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Estudos em Avaliação Educacional

versão impressa ISSN 0103-6831versão On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.30 no.74 São Paulo maio/ago 2019  Epub 22-Out-2019

https://doi.org/10.18222/eae.v30i74.5829 

ARTIGOS

AUTOAVALIAÇÃO INSTITUCIONAL: OUTROS SENTIDOS DE AVALIAÇÃO (IM)POSSÍVEIS?

AUTOEVALUACIÓN INSTITUCIONAL: ¿OTROS SENTIDOS DE EVALUACIÓN (IM)POSIBLES?

INSTITUTIONAL SELF-ASSESSMENT: OTHER (IM)POSSIBLE MEANINGS OF ASSESSMENT?

RITA DE CÁSSIA PRAZERES FRANGELLAI 
http://orcid.org/0000-0001-6392-4591

MARIA CRISTINA REZENDE DE CAMPOSII 
http://orcid.org/0000-0001-9258-4127

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro-RJ, Brasil; rcfrangella@gmail.com

IISecretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia (Semect)/Fundação Municipal de Educação de Niterói (FME), Niterói-RJ, Brasil; cristinarcampos@gmail.com


RESUMO

Neste artigo, analisamos a autoavaliação institucional que integra o Sistema de Avaliação da Educação de Niterói (Saen), estado do Rio de Janeiro. O objetivo é discutir seu processo de constituição num contexto de centralidade das políticas de avaliação, defendendo essa como possibilidade de produção de políticas pelas escolas, como produção de sentidos de avaliação para além da lógica de accountability, colocando outros sentidos de qualidade em disputa. A partir de aportes pós-estruturais, assumimos o entendimento da política como luta pela significação, que se dá entre tensões, negociações, traduções. Concluímos argumentando que a experiência posta em análise nos permite problematizar de forma propositiva as políticas de avaliação centralizadas e centralizadoras que têm ganhado destaque no cenário educacional.

PALAVRAS-CHAVE: AUTOAVALIAÇÃO; AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL; AUTOAVALIAÇÃO INSTITUCIONAL; QUALIDADE DA EDUCAÇÃO.

RESUMEN

En este artículo analizamos la autoevaluación institucional que integra el Sistema de Evaluação da Educação de Niterói (Saen), estado de Rio de Janeiro. El objetivo es discutir su proceso de constitución en un contexto de centralidad de las políticas de evaluación, defendiendo a ésta como una posibilidad de producción de políticas por las escuelas, como producción de sentidos de evaluación más allá de la lógica de accountability, colocando otros sentidos de calidad en disputa. A partir de aportes post-estructurales, asumimos el entendimiento de la política como lucha por la significación, que se da entre tensiones, negociaciones, traducciones. Concluimos argumentando que la experiencia en análisis nos permite problematizar de forma propositiva las políticas de evaluación centralizadas y centralizadoras que han ganado destaque en el escenario educacional.

PALABRAS CLAVE: AUTOEVALUACIÓN; EVALUACIÓN INSTITUCIONAL; AUTOEVALUACIÓN INSTITUCIONAL; CALIDAD DE LA EDUCACIÓN.

ABSTRACT

In this article, we analyze the institutional self-assessment that integrates the Education Evaluation System of Niterói (SAEN) in the state of Rio de Janeiro. The aim is to discuss its constitution process in a context of centrality of evaluation policies, supporting it as a possibility for the schools to produce policies as production of meanings of evaluation beyond the logic of accountability, putting other meanings of quality in dispute. From post-structural contributions, we assume the understanding of the policies as the struggle for meaning, which occurs between tensions, negotiations, and translations. We conclude by arguing that the analytical experience allows us to propose centered and centralized evaluation policies that have gained prominence in the educational field.

KEYWORDS: SELF-ASSESSMENT; INSTITUTIONAL ASSESSMENT; INSTITUTIONAL SELF-ASSESSMENT; QUALITY OF EDUCATION.

INTRODUÇÃO

As discussões que atualmente mobilizam debates no campo educacional gravitam em torno de reformas e propostas que têm como meta o aumento da qualidade na educação, ideia que se apresenta como justificativa precípua das ações, seja na educação básica, na formação de professores, na gestão dos sistemas de ensino.

Mas que qualidade?

Compartilhamos da compreensão de Lopes (2015) e Macedo (2012) ao afirmarem a qualidade como significante vazio, o que implica que sua significação se dá como prática articulatória que alinha demandas diferenciais, mas que expulsa as diferenças, buscando alinhar o que há de semelhante entre elas, num fechamento contingente. O significante vazio implica paradoxalmente a perda de uma referência direta de sentido e um superpreenchimento, a partir de articulações político-sociais, que remetem a uma totalidade nunca homogênea. Laclau (2006, p. 24-25) explica:

Temos, então, que fazer o seguinte raciocínio: quanto mais estendida for a cadeia de equivalência, menos a demanda que assume o papel de representar a cadeia como um todo vai manter um vínculo estrito com o que a constituía originariamente como particularidade. Ou seja, para ter essa função de representação universal, ela vai ter que se despojar dos seus conteúdos precisos e concretos. Quer dizer, a demanda vai ter que se esvaziar de sua relação com significados específicos e vai se transformando em um significante puro, que é o que chamamos de significante vazio, um significante que perde sua referência direta a um determinado significado.

Assim, na leitura que fazemos, numa perspectiva discursiva, observamos a política como processo de significação e tentativas de signifixação (MACEDO, 2014), de hegemonização de sentidos para o que se entende por qualidade e, na articulação de diferentes demandas, torna-se perceptível como vai se produzindo um deslocamento no sentido de qualidade: trata-se de uma qualidade passível de ser aferida quantitativamente, verificada em testagens, com padrões de avaliação.

Nesse sentido, é significativo como as discussões contemporâneas sobre as políticas públicas para educação têm como questão importante as avaliações que vão alcançando ao mesmo tempo o caráter de índice de qualidade, como também compondo a justificativa para as ações impetradas - há que se seguir tal caminho para se alcançar determinado índice já estabelecido. Assim, as avaliações ganham centralidade como indicativo principal da qualidade.

Contudo, lidas dessa forma, as avaliações limitam-se a seu entendimento a partir de uma lógica de accountability, que constrange e eclipsa diferentes sentidos para si, subsumindo outros critérios que figurariam como índices que performam a avaliação para além da lógica de monitoramento de resultados quantificáveis. Nessa perspectiva, as avaliações figuram como estratégias totalizadoras e totalizantes, que constrangem as produções cotidianas de escolas e professores que, ante a eminente responsabilização pelo possível fracasso, identificam os padrões de avaliação como padrões de qualidade. Macedo (2014, p. 1551), analisando tal movimento, afirma:

A insegurança que paralisa o professor não é dessa natureza, mas aquela que as hegemonias criam para tentar conter o imponderável. Refiro-me aqui à produção da incompetência que instala no professor o medo do fracasso para o qual a cultura da avaliação se apresenta como porto seguro.

Sendo assim, objetivamos, com o estudo que apresentamos, estranhar os sentidos de avaliação hegemônicos, afastando-nos da lógica de accountability em favor de pensar a avaliação como espaço de negociação político-social, de discutir a escola como espaço de contestação, mas não somente no sentido de reação às políticas, e sim como local de disputa, negociação de sentidos e poder. A escola, contexto da prática, dessa forma, produz política e não somente a implementa. E esse movimento de disputas é constituinte desse contexto da prática nas ações de produção das políticas.

Assim, pensamos: é possível as escolas construírem políticas de avaliação? A partir de tal questionamento, analisamos a criação do Sistema de Avaliação da Educação em Niterói (Saen), estado do Rio de Janeiro (RJ), dedicando-nos a concentrar nossos esforços de análise em discutir a avaliação institucional na rede municipal, observando as tensões e negociações que os construíram e dando destaque a uma das dimensões desse sistema - a da Gestão Escolar -, instituída em 2016, que busca outros sentidos para avaliação a partir de uma perspectiva participativa e toma como problemática a preocupação com a articulação das demandas locais das escolas com proposições que são postas para a rede, ou seja, dá-se na problematização de uma visão universalista que, em meio a padrões, exerce um controle que expurga do processo as possibilidades de diferimento, de manter o fluxo da significação em seus contingentes momentos de fechamento, mas que, sendo provisórios, não advogam para si a qualidade de resposta única e definitiva.

Para tanto, justificamos nossa intenção a partir de um mesmo conjunto de dizeres que vem sendo indicado como subsídio para o desenvolvimento da perspectiva de accountability que criticamos. O Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2014) em vigor, ao tratar, no art. 11, sobre o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), afirma que, em regime de cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, produzirá indicadores de rendimento escolar, de qualidade e para avaliação institucional com base no perfil do alunado, no corpo de profissionais da educação, nas condições de infraestrutura das escolas, nos recursos pedagógicos disponíveis, nas características da gestão, entre outras dimensões.

Ainda que o PNE delineie o sistema nacional de avaliação, os sentidos de avaliação que temos observado como hegemônicos não são fruto desse por si só, mas disputa de sentidos que articulam diferentes dimensões. O mesmo PNE, em seu art. 2o, estabelece suas diretrizes:

Art. 2o São diretrizes do PNE:

  • I - erradicação do analfabetismo;

  • II - universalização do atendimento escolar;

  • III - superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação;

  • IV - melhoria da qualidade da educação;

  • V - formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade;

  • VI - promoção do princípio da gestão democrática da educação pública;

  • VII - promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do País;

  • VIII - estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do Produto Interno Bruto - PIB, que assegure atendimento às necessidades de expansão, com padrão de qualidade e equidade;

  • IX - valorização dos (as) profissionais da educação;

  • X - promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental. (BRASIL, 2014, grifos nossos)

Tomamos aqui como princípio que a melhoria da qualidade da educação se dá em meio a processos democráticos que permitem que muitas vozes sejam ouvidas, consideradas na luta por significação e com a consideração dos profissionais da educação como atores sociais partícipes dos processos decisórios, e não apenas como implementadores, valorizando-os em sua atuação cotidiana com e na diferença, não apagada ou temida, mas encarada como potência criadora.

Assim, voltamo-nos para discutir a constituição do sistema de avaliação no município de Niterói (RJ), focando nos processos de constituição da avaliação institucional. O Parecer n. 7/2010 do Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2010) regulamenta dois processos de avaliação institucional: um interno e outro externo. No caso dessa investigação, destacamos o processo de avaliação institucional interna, também denominado autoavaliação institucional. Freitas et al. (2014, p. 35) destacam que:

Pensar em avaliação institucional implica repensar o significado da participação dos diferentes atores na vida e no destino das escolas. Implica recuperar a dimensão coletiva do projeto político-pedagógico e, responsavelmente, refletir suas potencialidades, vulnerabilidades e repercussões em nível de sala de aula, junto aos estudantes.

A partir da ideia de participação, Sordi (2011, p. 20) diz:

A Avaliação Institucional Participativa (AIP) presta-se ao preenchimento deste hiato, funcionando como elo estratégico para recomposição da conectividade entre os dados sistêmicos oferecidos às redes de ensino e que informam algo sobre a qualidade do trabalho escolar desenvolvido e a avaliação dos alunos. Ao devolver a titularidade aos atores locais para pronunciar-se sobre a concepção de qualidade de escola pública que querem firmar, subsidia a produção de sentidos tanto no PPP como na sala de aula, espaço que incondicionalmente deve comprometer-se com a produção equânime da aprendizagem.

Ao propormos discussão acerca da avaliação institucional na educação básica, argumentando que essa se apresenta como possibilidade de produção de sistemas de avaliação pelas escolas, como processo de produção de sentidos para a avaliação para além da lógica de accountability, pomos outros sentidos de qualidade em disputa, evidenciando também a necessidade de investimento na discussão de tal perspectiva e dimensão de avaliação, que parece circunscrita à educação superior.

Num levantamento exploratório na plataforma SciELO, tendo como palavra-chave de busca “avaliação institucional”, nos anos de 2016-2017 foram publicados 33 artigos no Brasil, em sete revistas diferentes (de extratos superior de avaliação indicados no Qualis/Capes). Desses, um trata de educação profissional e apenas um texto focaliza a avaliação institucional no âmbito da educação básica (SORDI; BERTAGNA; SILVA, 2016), o que converge para o que Barretto e Novaes (2016, p. 316) afirmam em estudo retrospectivo sobre a avaliação educacional na educação básica:

A avaliação institucional na educação básica no Brasil é pouco expandida, se considerarmos a abrangência que possui na educação superior e a profusão de estudos e reflexões que tem gerado nesse nível. Dão prova disso a ausência de referências a essa prática na maioria dos sítios das secretarias de educação de estados e municípios, a escassa documentação a respeito no âmbito dos órgãos gestores da educação básica, bem como os raros estudos sobre experiências realizadas ou em curso encontrados nas principais revistas científicas.

As autoras revisam diferentes iniciativas de avaliação institucional e também fazem questionamentos acerca da complexidade do processo, que não se dá sem dificuldades. Também chamam a atenção que a avaliação institucional se desdobra de uma concepção que toma a escola como espaço político, inferência que é tida por nós como cara no argumento que construímos. Ainda chamam a atenção para as ricas experiências possíveis geradas pela avaliação institucional e, antevendo alternativas para as escolas e redes, contudo advertem:

À proporção que cresce a importância da avaliação padronizada dos resultados de aprendizagem dos alunos e que aumenta sua influência na regulação dos sistemas educacionais - ao ponto de ela vir a se tornar um dos eixos estruturantes das reformas do setor público incidindo sobre sua forma de gestão, currículos e políticas docentes -, a avaliação institucional, adotada concomitantemente pelos sistemas de ensino, tende a desempenhar um papel secundário nas políticas educativas. Talvez seja esse um dos fatores que contribui para explicar a sua baixa capacidade de institucionalização nas redes escolares. (BARRETTO; NOVAES, p. 338)

Em um contexto de luta por processos contrarregulatórios, somos desafiados a pensar em modelos alternativos que ensejam a participação dos sujeitos que atuam nas escolas na negociação entre as demandas globais e as demandas locais, capazes de acionar perspectivas potencialmente mais críticas no campo da resistência propositiva sobre as políticas de avaliação. A responsabilização participativa e os modelos de autoavaliação com indicadores próprios se apresentam como reformulações das políticas nacionais que implicam exercitar o coletivo da escola em processos de apropriação do cotidiano e promover o diálogo entre todos os atores escolares em processos deliberativos nos quais, simultaneamente, demanda-se do poder público o cumprimento de seus compromissos com a escola pública (SORDI; FREITAS, 2013).

É na negociação entre as demandas governamentais e as demandas locais, com a finalidade de localizar problemas e tomadas de decisão, que a avaliação institucional ocorre no contexto educacional. Propostas surgem marcadas por movimentos de cooperação, participação, qualidade negociada, responsabilização participativa, relação de interação com a diferença, tendo em vista a construção de perspectivas teórico-práticas que problematizem a melhoria da qualidade social da educação no espaço escolar.

O estranhamento causado pelas regulações prescritas em documentos legais, bem como a possibilidade de negociação do sentido de qualidade podem ser um importante passo para uma mudança qualitativa do contexto escolar, acarretando a necessidade de tradução, de desconstrução, de processos de significação e dizeres multíplices; movimento educacional que desestabiliza uma lógica universalista homogeneizadora, quando compreendido como produção híbrida, cuja diferença constitui-se como lugar liminar de negociação, abrindo espaço para a emergência de outros dizeres.

Defendemos que a avaliação institucional se constitui como espaço de tensão/negociação em torno dos significados para a avaliação. Para tanto, as discussões que estabelecemos no movimento de pesquisa são interfaceadas com os autores que se alinham numa perspectiva pós-estrutural e pós-colonial, na compreensão de uma prática política e cultural ambivalente e contingencial que não se articula sem conflitos e embates, mas que se constitui no diálogo, no enfrentamento da diferença (BHABHA, 1992; LACLAU, 2006; LOPES; MACEDO, 2011; MACEDO, 2014). Dessa forma, buscamos analisar a produção política que se constitui na própria prática, pois a prática é fruto de consensos, ainda que provisórios, nas articulações políticas, produção de sentidos contingenciais que são articulados nas fronteiras, “entre-lugares” da cultura, nos quais não têm raízes e, tampouco, fixidez. A partir de tais aportes, compreendemos a política, no caso, a política de avaliação do município focalizada, constituindo-se em meio a essas negociações como produção política discursiva, uma luta pela significação.

Tomamos de empréstimo uma fala de uma integrante da equipe da Assessoria de Avaliação Institucional (AAI) da Fundação Municipal de Educação (FME), dentre outras que trazemos nesse espaço de reflexão: “o sistema precisa ser da Rede e não da Sede1”. É essa tensão que mobiliza o processo político e o entendimento de que as relações se dão agonisticamente, ou seja, as relações de poder existem, mas ocorrem na dependência do “outro” que fala, pensa, contrapõe-se às ideias, e o projeto político só pode ser construído nessa relação (MOUFFE, 2003).

Neste trabalho, a partir de uma de análise qualitativa ancorada na perspectiva discursiva que discutimos, trazemos, como corpus empírico, material produzido com a comunidade educativa da Rede FME2 no âmbito da AAI: relatórios, registros de atividades propostas à rede, observações em reuniões e diálogos informais. Também trazemos, para compor nossa análise, documentos que constituíram a avaliação institucional na rede municipal de educação [Lei Municipal n. 3.067/2013 (NITERÓI, 2013a), Portaria n. 005/2015 do Saen (NITERÓI 2015), Documento Preliminar do Saen (NITERÓI, 2014), Plano Estratégico Niterói que Queremos (NQQ) (NITERÓI, 2013b), Relatório de Gestão 2017 (NITERÓI, 2017)].

Nesse acompanhamento investigativo, pretendemos nos apoiar em estratégias flexíveis de análise, como defendem Deleuze e Guattari (1995): uma perspectiva rizomática que se conecta a um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; um mapa aberto, conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente; um rizoma que procede por variação, expansão, conquista, captura, que não começa nem conclui, que se encontra sempre no meio, entre as coisas, interser; feito de platôs que se desenvolvem, evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em direção a uma finalidade exterior, um encontro entre devires, um entrecruzamento de linhas, de fluxos que se chocam e se penetram, mudando todos os índices de ambiente e as coordenadas de território: é a desterritorialização. Em diálogo com Carvalho (2009, p. 129), trata-se de:

[...] muito mais acompanhar um movimento do que representar um objeto ou “a” realidade, tendo como pressuposto básico deixar que as circunstâncias determinem a trajetória da pesquisa adotando uma perspectiva mais centrada no processo.

Assim, pomos em foco os movimentos instituintes de sentidos, da poética da participação e da sociabilidade, que articule vozes, assuntos, tornando possível a multiplicidade partilhada, tal como uma rede de conversações que cria novas formas de comunalidade expansiva, o que implica assumir uma atitude de mergulhar nesses universos de pequenas falas, imagens e ruídos que nos dizem do movimento de uma sociedade que, ao falar, constitui-se e se reinventa cotidianamente (FERRAÇO; CARVALHO, 2012).

OS MOVIMENTOS DE CONSTITUIÇÃO DO SAEN

A constituição do Saen surgiu no contexto de uma política de avaliação nacional cujos interesses municipais pautavam na construção de um modelo alternativo que considerasse diferentes dimensões a serem analisadas no processo educativo, no sentido de fomentar condições que propiciem a melhoria da qualidade do ensino, bem como seu processo de gestão. Assim, em 2013, o secretário de educação à época, na perspectiva de criação de uma política municipal pública de avaliação, propõe a inserção de um título sobre a avaliação institucional na Lei Ordinária Municipal n. 3.067/2013 - Plano Unificado de Cargos, Carreira e Vencimentos dos Servidores da FME - com vistas a implantar na rede um sistema de avaliação próprio. Em seu art. 22, estabelece a criação de:

[…] um sistema de avaliação institucional da rede municipal de educação, formulado e implementado com o protagonismo das unidades de educação e de seus profissionais, com a finalidade de melhor conhecer e aprimorar a aprendizagem dos alunos, a gestão das unidades de educação, a gestão realizada pelos órgãos centrais da administração da educação municipal e o desenvolvimento do trabalho pedagógico nas unidades de educação. (NITERÓI, 2013a)

O Poder Executivo Municipal instituiu o sistema de avaliação e estabeleceu o prazo de 90 dias para regulamentação dos procedimentos e critérios necessários à avaliação, conforme dita a lei citada. No mesmo ano, o prefeito do município lança um livro com propostas de governança intitulado Plano Estratégico 2013-2033 Niterói que Queremos (Plano NQQ) (NITERÓI, 2013b) com o objetivo de publicizar um planejamento para a cidade de Niterói com desenvolvimento de curto, médio e longo prazos, pensando nos próximos 20 anos e preparando-a para os desafios atuais e do futuro (NITERÓI, 2013b).

Os gestores municipais argumentam que o Plano NQQ (NITERÓI, 2013b) reflete um modelo de governança pública apoiado na participação da sociedade para a tomada de decisão das políticas públicas para a cidade por intermédio de projetos estruturadores, tendo em vista a democratização das instituições. Para a pasta da educação, foi determinado o projeto Niterói Escolarizada e Inovadora. Pactua-se com a sociedade niteroiense uma gestão pública de qualidade, cuja eficácia escolar é controlada por indicadores de resultados que envolvem insumos (recursos fiscais, físicos, individuais e pedagógicos) e resultados escolares (desempenho dos alunos) alinhados a uma avaliação meritocrática, ou seja, a uma política de prestação de contas e responsabilização associada à atribuição de recompensas. Esse modelo gerencial demonstra estratégias de avaliação e responsabilização - política de accountability - com o objetivo proclamado de melhoria da qualidade do ensino, na perspectiva de um regime democrático de administração pública.

Configura-se um modelo que estabelece princípios e processos da boa governança, que requer a implementação de práticas capazes de avaliar, direcionar e monitorar a atuação dos profissionais da educação. A competição e a premiação passam a regular o sistema educativo, sendo consideradas impulsionadoras legítimas do desejo de êxito e de qualidade, modelando a ação escolar em circuitos curtos que se retroalimentam a partir da publicação de cada resultado em uma cadeia produtiva que dá ordem e ritmo para a produção, diminuindo custos, sob a égide da eficiência e da eficácia (SORDI et al., 2016). No entanto, há que se destacar que o fato de premiar os profissionais da educação não garante a melhoria da esperada eficácia escolar e da qualidade da educação, uma lógica que imprime a ilusão do conforto e a fantasia do controle, uma fantasia de onipotência, que sugere que um dia todos serão reconhecidos pela sociedade, conforme destaca Macedo (2014, p. 1553).

Por um lado, a avaliação vai garantir boas práticas, promovendo o sucesso do aluno e possibilitando ao professor cumprir com as impossíveis metas sociais que dele [e da educação] se espera. Por outro, há a esperança de que a avaliação demonstre a qualidade do trabalho desenvolvido pelo professor, livrando-o da vergonha e redimindo-o da culpa.

As narrativas de uma boa governança nos instigam a perceber como os agentes políticos da Rede FME vão se constituindo, quando demandas específicas e distintas se tornam equivalentes na tentativa do controle imponderável e contingente do sucesso da educação. É certo que o imponderável seguirá resistindo a qualquer controle, mas isso não torna a tarefa política de desconstruir os discursos que buscam cerceá-lo menos relevante (MACEDO, 2014).

O proposto no art. 22 da Lei Ordinária Municipal n. 3.067/2013, imerso em preceitos de valorização dos profissionais da Rede FME, nos faz suspeitar de uma relação intrínseca entre o que se ganha e o que será cobrado dos profissionais e, ainda, a proposta de formulação e implementação do sistema de avaliação com o protagonismo dos profissionais das unidades de educação parece não corroborar o exposto no Plano NQQ (NITERÓI, 2013b) quando se refere a um sistema de meritocracia funcionando. Ou seja, a premiação estipulada como critério de monitoramento e avaliação, realizada por agentes externos, contradiz pressupostos de protagonismo, bem como contribui, enormemente, para a resistência dos profissionais da rede em participar ou, ainda, protagonizar ações dessa natureza. Ademais, se pensarmos em protagonismo de “uns”, esbarramos na tendência de estabelecimento de centralidade em determinados atores, ainda que esses sejam os das escolas, quando há também desejos e perspectivas políticas exercitadas por “outros”. A constituição de uma política pública, no caso a da avaliação de Niterói, movida por desejos e atribuição de sentidos diferenciados, convida-nos a pensar na necessidade de articulação dessas ações aos processos de significação entre a comunidade educativa da rede, entre os gestores municipais da educação, entre os poderes Executivo e Legislativo, um híbrido de desejos tensionados em relações de poder estabelecidas, um espaço relacional que solicita negociação. Há que se pensar em estratégias alternativas que possam considerar a contingência dos processos de significação e produção de sentidos. Os sentidos são deslizantes e provisórios, portanto não provêm de sistemas de representação fechados, mas do lugar fronteiriço e ambivalente da significação, cujas tentativas de fixação não são absolutas, mas movimentos performáticos da diferença, fluxos articulados que, ainda que hegemonizados, são parciais (FRANGELLA, 2016).

Primeiro movimento: estranhamento

A lógica de gestão por resultados e desempenho é colocada em prática na rede em 2013, por intermédio do Programa Avaliar para Conhecer, tendo como objetivo produzir informações sobre a situação da aprendizagem dos alunos do ensino fundamental, inaugurando o primeiro movimento de constituição de um sistema de avaliação institucional. As questões utilizadas na avaliação foram elaboradas pelos professores da rede que receberam formação específica para a produção de itens utilizados em avaliações externas - Teoria de Resposta ao Item -, cuja estrutura é formada por enunciado (instrução sobre o suporte + suporte + comando) e alternativas (gabarito e distratores; esses últimos devem ser respostas plausíveis, referindo-se a raciocínios possíveis). Vale dizer que, em 2013, por não haver na Sede da Semect/FME um setor específico de avaliação, o Programa Avaliar para Conhecer foi orientado (formações e composição de itens para o relatório) pela coordenação de 3º e 4º ciclos (6º ao 9º ano de escolaridade) que fazia parte da Diretoria de Ensino Fundamental, contando também com a colaboração de outras equipes da Sede, porém gerenciado por uma empresa externa.

Ao final do mesmo ano, com os resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), os gestores da educação organizaram as primeiras orientações do sistema de avaliação institucional, nomeado Saen, contendo quatro dimensões - Gestão das Aprendizagens, com a finalidade de promover um diagnóstico da aprendizagem dos alunos do ensino fundamental e conhecer o contexto em que estão inseridos; Gestão da Rede, com a finalidade de avaliar as ações desenvolvidas pelas equipes e gestores que atuam na Sede; Gestão Escolar, com a finalidade de acompanhar e avaliar as ações realizadas pelos gestores das unidades escolares; e Gestão do Trabalho Pedagógico, com a finalidade de acompanhar e avaliar o desenvolvimento do trabalho docente realizado nas unidades educacionais (NITERÓI, 2015).

A avaliação institucional aparece alinhada a indicadores de resultados que, ao serem apresentados aos diretores das escolas, causaram estranhamento e desapontamento em muitos. Não estavam explicitados quais e como os instrumentos de avaliação seriam utilizados e como eles colaborariam para a melhoria do processo pedagógico desenvolvido nas escolas. Ao circular na Rede FME, a suspeita de que esses indicadores poderiam servir para intervenções por parte da Sede e/ou de agentes externos no trabalho realizado nas escolas e, ainda, ações de ranqueamento e de meritocracia, provocou tensionamento nessa rede e movimentos de resistência assinalados pelo desinteresse em participar das ações propostas pela Sede.

Ao inaugurar o Saen com a avaliação do desempenho dos alunos e com a apresentação do Ideb-2013 do município de Niterói e suas metas projetadas para o alcance da qualidade da educação, o sistema ficou marcado na memória coletiva da Rede FME como a única dimensão, a da aprendizagem, a ser considerada na composição da avaliação institucional, desconsiderando as outras dimensões propostas no art. 22 da Lei Ordinária Municipal n. 3.067/2013.

Ao final de 2014, instituiu-se, no âmbito da Semect/FME, a AAI, composta por uma equipe de professores efetivos da FME para, em parceria com a comunidade escolar, “implementar” processualmente as dimensões do Saen. Em 2015, a equipe da AAI, convidada a dar continuidade ao movimento iniciado com os indicadores de resultados da aprendizagem dos alunos e, consequentemente, da ensinagem dos professores, como argumentam Guatarri e Rolnick (2013, p. 34), “numa encruzilhada de múltiplos componentes de subjetividade”. Alguns componentes inconscientes, outros do domínio do corpo, outros do domínido do grupo e outros do domínio da produção do poder. Ou seja, os integrantes da equipe de avaliação encontravam-se numa zona fronteiriça de interrogação, enfrentamento, negociação e contingência. Era preciso resistir à reprodução de um modelo hegemônico e meritocrático e trabalhar para o funcionamento desse processo ante suas possibilidades e dos agenciamentos que conseguissem contatar. Era preciso assumir a possibilidade de produzir um discurso político sobre a avaliação institucional, um espaço de ação política como estratégia discursiva de produção de alternativas. Compreender política como discurso possibilita o entendimento da negociação de sentidos em busca de hegemonia de forma provisória e contingencial, com ênfase nos processos micropolíticos e na ação dos profissionais, bem como a necessidade de articulação entre os contextos global e local na análise das políticas, argumenta Frangella (2016); uma matriz teórico-analítica

[...] que confere ao discurso a extensão de toda linguagem possível como produção simbólica, tendendo a não reduzi-lo à força coercitiva e reguladora referida à autoridade de quem pode falar e ser ouvido. (LOPES, 2013, p. 396)

Segundo movimento: inserção na rede

Em 2015, o sistema é regulamentado por intermédio da Portaria n. 005/2015 (NITERÓI, 2015) em suas quatro dimensões: Gestão das Aprendizagens, Gestão da Rede, Gestão Escolar, Gestão do Trabalho Pedagógico (NITERÓI, 2015); um sistema que não pressupõe o estabelecimento de quaisquer critérios de gratificação por merecimento aos envolvidos no processo ou a promoção de qualquer tipo de ranqueamento entre as unidades escolares, conforme menciona a portaria.

Os relatos indicam que o número elevado de problemas estruturais nas escolas e a não resolução desses por parte dos gestores da educação têm proporcionado o desinteresse em participar e o descrédito em uma política de avaliação institucional. Ainda que alguns se sintam confortáveis quanto ao alcance de metas relacionadas ao Ideb, o maior desejo dos profissionais que atuam nas escolas é a resolução desses problemas que, segundo eles, interferem sobremaneira no trabalho pedagógico e na aprendizagem dos alunos, bem como na execução do Plano de Ação anual e do Projeto Político-Pedagógico (PPP) pactuado com a comunidade escolar.

O ranqueamento é secundário.

A participação é mesmo muito pequena, pois não vemos retorno ou aproveitamento prático nesse tipo de avaliação no dia a dia da escola, assim não vemos sentido em realizar o processo.

Falta de tempo, não posso parar.

A avaliação não vai dar em nada, estamos cansadas de dizer o que precisamos; no ano da Prova Brasil tiramos o 1º lugar no IDEB, mas o que ganhamos com isso? Nós só viemos perdendo: salas cheias (acima da modulação), falta de professores, falta de salas especializadas, falta de material pedagógico. (Diretores e pedagogos em reunião com as equipes da AAI, maio de 2018)

Os gestores e equipes que atuam na Sede, em sua maioria parte do quadro efetivo da FME, acreditam que ações pedagógicas desenvolvidas e propostas por eles, bem como a instituição de um sistema de avaliação que leve em consideração a diagnose e o replanejamento de ações, que enseje a participação das profissionais da Rede FME, podem colaborar para a melhoria do processo pedagógico.

O sistema precisa ser da rede e não da Sede, por isso temos nos esforçado no sentido de sensibilizar as pessoas da importância de seu envolvimento nesse movimento, na participação dos profissionais que atuam nas escolas.

Mais importante que os resultados, são os caminhos traçados nesse percurso, para que cada um veja sentido nesse espaço de pertencimento. (Equipe da AAI, maio de 2018)

Os processos de significação se encontram tensionados em estratégias discursivas, entendidas como efeitos móveis de uma operação de poder. As justificativas localizadas no “outro”, em uma teia de busca idealista de sentidos, de metades entendidas como duais e opostas, apresentam-se como uma necessidade de olhar a outridade e sua articulação com a diferença, a necessidade de operar na produção discursiva acerca da política de avaliação ora proposta. Apostamos que a outridade pode significar não uma busca pelo mesmo, mas:

[…] a possibilidade da formação de um sujeito sensível que possa se colocar no lugar do outro, que amplie sua visão de forma a compreender as diferenças sem querer aniquilá-las, mas reconhecê-las como limite de discussão e exigência de enfrentamento e produção. (FRANGELLA, 2016, p. 27)

Qualquer tentativa de representação é híbrida por conter traços dos diferentes discursos, num de jogo de diferenças no qual a busca por uma autenticidade é vista como infecunda, sendo necessário entender os pontos nodais que produzem uma aparente estabilização de sentidos na relação com o “outro”, na relação com a diferença, tendo em vista que nossas apreensões não dizem verdades sobre as reverberações de uma política de avaliação institucional.

As relações de poder que atravessam a interação entre os profissionais que atuam na Rede FME produzem um efeito de individualismo, de desarticulação, representando lugares marcados pelo signo da vigilância e do controle. O que necessita ser questionado, segundo Bhabha (1992), é o modo de representação da alteridade. Em sua leitura, a partir de uma perspectiva pós-colonial, o autor discute que, apesar do jogo de poder crucial ao sistema colonial, as práticas e discursos da luta revolucionária não são o outro lado ou estão sob o discurso colonial, pois encontram-se historicamente correpresentados e interagem mutuamente, o que requer um elenco alternativo de perguntas, técnicas e estratégias no sentido de constuir um discurso anticolonialista. Dessa forma, o autor propõe que pensar em termos duais e de polarização implica uma dissociação impossível ao tentar demarcar lugares fixos e próprios para os diferentes atores sociais. Há um lugar para a articulação de formas de diferença, há um espaço teórico e político para tal articulação. É nesse espaço que se dá a descontrução do estereótipo que o poder colonial produz: o colonizado como uma realidade fixa que é imediatamente em “outro” conhecível e vísivel.

O estereótipo não é uma simplificação por ser uma representação falsa de uma realidade específica, mas uma simplificação porque é uma forma de representação fixa e interrompida que, ao negar o jogo da diferença (que a negação através do outro permite), cria um problema para a representação do sujeito em acepções de relações psíquicas e sociais. (BHABHA, 1992, p. 192-193)

Como forma de convicção múltipla e contraditória, o estereótipo aqui percebido como fetiche se constitui pela ameaça da falta que o “outro” deve preencher, circulando no discurso colonial como uma forma limitada da alteridade, uma forma fixa da diferença. Frangella propõe uma discussão do próprio sentido de política que se reinscreva na fronteira discursiva e se dê em processos de negociação e articulação, pondo em destaque mais que um jogo de oposições, mas a natureza ambivalente dessa relação. “Isso exige operar nas fronteiras e estando além de uma posição monolítica, atuar no entre-lugar da enunciação” (FRANGELLA, 2016, p. 8).

AVALIAÇÃO DA REDE: PODE A ESCOLA PRODUZIR POLÍTICAS DE AVALIAÇÃO?

Um conjunto de práticas que envolvem a instituição do Saen e sua relação com o projeto que tem como objetivo a qualidade da educação de Niterói se instaurou na rede. Ainda que cientes da relevância da discussão sobre todas as dimensões do Saen, como já assinalamos anteriormente, concentraremos nosso foco na dimensão Gestão Escolar, por observamos essa dimensão como espaço de negociação entre as demandas globais - postas para a rede municipal em sua totalidade - e as demandas locais que remetem às questões contextuais e contingenciais de cada escola. Operamos com a compreensão de que a escola não é espaço de implementação de políticas, mas partícipe desses processos; produz política nos embates e luta pela significação das propostas que à escola chegam. A escola se apresenta como campo de negociações e mediações, terreno movediço aberto a um constante porvir, criado por tensionamentos, negociações e, consequentemente, suas rotas de fuga.

Cabe ressaltar que essa multiplicidade de agenciamentos, de sujeitos desejantes, não se realiza em uma unidade totalizante que disciplina e hierarquiza em função de um objetivo central, pois, como diz Guattari (1985), a univocidade dos desejos e dos afetos das massas, e não seu agrupamento em torno de objetivos padronizados, funda a unidade de sua luta, que não é antagônica à multiplicidade e à heterogeneidade dos desejos - agenciamento coletivo de enunciação, com devires e singularidades que não podem mais ser considerados pessoais.

As múltiplas demandas - internas e externas - se articulam, produzindo sentido para as políticas de avaliação em curso, cujas agendas contextuais se movimentam na discussão do próprio sentido de política, reinscrevendo-se na fronteira discursiva e operando em processos de negociação e articulação, pondo em destaque mais que um jogo de oposições, mas a natureza ambivalente e contingente dessa relação. Nesse sentido, segundo Lopes (2015), há equivalências entre as demandas que podem estancar as diferenças, porém não bloqueiam o livre fluxo do diferir associado às dinâmicas contextuais.

Analisamos a proposta de autoavaliação institucional no âmbito da dimensão Gestão Escolar, ressaltando os percursos que a Rede FME traçou ao operar com indicadores prescritos pelos gestores da educação à época de sua concepção. Tal análise nos convida indagar: quais são os modos, com que variantes, com que surpresas, com que coisas inesperadas a assunção desse processo ocorreu na rede?

Indicadores locais de qualidade da educação e a autoavaliação

A implementação da dimensão Gestão Escolar, a partir de 2016, deu-se em um contexto de questionamentos e dúvidas, tanto quanto ao proposto na Portaria n. 005/2015 (NITERÓI 2015), cuja avaliação se relaciona à mensuração dos indicadores do trabalho administrativo e pedagógico realizado pelos gestores das unidades escolares, com vistas à sua organização e aperfeiçoamento, como quanto ao proposto no Documento Preliminar do Saen (NITERÓI, 2014), cuja indicação se referia a ações de monitoramento e avaliação do trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas, da organização administrativa de pessoal, do espaço escolar e gestão orçamentária, bem como das relações interpessoais, intersetoriais e familiares estabelecidas com e entre a comunidade escolar.

Ao ler os textos preliminares dessa dimensão, em 2015, a equipe da AAI rascunhou algumas propostas acerca de instrumentos avaliativos que consistiam em encaminhamentos às escolas de fichas e/ou questionários a serem preenchidos com dados quantitativos da gestão dos itens prescritos no documento. No entanto, tal encaminhamento ia de encontro às ideias de “responsabilização participativa” que se compartilhava na rede e que enseja a participação da comunidade educativa na criação de indicadores próprios de qualidade, provocando a inquietação:

Teríamos que pensar em um instrumento que não engessasse as ações propostas nas escolas, que não tivesse um sentido muito gerencial por parte da Sede, mas que pudesse ter um caráter de gestão democrática e participativa […].

Penso na minha experiência como professora, em que as decisões eram tomadas após um diálogo com todos - após as discussões acordávamos o que faríamos. (Integrantes da AAI, maio de 2018)

A equipe manifestava o desejo de provocar na Rede FME o sentido de responsabilização participativa, de constituir um modelo alternativo para os processos de regulação da qualidade da educação pública. A responsabilização participativa e os modelos de autoavaliação com indicadores próprios se apresentam como reformulações que implicam em exercitar o coletivo da escola em processos de apropriação dos problemas do cotidiano.

No entanto, numa perspectiva de uma contextualização radical, a significação de uma luta política deve levar em conta as contingências que possibilitam essa significação, ampliando o processo de responsabilização de cada um para o entendimento dos modos como são construídas essas subjetivações/identificações (LOPES, 2015) que, no nosso estudo, move-nos para focalizar a produção dos indicadores locais de qualidade. São essas contingências que podem desestabilizar um cenário de indicadores dados cujas orientações prescrevem ações a serem desenvolvidas nas escolas.

Diante dessas inquietações, os dirigentes e profissionais das escolas iniciaram o processo de construção de indicadores locais. Para o ano de 2016, conforme acordado com o grupo de diretores e pedagogos, três eixos/dimensões de análise foram elencados: Qualidade da Aprendizagem, Qualidade da Administração e Gestão Escolar e Qualidade Social. Nos grupos, os entendimentos eram diversos sobre quais aspectos/indicadores deveriam ser considerados para composição dos eixos. As elaborações dos grupos foram socializadas na Rede FME, provocando também outros entendimentos ao serem construídos nas escolas - cada qual com sua realidade e envolvimento com a proposta. A ideia era que a comunidade escolar elencasse os aspectos/indicadores que deveriam ser considerados qualidade na sua escola para que posteriormente se realizasse uma avaliação desses, devendo, assim, ser instaurado um processo de autoavaliação nas/das escolas, cuja dinâmica de aferição, também seria definida pela equipe pedagógica de cada unidade. Os resultados dos itens avaliados não deveriam ser encaminhados para a Sede; serviriam como indicativos a serem considerados na elaboração do Plano de Ação da escola do próximo ano. Para a equipe da AAI, deveriam ser encaminhados um relatório com os indicadores elencados pelos participantes do processo e uma descrição sobre a realização da autoavaliação com vistas à análise e compreensão dos indicadores que circulam nas comunidades escolares sobre qualidade da educação, conforme descrito no Relatório da Assessoria-2017.

Os relatórios do processo de autoavaliação foram recebidos e analisados pela equipe da AAI, considerando os seguintes aspectos: estrutura (indicadores, dimensões, objetivos, estratégias); diálogo entre o Plano de Ação e a autoavaliação; articulação entre objetivos e dificuldades; diálogo entre objetivos e estratégias; e entraves apontados pela escola à execução do Plano de Ação. Em 2016, das 91 unidades escolares, 57% engajaram-se no movimento de produção de indicadores e de realização da autoavaliação. Quanto aos entraves apontados para a execução do Plano de Ação 2016, apontaram uma série de problemas: pessoal (falta de professores, pedagogos, agentes administrativos, coordenadores), estrutura (falta de manutenção e/ou reforma dos prédios), climatização (falta de ar condicionado em todas as salas de aula), recursos (falta de computadores e materiais pedagógicos), segurança (falta de profissionais da área, em tempo integral, nas escolas), alimentação (falta de cardápio variado na merenda escolar e/ou atraso na entrega dos gêneros alimentícios), conforme pode se observar no gráfico a seguir. A falta de recursos (28 e 25%) e a estrutura física (24 e 26%) se destacam devido ao maior percentual de problemas apontados pelos profissionais que atuam nas escolas, tanto do ensino fundamental quanto da educação infantil. Apesar de não haver acordado, no modelo de plano de ação da unidade escolar (entre os diretores e a equipe da avaliação), uma linha de análise que contemple ações externas (que dependem da Sede), os diretores das escolas argumentaram ser necessário incluir uma linha de análise que contemple as questões citadas, pois consideraram que esses aspectos interferem na qualidade da educação de suas escolas.

Fonte: Relatório de Gestão 2017 (NITERÓI, 2017).

GRÁFICO 1 Distribuição percentual dos problemas apontados na execução do Plano de Ação 2016, por segmento da rede municipal de Niterói (RJ) 

De acordo com o Relatório de Gestão analisado (NITERÓI, 2017), verificou-se que muitas escolas tinham dificuldade no entendimento de como formular indicadores, como construir e realizar, coletivamente, o processo autoavaliativo, bem como na articulação dos resultados - indicação quantitativo-qualitativa dos aspectos aferidos -, com a formulação de ações para potencialização das situações favoráveis e/ou ações de enfretamento para as situações menos favoráveis ao desenvolvimento administrativo-pedagógico de sua comunidade escolar. Nesse processo inicial, a equipe da AAI percebia a necessidade de ampliar os entendimentos acerca desse processo. Como diferir nesse contexto de produção? Que sentido democrático pode ser deflagrado por intermédio dessa proposta?

Assumir que diferentes negociações de sentidos produzem traduções, debater contextualmente o que está sendo realizado nas escolas e o que estamos valorizando, mobilizar diferentes caminhos e diferentes possibilidades, promover o debate crítico sobre o que é realizado não é conceber o mundo como significado por cada particular de forma isolada, desarticulada, sem nenhuma conexão mútua, nenhum sentido partilhado; é uma aposta mais produtiva para as políticas de currículo, conforme destaca Lopes (2015), e, no nosso caso, para as políticas de autoavaliação. Assim, conviver com a incerteza de entendimentos nos move ao exercício constante de tradução, como política de significação, na disputa do que vem a ser indicador de qualidade nas escolas da rede.

Em setembro de 2017, realizou-se uma reunião com diretores e/ou representantes das escolas com o objetivo de apresentar e refletir os resultados das análises, bem como discutir a importância da participação e do envolvimento de toda a comunidade escolar na realização do processo 2017/2018. A equipe da AAI argumentou que esse movimento de avaliação e autoavaliação, planejamento e replanejamento pode orientar escolhas por caminhos a seguir; caminhos que podem ser articulados aos caminhos também escolhidos pelas equipes que acompanham e assessoram as escolas ao construírem seus planejamentos (NITERÓI, 2017). Alguns diretores argumentaram, na reunião, que a autoavaliação proposta pela Sede não garantia a melhoria no processo organizacional administrativo-pedagógico das escolas argumentando: “não vai dar em nada”; “parece ser só pra dizerem que estão ouvindo a gente”. Ou seja, os sentidos se apresentavam deslizantes e provisórios, no contraditório e fronteiriço do entre-lugar da negociação e ambivalente da significação.

A proposta de realização do processo de autoavaliação em 2017 seguiu com algumas modificações ao se perceber, nas análises dos Planos de Ação das escolas, em que outros eixos/dimensões era abordada, diferentemente das propostas em 2016 (Qualidade da Aprendizagem; Qualidade da Administração e Gestão Escolar; e Qualidade Social). Assim, outros eixos surgiram, sendo nomeados como linhas de análise: Relações Interpessoais; Relação Escola-Comunidade; Administração Escolar e Pedagógica; Aprendizagem/Interações e Brincadeiras; Práticas Pedagógicas.

Para cada linha de análise determinada pelos diretores e pedagogos em parceria com a equipe da AAI, cada comunidade escolar cria seus próprios indicadores, mensurados pelos sujeitos dessas em plenárias de autoavaliação, conforme critérios definidos coletivamente por eles. O resultado dessa autoavaliação serve como indicativo de ações a serem pensadas para o próximo ano letivo, o que significa dizer que o processo de autoavaliação, como os indicadores locais de qualidade são construídos pela e para a comunidade escolar.

Em 2017 mais escolas participaram do processo: 68% enviaram os relatórios com a descrição do processo de autoavaliação, bem como os indicadores construídos com a comunidade escolar, de acordo com suas respectivas linhas de análise. Esse aumento de 11 pontos percentuais representa um crescimento de 19,3% de participação das escolas no processo de autoavaliação dos indicadores locais de qualidade propostos pelas unidades escolares.

Cabe ressaltar que a participação no processo de autoavaliação é voluntária, sendo desejo da AAI que cada vez mais a comunidade escolar se envolva e veja sentido na construção de uma política de avaliação institucional instituinte - para e na escola. Quanto à análise dos relatórios e quadro de indicadores, percebe-se ainda certa dificuldade na construção desses, conforme pode se perceber no Quadro 1, a título de exemplo.

QUADRO 1 Exemplo de indicadores criados pelas escolas para uma das linhas de análise do processo de autoavaliação 

LINHA DE ANÁLISE INDICADORES
Relação escola-comunidade A escola promove festas e atividades que favoreçam a integração da comunidade educativa? (Indicador apresentado por profissionais de uma escola do ensino fudamental, setembro de 2017)
• Escreveu em forma de pergunta. (Observação realizada pela equipe da AAI, setembro de 2017)
A reunião do Conselho Escola-Comunidade ocorreu trimestralmente e também em sessões extraordinárias. Destacamos que, em todos os encontros programados, os responsáveis representantes estiveram presentes
• Escreveu em forma de relato. (Observação realizada pela equipe da AAI, setembro de 2017)

Fonte: Relatório de Gestão, 2017 (NITERÓI, 2017).

Após as análises, a Equipe de Avaliação realizou uma série de reuniões com participação de diretores e pedagogos para tratar das questões observadas na construção dos indicadores. Esse movimento ocorreu em forma de oficinas de produção, tendo como material os aspectos apontados pela comunidade escolar. A participação e o envolvimento de mais sujeitos das escolas nesse processo têm sido um desafio assumido pelas integrantes da equipe da AAI.

Entre 2016 e 2018, a possibilidade de diferir por intermédio da construção de indicadores locais de qualidade, de acordo com o contexto de cada escola, tem se desenhado na Rede FME num emaranhado conflituoso e potente, por se configurar em movimento de negociação com tantos “outros” que participam da constituição de indicadores que apresentem as cores contingentes de sua paisagem. Paisagem que pode nos permitir apontar a forma fluida, irregular, desses horizontes, indicando também que essas não são relações objetivamente dadas que parecem as mesmas de todos os ângulos de visão; são constituições perspectivas, inflectidas pelas ações políticas de diferentes atores (APPADURAI, 2005) que observamos na Rede FME ao construir com a comunidade educativa os indicadores locais de qualidade, por intermédio da autoavaliação institucional. No entanto, esse não é um entendimento homogêneo que apaga os conflitos: “a função de controle, cobrança e prestação de contas ainda é presente; a escola pensa que está fazendo algo para a Sede e não para a escola” (dizeres de uma integrante da equipe da AAI, maio de 2018).

Há que se exercitar a busca em descontruir as hegemonizações como tentativas de estabilização absoluta do que se pensa sobre a autoavaliação institucional, produzindo ações políticas. Ainda se põe como desafio o reconhecimento de que não podemos dar conta de tudo, mas de traduzir, iterar, inscrever-se na escritura na oportunidade de produzir sentidos sobre esses contextos, fundando outros; um jogo cujas regras são desconhecidas aprioristicamente, conforme indicam Lopes, Cunha e Costa (2013) ao investigarem as diferentes significações que as políticas de currículo assumem contextualmente e que a nosso ver são equivalentes ao que buscamos desenvolver, neste artigo, quanto às políticas de avaliação, como impossibilidade de signifixação dos sentidos de avaliação e qualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de constituição da autoavaliação institucional na Rede FME tem se revelado como um movimento de resistência propositiva por provocar estranhamentos a modelos pré-estabelecidos, o que implica dizer que está sujeito a diferentes produções de sentidos, conforme tempo e espaço em que circule. Consideramos que investigar esse processo de criação de indicadores locais em diálogo com os globais, em uma perspectiva discursiva, colabora para pensarmos na dimensão produtiva das políticas de avaliação como processo de enunciação cultural, como produção híbrida em negociação, como acontecimento contingente na rede municipal de educação de Niterói.

Um dizer dialógico é um ato enunciativo, entendendo a enunciação como espaço que se dá nas relações estabelecidas entre os sujeitos e os significados das práticas, produzidos à medida que são mencionados, posicionados discursivamente (FRANGELLA, 2016).

Desse modo, colocamos-nos em diálogo com as ideias e dizeres de uma comunidade educativa que aposta em um movimento instituinte inscrito em suas linhas de fuga e de ruptura, que se entrecruzam, renovam-se e se atualizam. Atualização que envolve um ato de criação, um dizer de um acontecimento contingente desejável na rede municipal de educação de Niterói, na assunção da autoavalição como avaliação institucional participativa, um espaço de “entredizeres” no qual há articulação, diálogo e produção de significados na constituição discursiva, na relação com a diferença.

Os indicadores locais se encontram em um fluxo contínuo de dizeres e subjetividades, transbordando as margens de seu acontecimento na busca de enfrentamento da visão universalista e dicotômica que marca o tempo da educação; plano de consistência no qual se desenrola um plano coletivo de afetos e afecções na micropolítica da percepção e da conversa, que se define por suas linhas de fuga e, como dizem Deleuze e Guattari (1995, p. 19),

[…] num movimento de desterritorialização generalizada onde cada um pega e faz o que pode, segundo seus gostos, que ele teria conseguido abstrair de um Eu, segundo uma política ou uma estratégia que se teria conseguido abstrair de tal ou qual formação, segundo tal procedimento que seria abstraído de sua origem.

Ou, ainda, se considerarmos a possibilidade de movimentos de reterritorializações de afetos, de afecções e de reencontros, a avaliação institucional pode se constituir em um campo de imanências múltiplas ou plano de consistências nos quais as intensidades não podem mais ser consideradas pessoais e não se pode mais chamar de extensivas (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Esse campo será construído, não se deixando reduzir aos outros, mas em um plano de consistência que ele traça no decorrer do seu processo, ou seja, platôs que se abrem a experimentações, ao encontro de devires, de agenciamentos e conexões de desejos, em um fluxo contínuo de dizeres, de atos enunciativos híbridos, de acontecimento contingente. Esse acontecimento é produzido em dado contexto e, devido à sua dinâmica de ruptura do próprio contexto, nunca é absolutamente determinável; sendo assim, jamais saturado, conforme análise derridiana apresentada por Lopes, Cunha e Costa (2013). Os autores focalizam o acontecimento como tradução, como produção singular, como iteração/escrita, “tendo em vista seu caráter produtivo e, simultaneamente, sua capacidade de fender pretensões homogeneizantes de escrita/textualização sobre a política” (p. 402). A tradução constitui, assim, uma passagem ao discurso, uma leitura, uma crítica, uma discussão que, ao se manifestar, ao ser colocada em situação de tradução, provoca o conhecimento, instaurando sua tensão (SISCAR, 2012).

É a diferença, o estranhamento, que torna a tradução necessária. Em uma análise derridiana, a desconstrução procura dramatizar o caráter inevitável da tradução num sentido mais amplo, isto é, o caráter inevitável da leitura e suas próprias exclusões (SISCAR; LIMA, 2012). Qualquer tomada de posição a favor de “um” ou de “outro” invalida a possibilidade do jogo de significações. Se não há tradução, também não há produção de sentidos. A tradução mostra sua própria possibilidade ao se relacionar com o sentido do “outro”, ao se voltar para a produção de significações, ancorada na consideração da relação como exigência do contato com a alteridade.

Além disso, é importante considerarmos que sentido também é acontecimento, esse efeito incorporal da/na linguagem. Figueiredo (2012), ao traduzir Deleuze e Derrida, compreende que a noção de acontecimento possibilita uma nova maneira de pensar ou problematizar o que significa pensar. Dizer o acontecimento se coloca, portanto, entre o possível e o impossível, ou seja, há certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento. Assim, a impossibilidade ou possibilidade do acontecimento se coloca sob a linguagem, sob o dizer. Nessa im/possibilidade de dizer, de ler, de discutir, de traduzir, os sujeitos da Rede FME operam para ressignificar o contexto de produção da avaliação institucional, o que significa pensar no descentramento do sujeito para a produção de subjetividade em um agenciamento coletivo de enunciação constituído de instâncias sociais, institucionais e individuais que se colocam em um plano de consistência, aqui apresentado por intermédio dos indicadores globais e locais inter-relacionados aos processos de análise das dimensões do Saen.

Assumimos o desafio de trazer esse processo como foco da nossa análise, na possibilidade impossível de dizer esse acontecimento. Assim, nossa análise não tem como objetivo produzir uma resposta para a experiência em foco, descrevendo-a ou classificando-a como positiva ou negativa, mas pensamos que, ao trazê-la, podemos problematizar de forma propositiva as políticas de avaliação centralizadas e centralizadoras que têm ganhado destaque no cenário educacional.

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SORDI, Mara Regina Lemes de. Avaliação institucional participativa em escolas de ensino fundamental: limites e possibilidades de uma proposta. In: SIMPÓSIO BRASILEIRO DE POLÍTICA E ADMINISTRAÇÃO DA EDUCAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS E GESTÃO DA EDUCAÇÃO, 25., 2011, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: Anpae, 2011. p. 1-13. Disponível em: http://www.anpae.org.br/simposio2011. Acesso em: 15 out. 2017. [ Links ]

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1Sede é o termo utilizado pelos profissionais da FME para indicar o lugar do órgão central em que as equipes administrativas e pedagógicas realizam seu trabalho de assessoramento, acompanhamento e coordenação de projetos e programas com escolas e gestores municipais.

2A Rede FME é formada por professores, merendeiros, agente de pessoal, secretários escolares e pedagogos que atuam nas 91 escolas e os que atuam na Sede: presidente, respondendo pela área administrativa, vinculado à FME, secretária de educação e dois subsecretários, respondendo pela área pedagógica, vinculados à Secretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia (Semect), bem como assessores e coordenadores pedagógicos.

Recebido: 15 de Julho de 2018; Aceito: 15 de Março de 2019

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