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Revista Educação em Questão

versão impressa ISSN 0102-7735versão On-line ISSN 1981-1802

Rev. Educ. Questão vol.61 no.69 Natal jul./set 2023  Epub 19-Dez-2023

https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n69id32438 

Artigo

Corporificações morais do futuro na escola: reflexões sobre um fundo moral intersubjetivo

Las corporeizaciones morales del futuro: consideraciones desde un trasfondo moral intersubjetivo

Leonardo Henrique Brandão Monteiro1 
http://orcid.org/0000-0002-5323-1107

Antonio Alvaro Soares Zuin1 
http://orcid.org/0000-0002-6850-2897

1Universidade Federal de São Carlos (Brasil)


Resumo

O artigo discute concepções de futuro de estudantes projetadas por eles mesmos ou sobre eles por outros atores escolares e as suas vinculações a certas moralidades, no ambiente escolar. Para tal, empreende reflexões que permitem compreender as maneiras pelas quais o futuro se corporifica no cotidiano da instituição escolar. A metodologia utilizada teve um viés etnográfico (Geertz, 2008) e complementou-se com uma série de entrevistas semiestruturadas. Na escola analisada, encontrou-se um fundo normativo intersubjetivo, compartilhado em maior ou menor grau, por todos. Esse fundo se manifestava articulado e atravessado por diversas outras moralidades e construía certo horizonte simbólico. Identificamos quatro tipos ideais que forneceram uma grade de inteligibilidade para os modos como o futuro era acionado nas relações cotidianas. Estes irão guiar a reflexão, mas não funcionam como destinos dos alunos ou posicionamentos fixos dos estudantes nesse espaço social.

Palavras-chave: Fundo normativo intersubjetivo; Disciplina/indisciplina escolar; Moralidades escolares; Projetos e projeções de futuro

Resumen

El artículo discute las concepciones de futuro de los alumnos proyectadas por ellos mismos, o sobre ellos por otros actores escolares, y sus vínculos con determinadas moralidades en el ambiente escolar. Para ello, realiza reflexiones que permiten comprender las formas en que el futuro se encarna en la vida cotidiana de la institución escolar. La metodología utilizada tuvo un enfoque etnográfico (Geertz, 2008) y se complementó con una serie de entrevistas semiestructuradas. En la escuela analizada, se encontró un trasfondo normativo intersubjetivo, compartido en mayor o menor medida, por todos. Este trasfondo se manifestaba articulado y atravesado por varias otras moralidades y construía un determinado horizonte simbólico. Identificamos cuatro tipos ideales que proporcionaron una malla de inteligibilidad de las formas en que se activaba el futuro en las relaciones cotidianas. Éstos orientarán la reflexión, pero no funcionan como destinos o posiciones fijas de los alumnos en ese espacio social.

Palabras clave: Trasfondo normativo intersubjetivo; Disciplina/indisciplina escolar; Moralidades escolares; Proyectos y proyecciones de futuro

Abstract

The article discusses students' conceptions of the future projected by themselves, or about them by other school actors and their links to certain moralities in the school environment. To achieve this, it undertakes reflections that allow us to understand the ways in which the future is embodied in the daily life of school institutions. The methodology used had an ethnography and was complemented by a series of semi-structured interviews. In the school analyzed, an intersubjective normative background was identified, shared, to a greater or lesser extent, by everyone. This background was articulated and crossed by several other moralities and built a certain symbolic horizon. We identified four ideal types that provided a framework of intelligibility for the ways in which the future was activated in the daily relationships. These will guide reflection, but they do not function as students' destinies or fixed positionings in this social space.

Keywords: Intersubjective normative background; School discipline/indiscipline; School moralities; Projects and projections of future

Introdução

Marx e Engels (1997) iniciam o Manifesto do Partido Comunista afirmando que um espectro rondava a Europa, no século XIX. Este espectro era o comunismo. Diversas facções detentoras de poder no velho continente se uniram para combatê-lo, de modo que, o comunismo, como entidade fantasmática, influenciou e condicionou diversas ações em Estados capitalistas. Apesar de hoje o espectro que ronda a Europa ser outro, não será sobre macropolítica que trataremos neste artigo. Visamos refletir sobre um ente espectral que anda pelas escolas a condicionar e influenciar a micropolítica das relações sociais deste espaço: o futuro. Na escola que analisamos em nosso estudo de caso - há a possibilidade que isto ocorra também em outras instituições - incessantemente o futuro aparecia para delimitar, repreender ou reforçar ações sociais. Esta presença espectral de algo que existia apenas de modo virtual, mobilizava o espaço moral das sociabilidades escolares e nos permitiu perceber a existência de um fundo normativo intersubjetivo na instituição, fundo este que era compartilhado, em maior ou menor grau, por todos. No entanto, cada um dos sujeitos sociais que compartilhava deste fundo o articulava com moralidades. Outras, em relação a uma pretensa moralidade escolar e, consequentemente, o expressava nas relações sociais de forma diferente.

A realidade empírica encontrada em nossa investigação é matéria-prima às reflexões aqui presentes. A pesquisa se ancorou em um estudo de caso e se fundamenta em uma observação etnográfica de seis meses, complementada pela realização de entrevistas semiestruturadas com alunos do ensino médio, na escola Úrsula Iguarán Buendía - todos os nomes de pessoas e o nome da instituição escolar são fictícios; no caso dos funcionários escolares, estes são indicados pelas suas funções. Nosso objetivo era compreender como o futuro existente nos projetos ou protensões (Husserl, 1994) estudantis e as projeções que incidiam sobre eles advindas de profissionais escolares e outros alunos, se relacionava ou não com a disciplina e a indisciplina escolar. Contudo, em nossas análises denotamos que este futuro, para além de suas relações com a disciplina realizada dentro dos muros da escola, era mobilizado na instituição escolar de modo moral. Ou seja, o futuro existente nos projetos e protensões estudantis poderia ser percebido dentro de um viés moralizado e corporificado em práticas lidas pelos atores escolares dentro do binômio disciplina/indisciplina. Esta leitura realizada pelos atores escolares, não raro, aparecia nas classificações de “bom” ou “mau” aluno, comumente utilizadas tanto pelos estudantes, quanto pelos profissionais escolares. Estas classificações há muito foram desnaturalizadas em uma perspectiva ocidental de pensamento (Nietzsche, 1998), todavia, resumiam toda uma gama de relações presentes naquele ambiente. Deste modo, a lógica que rege tais classificações e os valores presentes nestas, consideramos neste escrito como algo moral. Sendo assim, este texto tece linhas compreensivas nas intersecções entre essa dimensão moral e a forma como os estudantes eram lidos a partir de um futuro virtual.

O artigo se estrutura de modo a apresentar o arcabouço teórico e metodológico da pesquisa na próxima seção. Nas duas seções posteriores, impulsionados por estes fundamentos teóricos, discutimos os dados empíricos da pesquisa e os modos como ela nos apresentou as articulações entre um fundo normativo intersubjetivo no ambiente escolar e os modos de se classificar os futuros dos estudantes, fosse por eles mesmos, seus colegas e/ou profissionais escolares. Esta discussão nos leva a compreender que as corporificações de um fundo normativo intersubjetivo escolar que se pauta na disciplina se articula à situação e pode aparecer de diversos modos, mas principalmente aparece acompanhado de classificações acerca do futuro, de modo que estes dois entes irão permear (quase) todas as relações sociais no ambiente escolar investigado.

Constructos teórico-metodológicos

Com o intuito de apreender ações sociais corporificadas e transformá-las em dados de pesquisa, escolheu-se uma aproximação etnográfica. Geertz (2008), talvez tenha popularizado a mais famosa definição sobre a etnografia, ao defini-la como uma descrição densa. A utilização desta ferramenta metodológica permite uma mirada a partir de um viés interpretativo, acima de tudo. Para este antropólogo, o terreno da cultura se constrói como um local onde as ações sociais possuem intrínsecas a si um significado simbólico. Desta maneira se busca a interpretação da ação social corporificada e não de comportamentos individuais. Se realiza uma espécie de diagnóstico post facto. “O objetivo é tirar grandes conclusões a partir de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados, apoiar amplas afirmativas sobre o papel da cultura na vida coletiva”. (Geertz, 2008, p. 38). Goldman (2003), complementarmente, ele argumenta que uma perspectiva etnográfica deve ter como objetivo elaborar um modelo de compreensão de um fenômeno social, que mesmo que seja produzido em e para contextos particulares, forneça uma matriz de inteligibilidade que funcione em contextos diversos. Para este autor, se trata de deixar a realização de questões abstratas para dirigir o foco do pensamento a como ocorrem os funcionamentos e as práticas da realidade estudada. Para isto, o pesquisador deve se deixar afetar por aquilo que afeta o “nativo”. Esta afirmação quando transportada para o estudo de sociedades complexas, implica que o estudioso deve perceber e se deixar levar por uma afecção, não em relação ao que o aflige como ser vivente, mas por aquilo que afeta as pessoas com quem realiza a sua pesquisa. Quirós (2014), traz à baila que a etnografia é uma apreensão de processos desenvolvidos por seres viventes, por um outro ser vivente, de modo que ambos constituem suas sociabilidades naquele espaço a partir de interações desenvolvidas em certo ambiente.

Em um momento inicial de nossa pesquisa, concebemos que a etnografia iria seguir uma linha investigativa baseada, em grande medida, nas asseverações de Zigon (2007). O foco desta abordagem repousa nos momentos de ruptura, momentos nos quais uma pessoa deve interromper o fluxo, automático e quase irrefletido - Bourdieu (1996) classificaria como pré-reflexivo - de suas ações para realizar uma decisão moral. Esta decisão aconteceria da forma mais rápida possível para que a pessoa retorne a um fluxo automático e pouco refletido de ações. O antropólogo defende que este processo de tomada de decisão pode ser racionalizado. O foco analítico ao dialogar com este modelo seria a orientação da conduta dos jovens pelos seus projetos de futuro ou pelas projeções de futuro que incidem sobre eles, bem como, pelas inter-relações estabelecidas entre estas duas dimensões analíticas - estes elementos eram o foco da questão que norteava a pesquisa.

A hipótese de que estas orientações seriam racionalizáveis pelos estudantes em determinados momentos, nos quais há a emersão de práticas (in)disciplinares e analisáveis a partir de suas falas, nos orientou na elaboração das entrevistas semiestruturadas. Elas pretendiam discutir as percepções estudantis da indisciplina/disciplina dos alunos na escola, bem como as percepções sobre seus futuros e os de seus colegas. Ao final da entrevista, quando um(a) estudante possuía uma ficha com algum episódio de indisciplina esta era lida para que ele(a) a comentasse, caso não possuísse tal registro lhe era sugerido que esmiuçasse alguma afirmação realizada durante a entrevista. Todavia, dentro desta elucidação de justificativas discentes, por mais que aparecessem constantemente elementos morais, nosso foco analítico nunca foi o de os alocar dentro de um código moral pré-estabelecido, mas os compreender nas suas relações dinâmicas e precárias com o ambiente social interpelado.

Percebemos a partir dos dados recolhidos que os(as) alunos(as) não apenas racionalizam suas condutas a posteriori, mas as (re)atualizam, por vezes, quando confrontados por um interlocutor diferente, ou por outras razões. Durante a observação etnográfica, foram observadas sessões de mediação de conflitos. Em uma dessas sessões de mediação, o aluno Vitor Hugo havia sido encaminhado pela Inspetora à sala da Mediadora - o estudante em questão saíra da aula sem motivo aparente. Ao longo do sermão dispendido pela profissional, o aluno não fora inquerido sobre os motivos de sua ausência da sala de aula, mas sim, se gostaria de participar de alguma chapa do grêmio estudantil, o aluno respondera que não sem nenhum titubeio. Ao ser questionado sobre a motivação da negativa, não soube responder. A Mediadora pediu para que ele pensasse sobre participar do grêmio, então, o inquere sobre ser um aluno ‘bom’ e ele responde que possui boas notas. Ela escreve em um papel uma autorização para que a professora o permita adentrar à sala de aula e o estudante se retira. Alguns dias depois, de modo, pelo menos à primeira vista surpreendente, ele era um dos alunos presentes em uma reunião na qual a Mediadora explicava o papel das chapas do grêmio estudantil e, inclusive, passou a integrar uma delas. O que o fizera (re)atualizar seu posicionamento no mundo escolar? Esta questão não será trabalhada aqui, mas gerou-nos uma importante reflexão. Ao que concerne este escrito, a forma tão dinâmica pela qual o aluno mudou de posicionamento e de atitude frente ao grêmio é extremamente relevante.

Notamos, destarte, que os estudantes podem (re)organizar seus posicionamentos, suas formas e suas intenções ao agir e interagir com o mundo escolar, quando instigados de alguma forma. Todavia, este movimento de modificar seus posicionamentos e condutas, logo, suas ações sociais, não era assim tão simples. Estudantes não abandonavam as redes de relações sociais as quais estavam imersos, como percebido ao conversar com jovens que se descreviam como ‘bagunceiros’ no passado, porém, atualmente se atribuíam a pecha de ‘bons alunos’. Mesmo que muitos destes estudantes fossem comumente associados a atos considerados de indisciplina, ou então praticassem tais atos. A rede de relações com os pares parecia afetar alguns estudantes mais do que outros. Do mesmo modo, alguns pareciam se importar mais com as concepções de profissionais escolares sobre si do que outros.

A constatação de que as pessoas possuíam concepções morais instáveis e atualizáveis se aproximava ao constatado por Widlok (2009). O antropólogo, a partir de entrevistas não-confrontacionais, inquiria seus interlocutores acerca de cenários, nos quais existiam dilemas morais e não-dilemas morais, constatou que seus interlocutores, usualmente, não abstraíam sobre os dilemas presentes no cenário proposto, mas recorrentemente traziam à tona outros elementos. Segundo o autor, processos de (re)atualização da moral, portanto, possuiriam uma dimensão criativa muito forte. De forma que, a moral não seria apenas a internalização de normas, mas a sua atualização criativa nas relações sociais. O autor, inclusive, diferencia a moralidade espontânea que se manifesta nas relações cotidianas de uma moralidade codificada perseguida por etnógrafos.

Este artigo tenta compreender a inserção de atores escolares numa teia de relações sociais a qual fará com que os agentes de uma interação social dividam, em certa medida, um repertório moral comum, o que ao mesmo tempo os condiciona e os retira a soberania de uma moralidade totalmente própria (Widlok, 2009). Na escola Úrsula, portanto, se observou um processo de articulação envolvido, tanto na forma como o futuro se apresenta como ente moral, como nos modos que os sujeitos de pesquisa se engajavam com o pesquisador responsável pelas entrevistas e observações de campo. Este repertório moral comum, na escola Úrsula, se apresentava como um fundo normativo intersubjetivo, pois não apenas classificava as ações dentro de um determinado sistema de valores, mas era recorrentemente subvertido, sendo corporificado mais como ideal do que como realidade. De modo que havia constantes tentativas de explicitar o que deveria ser, ou como os estudantes deveriam agir, para além de classificar ações como “boas”, “ruins”, “erradas”, “certas”. O futuro aparecia nestes momentos como a previsão da consequência, ou seja, uma ação classificada como “boa” ou “certa” levaria a um futuro dentro das mesmas valorações, o mesmo acontecia quando uma ação era lida como “errada” ou “má”.

As ações e identificações dos alunos com que tipo de pessoa queriam projetar ser, ou seja, suas identificações em momentos de “ser para o Outro” (Bhabha, 1998) eram, deste modo, construídas em meio a articulações entre dimensões morais presentes nas relações com os profissionais escolares, os pares escolares e, certamente, com pessoas de fora do ambiente escolar. As pessoas, neste ambiente, se assemelhavam aos seres-relacionais descritos por Zigon (2014). E, assim como descrito por Bhabha (1998), os estudantes construíam suas identidades e realizavam suas ações sociais por entre sistemas de valores, por vezes, díspares, através de articulações.

As asseverações acerca da forma como as articulações ocorrem no espaço escolar se baseiam nas afirmativas de Bhabha (1998). Ele defende que os processos de identificação se estabelecem na articulação entre um eu e outro(s); identificações estas que podem ser múltiplas e compor uma miríade de comportamentos e se relacionar de formas extremamente ambivalentes e ambíguas com certas expectativas morais. Entre estudantes, podemos afirmar, são esperadas no mínimo três tipos de articulações: uma que envolve a família, outra correlata a instituição escolar, suas regras, a lógica disciplina e outra que os engloba ao mundo extremamente heterogêneo de relação com os pares. Cada uma destas articulações compõem o sujeito estudante, produzindo certas expectativas morais específicas. Estas expectativas podem ser semelhantes nas três articulações, ou não. Portanto, este sujeito estudante agiria e produziria suas identificações no entremeio destas articulações. Deste modo, o futuro no ambiente escolar se configura como uma entidade moral que valora comportamentos e ações e não como algo que aloca o estudante em determinado destino inexorável. Ao pedir para os alunos exemplificarem colegas que imaginavam ter um bom futuro e outros que não o teriam, os alunos os separaram a partir de assertivas morais. O desempenho escolar se tornava relevante para corroborar com as distinções realizadas entre estudantes no plano moral.

No entanto, como seria possível apreender o futuro em virtualidade como ente moral? Bhabha (1998) afirma que existe uma terceira dimensão no processo de identificação entre um eu e outro(s) que dá o realismo e coerência para o ‘eu’ que se constitui neste processo. Seria como aquilo que os cineastas nomeiam de quarta parede, um elemento de profundidade. Podemos dizer que a ideia que subjazia no modelo analítico proposto primeiramente, no qual a racionalização a posteriori por parte de um discente, de um ato lido como indisciplinado pelas profissionais escolares e submetido ao crivo do modelo baseado nas concepções de Zigon (2007), permitisse acessar estes processos de articulação de moralidades ou mesmo quebrar esta ‘quarta parede’. No entanto, a interação desenvolvida nas entrevistas entre o eu de determinado estudante e um outro (o pesquisador), criou um outro espaço de articulação. Neste outro espaço de articulação encontramos não moralidades codificadas, ou codificáveis, mas uma dinâmica de articulação entre diversos elementos morais que compunham as relações sociais do ambiente e atualizavam constantemente as dimensões morais, sempre tendo como referente certo fundo normativo intersubjetivo.

Deste modo, as sociabilidades sobre as quais este trabalho enfoca suas atenções se desdobram a partir da existência de um fundo normativo intersubjetivo. Consideramos a intersubjetividade, assim como Duranti (2010), a base sobre a qual a existência humana pode se desenvolver. Ou seja, a intersubjetividade antecede as experiências subjetivas e as interações humanas. Aliás, a intersubjetividade ao fundamentar a existência humana em uma dimensão coletiva não necessita de uma co-presença humana para ser percebida. Seja quando respeitamos certas normas estando sozinhos, seja quando intencionalmente as violamos por também estarmos sozinhos, construções intersubjetivas são os referentes da ação. Ao salientarmos a existência de um fundo normativo intersubjetivo destacamos uma forma específica de intersubjetividade que remete a existência de normativas não-escritas presentes no mundo escolar e que antecedem as sociabilidades que podem se desenvolver neste ambiente. Ao que concerne a este escrito, o fundo normativo que procuramos entender pôde ser percebido através de articulações entre a lógica disciplina da escola e o futuro que se apresenta de modo virtual no cotidiano escolar.

Cabe-nos evidenciar que a escola pode ser caracterizada como uma instituição disciplinar, pois irá mediar suas relações sociais através da lógica disciplinar (Rodrigues, 2007). As formas como atos lidos como de disciplina ou de indisciplina escolar movimentam a escola, foram trabalhados em maior detalhe em outro escrito (Monteiro, 2022). As espirais de prazer/poder que envolvem o disciplinar, ser disciplinado, se indisciplinar, delatar comportamentos indisciplinados, entre outras dinâmicas advindas de um ambiente estruturado a partir da lógica da disciplina propiciam um ambiente fértil para a moralização de comportamentos e ações tendo como referente a lógica da disciplina.

Ao que tange o futuro e o modo como ele se apresenta nas relações vivenciadas na escola, fomos influenciados por Husserl e Bourdieu. Para Husserl (1994), as protensões de futuro se inserem no presente da consciência. Pereira Júnior (1990), comenta que

Husserl entende que o elemento de ‘futuro’ não é gerado através de uma nova reprodução de imagens oriundas das impressões originárias, mas sim unia mera modificação projetiva das lembranças (primárias ou secundárias) [...]. Possuímos uma única protensão, sem conteúdo próprio, que afeta os objetos temporais e os direciona no sentido das realizações possíveis, gerando assim o sentido de ‘futuro’ A espera é uma retenção em sentido inverso [...] e só se distingue dela no seu modo de aparecer (Pereira Júnior, 1990, p. 78).

Ou seja, o que afeta os sujeitos, no que tange as questões ligadas a percepção de seus futuros, estaria conectado a (re)elaboração de lembranças e de projeções. No ambiente escolar, isto pode se materializar de diversas formas. Bourdieu (1996), se vale das ideias de Husserl sobre projeto e protensão para argumentar em favor de um sistema de disposições práticas, o habitus. A partir deste conceito se infere que a inserção de determinada pessoa em determinado campo social é realizada de maneira muito mais pré-reflexiva do que reflexiva. Pois os agentes sociais irão trabalhar na maioria do tempo com protensões e não com projetos. Isso significa que o futuro envergado no presente opera de modo pré-reflexivo e dentro das especificidades tecidas no social que envolve a ação social/sociação específica dos agentes. Isto traz uma complicação para a análise empregada, pois, muitas vezes o desejo que anima uma interação social não será o desejo desejado. Pode haver no ambiente escolar, como observado in loco, um aluno que responde durante entrevista a um pesquisador que deseja que alunos e professores se respeitem, todavia, quando possui a oportunidade faz uma piada com certo professor o chamando de ‘professor linguiça’, pois sabe que seus amigos irão rir. Ou seja, não compreendemos aqui o futuro a partir da ideia de foreground (Tessaro; Bernardi, 2019) que enfoca nas oportunidades que os jovens podem aspirar. Ou então, a partir de idealizações ou representações (Bonfim; Garrido, 2022) de futuro. Pois, ao investigarmos um fundo normativo intersubjetivo que perpassa o ambiente escolar percebemos a intersecção de uma percepção de futuro com a reafirmação da lógica disciplinar da escola, delimitando, repreendendo ou reforçando ações sociais e condutas de estudantes.

Um fundo normativo intersubjetivo corporificado em percepções acerca do futuro dos estudantes

Apesar da lógica disciplinar mediar as interações sociais (Rodrigues, 2007), a preocupação com o futuro dos estudantes era algo partícipe da constituição de um fundo normativo intersubjetivo presente na escola que em graus diferentes era dividida por todos os atores escolares, desde profissionais a alunos. Os discentes eram constantemente impelidos a pensar sobre seu futuro, a problematizar sobre as consequências de seus atos presentes para seu futuro. Na maioria dos casos, isto acontecia a partir de uma construção do futuro como temporalidade, na qual os jovens encarariam as consequências de suas atitudes lidas como indisciplinadas ou disciplinadas. Ou seja, se uma ação era rotulada moralmente como algo ruim por um ator escolar, ao interpelar o perpetrador desta ação, destacavam-lhe aspectos negativos que o futuro poderia vir a apresentar para a sua vida. Desta forma, a partir dos dados coletados na convivência etnográfica, notamos que era possível realizar uma tipificação de algumas das formas de encarar o futuro recorrentemente acionadas. Foram os dados etnográficos que, em uma relação analítica de via dupla com as dimensões teóricas da investigação social, possibilitaram que trabalhássemos com quatro categorias típicas-ideais a fim de compreender a realidade social da escola que fora nosso estudo de caso. Um tipo-ideal seria uma construção intelectual, dirigida a classificar um fenômeno puro, ou seja, sem suas irracionalidades inerentes. Seriam, então, inexistentes no mundo empírico. Os padrões de sociabilidade descritos neste trabalho são tipos-ideais na medida em que são acentuações de certos aspectos das ações sociais desenvolvidas pelos jovens observados, bem como de suas percepções e racionalizações de suas ações sociais cotidianas.

Estas categorias típicas-ideais que não existem de modo puro na realidade são: o bom futuro, o não-tão-bom futuro, o não-futuro e a negação das perspectivas de futuro, e serão detalhadas na sequência. As categorias: bom futuro, não-tão-bom futuro e não-futuro se encontram em itálico nesta seção por corresponderem a categorias utilizadas e manejadas pelas pessoas envolvidas na pesquisa. Nem todos utilizam essas palavras, mas as ideias correlatas a elas são compartilhadas, em maior ou menor medida, pelos atores escolares observados, e sintetizam de maneira analítica as protensões, as projeções, e os projetos de futuro que estes jovens lidam cotidianamente. Elas compõem tipos-ideais weberianos no seu caráter analítico e foram construídos nas conversas e entrevistas com pessoas inseridas no microcosmo escolar. Desta forma, a partir destes tipos-ideais, podemos observar as ambíguas formas de racionalização das ações realizadas por estudantes que tensionam ou reafirmam as dinâmicas disciplinares da escola. Sendo que a carga moral destas classificações reside na ideia de consequência futura das ações perpetradas no presente.

O ‘bom futuro’ estaria conectado com a submissão ao disciplinamento às normativas escolares, e com a possibilidade real de uma mobilidade social ascendente, na visão de grande parte dos alunos. As palavras da aluna Marcela exprimem bem a ideia que era correntemente trazida à tona pelos profissionais e pelos considerados bons alunos por esses profissionais.

Sabe, eles [profissionais escolares] ‘tão’ dando oportunidade ‘pra’ todo mundo. Aí basta você escolher estudar, ou você escolher bagunçar. No meu caso escolhi estudar (Marcela, 2018).

Porém, o disciplinamento irrestrito não seria uma garantia de sucesso profissional e de mobilidade social, para os profissionais escolares. Em entrevista realizada com uma professora e em uma conversa espontânea com uma professora readaptada1 o que aparece como condição sine qua non para o sucesso de um aluno, ao que concerne questões que envolvem mobilidade social, seria a determinação. Ambas visualizam os alunos, em geral, como extremamente apáticos em relação à vida, por vezes, vislumbram um ‘futuro melhor’ em alunos que possuem histórico de atos considerados indisciplinados, mas lidos como leves, por não envolverem violência ou desrespeito pela autoridade de profissionais escolares.

Ao não seguir o caminho de “bom” aluno e de pessoa que possuiria enorme apreço pelos estudos dois tipos de futuro eram vislumbrados para os alunos. Um ‘futuro não-tão-bom’ no qual os alunos mantem seu local social de ‘classe’, não realizando uma mobilidade social ascendente. A maioria dos alunos pertencia a famílias que se inseriam no mercado de trabalho em funções de pouco prestígio social e pouco retorno econômico. O comum a acontecer era que a maioria dos filhos destas pessoas ocupassem postos semelhantes aos de seus pais. Um futuro desta espécie possuía legitimidade moral no mundo escolar. Mas, isto constantemente era acionado como a não-realização de um ‘bom futuro’. Como nas palavras da aluna Rita quando questionada sobre o futuro que vislumbraria para seus colegas: “Ah, não muito bom. É porque é complicado, é muito difícil. E você tem que se esforçar. Só indo levando assim, você não sai do lugar. E eles não querem nada com nada” (Rita, 2018). A aluna, assim como as profissionais, vislumbra certa apatia em seus colegas. Notemos, que a consumação de um futuro não-tão-bom se encerra na não-realização de um movimento de mobilidade social ascendente.

A legitimação destes tipos de futuro pôde ser percebida em um painel onde eram colados cartazes e que tinha acima de si o título: “Oportunidades”, confeccionado em letras de papel em várias cores e afixado em sua parte superior. Afinal, todo cartaz antes de ser colado naquele quadro necessitava ser aprovado pelo crivo de algum profissional escolar. Lado a lado estavam cartazes de cursos gratuitos de instituições bem diferentes entre si. Havia um cartaz que ofertava um curso de programação ministrado gratuitamente pelo Instituto de Ciências Matemáticas e Computação da Universidade de São Paulo de São Carlos e dois assinados pela casa espírita Nosso Lar2, um que ofertava um curso de manutenção de computadores e outro um curso de marcenaria. Certo tempo depois, o mesmo painel além dos velhos cartazes, possuía novos cartazes fixados. Eram em um número bem maior que os observados em um primeiro momento. Nesta segunda mirada se destacaram um cartaz do Instituto de Física da Universidade de São Paulo; cartazes de processos seletivos, como do Instituto Federal de São Paulo de São Carlos, da Universidade de Araraquara, da Universidade Estadual de Campinas e de um processo seletivo para aprendiz chamado Jovem Bancário3; alguns cursos profissionalizantes; um anúncio da escolinha de futebol do Ajax. Se somavam a estes cartazes, um cartaz da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas - e outro da Olimpíada Brasileira de Astronomia. Nestes cartazes vimos a materialização de formas de futuro que são moralmente aceitas no mundo escolar: o acesso ao ensino superior, um posto de trabalho formal, a realização de um curso técnico ou profissionalizante, e até mesmo se tornar um esportista profissional, mesmo que esta última seja uma raridade e a influência da escola nesta perspectiva de futuro seja raramente levantada pelos profissionais escolares.

Em outro polo temos as condutas que são estigmatizadas e que se conectam a futuros que não possuem uma legitimação moral no universo escolar. As profissionais escolares - mas não apenas elas, parcela significativa dos alunos também o faz - atrelam determinadas condutas a alunos sem-futuro, aqueles que estariam sujeitos a um não-futuro, alunos que, não raro, agentes escolares e colegas identificavam como nóias - categoria “nativa” que caracteriza uma pessoa envolvida no consumo de drogas ilícitas, principalmente maconha, cocaína e crack, de forma direta ou indireta. Porém, podem ser elencadas dentro desta categoria pessoas que não consomem tais substâncias, mas que interagem e realizam atividades de lazer com consumidores, ou mesmo que apenas se comportem como usuários, na visão de quem as classifica.

Outra possibilidade da não realização de um bom-futuro, consistia em estar inserido no mundo do crime o que seria atrelado à imagem de um não-futuro. O que chamamos por mundo do crime neste trabalho não é necessariamente uma categoria dos sujeitos da escola, sobre a qual o estudo de caso se debruça. Mas, descreve uma presença constantemente percebida. Notada nos discursos dirigidos ao pesquisador de campo como um ente quase fantasmagórico que ronda os jovens e os ‘coopta’ para ‘um caminho’ sem legitimidade moral. Destarte, a expressão, mundo do crime, foi escolhida por sintetizar, assim como no caso do trabalho de Feltran (2011), o conjunto de sociabilidades, códigos sociais, relações objetivas e discursivas que se estabelecem, prioritariamente em âmbito local, em torno de negócios ilícitos como o narcotráfico. Não se trata de qualquer tipo de crime, nem de qualquer tipo de perpetrador desses crimes. O perfil estético periférico sempre se encontra atrelado a identificação das pessoas envolvidas no famigerado mundo do crime.

Na escola Úrsula, foi apontado certa vez um jovem que estava em Liberdade Assistida - espécie de regime aberto para jovens infratores da lei - como um jovem sem-futuro. Toda a estética deste jovem desde a vestimenta até a corporalidade poderiam o alocar no perfil estético de um jovem periférico, pois utilizava bermudas largas, óculos escuros de lentes espelhadas e constantemente andava pelos corredores cantando algum funk ou então reproduzindo o ritmo característico deste gênero musical com as mãos. O jovem acabou se envolvendo em um caso de ameaça e agressão leve a um professor. Fato que reforçou aos atores escolares a pecha deste estudante como a de um aluno sem-futuro. Pois, nas visões inseridas no cotidiano escolar, a realização de atividades moralmente reprováveis ou ilícitas, ou até mesmo apenas a associação com perpetradores de tais atos, poderia resultar em prisão, ou morte. Um trecho da entrevista realizada com a aluna Ana Carla pode nos ajudar compreender melhor a presença espectral desta possibilidade de não-futuro presente no horizonte destes jovens, de mesmo modo que permite estabelecer a categoria típica ideal de negação do futuro.

Entrevistador: Aí tipo, quando você ‘tá’ na sala e vê seus colegas. Você imagina o futuro deles?

Aluna: Imagino. [...] Tipo assim, aquela menina que estuda, sei lá, se ela quer ser engenheira, se ela quer ser médica, eu imagino ela assim.

E: E os que não estudam?

A: Ah, já imagino, já, vendendo droga, já. Já é esse o pensamento.

E: E você sente que os colegas imaginam seu futuro também?

A: Ih, Claro. A gente fala.

E: O que falam?

A: Não, nós ‘fala’ que nós vai ser de boa, assim, ó. Mas o pensamento dos moleques já é essas coisas mais de futuro, sabe? Essas coisas, de vender droga, essas coisas. Meu pensamento vai no embalo também (Ana Carla, 2018).

A aluna além de explicitamente relatar a relação entre um ‘mundo do crime’ e o que seriam estudantes sem-futuro, nos mostra uma subjetivação que se insere de forma contrária a moralidade predominante no espaço escolar e mostra uma capacidade de produzir linhas de fuga e resistir (Deleuze; Guattari, 1997) - ao menos em uma primeira mirada - aos mecanismos e dispositivos de subjetivação da instituição. A questão da produção de resistências/linhas de fuga na escola Úrsula foi melhor explorada em outro escrito (Monteiro, 2022).

Ana Carla e os ‘moleques’ acionados em sua fala se recusam a falar sobre o futuro nos termos que são legitimados moralmente pela escola. ‘Vender drogas’ não se insere neste contexto como uma confissão de um crime realizado ou um crime o qual a estudante planeja perpetrar, mas surge como uma possibilidade de futuro que nega a escola, e nega aquilo que dentro da escola, usualmente, é moralmente visto como ‘bom’. Deste modo, caracterizando aquilo que chamamos de negação das perspectivas de futuro. Esta negação não repousa em uma espécie de carpe diem. Há a produção de um discurso irônico (Friedrich, 2001) por parte da discente, ao assumir para si aquilo que é moralmente reprovado na escola.

A fala desta aluna mostra como a presença espectral de um não-futuro percebido a partir da inserção no mundo do crime pode ser encarado como um padrão de sociabilidade que de forma criativa - pois articula e ressignifica um ente negativamente valorado por profissionais escolares - nega qualquer padrão de sociabilidade previsto nos moldes morais da escola, seja nos futuros considerados legítimos ou ilegítimos, de modo que brinca ambivalentemente com estes parâmetros ao afirmar para si uma sociabilidade que pode, ou não, ser concreta. Isto só é possível porque existe um fundo normativo na escola, compartilhado em algum grau por todos os envolvidos com a instituição. Este compartilhamento permite que esta afirmação reverbere de modo diferente daquela se fosse realizada em um outro contexto social.

Ao elaborar quatro tipos-ideais como meio de interpretarmos a realidade social da escola, no que concerne a presença do futuro como ente que organiza as relações sociais escolares de modo moral, enfocamos as dimensões sociais dos processos vislumbrados. Como vimos nas descrições acima, o futuro como ente fantasmático compartilhado intersubjetivamente por todos da instituição escolar pode reforçar, delimitar ou repreender certas condutas estudantis. Deste modo, nos diferenciamos das abordagens de Bonfim e Garrido (2022) e de Tessaro e Bernardi (2019), autores que enfocam nas dimensões individuais de percepção do futuro. Ao contrário dos trabalhos supracitados examinamos o modo como o futuro organiza certas sociabilidades no espaço escolar a partir de suas articulações com outras dimensões da vida social. Bonfim e Garrido (2019) encaram o futuro a partir de representações, imagens cognitivas que representariam uma “[...] idealização sobre o devir; aquele que pauta a esperança na realização de desejos (Bonfim; Garrido, 2019, p. 3)”. Ao passo que Tessaro e Bernardi (2022) individualizam os modos como as pessoas sentem o seu futuro, a partir do conceito de foreground. Esta diferente abordagem nos permitiu além de conceber tipos-ideais que classificam estudantes e ações dentro das lógicas analisadas, também perceber constantes ambiguidades presentes no ambiente escolar.

As articulações e ambiguidades concernentes a um fundo normativo intersubjetivo

Grande parte dos alunos, quando questionados, apontavam constantemente a indisciplina, ou a falta de disciplina, como o maior ‘problema’ da escola que frequentavam. Cabe ressaltar, que os estudantes ao responderem sobre a falta de disciplina no ambiente escolar apontavam a instituição, ou os profissionais nela inseridos como responsáveis a fazer com que os alunos fossem mais disciplinados. Em geral, os(as) alunos(as) esperavam dos(as) profissionais escolares um uso mais contundente de mecanismos disciplinares, ou falavam com resignação da forma de se comportar de seus colegas no ambiente escolar. Tudo isto, quando inquiridos por um pesquisador que muitas vezes foi confundido com um estagiário da área administrativa da escola. A articulação entre o ‘eu’ do pesquisador, certo estudante e a lógica disciplina presente na escola fora latente em todas as entrevistas. Ao que tange a constância citada acima houve apenas algumas raras exceções que não negavam o afirmado por outros estudantes, mas possibilitaram compreender de uma forma mais ampla o que afetava a vivência escolar daqueles adolescentes. Uma destas exceções, Hanekawa, que fora eleita presidente do grêmio - na época da entrevista a sua chapa ainda não havia triunfado. Quando questionada sobre o que a levou concorrer ao grêmio estudantil afirmou:

Porque eu quero motivar. Quero dar uma motivação também ‘pros’ alunos estudar e ‘pra’ escola poder melhorar. E, ‘pra’ todos conseguirem estudar. Porque se todos não conseguem estudar, como todos vão ter um futuro? Porque o grêmio não é só ‘pra’ deixar um ambiente legal ‘pra’ todo mundo. Mas, também motivação para os outros alunos conseguirem o que eles querem (Hanekawa, 2018).

Em um dos raros momentos em que algum estudante vislumbra a possibilidade de uma mudança na escola a partir dos alunos, o faz partindo da noção do futuro como um ente moral a delimitar condutas no espaço escolar. Contudo, o que a fala da aluna Hanekawa deixa claro, são dois aspectos de extrema importância. O primeiro é o de que existe na escola uma grande preocupação com o futuro, ou seja, o futuro, ou as projeções e protensões deste por vir são constantemente acionadas no cotidiano. E, em segundo uma ideia de que “quem faz a escola são os alunos”, desta forma, a instituição teria limitações a se construir como uma ‘boa escola’ se seus alunos não fossem ‘bons alunos’. Este segundo aspecto remete a lógicas pós-disciplinares que não são o objeto de reflexão presente aqui, mas que cada vez mais fazem parte do ambiente escolar e se amalgamam facilmente com o acionamento de um futuro virtual nas relações estabelecidas.

Todavia, quando abordam questões que não se relacionam com os problemas da escola, mas com suas ações sociais cotidianas no ambiente escolar, os estudantes articulavam lógicas exógenas à instituição. Lógicas, que por muitas vezes, se contrapunham aos dispositivos de disciplina da escola. No decorrer do tempo em que a Mediadora fora acompanhada em suas conversas com os(as) alunos(as), por vezes, o pesquisador de campo foi utilizado como exemplo de trajetória de vida que deveria ser seguido pelos estudantes, pois para a Mediadora ele ‘havia dado valor’ aos aprendizados da escola pública. Incluso, o aluno Higor que constantemente estava perambulando pelos corredores da escola, após a Mediadora mobilizar o pesquisador como exemplo em um sermão, repetidamente entabulou conversas sobre os processos que o haviam feito chegar até a pós-graduação e, por conseguinte, até a escola Úrsula, com especial interesse pela forma como ele se comportava durante o ensino básico. O aluno recorrentemente parecia sondar sobre a possibilidade de um “bom-futuro”, mesmo não seguindo o padrão deste tipo de sociabilidade.

A aluna Violeta que ouvira o mesmo sermão que o aluno Higor, afirmou desejar cursar pedagogia com intuito de se tornar uma diretora escolar no futuro. Todavia, em diversos momentos nas entrevistas realizadas com os alunos, moralidades outras que não aquelas comuns ao espaço escolar eram acionadas. Como na fala da aluna Violeta que repetidas vezes disse que “não abaixava” a cabeça para professor nenhum. Dentro deste “não abaixar a cabeça” se encontra uma moral na qual o respeito é a tônica, mas não apenas isto, uma moralidade comum em contextos nos quais as pessoas desde muito novas devem se posicionar frente a adversidades, abusos ou violências. No caso da aluna Violeta, ela em determinado momento da entrevista se refere a seu pai, o qual anteriormente havia afirmado estar encarcerado.

Eu sou desse jeito. Eu cresci assim, sabe? É, porque tipo, quando eu era menor meu pai batia em nós, em mim e na minha mãe. [incompreensível] eu e minha mãe. Aí, tipo, eu cresci com revolta. Aí, eu vejo qualquer homem vindo querer erguer a voz, eu vou pensar que vai querer me agredir, igual meu pai. E, eu não vou abaixar a cabeça. Aí, acaba dando coisa pior. Porque, eu sou cabeça quente. Não abaixo a cabeça não (Violeta, 2018).

A aluna, em outros momentos da entrevista, demonstra que se comporta da mesma forma ao ter mulheres gritando para ela.

As disparidades das articulações apresentadas pelas alunas Hanekawa e Violeta, por exemplo, são muitas. A esta breve descrição coube apenas mostrar de forma empírica como diferentes articulações coexistem no ambiente escolar. Contudo, desde o aluno Vitor Hugo, ao ser classificado pela Mediadora como bom aluno por seu ‘medo da autoridade’, até a intenção de Hanekawa de motivar alunos e professores, ou na história de Violeta, na qual há a necessidade de não se sentir subjugada, e até mesmo na curiosidade de Higor em saber se o comportamento escolar do pesquisador se assemelhava ao seu, observou-se a presença forte de valores e juízos morais, constituintes do cotidiano escolar. Esta dimensão moral que envolve todos os atores escolares não pode ser desconsiderada em análises que se propõem a compreender as formas como o futuro é acionado no presente, seja por estudantes, seja por profissionais escolares.

Considerações Finais

A percepção de que moralidades díspares eram acionadas nas relações sociais cotidianas na escola, é vital à reflexão proposta. Principalmente, ao percebermos que estas moralidades difusas também apareceram de forma constante nas falas tanto de profissionais escolares, como de estudantes, quando estes tratavam sobre os temas da disciplina/indisciplina, sobretudo quando este binômio era relacionado ao futuro de determinados jovens, ou seja, a disciplina/indisciplina ao ser moralizada servia também como parâmetro de avaliação para o futuro dos jovens, os alocando a certos padrões de sociabilidade. Justamente, este fundo normativo intersubjetivo comum possibilitou que formulássemos quatro categorias típicas-ideais que englobavam estas três dimensões. Nestas categorias diferentes, articulações das dimensões morais da vida de certo aluno poderiam o impulsionar a se aproximar de uma ou outra categoria.

Dadas as especificidades da escola estudada, em casos limítrofes, o destino de um aluno poderia ser o ensino superior em uma universidade prestigiada, ou a morte violenta decorrente do envolvimento em atividades ilícitas. Ambos apenas demonstram amplitude dos futuros possíveis dos alunos da escola Úrsula. Cabe ressaltar, que o segundo caso limite é extremamente mais raro que o primeiro. Mas, ambos são acionados no cotidiano escolar como destinos possíveis, sobretudo pelos alunos. Estas categorias, neste trabalho, operam um arranjo de padrões de sociabilidade que compõe certos quadros de sociações e ações sociais. Estes padrões de sociabilidade não são causados pela virtualidade que o futuro assume no presente como entidade moral. Contudo, estes padrões de sociabilidade e esta virtualidade do futuro possuiriam em algum grau, aquilo que Weber (1999) nomeou como afinidades eletivas que poderiam ser refletidas de maneira analítica. Cabe destacar ainda, que a situacionalidade das classificações arbitrariamente desenhadas permite afirmar que um mesmo aluno pode ser alocado como um aluno de bom-futuro, ou como um estudante sem-futuro, pelo mesmo profissional escolar, ou pelos mesmos colegas, em diferentes articulações.

Esta situacionalidade escancara como a vida estudantil, quase sempre, se corporifica em intersecções entre morais intersubjetivas - compartilhadas e articuladas por todos - e um futuro virtual acionado constantemente como meio de repreender, reforçar ou delimitar ações sociais. Os modos como estas dimensões operam também uma micropolítica na escola foi aprofundada em outro local (Monteiro, 2022). No entanto, as reflexões aqui colocadas em tela apontam para a proeminência da relação entre moral e futuro que se desenvolve na escola Úrsula e que pode ser constante em outras escolas brasileiras. O préstimo deste artigo reside na mirada social sobre a qual tecemos nossas análises.

Notas

1Ver Resolução SE 18, de 10 abril de 2017 da Secretaria da Educação de São Paulo.

2O Nosso Lar é uma entidade vinculada a um centro de espiritismo. Mais informações estão disponíveis em: https://www.nossolarsaocarlos.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1&Itemid=2. Acesso:01 set. 2023.

3Mais informações podem ser consultadas em: https://www.jovembancariobrasil.com.br/ Acesso: 17 ago. 2021, ou https://www.bb.com.br/pbb/pagina-inicial/sobre-nos/programa-aprendiz#/ Acesso: 01 set. 2023.

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Recebido: 02 de Maio de 2023; Aceito: 31 de Agosto de 2023

Leonardo Henrique Brandão Monteiro, Universidade Federal de São Carlos (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Grupo de Pesquisa “Teoria Crítica e Educação”, Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-5323-1107, E-mail: monteiro.hb.leonardo@gmail.com

Prof. Dr. Antonio Alvaro Soares Zuin, Universidade Federal de São Carlos (Brasil), Programa de Pós-Graduação em Educação, Coordenador do Grupo de Pesquisa "Teoria Crítica e Educação", Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq, Nível 1 A, Orcid id: https://orcid.org/0000-0002-6850-2897 Email: dazu@ufscar.br

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