SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número77REDES SOCIAIS NO ACOMPANHAMENTO DE EGRESSOS DO ENSINO MÉDIO INTEGRADO: OPORTUNIDADES E LIMITAÇÕESDEFASAGEM IDADE-SÉRIE E LETRAMENTO CIENTÍFICO NO PISA índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Estudos em Avaliação Educacional

versão impressa ISSN 0103-6831versão On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.31 no.77 São Paulo maio/ago 2020  Epub 04-Jan-2021

https://doi.org/10.18222/eae.v31i77.6736 

ARTIGOS

O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO E A FORMAÇÃO DOCENTE

EL PROCESO DE ALFABETIZACIÓN Y LA FORMACIÓN DOCENTE

THE LITERACY PROCESS AND TEACHER TRAINING

MARIA CECÍLIA DE OLIVEIRA MICOTTII 
http://orcid.org/0000-0002-7427-910X

ADRIANA DIBBERN CAPICOTTOII 
http://orcid.org/0000-0002-0245-5127

IUniversidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus Rio Claro-SP, Brasil; cecilia.micotti@unesp.br

IIUniversidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus Rio Claro-SP, Brasil; adrianacapicotto@gmail.com


RESUMO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa-descritiva sobre a diversidade de resultados de quatro escolas públicas de uma mesma rede de ensino - duas escolas com as maiores e duas com as menores pontuações na Avaliação Nacional da Alfabetização 2014. Participaram da pesquisa docentes do ciclo de alfabetização que atuaram nessas escolas, no triênio 2012-2014. O instrumento utilizado para a coleta de dados consistiu em uma entrevista semiestruturada focalizada nos processos de ensino realizados, na formação docente e nas experiências profissionais. Os resultados revelam diferenças, quanto à ênfase na continuidade do processo de alfabetização no ensino em ciclos, favoráveis às escolas com os maiores desempenhos, apesar das semelhanças de nível socioeconômico dos alunos, tempo de experiência e formação, sobretudo contínua, das professoras.

PALAVRAS-CHAVE: CICLO DE ALFABETIZAÇÃO; FORMAÇÃO DOCENTE; AVALIAÇÃO NACIONAL DA ALFABETIZAÇÃO

RESUMEN

Se trata de una investigación cualitativa-descriptiva sobre la diversidad de resultados de cuatro escuelas públicas de una misma red de enseñanza - dos escuelas con las mayores y dos con las menores puntuaciones en la Avaliação Nacional da Alfabetização 2014. En la investigación participaron docentes del ciclo de alfabetización que actuaron en esas escuelas, en el trienio 2012-2014. El instrumento utilizado para la recolección de datos consistió en una entrevista semiestructurada enfocada en los procesos de enseñanza realizados, en la formación docente y en las experiencias profesionales. Los resultados revelan diferencias, en cuanto al énfasis en la continuidad del proceso de alfabetización en la enseñanza en ciclos, favorables a las escuelas con los mayores desempeños, a pesar de las semejanzas de nivel socioeconómico de los alumnos, tiempo de experiencia y formación, sobre todo continua, de las profesoras.

PALABRAS CLAVE: CICLO DE ALFABETIZACIÓN; FORMACIÓN DOCENTE; AVALIAÇÃO NACIONAL DA ALFABETIZAÇÃO

ABSTRACT

This is a qualitative-descriptive study on the diversity of the results of 4 public schools from the same teaching network: 2 schools with the highest and 2 with the lowest scores in the Avaliação Nacional da Alfabetização 2014 [Brazilian National Literacy Assessment]. The participants in the study were teachers from the literacy cycle that worked in these schools, in the 2012-2014 triennium. The instrument used for data collection consisted of a semi-structured interview focusing on their teaching processes, on teacher training and on their professional experiences. The results reveal differences regarding the emphasis on the continuity of the literacy process in cyclic education, favoring the schools with the highest performances, despite the similarities of the students’ socioeconomic level and the teachers’ experience and, above all, ongoing training.

KEYWORDS: LITERACY CYCLE; TEACHER TRAINING; AVALIAÇÃO NACIONAL DA ALFABETIZAÇÃO

INTRODUÇÃO

No Brasil, políticas públicas têm sido instituídas visando à democratização da educação escolar. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2014, 97,7% dos estudantes de 6 a 14 anos frequentavam ou concluíram o ensino fundamental (EF). Contudo, as avaliações em grande escala realizadas na última década de vigência do Pacto Nacional para a Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) revelam que, ainda hoje, parcelas consideráveis de crianças apresentam deficiências na aprendizagem inicial da leitura e da escrita.

O Pnaic, criado com a finalidade de assegurar a alfabetização de todas as crianças brasileiras até os oito anos de idade, instituiu a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), que passou a ser aplicada de forma censitária para os estudantes ao final do 3º ano do EF. Os resultados dessa avaliação revelam que, em 2013, 57% dos alunos apresentaram uma aprendizagem insuficiente em leitura e 54,73% em escrita. Em 2014, 56,17% foram assim classificados em leitura (apenas 22,21% decodificavam palavras isoladas); 11,64% não escreviam palavras alfabeticamente nem produziam textos (BRASIL, 2015). Em 2016, 54,73% dos desempenhos em leitura foram classificados como insuficientes, e, em escrita, cerca de 34% (BRASIL, 2018).

Assim, verifica-se que os desempenhos escolares continuam desafiando as políticas públicas instituídas no Brasil. Os problemas relativos à alfabetização provocam reflexões sobre os fatores do baixo desempenho dos estudantes na aquisição da linguagem escrita. No entender de Gatti (2010, p. 1359) concorrem para esse problema:

[...] as políticas educacionais postas em ação, o financiamento da educação básica, aspectos das culturas nacional, regionais e locais, hábitos estruturados, a naturalização em nossa sociedade da situação crítica das aprendizagens efetivas de amplas camadas populares, as formas de estrutura e gestão das escolas, a formação dos gestores, as condições sociais e de escolarização de pais e mães de alunos das camadas populacionais menos favorecidas (os “sem voz”) e, também, a condição do professorado: sua formação inicial e continuada, os planos de carreira e salário dos docentes da educação básica, as condições de trabalho nas escolas.

A multiplicidade de fatores apontados na pesquisa expressa a complexidade desse processo cujos efeitos interagentes desafiam as políticas educacionais. Essa problemática assume maior relevância se considerarmos a inserção do ensino no contexto social atual, marcado por grandes mudanças nos vários aspectos da vida humana e pelo desgaste do status atribuído à escola e aos professores. Contudo, os resultados das avaliações não revelam apenas insucessos.

O êxito de parte considerável dos estudantes justifica a realização de pesquisas sobre os fatores do sucesso e do insucesso no aprendizado da leitura e da escrita, sobretudo com referência ao ensino.

Nesse contexto realçam-se as variações que o exercício do papel docente pode apresentar no ensino. No entender de Tardif e Moscoso (2018, p. 404),

[...] ser professor hoje não constitui mais um papel claro baseado em normas compartilhadas e estipuladas por meio das práticas rotineiras. Atualmente, o ensino se transformou em um problema, precisamente porque os professores devem enfrentar as múltiplas escolhas que não são estritamente determinadas pela instituição, a sociedade ou as tradições.

A vinculação do aprendizado ao ensino e as múltiplas e possíveis escolhas que os docentes realizam ao ensinar indicam a interferência da ação pedagógica nas diferenças entre os resultados obtidos pelos alunos nas avaliações. Sobre esse assunto, Gauthier (2015, p. 1) assinala que, mesmo considerando os diversos fatores dos resultados de aprendizagem, “em condições semelhantes, há diferenças no desempenho dos alunos, influência que pode ser explicada pela intervenção do professor”. Essa atuação envolve, no entender de Gauthier et al. (2013), a gestão da matéria a ser ensinada e a gestão da classe, atividades que constituem a dimensão central do ensino.

O enfoque das diferenças entre os resultados do ANA à luz dessas afirmações reforça a questão das possíveis relações entre o trabalho pedagógico realizado e os desempenhos dos estudantes em alfabetização. Esse assunto envolve a formação dos professores e suas inter-relações com a problemática da alfabetização no Brasil, que tem resultado em políticas públicas voltadas para o ensino e para a formação docente.

A profissionalização docente é incluída na LDB n. 9.394/96 (BRASIL, 1996) e nas metas 15 e 16 do Plano Nacional da Educação (PNE), Lei n. 13.005/2014 (BRASIL, 2014), as quais situam a formação de professores para a educação básica no ensino superior, nos cursos de licenciatura. Em decorrência, observa-se um aumento significativo da escolaridade dos professores. Em 2015, 76,4% dos docentes da educação básica, segundo o Censo Escolar, eram graduados nesse nível de ensino.

No Brasil, os currículos das licenciaturas têm sido orientados pelo “esquema 3+1” (três anos de estudo das disciplinas específicas de cada licenciatura e um ano dedicado à formação pedagógica).

A formação inicial dos professores é criticada por pesquisadores como Contreras (2002), Formosinho (2009), Pereira-Diniz (2014) e Nóvoa (2017), dentre outros, que apontam suas deficiências ou seus efeitos negativos para outros níveis de ensino. Críticas que de modo geral podem ser sintetizadas pelas diferenças do status atribuído aos saberes a ensinar, que são objeto do trabalho docente, e aos saberes para ensinar, que são as ferramentas para realizar esse trabalho (HOFSTETTER; SCHNEUWLY, 2017, p. 131-132).

As licenciaturas, ao atribuírem menor status aos conhecimentos para ensinar, restringem a aquisição das ferramentas necessárias à realização do trabalho docente. Assim, o deslocamento da formação inicial dos professores para o ensino superior não surtiu os efeitos esperados, considerando-se os desempenhos dos estudantes em leitura e escrita.

A respeito da profissionalização docente, Nóvoa (2017, p. 1114) afirma:

Para avançar no sentido de uma formação profissional universitária, é necessário constituir um novo lugar institucional. Este lugar deve estar fortemente ancorado na universidade, mas deve ser um “lugar híbrido”, de encontro e de junção das várias realidades que configuram o campo docente. É necessário construir um novo arranjo institucional, dentro das universidades, mas com fortes ligações externas, para cuidar da formação dos professores.

Essas afirmações e as restrições dos cursos de licenciatura, já apresentadas, frustram a expectativa de que a transferência da formação inicial para o ensino superior, por si só, resolva os problemas da educação básica.

A menor ênfase nos saberes para ensinar se agrava nos cursos de Pedagogia, como revela a pesquisa feita por Gatti (2010, p. 1357) com base em 71 propostas curriculares de licenciatura em diferentes regiões do Brasil. Os resultados apontam o tratamento superficial “do como” ensinar, além da apresentação de modo incipiente e genérico dos “saberes a ensinar”. Os conhecimentos dos conteúdos de ensino para os anos iniciais do ensino fundamental também sofrem restrições e são incluídos em apenas 7,5% das disciplinas. Nesses resultados, que revelam uma ênfase curricular nos conteúdos mais gerais de fundamentos teóricos, pouco associados ao campo de ação docente, sobressai a frágil associação entre teorias e práticas pedagógicas.

As fragilidades da formação inicial impulsionam as demandas por formação continuada. Esta, por sua vez, não tem se mostrado suficiente para solucionar os problemas da alfabetização.

A investigação feita por Gatti (2010, p. 1357) propõe o enfoque dos saberes necessários ao trabalho docente.

No entender de Tardif (2002, p. 21-41), o ensino envolve diferentes saberes que o professor pode mobilizar para atender às necessidades impostas pelas situações reais que vivencia - saberes da formação profissional, das disciplinas, dos currículos e da experiência. Os saberes disciplinares e os curriculares são elaborados pela comunidade científica, e os da formação profissional são produzidos e legitimados pela universidade. Assim, a aquisição desses saberes requer a apropriação por parte do docente, ao passo que os saberes experienciais “não são saberes como os demais, ao contrário, são formados de todos os demais, mas retraduzidos, polidos e submetidos às certezas construídas na prática e na experiência” (TARDIF, 2002, p. 54).

Shulman (2014, p. 207) reconhece a ocorrência de produção de conhecimentos na prática pedagógica por um processo de mobilização de saberes da formação acadêmica referentes aos currículos e materiais didáticos e derivados da própria prática. Pesquisas realizadas com professores brasileiros confirmam a valorização dos saberes da experiência no aprendizado do ensino do processo da alfabetização. Micotti (2012, p. 163) afirma que os alfabetizadores novatos tendem a se apropriar e reproduzir a orientação de colegas mais experientes. Assim, as práticas dos docentes mais antigos moldam a prática dos iniciantes. Contudo, a persistência da problemática da alfabetização no país permite questionar a amplitude, a profundidade e os fundamentos dos saberes da experiência.

Tardif e Lessard (2014, p. 51) consideram experiente o professor que conhece:

[...] as manhas da profissão, sabe controlar os alunos, porque desenvolveu, com o tempo e o costume, certas estratégias e rotinas que ajudam a resolver os problemas típicos. Resumindo, diante dos diversos problemas concretos, ele possui um repertório eficaz de soluções adquiridas durante uma longa prática de ofício. Além disso, quando se interroga os professores a respeito de suas próprias competências profissionais, é, na maioria das vezes, a essa visão de experiência que se referem implicitamente, para justificar seu “saber ensinar”, que eles opõem à formação universitária e aos conhecimentos teóricos.

O cotejo dessas afirmações com as análises da formação docente anteriormente sintetizadas indica que a importância atribuída pelos professores aos saberes da experiência pode ser explicada pela defasagem entre os cursos de formação e a atuação docente - assunto que pressupõe a identificação dos saberes necessários para alfabetizar.

A diversidade das ações docentes dificulta a redução dos saberes necessários à realização dessas ações apenas na dimensão prática, uma vez que a própria prática envolve conhecimentos teóricos. Gauthier et al. (2013, p. 34) consideram importantes os “saberes da ação pedagógica”, legitimados pelas pesquisas e necessários à fundamentação da identidade profissional docente. São eles que diferenciam os saberes dos professores dos conhecimentos do senso comum. Além dos conhecimentos gerados na prática, eles englobam os saberes curriculares que consistem na interpretação das políticas públicas para a educação escolar e o trabalho docente.

O entendimento de que os saberes envolvidos na atuação docente são produzidos na própria experiência coloca em pauta as relações das teorias com as práticas pedagógicas, sobre as quais Tardif e Moscoso (2018, p. 393-394) dizem:

Ao contrário do que os positivistas sustentam, os fatos sempre estão impregnados de teorias, isto é, de crenças prévias. Por outro lado, longe de constituir dados brutos e diretamente constatáveis, nossas sensações e percepções corporais são filtradas em todos os momentos, organizadas e interpretadas pela cognição. A relação entre o pensamento e o mundo (o da teoria e dos fatos) não tem nada de transparente; pelo contrário, esta constitui o problema central da epistemologia do conhecimento científico ou ordinário.

O enfoque da participação do sujeito (do professor com sua subjetividade, suas crenças, cognição e teorias) nas relações que estabelece com o meio ambiente (na leitura e interpretação dos dados da experiência) gera questões sobre a interferência das próprias perspectivas docentes no trabalho do alfabetizador.

Sobre o assunto, Gauthier et al. (2013, p. 34) pontuam o envolvimento de outros saberes nas ações docentes, não apenas os gerados na própria prática pedagógica, colocando-se em pauta também os saberes curriculares. Quanto à interferência dos saberes curriculares, cabe considerar que o Pnaic propõe a alfabetização em sentido amplo (desenvolvimento de práticas sociais de leitura e escrita) e estrito (ensino/aprendizado do sistema de escrita alfabético), além da continuidade curricular do ensino em ciclo.

Desse modo, a ANA, ao mostrar resultados aquém dos previstos, revela a necessidade e importância da realização de investigações sobre os fatores dos desempenhos apresentados pelas crianças no final do ciclo de alfabetização, após três anos de estudos no EF.

Dentre as questões propostas destacam-se as seguintes: Como as professoras enfocam a alfabetização? Como focalizam sua formação? E o ensino que desenvolveram no início do Magistério? O que dizem sobre o ensino no ciclo de alfabetização? O que dizem sobre as dificuldades que encontram atualmente no trabalho docente? Como analisam a própria formação (inicial e continuada)? Como as professoras alfabetizam? Como essa atividade é desenvolvida no ciclo básico?

A busca de respostas para essas questões norteia a presente pesquisa, cuja realização se justifica pelos subsídios que podem proporcionar ao ensino e à formação de professores.

OBJETIVOS

Objetivo geral

A pesquisa visa a descrever os fatores da disparidade de desempenhos de alunos do ciclo de alfabetização de uma mesma rede pública de ensino, considerando a formação e os saberes docentes.

Objetivos específicos

  • a) Identificar possíveis relações dos desempenhos discentes com os enfoques dados pelas professoras à alfabetização, às relações entre teorias e práticas pedagógicas, à sua formação profissional - inicial e contínua -, às experiências iniciais no Magistério, aos saberes que embasam o fazer docente.

  • b) Identificar os procedimentos adotados nas escolas quanto à estruturação e ao trabalho no ciclo de alfabetização.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A metodologia adotada é a qualitativa-descritiva. São contrastados os resultados obtidos junto às professoras (cujos alunos apresentam desempenhos díspares na ANA/2014) quanto ao enfoque dado à alfabetização e quanto aos vários aspectos de suas experiências docentes contemplados nos objetivos propostos.

Participantes

Participaram da pesquisa dois grupos de professores de quatro escolas de uma mesma rede pública de ensino de cidade do interior paulista, cujos alunos apresentam nível socioeconômico (classificação apresentada pela ANA) equivalente. Um grupo de docentes, o G1, é formado por seis docentes (PA1, PA2, PA3, PA4, PA5, PA6) das duas escolas que obtiveram as maiores pontuações da rede na ANA/2014, e o outro grupo, o G2, por quatro docentes (PB1, PB2, PB3, PB4) das duas escolas que obtiveram as menores pontuações nessa avaliação.

Os dados da ANA/2014 sobre os níveis de proficiência revelam que as escolas do G1 apresentam um desempenho médio de 76% de estudantes em faixa adequada de aprendizado em leitura e de 95% em escrita; já as escolas do G2 obtiveram resultados em leitura de 43% de alunos em nível adequado e de 75% em escrita.

Dessas quatro escolas, foram identificadas dez docentes (seis do G1 e quatro do G2) que lecionaram no ciclo de alfabetização da mesma unidade durante os três anos anteriores à avaliação ANA/2014.

Quanto à formação inicial, todas as professoras (do G1 e do G2) fizeram o curso de Magistério. As professoras do G1 também cursaram licenciatura e especialização em educação, sendo que três delas, PA1, PA4 e PA5, se licenciaram em Pedagogia, e duas, PA2 e PA6, em outras licenciaturas. Duas das quatro docentes do G2, PB1 e PB2, se licenciaram em Pedagogia; uma, PB3, no Normal Superior; e uma PB4, em Sociologia, tendo realizado, também, especialização. Assim, o G1 diferencia-se do G2 por incluir maior número de docentes que concluíram um curso de especialização.

Em alfabetização, o tempo de experiência das professoras varia, no G1, de 12 a 30 anos, e, no G2, de 9 a 29 anos. Assim, é possível considerar que o G1 e o G2 apresentam um tempo de serviço equivalente; suas integrantes atuam nas respectivas unidades escolares há mais de sete anos.

Instrumento para a coleta de dados

Entrevista

O roteiro semiestruturado da entrevista compõe-se de informações sobre os cursos realizados e o tempo de Magistério; a experiência inicial com a alfabetização; a formação docente inicial e continuada e os conhecimentos que embasam o fazer docente atual; o ensino no ciclo de alfabetização; e as dificuldades que encontraram e encontram em sua atividade docente.

O tratamento dos dados baseou-se na análise de conteúdo (BARDIN, 1979), segundo as indicações de Lüdke e André (1986).

RESULTADOS

Os sentidos da alfabetização

Os enfoques dados à alfabetização foram examinados com base nas respostas das professoras sobre o que significa, no ambiente escolar, afirmar: “Este aluno está alfabetizado”.

Os resultados revelam variações nos enfoques da alfabetização apresentados pelas professoras, cujo exame revela duas grandes categorias. Uma, a categoria A, é formada por respostas restritas ao acesso à leitura e à escrita na perspectiva de alfabetização apenas como trabalho escolar. Já a categoria B é formada por respostas que focalizam na alfabetização de modo mais amplo, mencionando o acesso a práticas sociais de comunicação.

Na categoria A, distinguem-se três subcategorias. A primeira (A1) enfoca na alfabetização em termos de leitura com compreensão. Nela situam-se afirmações como a de PA6: “Estar alfabetizado não é mais compreender o código, é que ele [o aluno] tenha leitura e compreensão do que ele está lendo”.

Esses dizeres, apesar de negarem a alfabetização como aquisição do código alfabético, restringem a leitura à compreensão. As respostas da subcategoria (A2) diferenciam-se pela inclusão da escrita. Segundo PA4: “Estar alfabetizado é estar lendo e escrevendo, compreendendo aquilo que ele está lendo”, e, segundo PB4, “Estar alfabetizado é quando já dominou a leitura e a escrita”.

A subcategoria (A3) compõe-se de respostas que acrescentam referências à leitura e à escrita de textos:

Escrever e ler corretamente. Então, tem que sair do terceiro ano escrevendo corretamente, lendo fluentemente, e tem que sair produzindo textos bons, porque, aí, quarto e quinto ano só vai estar dificultando e aprofundando os conteúdos. (PA5)

Pra mim, um aluno alfabetizado, ele tem condições de construir suas próprias hipóteses. Ele tem condições de ler um texto, compreender e interpretar o que ele tá lendo, que ele consiga produzir a escrita de algum texto. (PB1)

Assim, a alfabetização é considerada como acesso à leitura e à escrita de textos, porém, como atividades escolares.

A categoria B compõe-se de respostas que apontam para a realização da leitura e da escrita “fora dos muros da escola”, sinalizando de algum modo suas funções sociais. Esse é o caso das respostas de PA1, PA2, PA3 e PB2 e PB3 (destaques nossos):

[...] alfabetizar é muito mais coisas do que só usar o código. Quando a criança, por exemplo, lê uma notícia, e ela entende aquela notícia. Ah! então ela vai adquirir isso com o passar dos anos. Quando a criança começa a entender o significado daquilo que ela está lendo ou fazendo, aí ela vai estar alfabetizada. A compreensão é saber lidar no dia a dia, [...] ela sabe pegar o ônibus pra onde que ele vai, é uma leitura pra vida. (PA1)

Estar alfabetizado é uma criança que ela consegue dominar a leitura e a escrita, fazer bons textos, saber a função também dos textos, né, que ele vai usar. (PA2)

Ele deve ter um completo domínio da leitura da escrita e saber utilizar esse domínio na sociedade, como um indivíduo dentro de uma sociedade. (PA3)

Além de saber ler e escrever, tem que também reconhecer o que ele lê e pra que ele vai usar, porque senão vira só funcional, se ele não souber por quê. (PB2)

Eu entendo assim, o aluno, ele tem que saber ler, saber escrever e interpretar textos. Fazer bons textos, ele deve conseguir fazer ligação com a vida que ele tem, né, quando ele vai ler alguma coisa, ele vai no supermercado. (PB3)

Nota-se que, nas duas categorias, A e B, situam-se as respostas tanto das professoras das escolas do G1 (os mais altos escores) como das escolas do G2 (os mais baixos escores na ANA/2014). Essa distribuição não permite atribuir as diferenças entre desempenhos de alunos aos enfoques dados pelas professoras à alfabetização.

Vejamos as respostas relativas à formação inicial e ao trabalho docente, assinalando que todas as docentes realizaram o curso Magistério exigido como formação necessária para o ingresso na profissão docente.

A formação docente e as experiências iniciais no Magistério

As respostas das integrantes do G1 sobre a própria formação e as experiências iniciais como alfabetizadoras variam.

PA6 (A1), graduada em Sociologia e com especialização em Psicopedagogia, diz:

Eu acho que, dos três cursos que eu fiz, talvez o mais prático tenha sido o Magistério.

[...] a Sociologia [curso] me deu um olhar diferente sobre a sala de aula [...]. Você acaba vendo o aluno como um todo, então eu acho que enriqueceu muito o meu trabalho.

[...]

Acho que é um pouco de cada coisa porque eu sou de uma linha de trabalho tradicional, já ficou claro, e eu gosto. Eu me sinto segura quando tem uma sequência de trabalho, eu não me sinto muito segura trabalhando projeto, por exemplo, pra mim é muito aberto e parece que no meio dessa atividade eu vou deixar algumas falhas, eu vou deixar conteúdo sem trabalhar. Então eu me baseio nessa forma de trabalho que me dá segurança, que é fruto da minha experiência, e vou completando.

Desse modo, PA6 estabelece correspondência entre a valorização do Magistério e o ensino tradicional.

A docente PA4, licenciada em Pedagogia, cujo enfoque de alfabetização insere-se em A2, também valoriza o Magistério, dizendo:

[...] o que mais me deu suporte foi o Magistério; eu vou ser bem sincera porque a gente tinha bastante aula de didática, a gente fazia estágio e tinha os momentos de regência. Então era muito aplicável aquilo que a gente aprende. Eu acho que contribuiu muito, enquanto eu estava fazendo Magistério, eu já lecionava, eu pegava substituição, eu fui me aproximando daquilo que eu estava vendo na teoria e colocando em prática. (destaques nossos)

PA4 destaca o Magistério em sua formação, mas acrescenta a própria atuação docente como fator de integração de teorias e práticas pedagógicas, além do recurso aos conhecimentos da experiência das colegas:

Olha, no começo, eu não tive tanta dificuldade. Quando eu cheguei aqui, eu tinha as minhas colegas de trabalho que sempre falavam o conteúdo que elas estavam trabalhando e tive apoio das colegas assim no começo.

Sobre a formação profissional, PA5 (subcategoria A3), graduada em Pedagogia e com especialização diz:

O Magistério não ofereceu praticamente condições pra você alfabetizar, o Magistério não. Agora, tanto a Pedagogia quanto História e Geografia deram bastante base. História e Geografia, a questão de você pesquisar, procurar. A Pedagogia, eu tive um curso bom, não foi excelente, mas foi bom. É claro que não deu conta de tudo, mas eu acho que é impossível dar conta de tudo. Acho que é o dia a dia que você vai trabalhando, eu percebo assim, que deu uma base boa. (destaques nossos)

Em seus dizeres, PA5, ao avaliar os cursos realizados, não valoriza o Magistério e reconhece as restrições dos outros cursos realizados, além de apontar para o recurso dos conhecimentos da experiência alheia, assim explicado: “Eu era bem jovem e seguia as colegas mais velhas.”

As manifestações sobre o curso de Magistério feitas pelas docentes cujos enfoques de alfabetização se situam na categoria A diferem do que dizem as professoras cujos enfoques de alfabetização se situam na categoria B, ou seja, as que apontam para a realização da leitura e da escrita “fora dos muros da escola”.

Sobre a formação inicial e os conhecimentos necessários para alfabetizar, PA1 diz:

Houve um aprendizado necessário. É necessário a gente passar pela teoria, a gente tem que conhecer. Mas é importante também fazer a faculdade, você tem que gostar do que está fazendo para poder pegar e aprender, porque fazer por fazer não se leva a nada. No meu caso, era um sonho, então foi muito bom. Mas, uma coisa eu falo, é muito diferente a teoria da realidade, a nossa realidade é muito diferente daquilo que é explicado, trabalhado. Eles deviam... deviam ser diferentes, nós, na época que estamos estudando... devíamos fazer mais estágio... sabe, porque é diferente, é no dia a dia que a gente aprende a alfabetizar.

Esses dizeres que destacam as restrições dos cursos realizados diferem dos apresentados pelas participantes cujos enfoques de alfabetização se situam na categoria A. Apontam falhas no curso de Magistério por envolverem estudos teóricos necessários, porém distantes da realidade; apesar de prescreverem mais estágios, ressaltam que é “no dia a dia que a gente aprende a alfabetizar”. Um enfoque análogo é apresentado por PA2:

Olha, realmente, a gente não tem muita base não… É mais com a reflexão do dia a dia, assim, com a experiência vem o aperfeiçoamento do professor através do estudo, refletindo o que você tá fazendo, procurando novos conhecimentos, novas formas de trabalho com os alunos, que você vai adquirindo essa experiência.

Mas, assim, só o Magistério eu acho que foi pouco, lá eu acho que é a experiência, é em sala de aula que a gente aprende. A gente aprende a parte da didática, o Magistério tem uma parte que é muito boa, mas eu acho que seria uma ótima a professora fazer Magistério pra depois concluir a parte de Pedagogia. Acho que sairia mais experiente. (PA2, destaques nossos)

Sobre as suas experiências iniciais PA2 diz:

No início é sempre uma experiência diferente. Então, lógico que nós temos dificuldades, e também eu tive apoio da parte pedagógica da escola, os professores mais especializados que trabalhavam com a sala de alfabetização. Era um método tradicional, nessa época era utilizada a cartilha.

Assim, a contribuição do curso de Magistério é admitida com restrições e assinala-se a falta de base para alfabetizar. O aprendizado do ensino é atribuído à experiência prática, aos estudos e às reflexões sobre a própria prática. A metodologia tradicional, vigente no início das atividades docentes, também é mencionada.

Nessa resposta destaca-se a indicação da reflexão e dos estudos na busca de conhecimentos, além do apoio dos colegas mais experientes. Tais procedimentos são apontados também por PA3, que diz:

A minha formação inicial foi com Magistério. Eu percebo que muitas coisas que eu aprendi foram boas e importantes para se dar aula, como o modo de usar uma lousa, as várias letras, as várias escritas das letras do alfabeto, procedimentos éticos foram importantes na formação inicial. A minha graduação foi específica na área de Educação Artística. Então, forneceu conhecimentos para as turmas maiores, pra alfabetização, o Magistério deu conhecimentos básicos. No início da carreira, esses conhecimentos foram importantes, mas houve a necessidade de buscar mais conhecimentos para poder atuar, não eram o suficiente. Então, seria um conhecimento que procurei em livros e trocas de experiências com colegas de trabalho e também especialização dentro dessa área pra poder atuar como professora. (destaques nossos)

Assim, PA3 também reconhece a contribuição do Magistério por propiciar conhecimentos básicos, porém insuficientes para sua atuação como alfabetizadora, propondo a necessidade de leituras, de curso de especialização e trocas de experiência com as colegas.

Vejamos o que dizem as participantes do G2, cujo enfoque de alfabetização é classificado na categoria B, sobre a formação e as experiências iniciais como alfabetizadoras.

A docente PB4 valoriza o Magistério, mas argumenta o seguinte a respeito do ensino tradicional:

O Magistério deu uma base que eu fiquei mais segura daquilo que eu estava passando, então, assim, pra você dar aula, você tem que saber mais que todo mundo. Então, você se prepara muito.

[...] a gente seguia aquilo que a gente aprendeu, era bem tradicional, e as crianças, elas aprendiam por memorização, naquele sistema antigo. (PB4, destaques nossos)

Destaca-se aqui a opção pela didática tradicional - o ensino como transmissão de conhecimentos, a memorização -, confirmando outras declarações sobre a atuação docente inicial:

[...] Eu achei que eu não tive dificuldades, porque, assim, eu fiz Magistério. A parte de didática, eu acho que foi muito boa, a gente dava bastante aula, fazia bastante regência, e ela desafiava muito a gente, nós dávamos aula pra nós mesmas. Então, eu acho assim, eu sempre gostei, e eu não tive dificuldade, acho que nasci pra isso.

[...]

O começo eu achei que foi tranquilo, porque não tinha tantas linhas, tantos seguimentos, era a cartilha e o livro, e pronto, a gente seguia aquilo que a gente aprendeu, era bem tradicional, e as crianças, elas aprendiam por memorização, naquele sistema antigo. O professor falou, e eles aceitavam, não tinha aquela coisa de pré-requisito de crianças, de estimular, você passava a lição, e eles aprendiam a ler, escrever e fazer continhas. Eu achei que eu não tive dificuldades, porque, assim, eu fiz Magistério. (PB4)

Desse modo, a docente explica a valorização do Magistério, apresentando uma visão positiva do ensino tradicional e considerando a atuação e os saberes docentes como dons.

Sobre a formação inicial PB 1 (subcategoria A3) diz:

O meu Magistério contribuiu muito pra minha decisão e pro que eu sou hoje. [...] o jeito de repartir uma lousa, de escrever, até hoje eu lembro direitinho como a minha professora de didática me ensinou.

[...]

Era um curso que eu gostava muito e tinha muito desejo de ser professor. Então pra mim era tudo novidade, mas eu não encontrava dificuldades porque eu gostava, buscava soluções, era uma fase assim... eu encapava caderninho, era tudo muito padronizado as coisas que eu trabalhava.

Apesar de elogiar o Magistério, PB1 aponta para a necessidade dos conhecimentos da experiência, ao dizer:

Eu sempre tive sorte nas escolas que eu passei de ter uma colega de classe que a gente tava sempre trocando atividades, trabalhando juntos.

Logo que eu me formei, eu já comecei a trabalhar.

Sobre a própria formação e suas experiências iniciais no ensino, as docentes do G2, de enfoque de alfabetização da categoria B, apresentam outras manifestações.

PB2, que realizou também o Normal Superior e o curso de especialização, diz:

Eu acho que a nossa formação é muito falha, porque quando você vai enfrentar a turma é que você vê que teve uma lacuna muito grande. Você tem uma parte de teoria, mas mesmo você fazendo estágio, trabalhando para ver como funciona uma escola, uma escola nunca é igual todo dia. Então, quer dizer que para você manter a sua profissão, no Magistério, eu não aprendi como manter uma turma, manter a disciplina, começa aí, e também a parte de conteúdo […]. (destaques nossos)

Sobre as próprias atuações iniciais, PB2 assinala:

No início eu encontrei muita dificuldade. Como substituta quando eu iniciei no Magistério, eu iniciei como estagiária [...].

Você vai no dia a dia, porque cada criança é de um jeito, cada uma tem a sua história. (destaques nossos)

Com essas palavras, PB2 destaca as falhas da formação no tocante à interação com os alunos - gestão da turma - e à gestão do conteúdo, e questiona os estágios.

Em contraposição, PB3, que também cursou Pedagogia, diz:

Agora, o que foi ensinado no Magistério, eu achei que tava bem distante da realidade, do que eu tive que trabalhar.

No Magistério, eu achei que foi importante, e a parte mais importante que eu achei foi do estágio. No estágio, eu via como a professora ia dar suas aulas, e foi o que eu utilizei no começo do meu trabalho, porque eu nunca tinha dado aula antes. Só o estágio mesmo que observei. (destaques nossos)

Em suas manifestações, PB3 destaca o estágio como observação de aulas e reprodução das atividades docentes rotineiras, acentuadas no ensino padronizado que desconsidera as interações dos alunos com o objeto de estudo e o papel dessas interações no aprendizado. Sobre a graduação realizada, afirma que:

Na Universidade, embora tenha sido um ano e meio, aquela do PEC [...], teve a nova lei, eu tive que fazer a faculdade, eles fizeram isso pra gente, adorei. Foi um ano e meio, e eu achei muito bom, porque a gente viu a teoria e conseguiu trabalhar com ela, né. Isso me ajudou bastante, parece que os olhos abriram mais.

Essas afirmações revelam a mudança do enfoque dado por PB3 às relações das teorias com as práticas pedagógicas, considerando o contexto das próprias vivências por ocasião dos estudos, realizados no Magistério, e, depois, no ensino superior, ao ter que voltar a estudar após vivenciar situações reais de ensino. Dentre essas afirmações destaca-se, além da observação nos estágios, o papel atribuído aos estudos teóricos. Estes são considerados como fatores de novos olhares, ou seja, do estabelecimento de relações entre teorias e práticas pedagógicas. Aqui encontra-se o enfoque da vivência do ensino como background para o entendimento da teoria: “agora já dispunha de práticas que davam sentido à teoria estudada” (PB3).

No que tange às experiências iniciais no ensino, PB3 diz:

Fui pra sala de aula como quem vai pra algum lugar que não conhece onde tá indo, eu não sabia o que ia fazer no primeiro dia de aula, pra ser bem sincera. Bom, minha aula, primeiro dia e segundo dia, eu procurei uma professora da escola que tivesse experiência, ela já era, assim, mais idosa, já trabalhava há muitos anos naquela escola. Aí, pedi pra ela ajudar, e a resposta dela foi a seguinte: “se você não for me atrapalhar muito, posso ajudar”. Eu morri de vergonha, fiquei constrangida e tentei me virar do meu jeito. Fui olhando atividades das amigas e fui me virando. (PB3)

Observa-se nesses dizeres a mudança do significado atribuído aos conhecimentos teóricos que ocorre com o retorno aos estudos e o desenvolvimento da própria experiência docente, isto é, após as vivências de práticas pedagógicas reais.

Mas o que dizem os resultados sobre as questões que norteiam a pesquisa? Como as alfabetizadoras focalizam sua formação inicial? E o ensino que desenvolveram no início do Magistério?

Dentre as três professoras do G1 que enfocam na alfabetização em termos escolarizados, PA5 critica o Magistério, mas PA4 e PA6 o valorizam em conexão com o ensino tradicional. As professoras PA1, PA2 e PA3, que mencionam as práticas sociais de comunicação no enfoque dado à alfabetização (categoria B), admitem com restrições a contribuição desse curso; sem registrar adesão ao ensino tradicional, mencionam a predominância desse ensino por ocasião do ingresso na docência.

Das quatro professoras do G2, duas (PB1 e PB4) restringem a alfabetização à leitura ou à escrita e leitura com compreensão, elogiam o curso de Magistério e valorizam o ensino tradicional. As professoras PB2 e PB3, que incluem as práticas sociais de comunicação, no enfoque de um aluno alfabetizado, criticam a formação inicial no curso Magistério; contudo, PB3 diz que, para ensinar, recorreu a práticas observadas em estágios feitos durante esse curso.

O exame desses resultados, considerando-se as categorias dos enfoques dados à alfabetização, mostra que as manifestações de PA4 e PA6, PB1 e PB4, que valorizam o curso Magistério e o ensino tradicional, se inserem na categoria A.

Os resultados referentes à formação docente e às experiências iniciais no ensino dos grupos de participantes da pesquisa G1 e G2 confirmam o que Gatti e Nunes (2009) identificaram em suas pesquisas sobre a precariedade da formação docente.

É interessante notar a ocorrência, nas manifestações das docentes, de contraposições do ensino atual ao ensino no passado. Contraposições que confirmam as afirmações de Tardif e Moscoso (2018, p. 404) sobre a problematização do ensino, na atualidade, que impõem aos professores a realização de decisões não estritamente determinadas pela escola, pela sociedade ou pelas tradições.

A análise dos resultados da pesquisa, obtidos junto às docentes dos dois grupos de escolas participantes da pesquisa, revela que no G1 as indicações do recurso aos saberes da experiência dos colegas são mais frequentes que no G2. Entre as docentes do G2, apenas uma das quatro professoras afirma ter utilizado esse recurso.

As integrantes do G1 reconhecem a obtenção e a utilização dos conhecimentos da experiência de professores mais antigos, que consistem, sobretudo, em empréstimo de registro de aulas, atividades e exercícios didáticos, referentes ao conteúdo trabalhado. Isso sugere a transposição do enfoque pedagógico dado à leitura e à escrita, implícito no ensino realizado pelos mais antigos, adequado a seus alunos, para as aulas dos professores iniciantes, ministradas para outros alunos.

O recurso aos saberes da experiência alheia é mencionado com foco na gestão do conteúdo (GAUTHIER et al., 2013, p. 345). Contudo, a mesma abordagem não é mencionada com a mesma frequência no tocante à gestão da turma, apesar de ser incluída entre as deficiências da formação docente por algumas participantes.

Uma explicação possível para isso é a de que essa diferença ocorra em consequência da complexidade dessa dimensão do ensino que envolve as dinâmicas e interações sociais nas aulas, dificultando a transferência de procedimentos de uma situação pedagógica para outra.

A valorização dos saberes da prática corresponde às afirmações de Tardif (2002, p. 63-86) sobre a ênfase dada pelos docentes à prática como fonte de seus conhecimentos.

A ênfase no papel da própria experiência docente para o desenvolvimento dos saberes profissionais, observada nos resultados da presente pesquisa, confirma as afirmações de Tardif e Lessard (2014, p. 51) sobre o fato de os professores atribuírem o “saber ensinar” a essa experiência, em contraposição à formação universitária e aos conhecimentos teóricos.

O aprendizado do ensino com a própria experiência conduz à questão do enfoque dado pelas professoras aos cursos de formação contínua; questão que se torna relevante, dada a intensificação desses cursos na atualidade.

Vejamos se essa formação afeta o processo de aprendizagem inicial da leitura e da escrita por parte das crianças e, em caso de resposta afirmativa, como isso aconteceria.

A formação contínua

Os resultados indicam que todas as participantes da pesquisa, por pertencerem à mesma rede de ensino, realizam os mesmos cursos. Desse modo, não são observadas diferenças entre os dois grupos - G1 e G2. Sobre o assunto, as professoras mencionam cursos de curta duração, realizados em universidades públicas, e os oferecidos pela Secretaria de Educação. Mencionam, sobretudo, os ministrados no âmbito do Pnaic e Letra e Vida (formação destinada aos docentes da rede pública do estado de São Paulo, que teve início em 2003). Algumas respostas do G1 apresentam afirmações genéricas sobre a contribuição desses cursos para os saberes docentes:

Eu acho que os cursos que eu faço na parte de Língua Portuguesa ajudam a entender o processo de leitura e escrita da criança. Os cursos ajudam a entender esse processo cognitivo da criança, e acho que são importantes, eu gosto de aprender. Esse ano, eu fiz um curso sobre linguística, o qual foi muito bom e importante na prática. (PA3)

O Pacto, na verdade, eu aprendi coisas novas, mas ele veio a complementar o Letra e Vida e trazer, assim, um pouco mais a questão dos textos. (PA5)

Nota-se que o reconhecimento da importância desses cursos é apresentado de modo geral, sem especificar suas contribuições para o ensino.

Dentre as atividades de formação contínua, cabe lembrar as que ocorrem nos horários de trabalho pedagógico coletivo (HTPC), em reuniões com membros da equipe gestora e professores de cada escola. As manifestações sobre o HTPC revelam diferenças entre as escolas e as participantes da pesquisa.

A metade das professoras do G1 - PA1, PA2 e PA4 - reconhece o HTPC como espaço formativo, por envolver estudo e troca de experiência.

Agora, a gente tem o tempo da gente para estar trabalhando com nossa colega, preparando os conteúdos ou semanários uma semana antes, e depois tem o coletivo, é passado o recado, sim, mas tem momentos que ela [coordenadora] traz alguma coisa pra gente de estudo. (PA1)

O HTPC é um espaço relevante que a gente pode conversar entre os pares na sala, a troca de experiência [...]. No planejamento as professoras levam os conteúdos, as atividades, vamos trocando atividades e encaixando no planejamento semanal. (PA2)

Eu vejo que os nossos HTPC sempre discutem mudanças, o que está acontecendo, é um momento muito rico de troca com os nossos companheiros de trabalho. Eu vejo como um momento muito rico, e eu procuro aproveitar melhor. (PA4)

Assim, essas professoras do G1 valorizam o HTPC como espaço de socialização e de decisões compartilhadas. Quanto às demais docentes do G1 - PA5 e PA6 -, elas não manifestam essa percepção, e PA3 não citou o HTPC como espaço de formação.

Quanto às professoras do G2, apenas PB2 reconheceu, na entrevista, o papel do HTPC como espaço de formação.

Esses resultados são relevantes diante dos objetivos desta pesquisa, pois podem ajudar a esclarecer as diferenças entre desempenhos de alunos do EF em leitura e escrita. Isso ocorre porque a estrutura do trabalho pedagógico em ciclo pressupõe a continuidade do processo de ensino e aprendizagem, e esta, por sua vez, o trabalho coletivo, sendo que o HTPC pode favorecer a realização desse trabalho, dependendo de sua organização.

O desempenho da função docente na atualidade

Ao serem questionadas sobre os recursos que, atualmente, utilizam para ensinar, as professoras do G1 afirmam (destaques nossos):

A gente vai guardando o que a gente vai recebendo, né. É a teoria dos cursos, os trabalhos dos amigos da gente no trabalho que comentam, a experiência da gente. É um bloco, [...] é um saber que foi constituído entre a faculdade, a experiência, o meu trabalho desenvolvido em sala de aula, é uma junção de tudo isso, né, o saber do professor que nos leva a montar, montar, preparar. (PA1)

[...] a experiência, para elaborar as minhas atividades, né. Mas, assim, às vezes a gente recorre, sim, àquele livro do Pacto, àquelas atividades matemáticas. Essa semana já fiz uma lá do jogo matemático do Pacto. Às vezes é o do Ler e Escrever, às vezes eu pego o livro lá que eu lembro: “olha, isso aqui encaixa”. Eu tô sempre recorrendo à parte também teórica pra reflexão do dia a dia e ajudar na prática. (PA2)

[...] me baseio no currículo que nós temos. Procuro atividades no livro didático que estejam de acordo com o que o currículo pede, algumas atividades nós elaboramos entre os colegas de trabalho, trocamos ideias e, se for uma atividade que eu vejo que vai surtir um bom resultado, eu utilizo, sim. A experiência também conta. (PA3)

Olha, sendo bem sincera, minha fonte é a internet. Eu tenho lá um tema de Ciências, Geografia e História, então os textos eu retiro, sim, da internet, selecionando muito. Eu transformo totalmente as atividades, eu pego e faço adequação pra idade deles, e, aí, eu mexo muito. Eu não pego atividades totalmente prontas, e eu transformo, pego o texto, seleciono imagens. Daquilo que foi válido que eu já fiz muitas coisas, eu guardo. Aí, eu utilizo, sim. (PA4)

Eu busco nos cursos que a gente vem fazendo, principalmente no decorrer dos mais atuais, a formação de faculdade é mais aquela base de você conhecer alguns teóricos. (PA5 e PA6)

As docentes do G1 mencionam os conhecimentos de sua própria experiência, além das experiências obtidas com as colegas. Mas, nas manifestações de algumas integrantes desse grupo, há menção à avaliação da validade de sua utilização com os próprios alunos, por ocasião do “empréstimo”, além da realização de adaptações, como é o caso de PA4.

As manifestações das docentes do G2 (destaques nossos) diferenciam-se por apontarem outros referenciais utilizados em seu trabalho, como revela a leitura das transcrições dessas manifestações, a seguir apresentadas:

[…] vivências, estudos, conversas com os colegas. As minhas aulas são planejadas de acordo com o currículo que a gente tem que seguir. Então, a gente viu lá tudo que precisa ser trabalhado, aí eu busco em materiais. A gente sempre está lembrando que a gente já viveu, já estudou, conversa com os colegas, e daí a gente chega a um consenso do que é melhor a ser aplicado naquela área. (PB1)

Eu já englobo tudo porque você faz as pesquisas em junção com livros didáticos, mas às vezes você vai atrás de uma revista, de materiais que trazem novos recursos, você procura na internet, conversa com outro professor pra saber o que deu certo, o que não. [...] Então, são coisas assim que eu vou procurando, lendo. Tem uma formação que eu tive o Pacto, aí eu falo assim “é isso, daqui eu puxo”, então eu vou fazendo tudo, uma junção de cada coisa. (PB2)

Bom, pra planejar a aula, eu busco meus conhecimentos desses 23 anos, desses cursos que eu fiz que foram muito importantes e também a experiência das colegas. A gente conversa, né, mesmo no intervalo, todos os momentos. Às vezes, quando eu entro na sala de aula de alguma amiga, eu dou uma olhada na lousa, e eu vejo às vezes alguma coisa diferente [...]. (PB3)

Eu acho que esse conhecimento é o fruto da minha experiência, eu acho nem se eu não planejar, já tá na minha cabeça, eu já tenho estruturado porque eu já consigo imaginar o que eu vou dar, a sequência do que eu vou dar, só que eu faço assim, eu faço um quadro mensal. (PB4)

As afirmações das docentes do G2 são marcadas pela ênfase dada à própria atuação ou aos saberes que desenvolveram com a experiência. Aliás, as avaliações feitas pelas colegas sobre o sucesso de atividades ou procedimentos são determinantes na seleção de procedimentos para o ensino, ainda que o êxito tomado como critério de validade desses procedimentos tenha sido obtido por outros alunos, possivelmente, diferentes dos seus.

A continuidade do ensino no ciclo de alfabetização

O exame dos resultados das entrevistas, feitas com as professoras mostra que o ensino nas escolas do G1 se diferencia daquele realizado nas escolas do G2 quanto à progressão dos conteúdos trabalhados no decorrer do ciclo de alfabetização.

A respeito dos objetivos de aprendizagem que devem ser alcançados do 1º ao 3º ano de escolaridade, as professoras do G1 explicitam o que os alunos devem aprender em cada ano do ciclo de alfabetização. A aquisição do sistema de escrita alfabético é mais acentuada nos primeiros anos. Gradativamente, os conteúdos tornam-se mais densos de um ano para o outro até chegar aos aspectos mais formais da língua, trabalhados, sobretudo, no 3º ano.

Essas professoras, de modo geral, destacam que cabe ao ensino, no 2º ano, consolidar o aprendizado do sistema de escrita alfabético e avançar o trabalho de produção textual. A professora PA4 diz: “o segundo ano vai aprofundar mais na parte da produção e vai retomar aquilo que ficou em defasagem, parte da acentuação, pontuação”.

No 3º ano, os conteúdos são mais complexos. No entender de PA6: “você tem que trabalhar com conteúdos difíceis, você sai de conteúdos concretos e tem que trabalhar com conteúdos conceituais”. A professora PA5 também diz: “um terceiro ano teria que chegar ao final escrevendo muito bem, um texto bem escrito, usando bem a gramática que faz parte do conteúdo, fazendo uma leitura com compreensão, com ortografia boa”.

Essa compreensão do que deve ser ensinado corresponde ao que Tardif (2002, p. 38) e Gauthier et al. (2013, p. 29-30) denominam de “saberes curriculares”, referindo-se aos objetivos, conteúdos e métodos selecionados pela instituição escolar como modelo da cultura erudita para a formação dos alunos.

Dentre as docentes do G2, apenas PB4 faz alusão aos objetivos de aprendizagem do ciclo de alfabetização que devem ser alcançados, mas sem focalizá-los no trabalho escolar. A professora PB2 diz que um esquema dos conteúdos que os alunos deveriam aprender foi elaborado pelo coletivo da escola, mas que, na prática, não funciona. As demais docentes desse grupo, que lecionam na mesma escola de PB2, apontam para a necessidade dessa discussão coletiva para a definição de objetivos claros de aprendizagem. PB1 diz:

A gente tem conversado bastante com os professores sobre essa questão, do que até onde cada um tem que chegar pra ver se a gente realmente diminui essa defasagem, que a gente percebe que ela existe. Mas, a gente não conseguiu ainda resolver tudo.

Sobre o assunto, PB3 assinala:

Durante todos esses 23 anos, eu fui tendo o esqueleto do que eu preciso dar, mas eu não vejo isso de forma muito clara nos outros anos. Eu não vejo, eu acho que teria que ter uma coisa assim simples, sabe, sem muita poluição visual, é um esqueleto mesmo, tópicos bem simples.

Verifica-se que as professoras do G2 apresentam a necessidade de disporem de parâmetros de aprendizagem com vistas à continuidade do ensino no ciclo de alfabetização. Mas que esses ainda não foram transformados em ação, prejudicando a continuidade do ensino em ciclo.

Sobre a definição desses parâmetros de aprendizagem para o ciclo de alfabetização, apenas PB4 do G2 apontou os objetivos a serem alcançados, afirmando: “O primeiro tem que fazer o papel dele que é aquele básico”.

Sobre as dificuldades atualmente encontradas no ensino, as professoras PA3, PA5 e PA6 do G1 apontaram as diferenças, cujo atendimento requer enfoque pedagógico diferenciado. Dizem encontrar dificuldades em atender todos de acordo com suas necessidades, como afirma a professora PA6: “a maior dificuldade é conseguir abraçar todos, dar um encaminhamento e garantir que todos estão aprendendo”. As docentes PA1 e PA4 mencionam, além dos comportamentos dos alunos, a falta de apoio familiar e os problemas particulares que interferem na aprendizagem.

Quanto às dificuldades referentes ao ensino, as docentes do G2 - PB2, PB3 e PB4 - destacam o esforço necessário para manter a atenção e disciplina na classe:

Dificuldades eu encontro principalmente na atenção, porque hoje eles vêm muito dispersos, e é muito difícil você manter a atenção deles por muito tempo. (PB2)

Eu tenho dificuldades em manter o foco deles, é a concentração. (PB3)

Estou tendo muita dificuldade em relação à disciplina e atenção. (PB4)

A comparação dos dois grupos de escolas, quanto às dificuldades para alfabetizar, revela que a metade do G1 (PA3, PA5 e PA6) ressalta os diferentes níveis de aprendizagem, e três das quatro docentes do G2 (PB2, PB3 e PB4) apontam aspectos ligados ao comportamento dos alunos. Por sua vez, a professora PB1 afirma não enfrentar dificuldades em função de sua experiência como alfabetizadora.

CONCLUSÕES

Os resultados da presente pesquisa revelam diferenças entre as ações pedagógicas dos dois grupos de escolas participantes da pesquisa - G1 com os maiores e G2 com os menores desempenhos na ANA/2014. Essa diferença ocorre apesar da semelhança entre a formação contínua das docentes, o tempo e a experiência de Magistério das professoras, além da equivalência do nível socioeconômico dos alunos.

Sobre a titulação das docentes do G1, cabe considerar a sua não incidência de modo significativo nas manifestações das professoras feitas em entrevista.

Nas escolas com maior desempenho na ANA/2014 (G1), os resultados da pesquisa indicam que as professoras manifestaram compreensão da estrutura curricular em ciclo e dos objetivos de aprendizagem que precisam ser alcançados em cada ano de escolaridade que compõe esse ciclo, proporcionando um trabalho necessário ao aprendizado da leitura e da escrita.

Apoiam essa conclusão as manifestações docentes referentes à especificação de objetivos de aprendizagem para cada ano de escolaridade com vistas à continuidade da alfabetização. Assim, evita-se que o ensino em cada ano letivo fique estanque ou em constante recomeço da silabação.

Quanto à gestão da turma, as manifestações das professoras do G1 diferenciam-se pela maior ênfase em suas interações com as crianças nas aulas e no trabalho realizado em relação ao desenvolvimento de condutas sociais adequadas às convivências. As próprias docentes dessas escolas se reconhecem como responsáveis por seu papel nesse processo, conforme declaram em entrevista, sendo o par mais desenvolvido nessa relação o que sugere o reconhecimento da maturidade e do compromisso profissional.

As falas das docentes das escolas de maior desempenho revelam continuidade e progressão na aprendizagem da leitura e da escrita, demonstradas, especialmente, pelos conteúdos apontados como selecionados e desenvolvidos nos 2º e 3º anos de escolaridade.

Verificou-se, também, que, entre as escolas do G2, a menor evolução dos conteúdos de ensino reflete a dificuldade manifestada pelas docentes dessas escolas em trabalhar com os níveis de aprendizagem diferentes, sobretudo em relação aos alunos não alfabetizados matriculados nos 2º e 3º anos do EF. Diante de alguns alunos que não compreendem o sistema de escrita, volta-se com todos para a realização de atividades já superadas por muitas crianças, gerando o movimento de repetição de conteúdos; isso pode constituir um fator de desinteresse e falta de atenção dos alunos, mencionados pelas docentes do G2.

Dessa forma, o ensino fragmentado acaba priorizando, ao longo dos três anos de escolaridade, o domínio do código escrito, sem progredir para as práticas de leitura e produção textual, como revelam os resultados da ANA/2014. Tais resultados indicam a apropriação rudimentar da leitura e escrita dos estudantes do G2, haja vista que 56% encontram-se em nível de proficiência incipiente de leitura, e 15%, de escrita - ao contrário do G2, que apresenta, em média, 24% de alunos em nível rudimentar de leitura, e 4%, em escrita.

Logo, o trabalho de três anos que compõe o ciclo de alfabetização acaba por concentrar-se no sistema de escrita alfabético; pouco avança para conteúdos e procedimentos referentes aos aspectos discursivos, textuais e gramaticais dos gêneros textuais. Isso indica a interferência da reprodução dos saberes da experiência dos professores mais antigos no ensino atual diante das insuficiências da formação docente para alfabetizar.

A mobilização docente visando à aprendizagem dos alunos e à instauração na classe de uma ordem necessária para que essa aprendizagem ocorra envolve diferentes saberes. Esses saberes são provenientes de diferentes fontes, que saem de uma condição de exterioridade e vão se constituindo em saberes experienciais do professor à medida que são “retraduzidos, polidos e submetidos às certezas construídas na prática e na experiência” (TARDIF, 2002, p. 54).

Nesse processo, ressalta-se a importância da construção coletiva pelos professores e gestores das escolas dos meios para assegurar a continuidade da alfabetização, de modo a proporcionar unicidade às atuações docentes, interligando ações como expressão do compromisso da escola com a aprendizagem de todos os alunos com vistas à democratização do ensino.

O exposto conduz a reflexões sobre a formação docente. A propósito, ressalta-se a importância e a necessidade de repensar os objetivos e a estruturação curricular de cursos de formação inicial voltados para a alfabetização, considerando-se a problemática da aprendizagem da leitura e escrita pela população do país com vistas ao acesso aos saberes sistematizados, direito de todos.

Finalmente cabe considerar que esta pesquisa se refere apenas a uma rede de escolas públicas, o que coloca a necessidade e importância de realização de novas pesquisas em outras redes de ensino.

REFERÊNCIAS

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979. [ Links ]

BRASIL. Presidência da República. Lei n. 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases para a educação nacional. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ano 134, n. 248, p. 27833-27841, 23 dez. 1996. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Sistema Educacional Brasileiro. Plano Nacional da Educação. Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação - PNE e dá outras providências. Brasília, DF, 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm. Acesso em: 1 jul. 2014. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Avaliação Nacional da Alfabetização: relatório 2013-2014. v. 2: análise dos resultados. Brasília, DF: Inep, 2015. 120 p. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/documents/186968/484421/Relat%C3%B3rio+ANA+2013-2014+-+An%C3%A1lise+dos+Resultados/e2a3d935-7f59-4aba-bb51-2d2ee2d89963?version=1.3. Acesso em: 03 mar. 2017. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Relatório SAEB/ANA 2016: panorama do Brasil e dos estados. - Brasília, DF: Inep, 2018. 235 p. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/documents/186968/484421/RELAT%C3%93RIO+SAEB-ANA+2016+PANORAMA+DO+BRASIL+E+DOS+ESTADOS/41592fab-6fd6-4c21-9fbb-d686f6b05abe?version=1.0. Acesso em: 15 out. 2018. [ Links ]

CONTRERAS, José. Autonomia de professores: os valores da profissionalização e a profissionalidade docente. São Paulo: Cortez, 2002. [ Links ]

FORMOSINHO, João. A academização da formação de professores. In: FORMOSINHO, João (org.). Formação de professores. Aprendizagem profissional e acção docente. Porto: Porto, 2009. p. 73-92. [ Links ]

GATTI, Bernardete A. Formação de professores no Brasil: características e problemas. Educação & Sociedade, Campinas, v. 31, n. 113, p. 1355-1379, out./dez. 2010. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 27 abr. 2017. [ Links ]

GATTI, Bernardete A.; NUNES, Marina Muniz Rossa (coord.). Formação de professores para o ensino fundamental: estudo de currículos das licenciaturas em pedagogia, língua portuguesa, matemática e ciências biológicas. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2009. [ Links ]

GAUTHIER, Clermont. Fator professor, ensino explícito e formação dos professores. In: CAVALCANTE, Maria Marina Dias Cavalcante et al. (org.). Didática e a prática de ensino: diálogos sobre a escola, a formação de professores e a sociedade. Fortaleza: EdUECE, 2015. (Coleção Práticas Educativas). Disponível em: http://www.uece.br/endipe2014/ebooks/livro4/2.%20FATOR%20PROFESSOR,%20ENSINO%20EXPL%C3%8DCITO.pdf. Acesso em: 27 abr. 2017. [ Links ]

GAUTHIER, Clermont et al. Por uma teoria da pedagogia. Pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. Ijuí, RS: Editora Inijui, 2013. [ Links ]

HOFSTETTER, Rita; SCHNEUWLY, Bernard. Introduction - Savoirs en (trans)formation - Au coeur des professions de l’enseignement et de la formation. In: HOFSTETTER, Rita; VALENTE, Wagner R. (org.). Saberes em (trans)formação: tema central da formação de professores. São Paulo: Livraria da Física, 2017. p. 113-172. [ Links ]

LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. 4. ed. São Paulo: EPU, 1986. [ Links ]

MICOTTI, Maria Cecília O. Alfabetização: propostas e práticas pedagógicas. São Paulo: Contexto, 2012. [ Links ]

NÓVOA, Antonio. Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 47, n. 166, p. 1106-1133, out./dez. 2017. [ Links ]

PEREIRA-DINIZ, Júlio Emílio. Da racionalidade técnica à racionalidade crítica: formação docente e transformação social. Perspectivas em Diálogo: Revista de Educação e Sociedade, Naviraí, MS, v. 1, n. 1, p. 34-42, jan./jun. 2014. [ Links ]

SHULMAN, Lee S. Conhecimento e ensino: fundamentos para a nova reforma. Tradução: Leda Beck. Cadernos Cenpec, São Paulo, v. 4, n. 2, p. 196-229, dez. 2014. [ Links ]

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 11. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. [ Links ]

TARDIF, Maurice; LESSARD, Claude. O trabalho docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. [ Links ]

TARDIF, Maurice; MOSCOSO, Javier Nunez. A noção de “profissional reflexivo” na educação: atualidade, usos e limites. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 48, n. 168, p. 388-411, abr./jun. 2018. [ Links ]

Recebido: 29 de Julho de 2019; Aceito: 30 de Maio de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons