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Estudos em Avaliação Educacional

versão impressa ISSN 0103-6831versão On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.31 no.76 São Paulo jan./abr 2020  Epub 26-Ago-2020

https://doi.org/10.18222/eae.v31i76.4550 

ARTIGOS

METAVALIAÇÃO NO ENSINO SUPERIOR: RACIOCÍNIO CLÍNICO EM PROVAS DE MEDICINA

METAEVALUACIÓN EN LA EDUCACIÓN SUPERIOR: RAZONAMIENTO CLÍNICO EN PRUEBAS DE MEDICINA

META-EVALUATION IN HIGHER EDUCATION: CLINICAL REASONING IN MEDICINE TESTS

BRUNA CASIRAGHII 
http://orcid.org/0000-0001-8114-3772

JÚLIO CÉSAR SOARES ARAGÃOII 
http://orcid.org/0000-0002-8210-6348

ICentro Universitário de Volta Redonda (UniFOA), Rio de Janeiro-RJ, Brasil; bruna@casiraghi.com.br

IICentro Universitário de Volta Redonda (UniFOA), Rio de Janeiro-RJ, Brasil; jaragaum@gmail.com


RESUMO

A formação superior deve ser vista como o desenvolvimento de um profissional capaz de lidar com situações complexas. A revisão do processo avaliativo pode identificar lacunas no processo de formação e levantar propostas de correção. Esta pesquisa objetivou analisar a prevalência de questões de prova que exijam raciocínio clínico e a sua progressão durante o curso. As questões foram avaliadas por período, área de conhecimento e complexidade. De 429 questões, 99 (23,1%) foram consideradas de raciocínio clínico, sendo 330 (76,9%) de raciocínio teórico. A maior taxa de raciocínio teórico ocorreu na área básica (86,2%), e a de raciocínio clínico, na Pediatria (31%). Os resultados apontam expressiva prevalência de cobrança de conteúdos em detrimento do raciocínio clínico. Embora o aumento da cobrança do segundo seja evidente, o resultado final ainda está aquém do esperado. Pesquisas voltadas para esse tema são necessárias para o mapeamento e a elaboração de propostas de intervenção.

PALAVRAS-CHAVE: AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO; FORMAÇÃO MÉDICA; TAXONOMIA DE BLOOM; METAVALIAÇÃO

RESUMEN

La formación superior debe verse como el desarrollo de un profesional capaz de hacer frente a situaciones complejas. La revisión del proceso de evaluación puede identificar brechas en el proceso de capacitación y plantear propuestas de corrección. Este estudio tuvo como objetivo analizar la prevalencia de las cuestiones de examen que exigen un razonamiento clínico y su progresión durante el curso. Las cuestiones fueron evaluadas por periodo, área de conocimiento y complejidad. De 429 cuestiones, 99 (23.1%) se consideraron de razonamiento clínico y 330 (76.9%) de razonamiento teórico. La tasa más alta de razonamiento teórico se produjo en el área básica (86.2%), y la de racionamiento clínico en Pediatría (31%). Los resultados muestran una prevalencia expresiva en la demanda de contenido en detrimento de razonamiento clínico. Aunque el aumento en la demanda de lo segundo es evidente, el resultado final todavía está por debajo de lo esperado. Estudios centrados en este tema se hacen necesarios para identificar y elaborar propuestas de intervención.

PALABRAS CLAVES: EVALUACIÓN DE LA EDUCACIÓN; FORMACIÓN MÉDICA; TAXONOMÍA DE BLOOM; METAEVALUACIÓN

ABSTRACT

Higher education should be viewed as the development of a professional capable of dealing with complex situations. Reviewing evaluation processes can identify gaps in training and drive correction initiatives. This study aimed to analyze the prevalence of test questions that require clinical reasoning and its progression during programs. The questions were assessed by period, knowledge area and complexity. Of 429 questions, 99 (23.1%) were considered as related to clinical reasoning, and 330 (76.9%) to theoretical reasoning. The highest rate of theoretical reasoning questions was found for the basic area (86.2%), whereas with clinical reasoning questions, the highest rate was found for pediatrics (31%). The results point to a significant prevalence of content-based questions to the detriment of questions related to clinical reasoning. Although an increase in the latter type is evident, the final result is still below expectations. Research on this topic is necessary for mapping and designing intervention initiatives.

KEYWORDS: EDUCATION EVALUATION; MEDICAL TRAINING; BLOOM’S TAXONOMY; META-EVALUATION

INTRODUÇÃO

A Medicina, considerada historicamente uma profissão imperial (VARGAS, 2010) possui inegável relevância social e prestígio. A formação desses profissionais é foco de políticas públicas específicas e de um número considerável de pesquisas que visam a discutir e avaliar os diversos aspectos relacionados ao tema.

Discussões a respeito da qualidade do sistema de saúde, da necessidade de aumento do número de médicos no Brasil, ampliação do atendimento de saúde à população, condição de trabalho dos profissionais da saúde entre outros tópicos recorrentes impactam diretamente na formação dos profissionais da saúde, mormente dos médicos. Atualmente, a ampliação das vagas nos cursos e a consequente ampliação do número de médicos a médio e longo prazo, bem como o enfoque em políticas públicas de saúde cada vez mais inclusivas e demandando profissionais preparados para a atenção integral são tópicos que levam a uma reestruturação nos cenários das escolas médicas e no perfil esperado do egresso dos cursos de Medicina (GONZÁLEZ; ALMEIDA, 2010).

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para cursos de Medicina (BRASIL, 2014, p. 1) definem o perfil do profissional médico como “humanista, crítico, reflexivo e ético”, priorizando o desenvolvimento de competências e ações que levem o estudante a ser ativo no processo de aprendizagem. Na nova versão, competências são compreendidas como a capacidade de mobilizar conhecimentos, habilidades e atitudes para solucionar os desafios encontrados nos diferentes cenários na prática profissional e são agrupadas, no seu artigo 4º, em três áreas distintas: Atenção à saúde; Gestão em saúde e Educação em saúde (BRASIL, 2014).

Ao abordar as áreas de competências, as DCNs enfatizam a capacidade de identificação das necessidades, sejam elas individuais ou coletivas, assim como o desenvolvimento e avaliação de planos terapêuticos ou de trabalhos, deixando claro que a racionalidade é condição pétrea da excelência médica. O texto possui várias referências à razão como atributo do médico e estabelece, como objetivo da formação, a gradual indução desse comportamento durante o curso. A capacidade de discernir entre diferentes patologias ou situações mórbidas e fazer escolhas que as previnam, mitiguem ou curem, é a base da profissão médica.

Conforme salientado por Réa-Neto (1998), o processo mental do raciocínio clínico não corresponde a um exercício de lógica. De forma diversa, esse processo se alicerça no método hipotético-dedutivo que consiste em elencar hipóteses e submetê-las a testagem, confirmando-as ou refutando-as, até que o diagnóstico ou a solução do problema possam ser obtidos.

Assim sendo, a operação da racionalidade médica seguiria por etapas sequenciais iniciadas pela obtenção de dados (anamnese, exame físico), continuando pelo levantamento de hipóteses e pela escolha de testes que possam refutá-las ou corroborá-las. A partir desses resultados (novos dados), a definição de um diagnóstico é possível, apresentando-se, então, uma nova etapa: a proposta terapêutica. A proposta sequencial aqui ensejada tem o objetivo de sequenciar didaticamente as diferentes etapas do processo de cuidado médico, não sendo, de forma alguma, um ciclo estanque ou fechado, pelo contrário, em algumas situações (talvez na maioria delas), a exiguidade de hipóteses e a simplicidade dos testes façam com que o ciclo se feche rapidamente, enquanto que em situações mais complexas, o ciclo de testagem e retestagem, ou mesmo o plano terapêutico, pode ser reiniciado inúmeras vezes.

De forma análoga, Lopes (2000, p. 285) identifica seis etapas da racionalidade médica, na perspectiva da medicina baseada em evidências, que são condizentes com as etapas apresentadas do raciocínio clínico:

  1. identificar os problemas relevantes do paciente;

  2. converter os problemas em questões que conduzam às respostas necessárias;

  3. pesquisar eficientemente as fontes de informação;

  4. avaliar a qualidade da informação e a força da evidência, favorecendo ou negando o valor de uma determinada conduta;

  5. chegar a uma conclusão correta quanto ao significado da informação;

  6. aplicar as conclusões dessa avaliação na melhoria dos cuidados prestados aos pacientes.

Na formação médica, mais do que apresentar conceitos e conhecimentos teóricos indispensáveis para o exercício da profissão, o papel do educador pressupõe propiciar elementos para o desenvolvimento desse tipo de raciocínio em seus alunos. Esses esforços devem incluir metodologias indutivas e ativas no processo de ensino. Cabe ao professor planejar e efetivar um projeto de ensino que permita ao aluno a construção do aprendizado teórico-prático em momentos sequenciais e de complexidade crescente, em que coabitem os aspectos científicos e a compreensão da realidade (PIMENTA; ANASTASIOU, 2008; RIOS, 2002).

A forma usual de acompanhar tal desenvolvimento é através das avaliações, que devem ser entendidas não somente como um instrumento de aferição e quantificação dos conteúdos aprendidos, gerando dados que permitam a promoção ou seleção de um aluno no âmbito escolar, mas como um importante momento de indução deste tipo de racionalidade, de aprendizagem para o aluno e de retroalimentação para o professor (HOFFMANN, 2005; TRONCON, 1996).

De acordo com Rodrigues Júnior (2009), processos avaliativos podem ser classificados quanto a finalidades, critérios, objetivos, referenciais e procedimentos/instrumentos adotados. Esses diferentes processos, mesmo que diversificados em muitas instituições, ainda se curvam ante a esmagadora hegemonia da prova/avaliação escrita, que, a despeito de todas as mudanças, ainda se mantém como ferramenta mestra da avaliação.

Os processos avaliativos poderão solicitar ao aluno diferentes níveis de desempenho cognitivo. No intuito de criar uma classificação desses níveis, uma “força tarefa”, liderada por Bloom, em meados do século XX, organizou, a pedido da American Psycological Association, uma taxonomia composta por diferentes níveis cognitivos que possibilitavam hierarquizar as formas de verificação de conhecimento na educação. Esses critérios ficaram conhecidos como Taxonomia de Bloom e compreendem os seguintes níveis: conhecimento; compreensão; aplicação; análise; síntese e avaliação. É importante ressaltar que não se trata apenas de uma classificação hierárquica e gradual; a passagem para o próximo nível pressupõe o domínio do nível anterior (FERRAZ; BELHOT, 2010).

Considerando os níveis da Taxonomia de Bloom, as questões cujo objetivo é avaliar a capacidade de lembrar informações e conteúdos são classificadas como de conhecimento; as questões de compreensão envolvem a capacidade de compreender e dar significado aos conteúdos; as questões que priorizam a capacidade de utilizar as informações e métodos em situações concretas são classificadas como de aplicação; a análise presume a capacidade de subdividir o conteúdo para compreender sua estrutura; agregar e combinar as partes de modo a formar um “novo todo” configura a síntese e, finalmente, a avaliação, como habilidade de julgar os conceitos e situações a partir de critérios definidos (FERRAZ; BELHOT, 2010).

À luz do previamente exposto sobre o raciocínio clínico, as categorias de pensamento necessárias para o profissional médico estão elencadas nas categorias de análise, síntese e julgamento descritas na Taxonomia de Bloom (logicamente, isso não exclui as etapas anteriores, cujo domínio é requisito para que se atinjam tais raciocínios).

Embora a importância do processo avaliativo seja reconhecida pela maioria dos educadores, a reflexão sobre esse processo ainda é pouco frequente, tanto no âmbito da pesquisa como na prática das instituições (HOFFMANN; ESTEBAN; SILVA, 2006; SILVA, 2004). Desta forma, poucas ações voltadas para o planejamento, instrumentalização e avaliação das provas realizadas são encontradas no ensino, mormente no ensino superior (PIMENTA; ANASTASIOU, 2008; SGUISSARDI, 1997).

A realidade do ensino tem sido calcada na memorização desconexa de conteúdo, muitas vezes entregue ao aluno de forma conflitante e sem que diferentes áreas produzam o mínimo de diálogo entre si (MASETTO, 2003). Esse quadro se agrava no cenário do ensino superior, no qual a departamentalização dos saberes é norma vigente, sendo a interface entre as áreas uma exceção. A avaliação da aprendizagem é marcada pelo foco na memorização de conteúdo, que, além de ser uma prática hegemônica em sala de aula, mostra amplos reflexos no processo avaliativo (BÓRNEA; GONÇALVES; PADOVANI, 2014), tais como provas focadas apenas na memorização e reprodução e desvinculadas da utilização dos conceitos na solução de problemas da prática profissional. O cenário avaliativo acaba por repousar em dois pilares: a ruptura entre prática e norma e a alta prevalência de processos de memorização nos processos avaliativos (RODRIGUES JÚNIOR, 2009).

O presente estudo teve como objetivo analisar a complexidade das avaliações propostas em um curso de Medicina do estado do Rio de Janeiro, Brasil, identificando a prevalência de questões de prova que exigiam raciocínio clínico e a sua progressão durante os oito primeiros períodos do curso, nas diferentes áreas de conhecimento, tendo em vista a premente necessidade de aquilatar se as avaliações estão atingindo seu objetivo e se conseguem detectar as reais dificuldades dos alunos.

MÉTODO

O trabalho constitui um estudo de caráter quantitativo, censitário, que analisou todas as questões utilizadas para a avaliação somativa no primeiro bimestre dos dois semestres letivos do ano de 2013. As questões de provas foram obtidas a partir do arquivo do curso de Medicina, com autorização da instituição. A análise foi feita por um especialista médico e uma profissional da educação, possibilitando a avaliação de aspectos técnicos específicos e educacionais das questões, considerando o período (primeiro ao oitavo), a área de conhecimento (básica, humanidades, clínica médica, clínica cirúrgica, pediatria, ginecologia/obstetrícia e saúde coletiva) e a complexidade. A complexidade diz respeito ao grau de raciocínio e abstração necessários para responder à questão e teve como referência a Taxonomia de Bloom (FERRAZ; BELHOT, 2010), sendo categorizada em: conhecimento, compreensão, aplicação, análise, síntese e julgamento. Os dados referentes à classificação das questões foram tabulados em uma planilha do software Microsoft Excel e posteriormente exportado para o software Stata 13, no qual foram processados. A modelagem do banco de dados dicotomizou a complexidade em uma nova variável de categorias: raciocínio teórico (conhecimento, compreensão e aplicação) e raciocínio clínico (análise, síntese e julgamento). Ainda nessa etapa do tratamento dos dados, os períodos do curso foram agrupados em fase I (primeiro ao quarto período) e fase II (quinto ao oitavo período). Os procedimentos estatísticos para a análise dos dados foram inicialmente a distribuição de frequência uni e bivariada. Embora o recorte utilizado neste trabalho não lide diretamente com dados individuais de seres humanos, o projeto, na sua integralidade, foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em seres humanos sob o número 35232814.1.0000.5237.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O estudo avaliou 429 questões de provas realizadas no curso de Medicina durante o ano de 2013, sendo 214 questões de provas do primeiro semestre e 215 do segundo semestre. As provas foram aplicadas a alunos dos oito primeiros períodos do curso, de forma integrada, ou seja, contemplando as diferentes áreas do curso. Essas questões distribuíram-se entre as áreas de conhecimento da seguinte forma: bases humanísticas, 6,29%; ciências básicas, 15,62%; saúde coletiva, 17,72%; clínica médica, 33,57%; clínica cirúrgica, 12,59%; pediatria, 6,76% e ginecologia/obstetrícia, 7,46%.

Fonte: Elaboração dos autores.

FIGURA 1 Prevalência de questões segundo área de conhecimento 

Considerando a complexidade, as questões foram classificadas como conhecimento em 46,62% dos casos; compreensão em 14,45%; aplicação, 15,85%; análise, 5,59%; síntese em 14,22% e julgamento em 3,23% das perguntas.

Esses dados podem ser traduzidos nas seguintes extrapolações: atitudes como interpretar exames, avaliar os dados da anamnese e exame físico e identificar elementos oriundos dos resultados de terapias efetuadas (análise) somente são exigidas em prova em 5,59% das questões. Já a formulação de hipóteses diagnóstica, o exercício de diagnóstico diferencial e a análise de prognósticos (síntese) somente são exigidos em 14,22% das questões. Por fim, a atividade que exige tomada de decisão, como a escolha de métodos de diagnose adequados, tratamentos eficazes ou procedimentos clínicos ou cirúrgicos para uma determinada condição nosológica (julgamento), é solicitada em ínfimos 3,23% das questões.

Fonte: Elaboração dos autores.

FIGURA 2 Prevalência de questões segundo a complexidade exigida 

Uma vez agrupadas em raciocínio teórico (conhecimento, compreensão e aplicação) e raciocínio clínico (análise, síntese e julgamento), 99 (23,1%) foram consideradas como demandando raciocínio clínico para sua resolução, sendo as outras 330 (76,9%) de raciocínio teórico.

Fonte: Elaboração dos autores.

FIGURA 3 Prevalência de questões segundo o raciocínio exigido 

Se levarmos em consideração que a proporção apresentada é de três questões de raciocínio teórico para uma de raciocínio clínico, pode-se perceber a predominância da memorização de conteúdos nas provas analisadas. Tal dado implica que o aluno, avaliado meramente em conteúdos, poderá atingir os períodos mais avançados do curso sem que tenha desenvolvido satisfatoriamente seu raciocínio clínico.

Evidenciou-se um aumento no número de questões envolvendo raciocínio clínico no decorrer do curso (fase I - 16,1%; fase II - 27,8%). Esse aumento, apesar de significativo, ainda atinge patamares muito aquém dos necessários. Esperar-se-ia uma predominância de questões contextualizadas, com casos clínicos e que envolvessem tomada de decisão nos períodos mais avançados do curso.

Em relação à distribuição por área de conhecimento, as taxas de raciocínio clínico variaram entre 13,43% (básicas) e 31,03% (pediatria) e, embora possamos ver taxas diferentes entre as áreas, a principal característica a se ressaltar é que em nenhuma delas atingiram-se níveis sequer próximos a 50% (que seriam de se esperar em uma distribuição aleatória de categorias).

TABELA 1 Prevalência de questões de raciocínio clínico e teórico por área do curso 

ÁREA DO CURSO RACIOCÍNIO TOTAL
CLÍNICO TEÓRICO
Básicas 9 13,43% 58 86,57% 67 15,62%
Clínica médica 43 29,86% 101 70,14% 144 33,57%
Clínica cirúrgica 14 25,93% 40 74,07% 54 12,59%
Ginecologia/Obstetrícia 6 18,75% 26 81,25% 32 7,46%
Pediatria 9 31,03% 20 68,97% 29 6,76%
Bases humanísticas 5 18,52% 22 81,48% 27 6,29%
Saúde coletiva 13 17,11% 63 82,89% 76 17,72%
Total 99 23,08% 330 76,92% 429 100,00%

Fonte: Elaboração dos autores.

CONCLUSÃO

Antes de qualquer ilação, cabe aqui uma observação dos autores. Os dados ora apresentados devem ser analisados com muita seriedade e respeito pela comunidade acadêmica. A ausência de estudos semelhantes impossibilita a comparação dos resultados com outras realidades existentes dentro e fora do Brasil. Críticas quanto à qualidade das avaliações (e da instituição) apresentadas neste trabalho somente serão válidas se pudermos criar mecanismos que possam levantar a realidade nacional e trazer à tona os meandros dos processos pelos quais nossos alunos são avaliados durante seu processo formativo.

O quadro delineado pelo presente estudo nos remete a uma realidade preocupante. A racionalidade médica e sua capacidade de tomada de decisões somente são solicitadas em uma ínfima proporção das questões de provas em um curso de medicina. A excessiva liberdade dada aos professores, a falta de formação profissional específica para a docência superior e a ausência de supervisão institucional podem ser elencados como possíveis fatores envolvidos na gênese de tal situação.

Os dados ora apresentados mostram um significante aumento relativo das questões de raciocínio clínico no decorrer da formação médica, sendo que a incidência dessas questões na fase II do curso quase duplicou. Porém, tal aumento não constitui ganho relevante, uma vez que, mesmo nesta fase, a presença de questões de raciocínio clínico é minoritária, não atingindo sequer a terça parte das questões apresentadas. Considerando que os alunos estão prestes a adentrar o internato, um ciclo no qual tais competências serão diuturnamente exigidas, era de se esperar que o raciocínio clínico fosse amplamente exercitado e cobrado nessa fase do curso. A partir deste delineamento, fica clara a origem das dificuldades enfrentadas pelos alunos nesse período, frequentemente registrada pelos professores e preceptores do estágio curricular.

Não se propõe aqui que a totalidade ou mesmo a maioria das questões sejam de julgamento. Pelo contrário, a distribuição de questões com diferentes níveis de complexidade, de uma forma mais uniforme, seria desejável e benfazeja aos discentes, permitindo concatenar diferentes raciocínios em um mesmo instrumento de avaliação. Também não se enseja prescrever “números mágicos” que possam balizar as distribuições dos níveis de complexidade a serem exigidos. As especificidades de cada área de conhecimento, assim como seus objetivos e estratégias de ação deverão ser levados em conta na hora do planejamento da avaliação da aprendizagem.

A avaliação de complexidade não pretende, nem jamais deverá ser compreendida, como uma avaliação objetiva. Embora algumas questões apresentem indicadores claros que facilitam a classificação do grau de complexidade, algumas poderão impor maior reflexão por parte dos pesquisadores e, mesmo assim, poderiam ser classificadas de diferentes formas por diferentes avaliadores. Todavia, dificilmente uma questão de julgamento seria tomada por uma de reconhecimento, sendo mais facilmente classificada erroneamente como síntese ou análise. Tal erro, embora concreto, não prejudicaria a análise de raciocínios teóricos e clínicos, visto que tais categorias não seriam facilmente confundidas.

Outra questão que merece consideração é o universo de estudo: uma única instituição que, a olhos mais críticos, poderia representar um problema pontual que pode não se reproduzir em outros cursos. Cremos que tal argumento seja válido e digno de ser examinado em estudos de maior vulto, preferencialmente multicêntricos e independentes. Todavia, em apresentações e oficinas feitas a docentes e discentes de diferentes instituições e regiões do país, obtivemos relatos que indicam uma realidade similar à que aqui relatamos. A falta de indicadores de qualidade das avaliações aliada à carência de estudos já apontada por Pimenta e Anastasiou (2008), não nos permite concluir ser esse um problema geral, porém também não há dados suficientes para uma resposta significativa sobre o assunto. Pesquisas que indiquem um diagnóstico da qualidade dos processos avaliativos, não apenas em cursos de Medicina ou da saúde, mas em todo o ensino superior são necessárias para que a comunidade acadêmica possa propor debates e ações corretivas que permitam impactar positivamente na formação profissional brasileira.

Face ao perfil profissional traçado pelas DCNs brasileiras, os dados do presente estudo demonstram claramente a necessidade de ações que possibilitem novas discussões e redimensionamento das práticas avaliativas no ensino superior. O profissional crítico e reflexivo almejado não tomará forma sem que seu processo de aprendizagem valorize algo mais que a mera repetição de conceitos memorizados e reproduzidos em uma prova. Se levarmos em consideração a massa de informações atualmente disponíveis ao simples toque em uma tela de celular, fica claro que o diferencial dos profissionais da atualidade não é a capacidade de reter informações, mas sim de utilizá-las adequadamente no sentido de formular hipóteses válidas e tomar decisões adequadas.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 25 de Março de 2017; Aceito: 25 de Março de 2020

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