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Estudos em Avaliação Educacional

versão impressa ISSN 0103-6831versão On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.30 no.73 São Paulo jan./abr 2019  Epub 16-Jul-2019

https://doi.org/10.18222/eae.v30i73.5713 

ARTIGOS

DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À EDUCAÇÃO SUPERIOR EM DEBATE: AVALIAÇÃO DO PROUNI*

DEMOCRATIZACIÓN DEL ACCESO A LA EDUCACIÓN SUPERIOR EN DEBATE: EVALUACIÓN DE PROUNI

DEBATE ON THE DEMOCRATIZATION OF ACCESS TO HIGHER EDUCATION: EVALUATION OF PROUNI

CLAUDIA REGINA BAUKAT SILVEIRA MOREIRAI 
http://orcid.org/0000-0002-0521-672X

ÂNGELO RICARDO DE SOUZAII 
http://orcid.org/0000-0002-0246-3207

IUniversidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba-PR, Brasil; claudiamoreira@ufpr.br

IIUniversidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba-PR, Brasil; angelosou@gmail.com


RESUMO

Partindo da constatação de que a oferta de vagas na educação superior é sobretudo privada, este trabalho pretende identificar os perfis dos bolsistas beneficiados pelo Programa Universidade para Todos (ProUni), considerando três cursos: Pedagogia, Medicina e Direito. Para tanto, o recurso foi o da avaliação de políticas, tal como formulado no campo de políticas públicas. Foram analisados os microdados do questionário socioeducacional aplicado por ocasião da realização do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), no período entre 2008 e 2013. Os dados permitem concluir que o ProUni é bem- -sucedido quanto às metas estabelecidas, garantindo a inserção de jovens pobres, oriundos principalmente da escola pública. Contudo, os dados também possibilitam afirmar que o programa é limitado quanto ao seu escopo, pois as diferenças identificadas entre os bolsistas dos três cursos analisados sugerem que há uma reprodução das desigualdades educacionais.

PALAVRAS-CHAVE: POLÍTICAS EDUCACIONAIS; AVALIAÇÃO DE PROGRAMAS; PROUNI; DESIGUALDADES EDUCACIONAIS

RESUMEN

Partiendo de la constatación de que la oferta de plazas en la educación superior es sobre todo privada, este trabajo pretende identificar los perfiles de los becarios beneficiados por el Programa Universidad para Todos (ProUni), considerando tres cursos: Pedagogía, Medicina y Derecho. Para ello, se utilizó el recurso de la evaluación de políticas, tal como formulado en el campo de políticas públicas. Se analizaron los microdatos del cuestionario socioeducativo aplicado durante la realización del Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), en el periodo abarcado entre 2008 y 2013. Los datos permiten concluir que ProUni es exitoso en lo que concierne a las metas establecidas, asegurando la inserción de jóvenes pobres provenientes por encima de todo de la escuela pública. Sin embargo, los datos también permiten afirmar que el programa es limitado en lo que se refiere a su alcance, ya que las diferencias identificadas entre los becarios de los tres cursos analizados sugieren que hay una reproducción de las desigualdades educacionales.

PALABRAS CLAVE: POLÍTICAS EDUCACIONALES; EVALUACIÓN DE PROGRAMAS; PROUNI; DESIGUALDADES EDUCATIVAS

ABSTRACT

Based on the fact that the majority of vacancies in higher education is mainly in private schools in Brazil, this study aims to identify the profiles of the beneficiaries of the program University for All (ProUni). It considers three courses: Pedagogy, Medicine and Law. The research resource used was the evaluation of policies established in the field of public policies. The microdata collected, using the socio-educational questionnaire during the application of Enade between 2008 and 2013, were analyzed. These data allow us to conclude that ProUni has been successful in terms of its established goals of ensuring the access of poor young people coming from public schools, to higher education. However, the data also allow us to affirm that the program is limited in scope, since the differences identified among the benefitted students in the different courses suggest that there is a reiteration of the educational inequalities.

KEYWORDS: EDUCATIONAL POLICIES; PROGRAM EVALUATION; PROUNI; EDUCATIONAL INEQUALITIES

INTRODUÇÃO

O Programa Universidade para Todos (ProUni) foi instituído inicialmente pela Medida Provisória n. 213/2004, convertida posteriormente na Lei n. 11.096/2005, e enuncia que sua principal finalidade é democratizar o acesso do jovem pobre, sobretudo oriundo da escola pública, à educação superior. Na sua primeira década de vigência (não há dados disponíveis após 2014), o programa distribuiu, em média, aproximadamente 220 mil bolsas por ano, sendo que, com exceção de 2008, a maioria era integral (BRASIL, 2015).

Apesar de cerca de 75% das vagas na educação superior no país serem oferecidas por instituições de ensino superior (IES) privadas (BRASIL, 2017), a análise e a avaliação de uma política como o ProUni não têm sido objeto de estudos sistemáticos pelos pesquisadores do campo da política educacional, a não ser os estudos de caso (OLIVEIRA; MOLINA, 2012; SANTOS, 2012; SARAIVA; NUNES, 2011). A preocupação em demarcar a necessária defesa da universidade pública acabou por definir publicações que tecem considerações genéricas sobre as políticas de transferência de recursos públicos para IES privadas, reafirmando a constatada baixa qualidade da formação ofertada pela maioria dessas instituições, pouco contribuindo para compreender os impactos da iniciativa sobre as IES e os perfis dos estudantes (CATANI; GILIOLI, 2005; CARVALHO, 2006; CATANI; HEY; GILIOLI, 2006; SEGENREICH; CASTANHEIRA, 2009; LEHER, 2004).

Exceção à regra é a investigação conduzida por Ruy de Deus e Mello Neto (2015), que, além de comparar o desempenho de bolsistas e não bolsistas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) - o que lhe permitiu concluir que o ProUni atrai e forma um alunado com desempenho superior ao dos demais estudantes de IES privadas -, buscou compreender os mecanismos mobilizados por um conjunto de bolsistas para se inserir na vida universitária. Embora represente uma abordagem inovadora, o autor não considera, nem problematiza, a escolha do curso enquanto uma variável importante em sua análise. É nesse lapso que o presente texto encontra sua justificativa.

Assim, o objetivo aqui é averiguar se os perfis dos estudantes beneficiados pelo ProUni diferem de um curso para outro, de forma a verificar se existe correlação entre curso escolhido e perfil socioeducacional do bolsista. Para tanto, primeiro foi necessário selecionar de alguns cursos, tendo em vista a constatação de que eles possuem distintos graus de prestígio social. Assim, foram escolhidos os cursos de Pedagogia, Direito e Medicina.

Os microdados do questionário socioeducacional preenchido por ocasião da aplicação do Enade constituíram a fonte das informações que foram tratadas por meio de procedimentos de estatística descritiva. Assim, buscou-se identificar os bolsistas ProUni (apenas bolsas integrais), convocados a participar das edições do Enade no período entre 2008 e 2013 (dois levantamentos para cada um dos cursos), concluintes dos cursos selecionados. Dessa forma, foi possível avaliar: se o programa atingiu as metas estabelecidas quando de sua implementação, já que se tratava de argumentos mobilizados para justificá-lo; e se os perfis dos estudantes beneficiados variam entre os cursos.

No entanto, antes de realizar o empreendimento da avaliação propriamente dito, faz-se necessário explanar, mesmo que de forma breve, sobre o campo da avaliação de políticas públicas e sua apropriação pelo conjunto de pesquisadores de políticas educacionais.

AVALIAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS ENQUANTO CAMPO DE INVESTIGAÇÃO

O campo de análise de políticas públicas surgiu, dentro da ciência política, enquanto uma possibilidade investigativa em decorrência da adoção de políticas planificadas, no contexto da criação e vigência de modelos de Estado Providência, sobretudo no pós-Segunda Guerra Mundial (LOWI, 1994). Embora a pesquisa no campo de políticas educacionais mantenha sua especificidade histórica e epistemológica, Bentancur (2014) chama a atenção para a útil e necessária convergência entre os dois campos.

Das quatro fases em que convencionalmente está dividido o campo das políticas públicas - formação da agenda, tomada de decisões, implementação e avaliação -, é a última que possui maior desenvolvimento conceitual e metodológico (KINGDON, 1995; DYE, 2009; BENTANCUR, 2014). Considerando que a política pública engloba aquilo que o governo escolhe fazer e o que escolhe deixar de fazer (DYE, 2009), indicando que há uma intencionalidade inclusive naquilo que não se faz (SOUZA, 2014), a avaliação de políticas públicas deve ser precedida de uma avaliação política, definida como a necessidade de atribuir valor a uma iniciativa, e, sobretudo, da identificação de por que ela ganha preferência sobre outras alternativas (FIGUEIREDO; FIGUEIREDO, 1986).

No caso do ProUni - a primeira das iniciativas relativas à ampliação do acesso à educação superior levadas a cabo quando o Partido dos Trabalhadores assumiu o Executivo Federal -, o que pesou foi o fato de sua implementação ser mais rápida e com baixo impacto orçamentário. Afinal, a rede de IES privadas contava com uma capilaridade e uma capacidade ociosa ausentes na rede federal (MOREIRA, 2018).

A partir desse diagnóstico, é possível então empreender a avaliação da política, a qual, de acordo com Figueiredo e Figueiredo (1986), procura saber se a política ou o programa foi bem-sucedido. Ainda segundo os autores, a avaliação pode ser de processo ou de impacto. No primeiro caso, trata-se de avaliar a eficácia, verificando se o programa foi implementado de acordo com as diretrizes com as quais foi concebido.

A análise de impacto, por sua vez, tem uma ambição mais ampla e bem mais complexa [...]. Ela diz respeito aos efeitos do programa sobre a população-alvo e tem, subjacente, a intenção de estabelecer uma relação de causalidade entre a política e as alterações nas condições sociais. (FIGUEIREDO; FIGUEIREDO, 1986, p. 111)

Assim, impõe-se como primeira exigência metodológica a identificação dos procedimentos administrativos que dão conformação ao programa sob análise. Identificadas as diretrizes, é possível então realizar a avaliação de eficácia e a avaliação de impacto.

O ProUni: condicionalidades e contrapartidas

A Lei n. 11.096, sancionada em 13 de janeiro de 2005, é composta por 23 artigos e não se refere exclusivamente ao ProUni. Sua ementa deixa claro o seu escopo:

Institui o Programa Universidade para Todos - PROUNI, regula a atuação de entidades beneficentes de assistência social no ensino superior; altera a Lei n. 10.891, de 9 de julho de 2004, e dá outras providências (BRASIL, 2005).

Os primeiros quatro artigos tratam dos potenciais beneficiários do programa e indicam o seu objetivo. O art. 1º institui o ProUni, estabelecendo que ele fica sob gestão do Ministério da Educação (MEC). O caput do referido artigo define que o programa é:

Art. 1º

[...] destinado à concessão de bolsas de estudo integrais e bolsas de estudo parciais de 50% (cinqüenta por cento) ou de 25% (vinte e cinco por cento) para estudantes de cursos de graduação e seqüenciais de formação específica, em instituições privadas de ensino superior, com ou sem fins lucrativos. (BRASIL, 2005, grifo nosso)

A afirmação de que a finalidade principal do programa consiste na concessão de bolsas converge com a intenção inicial do Executivo ainda quando da apresentação do PL 3.582/2004 (MOREIRA, 2018). Já os parágrafos definem as condições para concessão de bolsas parciais e integrais. As bolsas integrais podem ser pleiteadas por brasileiros que não tenham diploma de ensino superior, com renda per capita familiar de até um salário mínimo e meio (§1º); as bolsas parciais (de 50% ou de 25%) podem ser pleiteadas por brasileiros que não tenham diploma de ensino superior, com renda per capita familiar de até três salários mínimos e com critérios de distribuição a serem definidos em regulamento do MEC (§ 2º) (BRASIL, 2005).

O art. 2º da Lei apresenta outros requisitos a serem observados pelos candidatos às bolsas:

Art. 2º

[...]

I - estudante que tenha cursado o Ensino Médio integralmente em escola pública ou que tenha cursado em escola privada, na condição de bolsista integral;

II - estudante com deficiência nos termos da lei;

III - professor da rede pública de educação básica, independentemente da renda, desde que para cursos de licenciatura, pedagogia ou normal superior. (BRASIL, 2005)

Os mecanismos de seleção dos beneficiários são apresentados no art. 3º. Ao MEC compete realizar a pré-seleção dos candidatos, considerando o desempenho no Enem e o perfil socioeconômico declarado quando da realização do exame, “ou outros critérios a serem definidos pelo Ministério da Educação” (BRASIL, 2005). Às IES cabe a realização de uma última etapa de seleção, considerando critérios próprios (BRASIL, 2005).

O art. 4º garante que todos os estudantes das IES, bolsistas ou não, sejam regidos pelas mesmas normas e regulamentos internos (BRASIL, 2005), mecanismo que visa a garantir o tratamento equânime para todos.

A partir do art. 5º, o foco é deslocado para as IES. Há uma distinção bastante considerável de tratamento conferido àquelas beneficentes sem fins lucrativos e às demais, como pode-se perceber comparando o enunciado dos capita dos arts. 5º e 10:

Art. 5º. A instituição privada de ensino superior, com fins lucrativos ou sem fins lucrativos não beneficente, poderá aderir ao ProUni mediante assinatura de termo de adesão, cumprindo-lhe oferecer, no mínimo, 1 (uma) bolsa integral para o equivalente a 10,7 (dez inteiros e sete décimos) estudantes regularmente pagantes e devidamente matriculados ao final do correspondente período letivo anterior, conforme regulamento a ser estabelecido pelo Ministério da Educação, excluído o número correspondente a bolsas integrais concedidas pelo ProUni ou pela própria instituição, em cursos efetivamente nela instalados.

[...]

Art. 10. A instituição de ensino superior, ainda que atue no ensino básico ou em área distinta da educação, somente poderá ser considerada entidade beneficente de assistência social se oferecer, no mínimo, 1 (uma) bolsa de estudo integral para estudante de curso de graduação ou seqüencial de formação específica, sem diploma de curso superior, enquadrado no § 1º do art. 1º desta Lei, para cada 9 (nove) estudantes pagantes de cursos de graduação ou seqüencial de formação específica regulares da instituição, matriculados em cursos efetivamente instalados, e atender às demais exigências legais. (BRASIL, 2005, grifos nossos)

É digno de nota o fato de que o art. 10 atrela o reconhecimento da condição de entidade beneficente de assistência social a uma proporção menor de alunos pagantes por bolsas integrais na comparação com as demais IES. A proporção de 1:9 garante um número maior de bolsas do que a proporção de 1:10,7.

Outro aspecto que merece relevo é a possibilidade concedida às IES com fins lucrativos ou sem fins lucrativos não beneficentes, nos termos do parágrafo 4º do art. 5º, de adotar outros critérios para distribuição de bolsas em função da receita anual:

Art. 5º

[...]

§ 4º A instituição privada de ensino superior com fins lucrativos ou sem fins lucrativos não beneficente poderá, alternativamente, em substituição ao requisito previsto no caput deste artigo, oferecer 1 (uma) bolsa integral para cada 22 (vinte e dois) estudantes regularmente pagantes e devidamente matriculados em cursos efetivamente nela instalados, conforme regulamento a ser estabelecido pelo Ministério da Educação, desde que ofereça, adicionalmente, quantidade de bolsas parciais de 50% (cinqüenta por cento) ou de 25% (vinte e cinco por cento) na proporção necessária para que a soma dos benefícios concedidos na forma desta Lei atinja o equivalente a 8,5% (oito inteiros e cinco décimos por cento) da receita anual dos períodos letivos que já têm bolsistas do ProUni, efetivamente recebida nos termos da Lei no 9.870, de 23 de novembro de 1999, em cursos de graduação ou seqüencial de formação específica. (BRASIL, 2005)

Portanto, guardando coerência com a ementa, o conteúdo da lei impõe critérios bastante restritivos em relação às instituições beneficentes de assistência social se comparados com uma grande elasticidade no trato das demais. Essa permissividade concedida às IES com fins lucrativos e sem fins lucrativos não beneficentes pode talvez ser explicada como sendo um mecanismo de atração para o Programa, já que estas instituições não têm a obrigação de aderir. Além disso, convém notar que a contrapartida a ser dada pelas IES, considerando-se o teor do § 4º do art. 5º, é implementada paulatinamente, abrangendo apenas os períodos letivos com matriculados pelo Programa. Outro mecanismo estabelecido pela lei encontra-se no art. 14, que prevê prioridade para essas instituições quando da distribuição dos recursos do Fies (BRASIL, 2005).

Já o art. 6º define o que as IES devem fazer quando da evasão de bolsistas: se a evasão for discrepante em relação ao conjunto total de matriculados, a IES deverá oferecer bolsas suficientes para restituir a proporção (BRASIL, 2005).

Apesar de reconhecer o fato de que a evasão é uma realidade, o texto que institui o programa não toma essa questão como um problema. O tratamento é o de uma fatalidade com a qual se deve conviver. Não há - como de resto não há no trato da educação superior - a preocupação com o estabelecimento de mecanismos que previnam a evasão e tampouco ações que possam reverter o quadro. Basta que a proporção de bolsas por matrículas pagas seja restabelecida. Contudo, a publicação de duas Portarias do MEC procura adotar mecanismos para garantir a permanência dos estudantes. A Portaria n. 596, de 23 de fevereiro de 2006, alterada pela Portaria n. 1.515, de 31 de agosto de 2006, institui a concessão de bolsa-permanência no valor de R$ 300,00 aos bolsistas integrais cujos cursos tenham no mínimo seis semestres e seis horas de atividades diárias.

Um elemento que merece ser destacado é o caráter de política de ação afirmativa contido no texto e que não deixa de ser um critério importante a ser considerado adiante, quando da realização da avaliação do ProUni. Além dos elementos enunciados nos arts. 1º e 2º, que tomam como requisitos, para a concessão das bolsas, a renda per capita familiar e o fato de o candidato ter cursado o ensino médio em escola da rede pública ou da rede privada, na condição de bolsista integral, o inciso II e o parágrafo 1º do art. 7º impõem a consideração do perfil étnico-racial como critério, ao exigir que as bolsas devam ser distribuídas considerando, no mínimo, o percentual de pretos, pardos e indígenas na unidade da federação (UF) em que se localiza a instituição, segundo aferido por levantamento censitário do IBGE (BRASIL, 2005).

Caso as vagas não sejam plenamente preenchidas, devem ser adotados os critérios dos arts. 1º e 2º. Além disso, o art. 7º prevê que cursos com desempenho considerado insatisfatório por três avaliações consecutivas pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) terão suas bolsas redistribuídas nos processos seletivos subsequentes pelos demais cursos considerados satisfatórios na própria IES, sendo facultada aos estudantes, com prioridade aos bolsistas ProUni, a transferência para curso igual ou equivalente de outra IES (BRASIL, 2005). A Lei n. 11.509/2007 mudou o critério contido neste artigo, alterando o parágrafo 4º, sendo que a partir de então os cursos com desempenho insatisfatório em duas avaliações consecutivas têm a concessão de novas bolsas suspensa e é prevista a redistribuição daquelas já implementadas.

A lei também define, em seu art. 8º, que as instituições participantes do ProUni ficam isentas do pagamento de Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, Contribuição Social para Financiamento da Seguridade Social e Contribuição para o Programa de Integração Social. No caso do IRPJ e da CSLL, o cálculo incide sobre o lucro e, nos demais casos, sobre a receita auferida (BRASIL, 2005). A Lei n. 12.431/2011 incluiu a determinação de que a isenção “será calculada sobre a proporção da ocupação efetiva das bolsas devidas” (BRASIL, 2011).

A Lei n. 11.096/2005 prevê também mecanismos administrativos de punição para as IES que não cumprirem as obrigações decorrentes da adesão ao Programa (art. 9º), bem como a adequação do número de bolsas em função do faturamento das IES, a ser acompanhado por grupo interministerial (art. 16). Outro aspecto importante é o disciplinado no art. 12, que atende a uma demanda suscitada pelas IES durante o processo de tramitação: os trabalhadores e dependentes de trabalhadores das instituições, bolsistas em virtude de convenções coletivas de trabalho, podem ser considerados beneficiários do ProUni desde que atendidos os critérios do art. 1º da lei, até o limite de 10% das bolsas concedidas (BRASIL, 2005).

O PROUNI EM TRÊS CURSOS: AVALIANDO O PROGRAMA

Consideradas as condicionalidades definidas na Lei n. 11.096/2005, apresentadas na seção anterior, além de metas que neste trabalho foram tomadas como parâmetros para a avaliação do impacto do ProUni, foram utilizados os seguintes critérios para a avaliação:

  • inserção de um mínimo de 30% de jovens entre 18 e 24 anos de idade - meta estabelecida pelo PNE/2001, utilizada como argumento para justificar a implementação do programa;

  • tipo de escola em que o bolsista estudou durante o ensino médio, pois uma das condicionalidades do programa é a de que o candidato tenha cursado integralmente o ensino médio em estabelecimentos públicos ou em estabelecimentos privados na condição de bolsista;

  • faixas de renda familiar, já que a condição para pleitear a bolsa integral é a comprovação de renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo;

  • perfil étnico-racial dos bolsistas, já que a proporção de pretos, pardos e indígenas na UF em que se localiza a IES, conforme aferida pelo IBGE no último levantamento censitário, deve ser considerada na distribuição das bolsas.

Os dados da Tabela 1 mostram que há uma distribuição desigual das matrículas, por faixas etárias dos bolsistas, segundo o curso e também a edição do Enade. Primeiramente chamam atenção os dados sobre os bolsistas do curso de Direito, que, nos dois levantamentos realizados, apresentaram forte inclusão de jovens na faixa etária de referência (18 a 24 anos), sobretudo no levantamento de 2009, em que 63,3% declararam estar neste grupo de idade. No curso de Pedagogia, no primeiro levantamento, houve também uma expressiva concentração nessa faixa, representando quase metade dos bolsistas (49,9%), enquanto no de 2011 ocorreu um arrefecimento e o valor de referência sequer foi atingido. No entanto, neste caso, há que se considerar que o ProUni foi também concebido como política de formação docente e que, portanto, professores da rede pública de educação básica, não portadores de diploma de licenciatura, tinham prioridade no acesso às bolsas, o que pode explicar a grande concentração na faixa entre 31 e 40 anos no levantamento de 2011 (28,2%).

TABELA 1 Distribuição de frequência, por faixa etária, das matrículas dos bolsistas do ProUni integral, concluintes dos cursos de Pedagogia, Direito e Medicina, respondentes do Enade, segundo a edição do exame 

FAIXA ETÁRIA VALOR DE REFERÊNCIA PNE/2001 PEDAGOGIA DIREITO MEDICINA
2008 2011 2009 2012 2010 2013
18-24 anos 30% 49,97% 29,39% 63,31% 36,15% 23,51% 34,25%
25-30 anos 70% 22,91% 28,99% 19,87% 35,52% 66,06% 54,73%
31-40 anos 17,75% 28,21% 12,02% 22,07% 8,88% 9,81%
41-50 anos 7,39% 11,16% 3,61% 5,30% 1,55% 1,20%
51-60 anos 1,80% 2,14% 1,01% 0,93% 0,00% 0,00%
> 61 anos 0,19% 0,11% 0,18% 0,03% 0,00% 0,00%

Fonte: Elaboração própria, com base nos microdados do Enade (BRASIL, 2008-2013).

Com relação aos concluintes do curso de Medicina, chama atenção o fato de que estes se concentram, sobretudo, na faixa entre 25 e 30 anos de idade, sendo que no primeiro levantamento sequer foi atingido o valor de referência de 30% na faixa de 18 a 24 anos. Nesse caso, devem ser consideradas algumas singularidades da oferta e da procura pelo curso, que auxiliem a formular hipóteses para explicar o quadro.

Entre os cursos analisados, Medicina é o que possui a menor oferta de vagas e a maior concentração em IES públicas.1 Trata-se de um curso muito concorrido e o programa não eliminou essa característica, já que, além do cumprimento das condições impostas pelo programa, o candidato também deve ser aprovado no processo seletivo da própria IES. É também o curso com a maior duração, cerca de seis anos. Em suma, trata-se de um curso em que é bastante provável não ser aprovado na primeira seleção e que, dada sua duração, seus concluintes também são mais velhos, o que torna mais difícil a inclusão de jovens dentro da faixa de referência.

Outro critério importante a ser levado em conta na avaliação do ProUni é sua capacidade de inserir estudantes egressos da escola pública. A observação dos dados apresentados na Tabela 2 atesta que, grosso modo, esse objetivo também foi atingido. Contudo, mais uma vez, ficam expostas as grandes desigualdades entre os cursos. Embora Pedagogia seja o curso que apresente a possibilidade de o professor da rede pública de educação básica vir a se candidatar a uma bolsa independentemente de ser ou não egresso da escola pública, é nele que encontramos o maior percentual de bolsistas dela egressos (94,1%, em 2008, e 95,4%, em 2011). Entre os concluintes de Direito, o percentual de egressos da escola pública é de pouco mais de 89% em cada levantamento.

TABELA 2 Distribuição de frequência, por tipo de escola em que cursou o ensino médio, das matrículas dos bolsistas do ProUni integral, concluintes dos cursos de Pedagogia, Direito e Medicina, respondentes do Enade, segundo a edição do exame 

TIPO DE ESCOLA PEDAGOGIA DIREITO MEDICINA
2008 2011 2009 2012 2010 2013
Todo em escola pública 94,10% 95,45% 89,34% 89,13% 65,00% 70,40%
Todo em escola privada (particular) 2,48% 1,60% 5,15% 5,56% 21,54% 18,42%
A maior parte em escola pública 1,99% 1,48% 2,96% 2,86% 7,69% 5,85%
A maior parte em escola privada (particular) 0,37% 0,31% 1,13% 1,14% 3,85% 5,16%
Outros 1,05% 1,17% 1,42% 1,29% 1,92% 0,17%

Fonte: Elaboração própria, com base nos microdados do Enade (BRASIL, 2008-2013).

Por outro lado, é entre os concluintes de Medicina que encontramos o menor percentual de egressos da escola pública (65%, em 2010, e 70,4%, em 2013) e, em contrapartida, o maior percentual de egressos da rede privada (21,5% e 18,4%, respectivamente). Considerando-se que a Lei n. 11.096/2005 reconhece o direito de estudantes oriundos da rede privada pleitearem bolsas, desde que tenham cursado o ensino médio na condição de bolsistas e atendendo aos demais critérios do programa, é plausível supor que, no caso de Medicina, mais do que nos outros cursos analisados, reside uma resistência que impede ou limita a própria aspiração ao acesso. Em linhas gerais, existem elementos extraeconômicos que determinam a pertença a uma classe social e que são também determinantes da trajetória escolar e acadêmica do indivíduo. Ou seja, a experiência do indivíduo, que não é definida apenas pelo acesso a bens de consumo, como sublinha Jessé Souza (2012), mas sim pela incorporação efetiva de um habitus por meio do exemplo, acaba por proporcionar e limitar a ele as opções e as escolhas. Assim, o próprio fato de em algum momento da educação básica um estudante ter pleiteado e conseguido uma bolsa de estudos em escola privada pode ser tomado como um indicador de que havia, da parte da família, a compreensão da escolarização como elemento de diferenciação social que se manifesta também na escolha do curso superior.

A Tabela 3 apresenta a distribuição das matrículas dos bolsistas do ProUni, segundo as faixas de renda familiar utilizadas como critério para concessão das bolsas integrais. As categorias da variável “faixa de renda familiar” passaram por mudanças entre o levantamento de 2008 e 2009. As cinco categorias utilizadas no questionário de 2008 foram desdobradas em oito a partir de 2009. Em face disso, a fim de permitir a comparação precisa entre os levantamentos, os dados foram aglutinados considerando as categorias do levantamento de 2008. Já as categorias “Acima de 10 até 30 s.m.” e “Acima de 30 s.m.” foram aglutinadas na categoria “Acima de 10 s.m.” em todos os levantamentos.

TABELA 3 Distribuição de frequência, por faixa de renda familiar, das matrículas dos bolsistas do ProUni integral, concluintes dos cursos de Pedagogia, Medicina e Direito, respondentes do Enade, segundo a edição do exame 

RENDA FAMILIAR PEDAGOGIA DIREITO MEDICINA
2008 2011 2009 2012 2010 2013
Mais de uma marcação 0,12% 0,03% 0,92% 0,06% 0,00% 0%
Nenhuma. 0 0,31% 3,20% 2,09% 13,08% 0%
Até 1,5 salário mínimo 0 0,00% 14,95% 20,50% 14,23% 18,93%
Acima de 1,5 atté 3 salários mínimos 94,10% 26,27% 40,89% 38,43% 32,69% 41,65%
Acima de 3 até 4,5 salários mínimos 0 43,14% 22,95% 22,16% 23,46% 25,82%
Acima de 4,5 até 6 salários mínimos 0 20,47% 8,56% 10,52% 11,15% 9,29%
Acima de 6 até 10 salários mínimos 2,48% 6,47% 6,90% 5,58% 4,23% 3,96%
Acima de 10 até 30 salários mínimos 2,36% 3,07% 1,30% 0,66% 0,77% 0,34%
Acima de 30 salários mínimos 0,93% 0,00% 0,33% 0,02% 0,38% 0,00%

Fonte: Elaboração própria, com base nos microdados do Enade (BRASIL, 2008-2013).

O dado que mais chama a atenção é que 94,1% dos concluintes de Pedagogia de 2008 declararam renda familiar de até três salários mínimos, fato que pouco tem a ver com os dados do levantamento seguinte, de 2011, em que apenas 26,3% declararam renda de até três salários mínimos, apontando uma possível melhora nos indicadores de renda, já que 70,1% declararam renda maior que 3 até 10 salários mínimos.2

A Tabela 4 apresenta dados da Tabela 3, considerando as categorias da variável “faixa de renda familiar” adotadas a partir de 2009. Chama a atenção a inexistência de concluintes de Pedagogia na faixa de até 1,5 salário mínimo. Uma explicação possível é a maior participação de professores da rede de educação básica que, sob efeito da implementação da Lei do Piso Salarial Profissional Nacional (Lei n. 11.738/2008), tiveram incremento salarial expressivo.

Já a faixa na qual se concentra a maior proporção das matrículas dos cursos de Direito e Medicina é a que está entre 1,5 e 3 salários mínimos: 40,9%, Direito 2009; 38,4%, Direito 2012; 32,7%, Medicina 2010; e 41,6%, Medicina 2013.

TABELA 4 Distribuição de frequência, por faixa de renda familiar, das matrículas dos bolsistas do ProUni integral, concluintes dos cursos de Pedagogia, Medicina e Direito, respondentes do Enade, segundo a edição do exame 

FAIXA DE RENDA FAMILIAR PEDAGOGIA DIREITO MEDICINA
2011 2009 2012 2010 2013
Mais de uma marcação/Sem marcação 0,6% 4,1% 2,1% 13,1% 0,0%
Até 1,5 s.m. 0,0% 15,0% 20,5% 14,2% 18,9%
Acima de 1,5 até 3 s.m. 26,3% 41,0% 38,4% 32,7% 41,7%
Acima de 3 até 4,5 s.m. 43,1% 23,1% 22,2% 23,5% 25,8%
Acima de 4,5 até 6 s.m. 20,5% 8,6% 10,5% 11,5% 9,3%
Acima de 6 até 10 s.m. 6,5% 6,9% 5,6% 4,2% 4,0%
Acima de 10 até 30 s.m. 3,1% 1,3% 0,7% 0,8% 0,3%
Total 100,0% 100,0% 100,0% 100,0% 100,0%

Fonte: Elaboração própria, com base nos microdados do Enade (BRASIL, 2009-2013).

Na sequência, observa-se também uma grande concentração de matrículas na faixa de renda familiar entre 3 e 4,5 salários mínimos, com destaque para o curso de Pedagogia no levantamento de 2011 (43,1%). Nos demais levantamentos, há pequena oscilação entre 22,2% (Direito 2012) e 25,8% (Medicina 2013). A absoluta maioria dos estudantes declarou renda familiar de até 4,5 salários mínimos, sendo que, entre os bolsistas de Medicina e Direito, esse percentual ultrapassa os 80%, o que confirma que o objetivo de inserir o jovem pobre no ensino superior foi atingido.

Por fim, no que se refere à condição potencial de política de ação afirmativa do ProUni, o § 1º do art. 7 da Lei n. 11.096/2005 estabelece que a distribuição das bolsas deve observar a proporção de negros e indígenas na unidade da federação em que se localiza a IES de acordo com o último levantamento censitário do IBGE. Embora não tenha sido realizado o recorte dos dados por UF - o que, portanto, pode ocultar distorções quanto à distribuição dos dados -, a observação da Tabela 5, que toma como referência os dados do Censo de 2000 do IBGE,3 permite afirmar que a destinação de bolsas a negros (pretos e pardos) atingiu a sua finalidade. Com exceção do levantamento de Medicina de 2013, o mesmo também pode ser dito sobre a inclusão de indígenas por meio da política.

TABELA 5 Distribuição de frequência, por cor/raça, das matrículas dos bolsistas do ProUni integral, concluintes dos cursos de Pedagogia, Direito e Medicina, respondentes do Enade, segundo a edição do exame 

COR/RAÇA VALORES DE REFERÊNCIA IBGE/2000 PEDAGOGIA DIREITO MEDICINA
2008 2011 2009 2012 2010 2013
Preta 6,21% 16,76% 13,33% 15,55% 13,27% 12,69% 6,37%
Parda 38,45% 30,23% 35,18% 28,66% 38,17% 32,69% 40,28%
Indígena 0,43% 1,49% 0,42% 1,39% 0,81% 1,15% 0,17%
Branca 53,74% 49,72% 50,48% 52,53% 47,12% 51,15% 52,50%
Amarela 0,45% 1,24% 0,53% 0,86% 0,55% 2,31% 0,52%

Fonte: Elaboração própria com base nos microdados do Enade (BRASIL, 2008-2013).

É possível concluir que, a partir dos critérios estabelecidos pelo próprio programa, ele vem atingido a finalidade para a qual foi criado: está inserindo jovens no ensino superior sobretudo na faixa entre 18 e 24 anos de idade, pobres e oriundos da escola pública e tem também contribuído para a inserção de negros e indígenas em proporções compatíveis com a distribuição dessas raças na população brasileira em geral.

Contudo, o tipo de escola em que o bolsista cursou o ensino médio indica haver diferenças entre os bolsistas. Na Tabela 2, percebe-se que o percentual daqueles que estudaram todo ele em escola privada, na condição de bolsista, é dez vezes maior entre os estudantes bolsistas de Medicina (18,4%, em 2013), na comparação com os alunos de Pedagogia (1,6%, em 2011). Os estudantes de Direito (5,6% em 2012), nesse aspecto, estão mais próximos dos de Pedagogia do que dos de Medicina.

AVALIAÇÃO DE IMPACTOS

Os dados permitem apontar para o fato de que as aspirações e os horizontes não são os mesmos para todos os bolsistas. Alguém que tenha cursado o ensino médio em escola privada (ou mesmo numa escola pública de elite, mas os levantamentos do Enade não trazem essa informação), mesmo que na condição de bolsista, tem mais possibilidade de ter incorporado os valores e as expressões que o aproximam de um habitus de classe média do que alguém que não tenha tido a mesma oportunidade. Esse processo de incorporação, que acaba por legitimar o acesso privilegiado, transformando-o em meritocracia, inclui a escolha de determinados cursos em detrimento de outros.

Em obra seminal, Bourdieu (2012) analisou o sistema educacional francês e concluiu que ele promovia sistematicamente a exclusão de estudantes dentro do próprio sistema. Ressalvado o fato de que, no caso em exame nesse trabalho, além das diferenças substanciais entre os perfis das instituições, há sobretudo uma brutal desigualdade de reconhecimento entre os cursos, é possível utilizar as contribuições do autor para esta análise. Isso significa dizer que os diplomas de Medicina, Direito e Pedagogia não possuem o mesmo valor (BOURDIEU, 2012).

Essa valoração desigual é resultado do exercício daquilo que Bourdieu (2007) chamou de poder simbólico, que opera silenciosamente, sendo um mecanismo de legitimação e naturalização da dominação. Trata-se de mecanismos que garantem uma inclusão altamente seletiva, sem permitir que estruturas mais ossificadas, constituídas por uma história marcada pelo trato diferencial daqueles portadores do título de bacharel, possam ser modificadas. Contudo, a implementação de uma política permite que tais estruturas sejam passíveis de serem contestadas, e é aqui que reside um aspecto potencial bastante interessante do ProUni.

Mello Neto (2015) faz alusão à ideia de que os bolsistas ProUni encontram-se em um mundo cindido. Tal assertiva abre interessantes oportunidades hermenêuticas quanto à relação desses sujeitos com a experiência da graduação e o retorno ao convívio familiar. Nesse sentido, a cisão refere-se ao fato de que a formação em nível superior provocou transformações profundas sobre a visão de mundo dos entrevistados, de tal forma que tornou difícil a retomada do convívio familiar. Por outro lado, essas transformações não significaram uma adesão inconteste aos valores e ao estilo de vida ostentado pelos pagantes. Pelo contrário, os participantes da pesquisa reafirmam uma recusa desse habitus.

Assim, é possível conjecturar que o ProUni encontra seu esgotamento na própria estrutura da educação superior brasileira. As persistentes desigualdades sociais têm nas IES um espaço de repetição que interfere sobre os processos que são de adaptação, não propriamente de escolha (ZAGO, 2006). Há um alcance limitado da possibilidade de ascensão econômica e social oportunizada pela posse do diploma (BOURDIEU, 2012; OLIVEIRA; ASSIS, 2013; RUDÁ, 2016), apesar da crença dos bolsistas que buscam a universidade com esta motivação (MELLO NETO, 2015). O caráter profissionalizante das carreiras mais prestigiosas - que são também as mais burocratizadas e as que buscam a manutenção de privilégios por meio dos chamados órgãos de classe (RUDÁ, 2016), que juntamente ao reducionismo da formação acadêmica ao ensino acaba legitimando a expansão da oferta por meio de modelos que não o universitário - contribuiu com a manutenção da desigualdade. Por fim, o desprestígio que acomete os cursos de licenciatura acaba por influir sobre o perfil do estudante que busca essa formação.

Ao escolher como público-alvo o estudante pobre oriundo sobretudo da escola pública, considerando como primeiro critério uma determinada faixa de renda familiar, o ProUni desconsiderou todas essas questões. O planejamento das políticas educacionais e sociais não apenas deste programa em particular, mas de forma geral, ao reduzir a desigualdade a questões econômicas, não somente invisibiliza os elementos extraeconômicos, mas também impede que se realize um efetivo enfrentamento da desigualdade.

Pensando nos termos da política educacional, a análise realizada tendo como escopo apenas o critério de renda deixa de considerar a necessidade de questionamento das diferenças entre os beneficiados pelo programa entre si e também de avaliação das razões que levam alguns a almejarem a educação superior e outros não. Se admitida a categorização de classes sociais apresentada por Jessé Souza (2012; 2016), os jovens expulsos do sistema educacional, que somam até metade da população entre 15 e 17 anos e que não acessam ou concluem o ensino médio (BRANDÃO, 2011), embora possam até ser enquadrados na faixa de renda potencialmente beneficiada pelo ProUni, encontram-se de tal forma alijados de tudo, pertencentes que são à chamada ralé estrutural (SOUZA, 2016), que a conclusão da escolarização obrigatória pode ser vista como um ponto fora da curva. Mas há aqueles que conseguem converter a indignidade em dignidade, por meio de um habitus distintivo. É, portanto, entre essa nova classe trabalhadora (SOUZA, 2012) que se imagina encontrar a maioria dos beneficiados pelo programa. Todavia esse acesso não acontece de forma naturalizada, como o é para os jovens oriundos da classe média que não precisam da política pública para cursar a educação superior. Estudos como os de Zago (2006) e Palazzo (2015) convergem na constatação de que a origem de classe é determinante das aspirações de carreira dos jovens e que, portanto, “Estudantes de origem popular dificilmente se aventuram fora do seu meio de origem” (ZAGO, 2006, p. 232), o que acaba por repercutir também sobre os cursos escolhidos.

Sobre esse aspecto, há que se reconhecer que o sistema escolar que antecede o ingresso na educação superior, bem como as desigualdades sociais e econômicas, age no sentido de tolher a liberdade dos indivíduos. Sendo assim, não existe a efetiva escolha de curso, mas sim uma adaptação dos estudantes aos cursos que eles avaliam como sendo compatíveis com suas demandas e horizontes (ZAGO, 2006).

Há um outro aspecto que deve ser considerado: a inserção proporcional de bolsistas oriundos da escola privada é maior em cursos de maior prestígio social e menor massificação. Ou seja, um elemento que deve ser atentado, que foge ao planejamento da política, é a possibilidade de se almejar uma formação específica em nível superior. As determinações de classe social acabam por limitar ou incentivar determinados percursos acadêmicos.

Da mesma forma que os bolsistas não são todos iguais entre si, os estudantes dos diferentes cursos aqui analisados também não o são, assim como não são iguais todas as escolas de ensino médio públicas das quais a maioria deles é oriunda. O que a diversidade revelada pelos dados permite sugerir é que, apesar de utilizar critérios bastante precisos para a concessão das bolsas, o ProUni tem um alcance limitado no que se refere à capacidade de interferir sobre os projetos dos sujeitos beneficiados. Tais projetos são influenciados e determinados pela inserção na classe social que conforma o conjunto capacitário de alternativas, ou seja, aquilo que a pessoa é livre para fazer (SEN, 2000).

A respeito desse aspecto, Janete Palazzo (2015) conclui que pesa sobre a escolha por um curso o seu grau de seletividade: quanto maior o prestígio social, quanto maior a expectativa de retorno financeiro, maior é a concentração de candidatos e, portanto, de estudantes com maior nível socioeconômico. Em suma, a seletividade acadêmica encontra-se diretamente relacionada à seletividade social.

A questão que emerge, portanto, diz respeito à natureza das escolhas individuais e em que medida os bolsistas podem ser efetivamente olhados de uma forma homogeneizadora. Os dados aqui apresentados permitem concluir que esses beneficiados não são todos iguais, particularmente no que se refere à inserção de classe social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo visou a analisar os perfis dos estudantes bolsistas do ProUni e verificar se, e em quais aspectos, eles diferem quando consideramos cursos distintos. Para tanto, foram tomados os dados do Enade para os alunos dos cursos de Pedagogia, Medicina e Direito.

Vimos, antes, todavia, que o programa em avaliação definiu seu escopo na ampliação do acesso à educação superior para a população mais pobre do país, priorizando também a população negra e os docentes de educação básica.

Os dados mostraram que o programa conseguiu colaborar com a ampliação do acesso e a inclusão da população menos favorecida, mas não consegue ultrapassar as barreiras edificadas pela desigualdade socioeconômica, uma vez que o perfil dos estudantes bolsistas dos cursos (Medicina, Pedagogia e Direito) dialoga com os perfis mais gerais do alunado do mesmo curso, reforçando a ideia de que se trata de cursos com status e representação social muito distintos.

Portanto, a análise aqui desenvolvida permite concluir que os alunos bolsistas são diferentes, mas, mais que isso, estão inseridos em uma estrutura fortemente desigual no que tange à sua classe social, bem como no tocante às respectivas decorrências na trajetória escolar e de formação.

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1Concluintes de Pedagogia em 2008 somavam 28.985 em IES privadas (66,3%) e 14.722 em IES públicas (33,7%); em 2011 eram 81.968 em IES privadas (75,4%) e 26.802 em IES públicas (24,60%). Os concluintes de Direito eram, em 2009, 80.360 em IES privadas (88,9%) e 10.010 em IES públicas (11,1%); no levantamento de 2012 eram 109.923 em IES privadas (89,20%) e 13.288 (10,8%) em IES públicas. Por fim, os concluintes de Medicina, no levantamento de 2010, eram 6.357 nas IES privadas (55%) e 5.191 em IES públicas (45%); no levantamento de 2013 eram 10.371 em IES privadas (64%) e 5.893 em IES públicas (36%) (cf. microdados do Enade 2008-2013).

2As contribuições da economia permitem formular hipóteses explicativas que exigem sua confirmação por meio de novas pesquisas. Os dados apresentados por Moura e Barros (2013) dão conta de que a massa dos rendimentos do trabalho (MRT) cresceu 62,8% entre 2003 e 2012, numa média de 5,56% ao ano. Esse indicador refere-se exclusivamente ao rendimento do trabalho, não considerando os rendimentos provenientes de programas de proteção social (como os decorrentes da Loas ou do Programa Bolsa Família) nem os rendimentos previdenciários. Aliás, esses outros indicadores também passaram por expressivo incremento no período.

3Como a distribuição das bolsas ocorre no momento da matrícula, foi possível limitar a análise tendo como referência os valores do Censo de 2000, já que todos os casos aqui analisados são de concluintes que ingressaram antes de 2010, quando houve o último Censo.

* Os autores agradecem as contribuições dos pareceristas e dos revisores de texto e estatístico.

Recebido: 27 de Junho de 2018; Aceito: 23 de Novembro de 2018

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