar. A qualidade se associa à essencialidade, a quantidade, à grandeza e o particular, ao geral, tendo em vista que ambas são, ao mesmo tempo, constituídas e constituintes nessa interação recíproca. A compreensão dessa dinâmica vai além do fenômeno em si e ganha potência na perspectiva do contraste pela lente da dialética.

Desse modo, na ambiência do materialismo histórico-dialético, fundamenta-se a proposta da análise contrastiva, que busca superar os rastros positivistas, o mundo da pseudoconcreticidade e da natureza aparente e afirmar uma abordagem qualitativa-quantitativa como possibilidade metodológica radical, substantiva e essencial.

Cumpre destacar que a compreensão dos fenômenos sociais, quando aliada à lógica dialética, indica uma qualidade teórico-metodológica ampliada, que busca afastar “falsos dualismos”, os quais dependem mais da “[...] lógica das articulações das formas de abordar os problemas, dos processos da elaboração das respostas para esses problemas, das formas de compreender a ciência e a produção do conhecimento, que das escolhas técnicas” (Gamboa, 2003, p. 403). Enquanto a lógica formal, ao esquadrinhar a realidade por meio da caracterização e da classificação, termina por afastar a realidade dela mesma, a lógica dialética, por meio da categoria “mediação”, abstrai a realidade, suas multideterminações e seus nexos interacionais para retornar ao real concreto corporificado na sua totalidade - a síntese do movimento dialético em sua provisoriedade historicamente situada.

Destarte, o fenômeno mais elementar e mais banal da vida cotidiana da sociedade capitalista “[...] demonstra ser uma aparência superficial, determinada e mediada por profundos e essenciais processos da sociedade capitalista” (Kosik, 1969, p. 54).

A superação da análise de regularidades estatísticas ou eventos fixos e dogmáticos pauta novos caminhos para a aproximação aos fenômenos e subverte os consensos científicos superficiais para abarcar objetividades e subjetividades com critérios dinâmicos de cientificidade que compõem a unidade. A unidade, como totalidade concreta e coesa, não é o uno, não é uma manifestação isolada, mas se constitui da multiplicidade, que só é singularidade nessa relação interacional.

A pesquisa contrastiva em tela, fundamentada no paradigma materialista histórico-dialético, ancora-se, portanto, nas categorias “totalidade”, “contradição” e “mediação”, instaurando, ao mesmo tempo, um caminho de apreensão do real e uma concepção da realidade.

Ao trilhar esse caminho, o(a) pesquisador(a) é convidado(a) a ir além do fenômeno em si e a romper com os misticismos, que encobrem a realidade sob um manto de designação do espírito, para compreendê-la a partir das relações materiais dos seres humanos com a natureza e entre si. Com isso, a realidade se mostra uma determinação histórica sincrônica (que revela o momento atual) e diacrônica (que desvela sua origem e o processo que gesta o momento atual e, ao mesmo tempo, possibilita conhecer melhor seu tempo antecessor). Mas esses revelar e desvelar não são atos dados pelo fenômeno em sua imediatez e, sim, composições do real construídas por meio da abstração desse real e das mediações que conectam suas multideterminações.

Basicamente, o que diferencia o objeto das ciências naturais do objeto das ciências sociais e humanas é a complexidade inerente a este último. A realidade é uma totalidade complexa, que só pode ser apreendida por mediação das suas determinantes, igualmente complexas, que se interligam e compõem cenários e contextos específicos e inigualáveis, incomparáveis. A realidade não é um todo composto por engrenagens que, somadas, se encaixam.

A compreensão da totalidade em sua complexidade implica admitir que esse complexo é desencadeado pela contradição. É esse jogo de antagonismos e paradoxos que destitui a existência da simplicidade causal de que isto decorre daquilo. Esse jogo permanente entre tese e antítese, compondo sínteses que, por princípio, já guardam suas antíteses é o próprio jogo da história. E, se os jogadores mudam, se os campos/tabuleiros/cenários mudam, então, as condições do jogo também mudam.

A natureza dessas contradições, seus ritmos, as condições de seus limites, controles e soluções dependem da estrutura de cada totalidade - e, novamente, não há fórmulas/formas apriorísticas para determiná-las: também cabe à pesquisa descobri-las (Paulo Netto, 2011, p. 57).

É como um caleidoscópio: cada movimento exige uma lente crítica específica para interpretar a nova composição. A análise em perspectiva contrastiva advoga uma concepção de realidade que pressupõe que o real/fenômeno está em permanente composição, construção, transformação. A síntese que se obtém da saturação da análise dos nexos entre a realidade e suas multideterminações, por meio da abstração, retorna à realidade concreta não como verdade absoluta e, sim, como conhecimento historicamente situado.

Considerações finais

Diante dos fundamentos teórico-metodológicos da pesquisa contrastiva pela lente da dialética, apresentados ao longo do texto, importa reafirmar sua natureza dialógica e sua contribuição consubstancial para a pesquisa científica nas ciências humanas e sociais, em particular na educação. Como campo de disputas políticas e ideológicas, a educação requer compromisso com uma perspectiva de ciência emancipatória, comprometida com a superação das desigualdades sociais.

Assim, a pesquisa contrastiva configura-se como um meio de captar a realidade sem lhe subtrair a objetividade e a singularidade, que a constituem e compõem uma totalidade própria. Pretende-se, com a pesquisa contrastiva, dialogar com outras perspectivas de pesquisa, em atendimento ao compromisso ético da ciência de jamais reduzir ou encapsular a realidade.

Por meio da lente do contraste, a presente pesquisa favorece e fortalece a tentativa de ampliar a concepção da pesquisa científica, especialmente na educação, para que seja entendida como perspectiva epistemológica e metodológica, inscrita na lógica materialista e dialética. Com isso, propicia a visão de complementaridade entre o que é contrastado, em substituição às ideias de comparação, que se esgotam em si mesmas e são insuficientes para analisar a totalidade da realidade social concreta e o seu movimento histórico e dialético. Por essa razão, diz-se que nem os cenários sociais nem os sujeitos, em suas representações últimas, podem ser destituídos de sua complexidade e de suas contradições, tampouco da mutabilidade dinâmica à qual está fadada a vida.

Definida com bases epistemológicas e ontológicas interessadas em uma educação emancipatória, a pesquisa contrastiva pela lente da dialética, implica a adoção de um projeto societário comprometido com as transformações sociais.

Fica posto o estímulo desafiador de articular a pesquisa contrastiva, de natureza dialética, com temas das realidades social e educacional objetivadas, a exemplo dos estudos matriciais sobre a internacionalização da educação, da juventude e da condição juvenil, bem como sobre a educação básica, a educação profissional, a educação superior, os estudos transversais em saúde, o sindicalismo e o trabalho docente, as políticas públicas, as culturas corporais, os estudos do lazer, a formação de educadores, dentre outros.

O presente texto é também um convite à continuidade das reflexões aqui iniciadas e um desafio para pensarmos coletivamente em trilhas teórico-metodológicas que aprofundem o conhecimento e a práxis da pesquisa contrastiva.

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Recebido: 24 de Abril de 2023; Aceito: 08 de Agosto de 2023

Prof. Dr. Augusto Cesar Rios Leiro, Universidade Federal da Bahia (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Grupo de Pesquisa Mídia, Memória, Educação e Lazer, Universidade do Estado da Bahia (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade, Grupo de Pesquisa Formação do Educador, Comunicação e Memória, Orcid. Id: https://orcid.org/0000-0002-6075-5187, E-mail: cesarrleiro@gmail.com

Profa. Ms. Adriana Pinheiro Santos, Instituto Federal da Bahia (Juazeiro, Bahia), Grupo de Pesquisa Mídia, Memória, Educação e Lazer, Orcid. Id: https://orcid.org/0000-0001-5947-8293, E-mail: adriana.santos@ifba.edu.br

Profa. Dra. Daniela Santana Reis, Faculdade Adventista de Minas Gerais (Lavras, Minas Gerais), Grupo de Pesquisa Mídia, Memória, Educação e Lazer, Orcid. Id: https://orcid.org/0000-0001-8043-5335, E-mail: prof.danielareis@gmail.com

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