Introdução
A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) adveio de pressões das conferências nacionais de saúde, das universidades federais, dos profissionais da saúde, da sociedade e de prefeituras com bandeiras progressistas para o aperfeiçoamento do funcionamento do campo da saúde no Brasil na década de 1980. Essa articulação foi denominada Movimento da Reforma Sanitária e conseguiu configurar-se como o que chamou-se de Ações Integradas de Saúde (AIS) (Santos, 2018; Carvalho, 2013). As AIS buscaram pactuar a previdência social com o atendimento de saúde subnacional e foram renomeadas, em 1987, para Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde até sua substituição pelo SUS, via constitucionalização, em 1988, e institucionalização pelas Leis 8.080/1990 e 8.142/1990(Brasil, 1990a; Brasil 1990b).
Já no caso da educação, apesar da demanda por um sistema, desde a década de 1930, – que culminaria na aprovação do Sistema Nacional de Educação (SNE) – o debate sobre a discussão só ganharia materialidade a partir do processo constituinte. Ainda que a expressão não tenha sido contemplada pelos constituintes, o Parágrafo Único do Art. 23 inscreve que a educação e a cultura, dentre outras políticas, devem ter normas de cooperação entre os entes federados e que todos eles seriam obrigados a responsabilizar-se pela oferta, em conformidade com o modelo de federalismo cooperativo adotado (Brasil, 1988).
O Artigo 211, por sua vez, trata do Regime de Colaboração entre União, Estados, Municípios e Distrito Federal. Tanto as normas de cooperação quanto o Regime de Colaboração são pilares do SNE são demandas constitucionais atendidas pela nova redação do Artigo 214 da Emenda Constitucional nº 59/09 e da Lei nº 13.005/2014 (Brasil, 2014). Durante a pandemia, o argumento recorrente foi de que, se o SNE tivesse sido aprovado e estivesse em funcionamento, os atrasos em termos de oferta e de aprendizagem teriam sido menores. Por exemplo, em 2021, o Todos Pela Educação (TPE) lançou uma nota técnica sobre o SNE em que afirmava que existia um consenso sobre a eficiência em solucionar os problemas educacionais advindos da pandemia, em caso da existência do SNE (Todos Pela Educação, 2021).
Esse argumento continuou a ser corroborado na mídia: “A existência de um Sistema Nacional de Educação pode ajudar a superar os desafios gerados pela pandemia [...]” (Altenfelder, 2022). Outros atores das organizações empresariais da educação fortaleceram esse discurso e iam além, ao aproximar a discussão de instituição do SNE com um formato semelhante ao do SUS. Um exemplo é a entrevista que o Movimento Colabora Educação fez à Drª Gabriela Lotta, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, em que reforçava que o SUS deveria ser o exemplo para estruturar o SNE (Lotta, 2020).
Diante dessa relação estabelecida entre as duas áreas mais afetadas pela Covid-19, este artigo tem por objetivo comparar as medidas tomadas na área da saúde e na área da educação no decorrer da crise pandêmica no Brasil, no período de março de 2020 até dezembro de 2021, analisando as dimensões dos conflitos interfederativos num sistema considerado estruturado, o SUS, e num sistema considerado não estruturado, o SNE. O problema que se busca responder é: A gestão de crise em decorrência da pandemia de Covid-19 no campo da educação teria sido exitosa se houvesse um sistema estruturado, o SNE, como existe o SUS no campo da saúde?
A comparação buscou as similitudes do desmonte ocorrido em ambas as áreas no período que antecedeu a crise sanitária e no seu decorrer na perspectiva da realização de uma história próxima, uma história imediata e uma história em processo. Contudo, não se tratou apenas da análise e comparação de documentos, mais do que isso, buscamos as relações entre os fenômenos e o problema que nos propomos analisar. Para tanto, a utilização de fontes jornalísticas, documentos do Ministério da Educação (MEC) e do MS, no recorte temporal de 2020-2021, foram organizados de maneira sincrônica e interconectada, gerando três quadros para efeito de síntese no recorte da pandemia entre março de 2020 a dezembro de 20211. O primeiro quadro apresenta os antecedentes à crise pandêmica na saúde e na educação, o segundo, a conjuntura de enfrentamento da pandemia no campo da saúde e o terceiro, no campo da educação.
O referencial teórico que balizou as análises do presente artigo é o da história do tempo presente (Delgado, Ferreira, 2013; Ferreira, 2018; Fiorucci, 2011), cuja particularidade é a valorização dos eventos do tempo presente, tendo em vista serem potencialmente mais ricos em mudanças. A história do tempo presente também tem outra peculiaridade que é a temporalidade, tendo em vista que a pesquisa pode ser realizada paralelamente aos acontecimentos relativos a um passado próximo, ou seja:
[...] devido ao método utilizado no momento da produção da obra, não se pode negar àqueles trabalhos o caráter de história do tempo presente, mas temporalmente, devido às fronteiras móveis desse tipo de história, os objetos e fontes abordados fazem parte da história do passado, ainda que recente (Fiorucci, 2011, p. 114).
A metodologia historiográfica foi concebida de modo a assumirmos a impossibilidade de assinalar as regularidades, as continuidades e os riscos do factual, porque o presente é “[...] colocado sob a égide do conceito de iniciativa, de um fazer, ou ainda, de uma conexão” (Dosse, 2012, p. 18).
A partir dessas questões introdutórias, o artigo se divide em quatro partes. A primeira discorre sobre aspectos que antecederam a crise sanitária na saúde e na educação; a segunda realiza a discussão sobre gestão da crise no âmbito do MS e seus desdobramentos no SUS; a terceira trata de um balanço da crise em decorrência da pandemia para a área da educação, que não possui sistema estruturado. As considerações finais indicam que a existência do SNE estruturado na gestão bolsonarista não seria um fator atenuante para garantir medidas efetivas quanto à oferta educacional no contexto da pandemia da Covid-19.
Os antecedentes à crise sanitária na saúde e na educação
A chegada da pandemia de Covid-19 no Brasil agravou toda a estrutura federativa brasileira, especialmente, sob a égide do que Abrucio, Grin, Franzese, Segatto e Couto (2020) denominaram de federalismo bolsonarista – um modelo que se constitui pelo ápice da falta de coordenação federativa em cenário de crise, desprezo aos princípios de colaboração entre os três poderes e entre os entes federados, bem como a oposição aos governos subnacionais. Com o avanço da pandemia e os desdobramentos desse modelo de gestão, somados ao perfil pouco republicano do presidente (já evidente antes de ser eleito), o cenário de crise sanitária tornou-se o pano de fundo para a culminância de um projeto político de retração democrática e fragmentação política.
Isso porque no Brasil, as políticas públicas e a democracia atravessavam um período de retração desde o golpe jurídico-midiático-parlamentar, em 2016, que destituiu do cargo a presidenta Dilma Rousseff. Com efeito, o desmonte das áreas da saúde e da educação não se inaugurou com o advento da pandemia. O quadro 1 apresenta alguns eventos que caracterizam o cenário de desmonte da democracia e das políticas públicas de saúde e de educação até o início de 2020, antes da deflagração da pandemia de Covid-19.
Ano | Acontecimento |
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Dez./2016 | Emenda Constitucional 95 – teto de gastos de despesas públicas por vinte anos. |
Dez./2017 | Resolução CNE/CP nº 2 – regulamentação da Base Nacional Comum Curricular sem diálogo com os profissionais da educação e a academia. |
Fev./2017 | Lei 13.415/17 – reforma do Ensino Médio que reconfigurou e fragmentou o currículo. |
Maio/Jun. 2017 | Portaria Nº 577, de 27 de abril de 2017 – dissolução do Fórum Nacional de Educação que recompôs a participação das entidades representativas. |
Nov./2018 | Desligamento da parceria com Cuba do Programa Mais Médicos que contava com aproximadamente onze mil médicos cubanos, dados os ataques públicos de Bolsonaro ao país. |
Dez./2018 | Resolução CNE/CP nº 04 – instituiu a Base Nacional Comum na etapa do Ensino Médio, acentuando a precarização do ensino público. |
Mar./2019 | Decreto 9.741 – contingenciou 29,582 bilhões do orçamento federal, incluindo cortes nas áreas da educação, saúde e cidadania. |
Abr./2019 | Retirada do conceito de redução de danos da Política Nacional de Drogas que previa a distribuição de seringas para usuários de drogas, contendo a infecção por HIV. |
Maio/2019 | Adiamento da Conferência de Saúde Indígena paulatinamente de maio, para agosto, dezembro e de julho de 2020 (durante a pandemia). |
Maio/2019 | Aglutinação do Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), Aids e Hepatites Virais no Departamento de Condições Crônicas e IST. |
Set./2019 | Decreto 10.004 – instituiu o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). |
Nov./2019 | Portaria 2.979 – alterou o financiamento da Atenção Básica à Saúde. Substituiu o financiamento per capita por financiamento de acordo com a demanda da população cadastrada previamente, ferindo o princípio da universalidade. |
Nov./2019 | Portaria 2.015 – regulou a implementação do Pecim para o ano de 2020 e previu a implantação de 54 escolas cívico-militares. |
Dez./2019 | Criação do Programa Médicos pelo Brasil como uma espécie de substituição do Programa Mais Médicos, porém com um viés privatizante. |
Dez./2019 | Aprovação da Lei 13.931 com a notificação compulsória, em até 24 horas, em casos de violência contra mulher, atendidas em rede privada ou pública. A Lei vai contra o preceito de sigilo para proteger a vítima do seu agressor. |
Jan./2020 | Nota Técnica 3 – flexibilizou os elementos constituintes do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e Atenção Básica (Nasf), descaracterizando o propósito da sua criação e atuação. Com isso, os municípios podem determinar quais tipos de profissionais constituirão o Nasf, bem como sua carga horária. |
Fontes: Jornais, Sites do MEC e do MS (elaboração: os autores).
Não é difícil constatar que as áreas da educação e da saúde já vinham passando por um processo de desmonte daquilo que consta no Art. 6º da Constituição Federal de 1988. Trata-se de um cenário em que o neoliberalismo mina tanto as políticas educacionais quanto as do campo da saúde. A começar pela EC 95/2016 que fez com que a saúde perdesse R$ 20 bilhões e a educação R$ 32, 6 bilhões no ano de 2019 (Saúde..., 2020; Pellanda, 2020), inviabilizando respectivamente uma perspectiva de financiamento adequado ao SUS, que já era subfinanciado, e as metas do Plano Nacional de Educação, principalmente aquelas relativas à implantação do custo-aluno qualidade inicial e do custo aluno-qualidade.
A Reforma do Ensino Médio, via Lei nº 13.415/17 (Brasil, 2017a), e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) trouxeram mudanças que cercearam os arranjos curriculares. A reforma alterou a etapa de ensino, de forma que flexibilizou o currículo tanto do ponto de vista das disciplinas quanto do ponto de vista da contratação de professores, além de acentuar a precarização docente via possibilidade de adesão de profissionais com notório saber. Em paralelo, ocorreram as discussões sobre a BNCC, que mais tarde foi regulamentada pela Resolução CNE/CP nº 2, de 22 de dezembro de 2017(Brasil, 2017b). O documento, em sua versão final, ignorou as contribuições dos profissionais da educação e se concretizou como uma cartilha baseada no desenvolvimento de competências.
Já a construção do Fórum Nacional de Educação adveio da demanda da Conferência Nacional de Educação (Conae) de 2010, tendo como objetivo conferir ampla representatividade aos movimentos e entidades envolvidas com a área da educação a fim de organizar as Conaes, bem como acompanhar, monitorar e avaliar o PNE (Shaw, 2017). Em abril de 2017, o MEC, em ato unilateral, publicou a Portaria nº 577/2017(Brasil, 2017c), que alterou a composição e funcionamento do órgão, desencadeando protestos das entidades que foram excluídas, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, o Centro de Estudos Educação e Sociedade e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, bem como de outras que se retiraram em solidariedade. Esse movimento, ensejou a criação do Fórum Nacional Popular de Educação e das Conferências Nacionais Populares de Educação, como espaço de resistência, luta e proposição no campo da democratização das políticas educacionais.
Na esteira dos movimentos de retrocessos para a área da educação, a vitória de Jair Messias Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018 representou a ascensão de uma agenda moral defendida por setores religiosos. Também ganharam destaque os ataques frequentes às escolas e aos professores com propostas dos ultradireitistas para que os alunos filmassem aulas, de modelo de “escola sem partido”, ensino domiciliar e militarização das escolas, que foi concretizado com o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), a partir de 2019.
No caso da saúde, o rompimento da parceria com Cuba no Programa Mais Médicos, em 2018, se deu de forma polêmica, já que o presidente fez declarações ofensivas ao povo cubano, além de querer submetê-los à testes para comprovar sua capacidade médica2. É importante ressaltar que grande parte da população indígena era atendida pelo Programa Mais Médicos, que era uma das pautas da Conferência de Saúde Indígena cuja realização foi adiada várias vezes. Esse descompromisso com os povos originários e outras populações vulneráveis, revela o desprezo pelas necessidades específicas da saúde, que integra o direito humano fundamental à vida3. Para sanar a grande lacuna que o rompimento com o Programa Mais Médicos deixou, foi criado o Programa Médicos pelo Brasil. Todavia, o programa foi um fracasso, já que previa uma estrutura extremamente frágil, com a privatização da etapa de atenção primária à saúde4 e a substituição da residência médica por uma especialização à distância.
Do ponto de vista do financiamento, a partir da Portaria nº 2.979/2019 (Brasil, 2019a), o princípio da universalidade em relação à saúde foi ferido, já que foi alterada a lógica do orçamento da atenção primária à saúde. Anteriormente, esta funcionava de forma a disponibilizar o recurso per capita, já que todos deveriam ser atendidos. Com a aprovação da Portaria, o recurso passou a ser disponibilizado de acordo com o quantitativo de cadastro prévio, o que fragilizou o primeiro contato com a atenção primária à saúde, popularmente conhecida como “porta de entrada" do SUS.
Entre as ações que também fragilizaram o sistema e os usuários do SUS está a aprovação da Lei nº 13.931/2019(Brasil, 2019 b), que notifica os casos de violência contra mulher em rede pública ou privada, ferindo o direito ao sigilo que protege a vítima, bem como a flexibilização da composição Nasf5, que fez com que as pessoas atendidas por essas políticas, muitas vezes em áreas em que o acesso é mais difícil, tivessem seu direito à saúde prejudicado.
Percebe-se que, desde a Emenda Constitucional (EC) 95/2016 (Brasil, 2016), tanto o campo da educação quanto o campo da saúde já passavam por um processo de sucateamento, independentemente de haver sistema estruturado ou não. A crise da pandemia potencializou esse sucate-amento e tornou ainda mais vulneráveis aquela parcela da população que precisava da garantia do direito à saúde, do direito à educação e do direito à uma vida digna como veremos na seção a seguir.
Enfrentamento da Covid-19: um balanço entre a existência do SUS e a atuação do MS
Com a chegada do vírus, o cenário de fragilidade no campo da saúde fez com que a previsão do colapso fosse bastante preocupante, com especial risco para as populações em situação de vulnerabilidade social. Enquanto a mídia noticiava o aumento expressivo do número de mortes por Covid-19 em outros países, no início de 2020, não havia nenhum tipo de orientação federal ou deliberações por parte do MS com vistas a mitigar a sua chegada. Em pouco tempo, conforme Carvalho, Carvalho e Santos (2020), o país passou a ser o epicentro pandêmico na América Latina em decorrência da gestão da crise com: a) desmobilização do distanciamento social, dos lockdowns e do uso de máscaras; b) disputa política do governo central com os governantes subnacionais; c) polarização ideológica sobre a Covid-19 como um mal menor frente às perdas econômicas para o país; d) ausência de alguma instância de especialistas em epidemiologia para gerir crise junto ao MS.
Para elucidar os acontecimentos no campo da saúde, foi elaborado o quadro 2, no recorte temporal de janeiro de 2020 a julho de 2021 – já que os casos de Covid-19 diminuíram drasticamente a partir do segundo semestre de 2021 em decorrência da ampliação da vacinação da população.
Ano | Acontecimento |
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Jan./2020 | A Organização Mundial de Saúde decretou estado de emergência de saúde pública de importância internacional, um mês após a notificação os primeiros casos de Covid-19 na China. |
Fev./2020 | Primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil. |
Mar./2020 | A Organização Mundial de Saúde decretou pandemia. |
Mar./2020 | Jair Bolsonaro iniciou o negacionismo da pandemia em declarações públicas e participa de aglomerações/manifestações. |
Mar./2020 | Início da importação, produção e distribuição de Hidroxocloroquina e Ivermectina (medicamentos contraindicados nas pesquisas acadêmicas para o tratamento de Covid-19) . |
Abr./2020 | Primeiros testes de Covid-19. |
Abr./2020 | Demissão do Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. |
Abr./2020 | Admissão do Ministro da Saúde Nelson Teich. |
Maio/2020 | Demissão do Ministro da Saúde Nelson Teich. |
Jul./2020 | A Anvisa se manifestou contra o uso de Ivermectina. |
Set./2020 | Admissão do Ministro da Saúde General Eduardo Pazuello. |
Out./2020 | Bolsonaro e Paulo Guedes assinaram um Decreto que permitia a privatização do SUS e o revogaram no dia seguinte. |
Nov./2020 | Criação do gabinete de crise para a Covid. |
Dez./2020 | Primeira campanha de vacinação em massa na Europa. |
Jan./2021 | Colapso do SUS na capital do Amazonas, escassez de equipamentos de oxigênio. |
Mar./2021 | Demissão do Ministro da Saúde Eduardo Pazuello. |
Mar./2021 | Admissão do Ministro da Saúde Marcelo Queiroga. |
Mar./2021 | Primeira compra de vacina no Brasil. |
Jul./2021 | Desvio de recursos do SUS para despesas militares. |
Fontes jornalísticas (elaboração: os autores).
É possível constatar a ação tardia do governo federal em criar um gabinete de crise da Covid-19, em novembro de 2020, nove meses após o primeiro caso no Brasil e no mês que o Brasil alcançou o número de 13.263 mortes (Pinheiro, 2020). O planejamento do financiamento da saúde indica que o SUS estava em situação de recessão orçamentária desde a EC 95/2016 (Brasil, 2016), o que denota o fortalecimento da agenda neoliberal de austeridade fiscal (Servo; Santos; Vieira; Benevides, 2020). Entretanto, os autores apontam que as receitas para a saúde aumentaram com a admissão do ex-ministro da Saúde, General Eduardo Pazuello (de R$18,9 bilhões para R$34,5 bilhões), mas vale ressaltar que, em sua gestão no MS, houve o atraso e a imposição de dificuldades para a divulgação de dados oficiais sobre contágio e mortes por Covid-19, ferindo o direito básico à informação como elemento constituinte da democracia. Por isso, foi criado, de forma independente, um consórcio dos meios de comunicação para divulgar diariamente o número de internações e de óbitos com base nas informações das secretarias estaduais de saúde (Veículos de comunicação..., 2020).
Outro ponto gravíssimo da crise foi instabilidade no MS, com uma grande rotatividade de ministros, em razão de demissões que envolviam escândalos sobre divergências de posicionamentos contrários aos do presidente da República sobre uso de medicamentos sem eficácia para o tratamento da Covid-19, como Ivermectina e Hidroxicloroquina e outros que compunham o “kit Covid” defendido pelo governo, além de medidas e discursos opostos ao distanciamento social e ao uso de máscaras.
A permanência de Pazuello por mais tempo no MS pode ter relação direta com a militarização dos ministérios em detrimento da participação de técnicos e de especialistas. Em especial, no que tange à Covid-19, era importante que o ministro da Saúde fosse alguém que compactuasse com Bolsonaro no que diz respeito à antigovernabilidade, ou seja, que fosse submisso à efetivação das resoluções do presidente. Para Inácio (2021), a inclusão de militares na política está ligada à ideia de lealdade, mesmo que a escolha comprometa a capacidade de tomada de decisões técnicas.
Na dimensão federativa, a autonomia dos entes subnacionais foi potencializada, visto que os governos estaduais lograram protagonismo na compra de insumos, bem como nas decisões de instruir o distanciamento social, tendo em vista que “[...] o Executivo Federal adotou a estratégia de confronto com os entes subnacionais e renunciou ao seu papel de criar incentivos à cooperação e à coordenação [...]” (Souza; Fontanelli, 2021, p. 136). De acordo com os autores, a intenção do governo federal seria culpabilizar os entes subnacionais pelos desdobramentos sociais, econômicos e políticos, visto que o discurso do então presidente da república e de sua equipe de confiança era de negar a pandemia. Ou seja, as ações durante a pandemia indicam uma espécie de política do caos. Corroborando com essa perspectiva, Santos e Guimarães (2020) apontam que o governo federal sabotou as ações de entes subnacionais com o bloqueio de repasses financeiros, indicações inconsistentes sobre o distanciamento social e desarticulação com o MS.
O exemplo mais emblemático dessa política de confronto foi o caso do estado de São Paulo. Com o avanço da produção da vacina, o governador de São Paulo, João Agripino da Costa Doria Junior (PSDB), se destacou na mídia pela aquisição dos insumos para produção das vacinas no Instituto Butantan e evidenciou sua rivalidade com Jair Bolsonaro (Veja a cronologia..., 2020). Entretanto, o protagonismo subnacional no enfrentamento à pandemia não foi homogêneo, já que a ausência de norteadores nacionais fez com que, por exemplo, medidas de lockdown fossem avançadas ou recuadas por tensões políticas.
Por fim, remontado o quadro de enfrentamento à pandemia no Brasil, pode-se chegar a alguns indicativos: 1) A instabilidade do MS e a ausência de gerenciamento de crise6; 2) A atuação do governo federal diante a Covid-19 foi marcada por forte negacionismo, desprezo pelas vidas brasileiras, pela ausência de cooperação federativa e pelas regras do jogo político – um projeto de destruição já anunciado. O enfrentamento da Covid-19, no campo da saúde, teve como pilar de sustentação o SUS, já consolidado há muitos anos, e que, em paralelo, tem estado sob muitas investidas de sucateamento. Como fator agravante, a instabilidade do MS, utilizando o negacionismo como medida política (relacionada à existência e à capacidade de contenção do vírus, o que implicou nas escolhas de pessoas para gerir a crise e dos mecanismos de prevenção), fez com que o campo da saúde, mesmo com o SUS, ficasse fragilizado.
Educação e a Covid-19: a política da omissão
O MEC, como outros ministérios, também não determinou nenhuma medida prévia para o combate ao vírus da Covid-19 nas escolas brasileiras e tomou débeis ações para conter a crise no que diz respeito à educação. Elaboramos o quadro 3 com um histórico em âmbito federal no campo da Educação durante a pandemia.
Ano | Acontecimento |
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Fev./2020 | Primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil. |
Mar./2020 | A Organização Mundial de Saúde decretou pandemia. |
Mar./2020 | A Portaria 343/MEC – suspendeu as aulas presenciais. |
Mar./2020 | Criação do Comitê de Emergência do MEC. |
Abr./2020 | Medida Provisória 934 (convertida na Lei 14.040, em agosto de 2020) – estabeleceu normas de caráter excepcional para a educação básica. |
Abr./2020 | O Ministro da Educação, Abraham Weintraub, postou declarações racistas e culpou os chineses pela Covid-19. O STF abriu um inquérito para investigar o caso, arquivado em fevereiro de 2021. |
Abr./2020 | Parecer 5/CNE (reexaminado pelo Parecer 9/2020) – tratou da reorganização do calendário escolar e cômputo de atividades não presenciais para cumprimento da carga horária mínima, bem como de sugestões sobre as etapas, níveis e modalidades de ensino. |
Maio/2020 | O ministro da Educação, Abraham Weintraub, atacou o STF e declarou que seus integrantes deveriam ser presos. |
Maio/2020 | Portaria nº 503 – institui a política de governança do Ministério da Educação, alterou a organização e extinguiu secretarias estratégicas. |
Jun./2020 | Apresentação do Projeto de Lei 3076/2020, assinado pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub, prevendo parcerias público-privadas para as universidades gerou diversos protestos no ano de 2019. |
Jun./2020 | Demissão do Ministro da Educação Abraham Weintraub. |
Jun./2020 | Nomeação do Ministro da Educação Carlos Decotelli e cancelamento da sua nomeação, na mesma semana, por um escândalo em seu currículo, em que constava a existência de um título de doutor não reconhecido pela instituição de ensino apontada. |
Jul./2020 | A comissão externa da Câmara dos Deputados, criada para analisar as ações do MEC, indicou em seu relatório falhas como ausência de um plano nacional para enfrentamento da pandemia, de colaboração federativa e de ausência do SNE. |
Jul./2020 | Nomeação do Pastor Milton Ribeiro como Ministro da Educação. |
Jul./2020 | Primeiro retorno presencial das aulas no Brasil, realizado na cidade de Manaus. |
Dez./2020 | Parecer 22/CNE orientações/sugestões para realização de aulas presenciais e não presenciais no contexto da pandemia. |
Dez./2020 | Aprovação da Lei nº 14.113 que regulamenta o novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica. |
Dez./2020 | Resolução 2/CNE – Diretrizes Nacionais orientadoras da Lei nº 14.040 – tratando do retorno das aulas presenciais de acordo com as autoridades sanitárias locais. |
Dez./2020 | Portaria nº 1. 071/2020 que previu a implantação de 54 escolas cívicos-militares em 2021. |
Dez./2020 | Portaria nº 1.096/ 2020 que dispôs sobre o retorno às aulas presenciais, sobre a antecipação de conclusão de cursos e sobre o caráter excepcional de utilização de recursos educacionais digitais para integralização da carga horária das atividades pedagógicas dos cursos da educação profissional técnica. |
Jan./2021 | Realização presencial do Enem 2020. |
Maio/2021 | Início das audiências públicas sobre SNE, Projeto de Lei 25/2019. |
Jun./2021 | Portaria 177 – Criação do Programa Brasil na Escola que fornece apoio técnico e financeiro às escolas. |
Ago./2021 | Resolução CNE/CP nº 2/2021 – instituiu as Diretrizes Nacionais Orientadoras para a implementação de medidas no retorno à presencialidade. |
Ago./2021 | Resolução CNE/CEB nº 2/2021 – dispôs sobre as Diretrizes Operacionais para a implementação do Arranjo de Desenvolvimento da Educação como instrumento de gestão pública para a melhoria da qualidade social da educação. |
Out./2021 | Portaria 852 – regulamentou a certificação das escolas cívico-militares e a metodologia quantitativa de avaliação do desempenho das escolas. |
Nov./2021 | Relatório do Projeto de Lei 235/19 que previu instituir o SNE, de autoria do Senador Flávio Arns (REDE/PR) , é encaminhado à Comissão de Educação, Cultura e Esporte. |
Nov./2021 | Portaria 925 – regulamentou o Pecim para o ano de 2022 e previu a criação de 89 escolas cívico-militares. |
Dez./2021 | Relatório 1/2021 da Comissão Externa da Câmara dos Deputados criada para analisar as ações do MEC fez severas e pertinentes críticas à gestão. |
Fontes: Site do MEC e Fontes Jornalísticas (elaboração: os autores).
Com base nos elementos dispostos no quadro 3, os fatos foram sistematizados em quatro categorias: a) inércia do MEC; b) instabilidade ministerial; c) avanços da hibridização e da militarização das escolas; e d) federalismo educacional.
Abrucio (2021) indica atuação do MEC (mesmo antes da pandemia, mas já na gestão bolsonarista) como um momento de tensão e de alinhamento entre agendas morais e ideológicas e práticas da política educacional, dado a quantidade de tentativas de práticas ideológicas propostas tais como: Future-se, homeschooling, Escola Sem Partido e outras, em concomitância com inércia do MEC na pandemia7. O resultado desse afastamento do diálogo que fundamenta a prática democrática e a gestão de crise, somada à precariedade ministerial, está inserido na primeira categoria, inércia do MEC, que resultou em uma série de instrumentos normativos8. Esses instrumentos imprimem uma coordenação incipiente já que não incluem medidas de contenção de danos aos prejuízos em relação à ausência dos alunos no ambiente escolar e nem ao preparo docente para o trabalho remoto, além de não pactuar ações para a colaboração entre os entes federados.
O descompromisso da gestão bolsonarista com o combate à pandemia também pode ser observado na segunda categoria, instabilidade ministerial. Em um ano (2020-2021), passaram pelo cargo de ministro da Educação um economista e um pastor (exonerado em 2022 por um escândalo de corrupção)9. Além das formações que não convergem com a competência do cargo de ministro da Educação, eles estiveram envolvidos com diversas polêmicas, como ataques ao Supremo Tribunal Federal, declarações racistas e xenofóbicas, apontadas no quadro 3. Esse perfil incompatível com os valores democráticos e com a garantia do direito à educação foi motor para o desencadeamento da terceira categoria de análise, os avanços da hibridização e da militarização das escolas.
Como declarado programa de governo para fragilizar a educação pública, ocorreu um avanço da hibridização e militarização das escolas, tal como denominamos a terceira categoria analítica. Em 2020, foi criada a Associação Nacional de Educação Básica Híbrida, apresentada pelo empresariado com uma solução às atividades remotas para a educação pública. Para eles, a formação humana é um recurso ajustável às transformações do capital, configurando uma seleta escala, nada natural, de controle sobre os conteúdos, o que justifica a flexibilização de modelos baseados na ideia do “aprender a aprender”. Essas propostas foram endossadas, a exemplo do Projeto de Lei nº 2497/21(Brasil, 2021a) que versa sobre a regulamentação da oferta de educação híbrida de autoria da deputada Luíza Canziani (PTB/Paraná)10.
Tais iniciativas ganharam destaque sob a égide do bolsonarismo, que se desdobra em uma crise institucional e em um projeto de retração democrática, intensificados no cenário da pandemia de Covid-19. Com a omissão do MEC, os atores privados conseguiram se estruturar com mais força no campo das políticas educacionais. Movimento similar ocorreu com a militarização das escolas, que já estava sendo pavimentada antes da chegada do vírus e foi acentuada com progressivas criações de escolas cívico-militares11. Nesse cenário, a pandemia serviu como uma espécie de cortina de fumaça para dificultar tentativas de resistência ao avanço militar no campo da educação.
Além disso, mesmo com recomendações para o não retorno presencial das aulas – advindas, por exemplo, da Fiocruz –, que demonstravam preocupação com a forma que o retorno presencial das escolas se daria, bem como o impacto de tal medida, já que se tratava de um cenário grave (Castro, Périssé, 2020), a gestão de crise no campo da educação determinou o primeiro retorno presencial de forma aligeirada. Foi um momento de pressão, dado o descompromisso com as medidas de prevenção, ao mesmo tempo em que havia movimentos como o Escolas Abertas12 que protagonizaram a pauta do retorno presencial em contraponto à Fiocruz, à Campanha Nacional Pelo Direito à Educação e outras. Em julho de 2020, a volta às aulas presenciais em Manaus resultou em uma massiva expansão da contaminação pelo vírus. O Relatório 1/2021(Brasil, 2021b) da comissão externa da Câmara dos Deputados, que versou sobre a atuação do MEC na pandemia, indicou ausência de prioridade para o campo educacional, redução orçamentária, atraso na implementação de medidas e inadequação estrutural das escolas.
Com a indiferença do MEC, o TPE, articulado a outros atores, atuaram em caráter ostensivo produzindo conteúdo para os mais diversos públicos do campo da educação – parlamentares, gestores, lideranças partidárias (Todos pela Educação, 2020) –, especialmente, no que tange a apresentação incisiva da pauta da institucionalização do SNE, que trataremos na última categoria, federalismo educacional. Nesse sentido, não se trata apenas do controle do currículo, mas, sim, da disputa pela implementação do SNE, que poderia alterar as estruturas federativas, criando arranjos de cooperação territorial, tornado o SNE uma agenda para garantir a abertura de novos mercados, assegurando a ação dos agentes privados.
Assim, como na área da saúde, o espetáculo da gestão da pandemia foi uma espécie de laissez faire com a consequência devastadora de 601 mil mortos até outubro de 2021 (Brasil..., 2021) e a educação foi uma peça do jogo. Os entes subnacionais buscaram alternativas de forma descoordenada, bem como sofreram as consequências no caso de decisões erradas. Como estereótipo do federalismo, a autonomia subnacional faz parte da sua configuração e essa atuação diante da pandemia não deve ser desprezada.
O poder de coordenação federal também deveria se fazer presente com a definição de padrões mínimos para o retorno presencial (quando e como), com o planejamento prévio de medidas preparatórias para a chegada do vírus no Brasil, com os padrões mínimos para educação remota, adequação das escolas, medidas financeiras e técnicas, fomento da colaboração federativa, entre outras iniciativas.
Percebe-se uma espécie de descaracterização do federalismo no governo Bolsonaro, ações que não podem ser denominadas como simples inércia, mas um projeto de retração democrática. Como consequência, foi pavimentado um contexto para atores como o Todos Pela Educação pautarem o debate em torno do SNE, em meio à uma crise institucional e democrática generalizada, bem como o avanço de instrumentos frágeis, mas categorizados como regime de colaboração, como foi o caso dos Arranjos de Desenvolvimento da Educação, via Resolução 2/2021(Brasil, 2021c).
Sob o ponto de vista do financiamento da educação, apesar do novo Fundeb ter sido aprovado pela Lei nº 14.133/2020(Brasil, 2020c) e o Programa Brasil na Escola pela Portaria 177 (Brasil, 2021d), Alves, Farenzena, Silveira e Pinto (2020) indicam três pontos agravantes para o enfrentamento da pandemia: a) a complexidade das relações intergovernamentais e a ausência de um SNE como fator que pressupõe dificuldades para efetivar a coordenação e a cooperação federativa; e b) à época, ausência de regulamentação do novo Fundeb. De acordo com os autores, para enfrentar a situação de crise, seria necessário injeção de recursos em programas já existentes, como Programa Nacional de Alimentação Escolar e Programa Dinheiro Direto na Escola, bem como uma maior contribuição financeira da União na manutenção e desenvolvimento do ensino.
Emerge como figura central não só a inoperância do MEC na política nacional de educação, mas também as capacidades do gabinete do MEC em suas competências para subsidiar, articular, promover, coordenar, assegurar e propor ações em prol da educação pública de qualidade, quando suas funções se resumiram ao caráter sugestivo, com o argumento central embasado na autonomia dos entes federados.
Em síntese, no âmbito educacional, no recorte de 2020 a 2021, as ações frente a pandemia podem ser resumidas em instabilidade, omissão e avanço de políticas neoliberais. O MEC vivenciou constantes trocas de ministros da Educação, materializou ações incipientes para gerir a crise da educação (o que fez com que cada ente federado tomasse medidas díspares) e, em decorrência desses agravantes, políticas como hibridização da educação e Pecim ganharam força.
Considerações finais
Vivenciamos no presente um campo de disputas e interpretações, que exige do pesquisador uma postura crítica e reflexiva. Na história do tempo presente não se trata de revelar o que está oculto, como na história do passado, mas de problematizar o que parece estar evidente, de questionar os sentidos e as significações que são atribuídos aos fatos e aos discursos. Nesse sentido, a história do tempo presente busca compreender seu próprio tempo, situando-o em uma perspectiva histórica, possibilitando a desnaturalização do que parece óbvio ou dado. No caso deste artigo, além do tempo presente, também adotamos uma perspectiva comparada. Na verdade, toda história do tempo presente é uma história comparada, pois envolve a análise de diferentes contextos e realidades que se relacionam de alguma forma, tais como nações ou regiões, bem como de aspectos culturais, sociais, políticos e econômicos dentro de uma mesma sociedade (Schurster, 2015). Foi exatamente a abordagem de aspectos sociais, políticos e econômicos que foram priorizados neste artigo.
A análise e a interpretação crítica das fontes, a partir da história do tempo presente e da abordagem comparada, possibilitou a inferência de que, mais importante do que a consolidação de sistemas mais ou menos institucionalizados de saúde e de educação, a questão federativa se trata: a) da centralidade da coordenação da União federal; b) das dimensões do subfinanciamento e em, seguida, do desfinanciamento; e c) do negacionismo, do discurso anticiência e da describilização da educação pública atingissem as áreas de saúde e de educação com muita gravidade no período estudado.
Quanto à experiência da gestão de crise no campo da saúde, percebe-se que, em uma conjuntura geral, a administração da crise não culminou na efetividade necessária, já que não houve medidas de prevenção antes do vírus chegar no Brasil, bem como depois que a pandemia já tinha atingido o país, pois as ações advindas do MS não fortaleceram a atuação do SUS. Ao contrário, o próprio presidente provocou aglomeração entre seu eleitorado e banalizou a gravidade do vírus, a eficácia da vacina e o estado crítico de muitas pessoas que o contraíram. Ou seja, mesmo com a existência do SUS, as ações do MS estavam interligadas com o projeto ideológico presidencial. A somatória da troca constante de ministros da Saúde, da demora na compra de insumos e da frágil campanha de incentivo à vacinação fez com que a redução do número de mortes demorasse mais do que o necessário, além de não fortalecer a atuação do SUS. Logo, a existência de um sistema estruturado foi insuficiente para conter as investidas ideológicas da gestão bolsonarista.
Já no caso da educação, com a omissão do MEC para gerir a crise, os governos subnacionais ficaram diante da necessidade de tomar medidas heterogêneas de acordo com os níveis de contágio de cada região, sem articulação com o governo federal. Com os alunos sem aulas presenciais, não havia formas de colaboração ou até mesmo coordenação da União no cenário político educacional. Na verdade, o que ganhou força foram as discussões sobre o homescholling e as possibilidades de formatos do SNE, além do avanço do Pecim.
Diante disso, retomamos o problema deste artigo: Diante do cenário da pandemia de Covid-19, se o SNE estivesse instituído, como no campo da saúde com o SUS, a gestão da crise teria sido exitosa? Colocados em paralelo, que os dois campos foram afetados drasticamente pela pandemia. Mesmo a saúde, contando com o SUS estruturado há tanto tempo, a existência do sistema, por si só, não foi suficiente para suprir as necessidades de políticas que deveriam advir do MS no que se refere à prevenção e ao tratamento dos casos de Covid-19. O que se assistiu foi a fragilidade pré-existente agravada pela inoperância, pela instabilidade no comando do MS, pelo negacionismo e pelo desprezo às medidas de biossegurança por parte do presidente da república. Em outras palavras, a existência de um sistema estruturado não foi capaz de deter a influência ideológica do bolsonarismo e de todas as suas mazelas, o que colocou o país no epicentro da pandemia.
Nesse sentido, acreditamos que, mesmo se a educação possuísse sistema estruturado à época (o SNE) também estaria sob a coordenação do MEC – assim como o SUS está para o MS – que se omitiu durante as gestões dos diferentes ministros, fazendo valer outras pautas que nada adiantaram para fazer frente à pandemia e garantir o direito à educação. Ou seja, dificilmente o cenário seria diferente se houvesse um SNE, já que a educação também foi atacada pelos fatores ideológicos do bolsonarismo. Portanto, se parece adequada a defesa da instituição de um SNE que, sobretudo, equalize as condições da oferta educativa no território nacional com base num mecanismo de financiamento e que permita a provisão do serviço público com qualidade. A institucionalização do SNE que resguarde tão somente as instâncias do pacto entre os entes subnacionais não daria e não dará conta de situações emergenciais e complexas como foi o caso da gestão da pandemia pelo SUS, um sistema historicamente estruturado que foi severamente abalado.