SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 issue78A (SELF)ASSESSMENT MATRIX OF THE INTERNATIONALIZATION OF HIGHER EDUCATION IN BRAZILANALYSIS OF THE EDUCATIONAL RESULTS OF BRAZILIAN STATES author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Estudos em Avaliação Educacional

Print version ISSN 0103-6831On-line version ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.31 no.78 São Paulo Sept./Dec 2020  Epub June 09, 2021

https://doi.org/10.18222/eae.v31i78.7096 

ARTIGOS

CONTORNOS DO ESTADO AVALIADOR NO BRASIL

CONTORNOS DEL ESTADO EVALUADOR EN BRASIL

OUTLINE OF THE EVALUATIVE STATE IN BRAZIL

MARILDA PASQUAL SCHNEIDERI 
http://orcid.org/0000-0003-3019-008X

ELINA RENILDE DE OLIVEIRA RIBEIROII 
http://orcid.org/0000-0002-8839-6788

IUniversidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), Joaçaba-SC, Brasil; marilda.schneider@unoesc.edu.br

IIUniversidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo-RS, Brasil; elinalameira@hotmail.com


RESUMO

Este texto tem por objetivo discutir alguns aspectos relacionados às conformações do Estado Avaliador no Brasil pela análise da evolução histórica do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). No plano teórico-conceitual, evidencia relações entre as reconfigurações globais do papel do Estado, os modos de regulação da administração pública que emergem em consonância a essas reconfigurações, o conceito de governança e a constituição de um determinado modelo de Estado Avaliador. O estudo assume uma perspectiva explanatória fundamentada na análise da política educacional e de seus mecanismos fundamentais, para o que se vale de levantamento e análise de portarias e de um decreto promulgados pelos órgãos de regulação do Saeb, no período compreendido entre 1994 e 2020.

PALAVRAS-CHAVE: ESTADO AVALIADOR; SISTEMA DE AVALIAÇÃO; EDUCAÇÃO BÁSICA; ACCOUNTABILITY

RESUMEN

El estudio tiene como objetivo discutir algunos aspectos relacionados con las configuraciones del Estado Evaluador en Brasil, mediante el análisis de la evolución histórica del Sistema de Evaluación de la Educación Básica (Saeb). A nivel teórico-conceptual, destaca la correlación entre la remodelación global del rol del Estado, los medios de regulación de la gestión pública que surgen en consecuencia de esa remodelación, el concepto de gobernanza y la constitución de un modelo particular de Estado Evaluador. El estudio toma una perspectiva explicativa basada en el análisis de la política educativa y de sus mecanismos fundamentales, por medio de encuesta y análisis de ordenanzas y de un decreto promulgado por los órganos reguladores del Saeb entre 1994 y 2020.

PALABRAS CLAVE: ESTADO EVALUADOR; SISTEMA DE EVALUACIÓN; EDUCACIÓN BÁSICA; ACCOUNTABILITY

ABSTRACT

The present study aims to discuss some aspects of the Evaluative State structure in Brazil, by analyzing the historical evolution of the Sistema de Avaliação da Educação Básica [Basic Education Assessment System] (Saeb). At the theoretical-conceptual level, it shows the correlation between the global reshaping of the role of the state, the means of regulation of public administration that emerge accordingly, the concept of governance and the establishment of a particular model of the Evaluative State. The study takes on an explanatory perspective based on the analysis of educational policy and its leading mechanisms, through the survey and analysis of ordinances and a decree promulgated by the regulatory bodies of the Saeb between 1994 and 2020.

KEYWORDS: EVALUATIVE STATE; ASSESSMENT SYSTEM; BASIC EDUCATION; ACCOUNTABILITY

INTRODUÇÃO

O debate sobre o Estado Avaliador, em suas múltiplas formas e dimensões, constitui uma evidência de como os mecanismos de regulação operados hodiernamente e à distância podem produzir novas e mais sofisticadas relações de poder e controle, pelo Estado, de programas e ações de que decorrem as políticas de avaliação educacional. Para Barroso (2011, p. 108), os mecanismos de regulação em curso, em vários países, produzem, no seu conjunto, “um modo de governo; um padrão para a investigação; um referencial para o trabalho docente; um programa de melhoria; um dispositivo de avaliação; um sistema de prestação de contas”.

Conforme demonstram estudos sobre o tema (AFONSO, 2005, 2009; BALL, 1994, 2001; BARROSO, 2005, 2011), os modelos de regulação da educação utilizados, em período recente e em vários países, integram tecnologias complexas às funções do Estado. Essas tecnologias não substituem modelos centralizados e hierárquicos de administração das ações públicas, predominantes até o início dos anos 1980 em vários países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos, mas atuam no fortalecimento de referenciais ajustados às leis de mercado para as quais a implantação de políticas de avaliação educacional constitui “um dos eixos estruturantes” (SCHNEIDER; ROSTIROLA, 2015, p. 497) do modelo em curso. Não se trata, pois, de afastamento do Estado na regulação e administração dos serviços, mas do redirecionamento de seu foco para um modelo de Estado Avaliador (YANNOULAS; SOUZA; ASSIS, 2009).

A repercussão do modelo gerencial de administração pública gerou mudanças profundas nas formas de conceber e operar a regulação e o controle sobre os processos educativos. Em sintonia com uma tendência que se espalhava globalmente, o apelo discursivo à necessidade de melhoria da qualidade educacional, utilizado por diversos aparelhos privados e também do Estado, serviu de mote para a implementação de políticas públicas cujo marco referencial passou a ser a avaliação periódica das instituições públicas e privadas de ensino.

A nosso ver, a configuração da política nacional de avaliação constitui estratégia importante de governança, posto que, na lógica gerencial, a atuação do Estado sobre a educação passa a ocorrer prioritariamente com base em resultados de exames e testes aplicados periodicamente aos estudantes. Especificamente sobre a educação básica, o monitoramento dos resultados por escola e sistema de ensino tem favorecido a desconcentração de responsabilidades em relação à administração dos processos educativos, o descompromisso do Estado com a oferta educacional e a expansão de um importante mercado ocupado por grandes conglomerados, redes e instituições privadas de ensino. Em vista desse processo, acende-se um importante sinal de alerta sobre as condições de oferta de uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade, bandeira de muitos educadores desde o consagrado Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.1

Considerando o exposto, o presente trabalho discute alguns aspectos relacionados aos contornos do Estado Avaliador no Brasil analisando a evolução histórica do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).2 Para isso, revisita a trajetória histórica do Saeb, destacando alterações legais produzidas ao longo dos quase trinta anos de sua existência. No plano teórico-conceitual, evidenciam-se relações entre as reconfigurações globais do papel do Estado, os modos de regulação da administração pública que emergem em consonância a essas reconfigurações, o conceito de governança e a constituição de um determinado modelo de Estado Avaliador. O estudo assume uma perspectiva explanatória fundamentada na análise da política educacional e de seus mecanismos fundamentais (MAINARDES, 2018), para o que se vale de levantamento e análise de portarias e de um decreto promulgados pelos órgãos de regulação do Saeb no período de 1994 - ano de institucionalização formal do Saeb - a 2020 - ano em que foram instituídas normas complementares ao cumprimento do Decreto n. 9.432 (BRASIL, 2018), que regulamentou a política nacional de avaliação da educação básica.

Tendo em conta os procedimentos metodológicos referidos, o texto toma como ponto de partida a discussão em torno das reconfigurações do Estado, no plano globalizatório, suas características enquanto Estado Avaliador e os modos de governança operados na regulação dos serviços públicos, mormente do setor educacional. No plano prático, recupera a trajetória do Saeb, enquanto sistema nacional de avaliação da educação básica, buscando ampliar o espectro de análise em direção aos contornos do Estado Avaliador, a partir dos dois últimos anos (2018 e 2020), com a regulamentação da Política Nacional de Avaliação da Educação Básica.

RECONFIGURAÇÕES DO ESTADO E AS ESTRATÉGIAS DE GOVERNANÇA EDUCACIONAL DO ESTADO AVALIADOR

Consoante Yannoulas, Souza e Assis (2009, p. 65), “o processo de transformação do Estado em Avaliador traduz-se como um momento histórico fundamental à compreensão da configuração atual das políticas educacionais no que concerne tanto à sua formulação quanto à sua implementação”. O momento histórico a que se referem os autores está relacionado ao impacto do modelo gerencial implantado na administração pública a partir de meados dos anos 1970 em virtude do esfacelamento do tipo de Estado predominante até então.

Sobre esse aspecto, Abrucio (1997, p. 6) destaca que a crise econômica, social e administrativa que se instalou especialmente nos países capitalistas, na década de 1970, gerou um “amplo consenso social a respeito do papel do Estado”. A redução dos gastos públicos na área social e a redefinição das funções e modos de atuação do Estado foram, segundo o autor, saídas “introduzidas, em larga escala”, para responder à crise econômica e social gerada pelo modelo burocrático weberiano de administração pública.

Posicionando a discussão no âmbito teórico-conceitual, Antunes (2005, p. 5) chama atenção aos papéis emergentes do Estado que, conforme defende, não indicam necessariamente a supressão da centralidade da sua ação ou a diminuição de seu poder de governar. Para a autora, as formas mais recentes de sua atuação revelam a reconstituição e reorientação do Estado em relação à “distribuição do poder entre as escalas supra e subnacional” e aos “movimentos e aspirações sociais e reacções e respostas de baixo para cima, no sentido de ampliar a participação democrática e a transparência na administração e no governo” (ANTUNES, 2005, p. 5, itálicos do original).

Em atenção aos papéis que assume frente às áreas de sua atuação, a autora define três configurações emergentes do Estado, quais sejam: Estado de competição, Estado em rede e Estado articulador. Para Antunes (2005, p. 39), “embora de modo imperfeito e insatisfatório, [essas configurações] pretendem dar conta de formas específicas de acção estatal que podem surgir singularizadas ou combinadas em determinadas áreas da vida social”, mas, que, no seu conjunto, reforçam o protagonismo do Estado na “gestão de novas formas de regulação social”.

A primeira configuração - Estado de competição - orienta-se, segundo a autora, “para a actuação em instâncias supranacionais e para a intervenção no nível nacional de modo a promover a competitividade da sua economia e a expandir as oportunidades de acumulação” (ANTUNES, 2011, p. 9). A segunda configuração - Estado em rede - tem a ver com as ações do Estado na articulação de determinados segmentos, tendo em vista sua intervenção em áreas da vida social cujo controle escapa às fronteiras de soberania nacional. Essa forma de atuação conformaria, segundo a autora, uma “reestruturação emergente dos papéis do Estado” (ANTUNES, 2011, p. 39), sendo responsável por fazer surgir formas combinadas de administração do Estado em algumas áreas da vida social. Por fim, a terceira configuração - Estado articulador - indica que o Estado se volta à “criação de condições de mediação dos interesses sociais, sob novas fórmulas e arranjos institucionais em que não é o único nem o principal envolvido” (ANTUNES, 2011, p. 9). Para a autora, é prioritariamente por meio dessas três configurações que o Estado tem reforçado seu protagonismo na produção de novas formas de regulação social.

Barroso (2005) evidencia que, na educação, as medidas políticas e administrativas engendradas pelas novas configurações do Estado ocorrem majoritariamente em três direções. A primeira delas, baseada na racionalidade técnica (neotecnicismo), é justificada pela necessidade de modernização, desburocratização e combate à suposta ineficiência do Estado. Nessa configuração, o Estado incorpora princípios da Nova Gestão Pública (NGP), promovendo uma gestão educacional com base na meritocracia gerencialista, da qual emergem as políticas baseadas em standards.

A referência a uma regulação baseada no modelo da NGP tem em mira, segundo o autor, fabricar a imagem de um Estado “menos prescritivo e regulamentador” (BARROSO, 2005, p. 732). Em que pese a ideia de modernização da gestão, o modelo de regulação baseado na NGP toma como referência os resultados educacionais. Trata-se de um controle indireto, que tem como estratégia prioritária uma regulação educacional amparada em resultados de aplicação de exames de largo espectro.

A segunda direção das medidas político-administrativas empreendidas pelo Estado é justificada por imperativos de natureza política e está assentada em projetos neoliberais e neoconservadores. Nessa direção, propõe-se a privatização do sistema público de educação como forma de, supostamente, “‘libertar a sociedade civil’ do controlo do Estado” (BARROSO, 2005, p. 726, destaque do original). Embora repouse no discurso de melhoria da oferta dos serviços educacionais, as medidas assentadas nesses imperativos inauguram a possibilidade de o setor público ser administrado pela iniciativa privada, matizando, segundo Freitas (2012, p. 386), as relações entre público e privado com a construção da ideia de um “público não estatal”. Trata-se de uma medida que, a nosso ver, aumenta ainda mais a dualidade educacional por focalizar não o bem comum, mas apenas o de alguns.

A terceira direção apontada por Barroso (2005, p. 726) obedece a imperativos “de natureza filosófica e cultural (promover a participação comunitária, adaptar ao local) e de natureza pedagógica (centrar o ensino nos alunos e suas características específicas”. Essas medidas apostam, segundo o autor, em “múltiplas regulações” (BARROSO, 2005, p. 734), nem sempre convergentes. É nesse contexto que, de acordo com Barroso (2005), pais, professores, alunos e sociedade em geral são chamados a contribuir com a escola na melhoria dos resultados educacionais traduzidos como indicadores da qualidade da escola.

Em que pese a distinção de cada uma das medidas político-administrativas empreendidas pelo Estado, em contexto global, é possível verificar algumas convergências que podem ser explicadas por meio da tese de Dale (2004) sobre a existência de uma Agenda Globalmente Estruturada para a Educação (AGEE), que determina, segundo o autor, políticas comuns em âmbito global.

Para Dale (2004, p. 441), os quadros regulatórios dos Estados-nação são “moldados e delimitados por forças supranacionais, assim como por forças político-econômicas nacionais”. Essas forças, sustenta, operam por meio de diferentes organizações internacionais que, apesar de atuarem em áreas e setores específicos da sociedade e se posicionarem diferentemente em relação a algumas prioridades, fazem-no sempre com o interesse de assegurar a reprodução das relações sociais capitalistas. Imposta pelo processo de globalização, essa agenda condiciona a relação dos Estados-nação com os processos econômicos, políticos e culturais globais, produzindo como consequência uma complexa interação entre os contextos local e global.

A tese da AGEE também pode contribuir para explicar o conceito de governança que emerge em associação com os princípios da NGP. Em sentido amplo, o debate da governança “refere-se aos diferentes mecanismos empregados para conferir ordem à população de atores, por adaptação, negociação, ordem e obediência” (AMOS, 2010, p. 25). Já em seu sentido estrito, refere-se “às diferentes formas de ação resoluta voltada a preocupações coletivas” (AMOS, 2010, p. 25). Em se tratando da educação, a ideia de governança ajuda a explicar o conjunto de medidas operadas pelo Estado nos instrumentos e na organização dos serviços educacionais com vistas a construir determinados consensos sobre o que é importante fazer, em termos de políticas públicas, para garantir certos padrões educacionais de qualidade nas escolas e nos sistemas de ensino.

Comum na ciência política e nas ciências sociais, para Jacobi (2012, p. 335), o conceito de governança relaciona-se “com a implementação socialmente aceitável de políticas públicas”. Trata-se, segundo o autor, de um termo “mais inclusivo que governo, por abranger a relação sociedade, Estado, mercado, direito, instituições, políticas e ações governamentais”, implicando “o estabelecimento de um sistema de regras, normas e condutas que reflitam os valores e visões de mundo daqueles indivíduos sujeitos a esse marco normativo”. Inclui desde leis, regulamentos e instituições, até políticas e ações de governo, bem como iniciativas locais, redes de influência, tais como os mercados internacionais, o setor privado e a sociedade civil.

É principalmente pelo discurso da gestão democrática, fundada na ideia de autonomia, descentralização de responsabilidades e participação da comu­ni­dade nas decisões educacionais, bem como da necessidade de melhoria da qualidade educacional, que o conceito de governança educacional se afirma. Pautados nesse discurso, vemos surgir novos aparelhos privados de hegemonia (CASIMIRO, 2018), representados especialmente por grupos de intelectuais de diferentes segmentos da sociedade civil. Esses segmentos espelham, em alguma medida, alguns dos contornos atuais das parcerias público-privadas, especialmente no Brasil.

Por orientar-se por uma matriz de organização societal neoliberal, liderada pelas elites políticas e econômicas, Antunes (2011) defende que a vaga dos novos padrões de governança produz arranjos contraditórios interpelados e alimentados por aspirações de autonomia e autorregulação. Esses arranjos levam à coexistência de espaços e arenas sociais e políticas cujos processos de decisão e ação são instáveis e irregularmente coordenados. Assim, ainda que evoque os pressupostos de uma gestão democrática, com apelo sedutor e retórico à ampla participação social, ao modelo de governança operado por essa lógica subjaz a ideia de que a comunidade deve “atuar na escola com os olhos do Estado” (SCHNEIDER, 2019, p. 485), fiscalizando as ações de gestão e ajudando a formar consensos em torno de certas decisões políticas. É nessa lógica que o conceito de governança aquiesce aos preceitos político-sociais e econômicos do Estado Avaliador na fase atual de seu desenvolvimento, visto que ambos estão orientados pelos preceitos da NGP, responsável pela introdução de formas de gestão pública pautadas nos resultados.

Em associação com o conceito de governança, a ideia de um Estado Avaliador tem como premissa a produção de standards por meio dos quais são definidas as regras de aplicação da meritocracia gerencial. Esse modelo de Estado ganhou força nos anos de 1980, em países centrais, tais como Inglaterra e Estados Unidos, e um dos pioneiros do uso do conceito foi o cientista social britânico Guy Richard Neave.3

Na educação, o estabelecimento de padrões de desempenho, por meio de exames nacionais, transmite a ideia de um Estado preocupado com a qualidade dos serviços educacionais, questão apontada por Afonso (2009, p. 117) como “a principal preocupação do mercado”. Nesse contexto, a avaliação é considerada uma estratégia fundamental para melhorar a gestão das escolas e controlar as despesas públicas, e, por isso, peça central da governança educacional. Desse marco prioritário emerge a necessidade de mobilização de uma diversidade de ferramentas de accountability escolar4 associadas aos mecanismos de avaliação, com vista a melhorar a eficiência e eficácia dos sistemas de ensino.

Na consecução do que consideram, nesse modelo, boas práticas de governança educacional, a eficácia do Estado Avaliador está condicionada ao quantum de accountability utilizado no controle dos resultados. Procedimentos para avaliar os estabelecimentos de ensino e, direta ou indiretamente, o trabalho dos gestores e dos professores são acompanhados de mecanismos “mais ou menos instantâneos” de accountability, supostamente utilizados para “garantir a gestão de todo o sistema educativo, orientar para certas prioridades e controlar a qualidade” (MAROY; VOISIN, 2013, p. 882). Desse modelo, fazem parte também uma diversidade de arranjos institucionais e de bases político-normativas que respondem por uma concepção de escola não mais como instituição, mas como “um sistema de produção escolar” (MAROY; MANGEZ, 20115apud MAROY; VOISIN, 2013, p. 883).

No Estado Avaliador, em vez de o que seria desejável e definido em termos de valores que deveriam ser praticados pela escola, são priorizadas as ações que garantem a eficiência e a eficácia esperadas no desempenho do sistema. Trata-se, conforme Maroy e Voisin (2013, p. 884, destaque do original), “de melhorar a qualidade, a organização, a coordenação, as ‘competências’ dos agentes, todos eles termos que podem ser utilizados em qualquer tipo de organização de produção”.

Apesar das críticas à consistência do Estado Avaliador nas condições de melhoria educacional, o que se sabe é que, em muitos países, as ações voltadas ao robustecimento das ferramentas de avaliação continuam a ser, segundo Afonso (2013, p. 271), “um dos eixos estruturantes das reformas da administração pública”, ou, dito de outra forma, de uma governação por números, indicadores e medidas quantificadas.

ASCENSÃO E CONSOLIDAÇÃO DO MODELO DE ESTADO AVALIADOR NO BRASIL

No Brasil, os primeiros indícios de um Estado Avaliador são evidenciados entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, na transição do modelo ditatorial para um governo democrático. O contexto de ações que começavam a imperar em âmbito global requeria um trabalhador com outros atributos, competente e polivalente, com capacidade de adequar-se rapidamente a diferentes atividades para manter-se no mercado de trabalho. A formação desse trabalhador ficou a cargo, mais uma vez, da escola, especialmente a de educação básica, que deveria dar conta de preparar os estudantes para as novas demandas do mercado global.

A guinada nos currículos escolares e na atuação dos docentes para a formação de um trabalhador com os novos atributos requeridos pelo mercado foram consideradas fundamentais. Contudo, essas medidas não foram consideradas suficientes, posto não garantir, na visão dos produtores de política (BALL, 1994), mudanças substanciais nos processos educativos. Foi nesse contexto e alimentado pelo movimento globalizatório que, a essa altura, já se encontrava em estágio avançado a onda avaliacional no Brasil.

Segundo Freitas (2007), as ações desencadeadas na década de 1990, em nosso país, para medir, avaliar e informar tiveram por objetivo central controlar o que estava sendo ensinado nas escolas. Transformada em mecanismo de informação da qualidade educacional das instituições de ensino, a avaliação, em articulação com a pesquisa, a norma legal e o planejamento, fortaleceu e solidificou uma determinada estratégia de atuação do Estado na formulação e execução de políticas públicas para a educação brasileira.

Foi, pois, a partir da criação do Saeb, no ano de 1990, que as medidas impostas pelo Estado Avaliador começaram a adquirir consistência na educação básica. Concebido com a finalidade de fornecer informações sobre o desempenho dos sistemas educativos para gestores educacionais, famílias e sociedade, o Saeb consolidou-se, ao longo dos últimos 30 anos, como uma política nacional de avaliação, ainda que a obrigatoriedade dos entes federativos não estivesse declarada na sua concepção.

Inicialmente, a aplicação do Saeb era por amostra probabilística das escolas públicas urbanas. As provas eram aplicadas para quatro séries do ensino fundamental (1ª, 3ª, 5ª e 7ª), contemplando as disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática e Ciências, incluindo ainda Redação para estudantes de 5ª e 7ª séries (WERLE, 2010). Essa dinâmica era assegurada por medidas provisórias, que requeriam regulamentação para converter-se em uma lei ordinária definitiva.

No ano de 1994, a Portaria n. 1.795, de 27 de dezembro (BRASIL, 1994), formalizou a criação do Saeb. Diferentemente da avaliação da educação superior que, desde 2004, conta com aprovação em lei própria,6 as reformulações a que foi submetido o Saeb ao longo de seu percurso histórico sempre ocorreram por meio de fundamentos legais provisórios, ou seja, por portarias exaradas pelo Ministério da Educação. Mas isso não representou um impedimento para sua consolidação como iniciativa prática demandada pela administração federal.

No ano de 1995, um ano após a formalização de sua criação, importantes mudanças foram incorporadas de modo a conferir ao Saeb um caráter modernizante em relação ao modelo de avaliação praticado no Brasil. As provas realizadas pelos estudantes a cada dois anos passaram a contar com um sistema sofisticado de correção, denominado Teoria da Resposta ao Item (TRI). Trata-se de uma metodologia que qualifica o item a ser avaliado de acordo com algumas características que estimam a habilidade do candidato avaliado a partir de um conjunto de itens, bem como a possibilidade de comparar esse conjunto a outro na mesma escala.

Em 1997, foram elaboradas matrizes curriculares de referência para a constituição das questões e produzidas escalas de referência para mensuração dos resultados. Outra mudança importante naquele ano foi em relação ao público-alvo das provas, que passou a ser estudantes da 4ª série (5ª série, atualmente) e 8ª série (9ª série, atualmente) do ensino fundamental, e 3ª série do ensino médio. As disciplinas avaliadas passaram a ser Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais, Física, Química e Biologia. A seleção das disciplinas sofreria alterações na avaliação seguinte, realizada em 1999. Naquele ano, além das avaliadas em 1997, houve acréscimo de história e geografia ao rol das disciplinas avaliadas pelo Saeb.

As medidas introduzidas representaram um avanço importante em direção à consolidação de um sistema nacional de avaliação da educação básica, visto terem sido padronizados os procedimentos avaliativos para todas as escolas participantes, incluindo, a partir de 1997, também uma amostra das escolas da rede privada. A questão das disciplinas avaliadas a cada biênio parecia, contudo, um aspecto não resolvido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável pelo processo de avaliação da educação básica. Desde sua criação, em 1990, até 2001, quando então passaram a ser avaliadas apenas as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática,7 a definição das áreas de conhecimento a se avaliar foi um dos aspectos mais contestados na política do Saeb.

A grande virada do Saeb iria acontecer em 2005, quando este deixou de ser apenas amostral e passou a contar com avaliações censitárias. Para Haddad (2008, p. 12), essa reviravolta aumentou “significativamente a responsabilização da comunidade de pais, professores, dirigentes e da classe política com o aprendizado”. Esperava-se que, de posse dos resultados, a comunidade escolar passasse a realizar um acompanhamento mais efetivo das aprendizagens dos estudantes.

A Portaria Ministerial n. 931, de 21 de março de 2005, desdobrou o Saeb em dois processos avaliativos: a Avaliação Nacional da Educação Básica (Aneb) e a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Anresc), mais conhecida por Prova Brasil. Os objetivos da Anresc foram alargados em relação ao Saeb, passando a ser:

  • a) avaliar a qualidade do ensino ministrado nas escolas, de forma que cada unidade escolar receba o resultado global;

  • b) contribuir para o desenvolvimento, em todos os níveis educativos, de uma cultura avaliativa que estimule a melhoria dos padrões de qualidade e equidade da educação brasileira e adequados controles sociais de seus resultados;

  • c) concorrer para a melhoria da qualidade de ensino, redução das desigualdades e a democratização da gestão do ensino público nos estabelecimentos oficiais, em consonância com as metas e políticas estabelecidas pelas diretrizes da educação nacional;

  • d) oportunizar informações sistemáticas sobre as unidades escolares. Tais informações serão úteis para a escolha dos gestores da rede a qual pertençam. (BRASIL, 2005, p. 1)

A alteração da configuração e de alguns de seus objetivos, viabilizada pela referida portaria, foi extremamente importante na medida em que tornou possível a produção de dados por escola, elemento fundamental à implementação de ferramentas de accountaibility alinhadas aos resultados das avaliações do Saeb. Com o desenvolvimento de provas censitárias, abriu-se a possibilidade de todas as escolas públicas e privadas de educação básica terem resultados do Saeb e poderem ser incluídas no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), índice criado dois anos depois, em 2007, com o intuito de permitir a regulação dos sistemas com base em standards educacionais a partir da inclusão em avaliações censitárias.

Inaugurado com o objetivo anunciado de promover políticas para a melhoria educacional, o Ideb afere o cumprimento de metas fixadas no Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, instituído pelo Decreto n. 6.094 (BRASIL, 2007). A definição de metas intermediárias por escola, unidades da federação e sistemas de ensino, a serem alcançadas a cada dois anos nas avaliações do Saeb, constitui outra peça importante na consolidação do modelo de Estado Avaliador para a educação básica brasileira.

Do ponto de vista do potencial do Ideb de pressionar as escolas a trabalhar pelo atendimento às metas, Fernandes e Gremaud (2009, p. 11), responsáveis pela criação do índice, afirmam que ele compõe um modelo de “accountability fraca” ou, conforme Bonamino e Sousa (2012, p. 380), uma “responsabilização branda”, uma vez que “a Prova e o uso de seus resultados para composição do Ideb [...] se limitam a traçar metas e a divulgar os resultados dos alunos por escola e rede de ensino, sem atrelar prêmios ou sanções a esses resultados”.

As denominações dadas por esses autores consideram que uma accountability fraca, em oposição a uma accountability forte, tem em conta a decorrência ou não de consequências pelos resultados logrados em avaliações tais como a do Saeb. No caso do Ideb, a produção de uma accountability fraca remeteria à inexistência de ferramentas com altas consequências para as escolas pelo não alcance das metas, tais como sanções condicionadas ao acesso a níveis superiores de educação aos alunos, publicação de resultados aos pais com objetivo de proporcionar a livre escolha da escola e, até mesmo, ameaça de substituição da equipe de gestão em caso de repetidos maus desempenhos e fechamento das escolas (MAROY; VOISIN, 2013). De igual forma, não há previsão de premiação às escolas na forma de incentivos financeiros individuais ou coletivos associados aos resultados no Ideb.

Apesar de a regulação por resultados do Ideb não produzir efeitos como os mencionados, algumas condições orquestradas em escala federal, estadual e municipal vêm contribuindo para a produção de um sistema de accountability com grandes desafios para as escolas brasileiras. Constituem exemplos de políticas que atuam nessa direção a definição de normas curriculares nacionais, com a implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o alinhamento das matrizes de referência e da formação inicial e continuada de professores a essas normas e a criação de sistemas estaduais e municipais de avaliação com utilização de ferramentas de accountability de alto impacto.

Sousa e Koslinski (2017) identificam treze iniciativas de políticas desenvolvidas por estados da federação que premiam profissionais da educação, alunos ou escolas pelo alcance de metas traçadas no âmbito das redes públicas estaduais de ensino. Essas iniciativas localizam-se, conforme os autores, nas seguintes regiões e estados brasileiros: Norte (Amazonas, Roraima e Tocantins); Nordeste (Ceará, Paraíba, Pernambuco e Sergipe); Centro-Oeste (Goiás e Mato Grosso do Sul); Sudeste (todos os estados da região, ou seja, Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo). Nos estados da região Sul, não foram identificadas práticas de responsabilização de alto impacto (SOUSA; KOSLINSKI, 2017).

A conformação do Estado Avaliador, na educação básica brasileira, assume novos contornos a partir de 2018, com a promulgação do Decreto presidencial n. 9.432 (BRASIL, 2018). Esse decreto definiu a Política Nacional de Avaliação e Exames da Educação Básica, reposicionando e alterando sua composição, ao incluir, na política nacional do Saeb, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Exame de Certificação da Competências de Jovens e Adultos (Encceja). Apesar de praticados desde 1998 e 2002, respectivamente, estes exames não faziam parte do Saeb. Outras avaliações realizadas na educação básica, tais como a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA), criada em 2013, também não faziam parte do Saeb.

No decreto, o Saeb é referido como “um conjunto de instrumentos que permite a produção e a disseminação de evidências, estatísticas, avaliações e estudos a respeito da qualidade das etapas que compõem a educação básica” (BRASIL, 2018, Art. 5º). Essa concepção pode tornar o sistema mais abrangente na medida em que a composição dos resultados pode contar com dados que não sejam unicamente os obtidos em provas e exames. Contudo, por enquanto, trata-se de uma promessa, porquanto não são declaradas as fontes de dados de produção dessas informações. O documento informa apenas que a aferição do Saeb contará “com a coleta de dados junto aos sistemas de ensino e às escolas públicas e privadas brasileiras” (BRASIL, 2018, art. 5º, § único). A despeito de, até 2018, serem incluídos questionários a diretores e professores das escolas participantes dos exames, eles não eram considerados na pontuação do Saeb.

Enquanto um dos atos do presidente interino Michel Temer (2016-2018), o decreto estabeleceu um novo estatuto ao Saeb, o de uma peça da política nacional de avaliação, e não mais a política em si. Passa a compreender, a partir de então, as avaliações que compõem as etapas da educação básica, quais sejam, educação infantil, ensino fundamental e ensino médio.

A inclusão da educação infantil na política nacional de avaliação pareceu almejar resolver uma celeuma sobre essa etapa da educação básica, posto que o tema tem sido, nos últimos doze anos, um dos pontos centrais nas discussões de especialistas sobre o aprendizado das crianças. Contudo, deixa em aberto um ponto importante dessa discussão, uma vez que, apesar de especulações sobre como será o desenho da avaliação da educação infantil, no documento nada é mencionado a respeito.

Tão importante quanto o Decreto n. 9.432 (BRASIL, 2018) é a Portaria n. 458 (BRASIL, 2020), exarada em 5 de maio de 2020, na vigência do segundo ano de mandato do presidente Jair Messias Bolsonaro. Essa portaria instituiu normas complementares consideradas necessárias ao cumprimento da Política Nacional de Avaliação da Educação Básica. Nela, reafirma-se o compromisso que os sistemas de ensino de todos os entes federativos devem ter com o processo avaliacional e é admitida a possibilidade de servidores públicos e integrantes dos sistemas de ensino participarem da coleta de dados do Saeb, “desde que o ônus da respectiva remuneração seja do órgão ou entidade cedente” (BRASIL, 2020, art. 3º, § único).

Ao que parece, trata-se de uma tentativa de o Estado salvaguardar a não remuneração de funcionários públicos caso eles possam ser chamados a fornecer informações sobre os sistemas de ensino ou escolas de educação básica, considerando, especialmente, as medidas necessárias à implementação da política nacional de avaliação. A redução de despesas na administração pública é uma das atribuições do Estado Avaliador.

A portaria regulamenta, ainda, a realização dos exames que compõem o Saeb, que passam a ser anuais, de caráter censitário e com o objetivo de “aferir o domínio das competências e das habilidades esperadas ao longo da educação básica, de acordo com a BNCC e as correspondentes diretrizes curriculares nacionais” (BRASIL, 2020, art. 8º). Até 2019, as provas que compreendiam a Saeb (Aneb e Anresc) eram bianuais.

Embora, à primeira vista, possa parecer que a promulgação do Decreto n. 9.432 (BRASIL, 2018) e da respectiva portaria (BRASIL, 2020) pouco alterou em relação à política nacional de avaliação praticada até então, as mudanças operadas revelam importante avanço no modelo de Estado Avaliador em nosso país. O alinhamento da política nacional de avaliação com a BNCC cumpre importante medida nessa direção.

Implantada em 2017, e em processo de implementação pelos sistemas de ensino e escolas públicas de educação básica, a BNCC definiu um conjunto de competências gerais para toda a educação básica, competências específicas para cada área de conhecimento e componentes curriculares e, por fim, habilidades relacionadas aos objetos de conhecimento (conteúdos, conceitos e procedimentos), organizados em unidades temáticas (BRASIL, 2017).

A definição da concepção pedagógica das avaliações, incumbência atribuída ao Estado a partir de 2018, é conferida à BNCC, que, como sabemos, resultou de um trabalho articulado de uma rede nacional de governança8 que teve por objetivo dar legitimidade à base. A ênfase em aprendizagens essenciais remonta à ideia de currículos mínimos, requeridos pelos setores produtivos.

A padronização curricular imposta pela BNCC aos sistemas de ensino e às escolas de educação básica exige do Ministério da Educação (MEC) e do Inep, instituições incumbidas de implantar os procedimentos atinentes à política nacional de avaliação, uma recomposição do modelo curricular praticado na Política Nacional de Avaliação. Desde 1997, foram utilizadas matrizes de referência nos exames e provas do Saeb, com a descrição de competências e habilidades que os estudantes deveriam dominar em cada série coberta pelas avaliações. A construção dessas matrizes deu-se a partir do levantamento dos conteúdos praticados nas escolas públicas de ensino fundamental e médio. O alinhamento dessa política à BNCC impõe a revisão desse modelo e dos objetos de sua composição.

As reformulações operadas ao longo da história do Saeb e, especialmente, a partir da regulamentação da política nacional, evidenciam um conjunto desarticulado de ações em torno da constituição da Política Nacional de Avaliação da Educação Básica. Contudo, esse processo parece não ter afetado a edificação e o fortalecimento do Estado Avaliador no Brasil que, como foi possível constatar, assegura ao Estado maior poder de controle da educação, define metas para as escolas, descentraliza responsabilidades, determinando um novo estatuto de governança nacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de transformação do Estado em Avaliador, no Brasil, configura-se em um momento histórico essencial à compreensão da atual conjuntura de formulação e implementação das políticas educacionais. A implantação do Saeb, em 1990, e a do Ideb, em 2007, marcam, de um lado, o surgimento desse modelo de Estado e, de outro, o seu fortalecimento, respectivamente. Um Estado que, aludindo à descentralização de responsabilidades administrativas, promete auxílio técnico e financeiro aos entes federativos por meio de ações compartilhadas; estabelece, arbitrária e verticalmente, metas educacionais para as escolas e redes de ensino; e difunde um discurso de participação e democracia ao mesmo tempo em impõe o desenvolvimento de arranjos institucionais locais para o cumprimento das metas projetadas.

Na consecução desse modelo, há o robustecimento de ferramentas de ­accountability escolar, utilizadas não apenas para avaliar as instituições de ensino, mas principalmente o trabalho de seus gestores e professores. O uso dessas ferramentas passa a orientar as prioridades e controlar a qualidade da educação, definida por standards de desempenho.

De forma conclusiva, reiteramos que os estudos sobre os contornos do Estado Avaliador na educação básica brasileira têm procurado demonstrar os efeitos e as consequências das avaliações considerando o viés meritocrático e gerencialista das reformas educacionais. Contudo, há que se pôr em evidência as razões, especialmente num momento em que, marcado pelo isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus (Covid-19), até mesmo a necessidade da educação escolar é colocada à prova.

O estudo realizado reforça a convicção acerca da importância de aprofundamento do debate acadêmico sobre o Estado, considerando a redefinição de suas funções mediante a formação de parcerias público-privadas sob um outro estatuto de governança.

REFERÊNCIAS

ABRUCIO, Fernando Luiz. O impacto do modelo gerencial na Administração Pública: um breve estudo sobre a experiência internacional recente. Brasília, DF: Escola Nacional de Administração Pública, 1997. (Cadernos Enap, n. 10). [ Links ]

AFONSO, Almerindo Janela. Avaliação educacional: regulação e emancipação. São Paulo: Cortez, 2005. [ Links ]

AFONSO, Almerindo Janela. Nem tudo o que conta em educação é mensurável ou comparável: crítica à accountability baseada em testes estandardizados e rankings escolares. Revista Lusófona de Educação, Lisboa, n. 13, p. 13-29, 2009. [ Links ]

AFONSO, Almerindo Janela. Mudanças no Estado-avaliador: comparativismo internacional e teoria da modernização revisitada. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 18, n. 53, p. 267-284, abr./jun. 2013. [ Links ]

AMOS, Karin. Governança e governamentalidade: relação e relevância de dois conceitos científico-sociais proeminentes na educação comparada. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, n. especial, p. 23-38, abr. 2010. [ Links ]

ANTUNES, Fátima. Reconfigurações do Estado e da Educação: novas instituições e processos educativos. Revista Lusófona de Educação, Lisboa, v. 5, p. 37-62, 2005. [ Links ]

ANTUNES, Fátima. Governação, reformas do Estado e políticas de educação de adultos em Portugal: pressões globais e especificidades nacionais, tensões e ambivalências. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 92, p. 3-29, mar. 2011. [ Links ]

BALL, Stephen J. Education reform: a critical and post-structural approach. Buckingham: Open University Press, 1994. [ Links ]

BALL, Stephen J. Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo sem Fronteiras, v. 1, n. 2, p. 99-116, jul./dez. 2001. [ Links ]

BARROSO, João. O Estado, a educação e a regulação das políticas públicas. Educação & Sociedade, Campinas, SP, v. 26, n. 92 (n. especial), p. 725-751, out. 2005. [ Links ]

BARROSO, João. Da política baseada no conhecimento às práticas baseadas em evidência - consequências para a regulação do trabalho docente. In: DUARTE, Adriana; OLIVEIRA, Dalila Andrade de (org.). Políticas públicas e educação: regulação e conhecimento. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011. p. 91-116. [ Links ]

BONAMINO, Alicia; SOUSA, Sandra Zakia de. Três gerações de avaliação da educação básica no Brasil: interfaces com o currículo da/na escola. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 373-388, abr./jun. 2012. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Portaria n. 1.795, de 27 de dezembro de 1994. Cria o Sistema Nacional da Educação Básica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 dez. 1994. Seção 1, p. 91-92. Disponível em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal =1&pagina=91 &data=28/12/1994. Acesso em: 23 jan. 2020. [ Links ]

BRASIL. Lei n. 10.861, de 14 de abril de 2004. Institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 abr. 2004. Seção 1, p. 3-4. Disponível em: https://abmes.org.br/arquivos/legislacoes/Lei_10861_ 140404.pdf. Acesso em: 27 jan. 2020. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Portaria n. 931, de 21 de março de 2005. Institui o Sistema de Avaliação da Educação Básica - SAEB, que será composto por dois processos de avaliação: a Avaliação Nacional da Educação Básica - Aneb, e a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar - Anresc. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 mar. 2005. Seção 1, p. 17. Disponível em: http://provabrasil.inep.gov.br/legislacao. Acesso em: 20 out. 2019. [ Links ]

BRASIL. Decreto n. 6.094, de 24 de abril de 2007, dispõe sobre a implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 abr. 2007. Seção 1, p. 5-6. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6094.htm. Acesso em: 12 jan. 2020. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf. Acesso em: 27 dez. 2019. [ Links ]

BRASIL. Decreto n. 9.432, de 29 de junho de 2018. Regulamenta a Política Nacional de Avaliação e Exames da Educação Básica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 jun. 2018. Seção 1, p. 1. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ Ato2015-2018/2018/Decreto/D9432.htm. Acesso em: 27 nov. 2019. [ Links ]

BRASIL. Portaria n. 458, de 5 de maio de 2020. Institui normas complementares necessárias ao cumprimento da Política Nacional de Avaliação da Educação Básica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 maio 2020. Seção 1, p. 57. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ Ato2015-2018/2018/Decreto/D9432.htm. Acesso em: 27 nov. 2019. [ Links ]

CAMPOS, Anna Maria. Accountability: quando poderemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 30-50, fev./abr. 1990. [ Links ]

CASIMIRO, Flávio Henrique Calheiros. A nova direita: aparelhos de ação política e ideológica no Brasil contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, 2018. [ Links ]

DALE, Roger. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “Cultura Educacional Mundial Comum” ou localizando uma “Agenda Globalmente Estruturada para a Educação”? Educação & Sociedade, Campinas, SP, v. 25, n. 87, p. 423-460, 2004. [ Links ]

FERNANDES, Reynaldo; GREMAUD, Amauri Patrick. Qualidade da educação: avaliação, indicadores e metas. São Paulo: Fundação Santillana; Inep, 2009. [ Links ]

FREITAS, Dirce Nei Teixeira de. A avaliação da educação básica no Brasil: dimensão normativa, pedagógica e educativa. Campinas: Autores Associados, 2007. [ Links ]

FREITAS, Luiz Carlos de. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Educação & Sociedade, Campinas, SP, v. 33, n. 119, p. 379-404, abr./jun. 2012. [ Links ]

HADDAD, Fernando. O Plano de Desenvolvimento da Educação: razões, princípios e programas. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2008. (Série Documental: Textos para Discussão, v. 30). [ Links ]

JACOBI, Pedro R. Governança ambiental, participação social e educação para a sustentabilidade. In: PHILIPPI JR., Arlindo et al. (org.). Gestão de natureza pública e sustentabilidade. Barueri: Manole, 2012. p. 343-361. [ Links ]

MAINARDES, Jeferson. Reflexões sobre o objeto de estudo da Política Educacional. Laplage em Revista, Sorocaba, SP, v. 4, n. 1, p. 186-201, jan./abr. 2018. [ Links ]

MAROY, Christian; VOISIN, Annelise. As transformações recentes das políticas de accountability na educação: desafios e incidências das ferramentas de ação pública. Educação & Sociedade, Campinas, SP, v. 34, n. 124, p. 881-901, jul./set. 2013. [ Links ]

PINHO, José Antonio Gomes de; SACRAMENTO, Ana Rita Silva. Accountability: já podemos traduzi-la para o português? Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 43, n. 6, p. 1343-1368, nov./dez. 2009. [ Links ]

SCHNEIDER, Marilda Pasqual. Dispositivos de accountability na reforma da educação básica brasileira: tendências em curso. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 19, n. 60, p. 469-493, jan./mar. 2019. [ Links ]

SCHNEIDER, Marilda Pasqual; ROSTIROLA, Camila Regina. Estado-Avaliador: reflexões sobre sua evolução no Brasil. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Brasília, v. 31, n. 3, p. 493-510, set./dez. 2015. [ Links ]

SOUSA, Sandra Zákia; KOSLINSKI, Mariane. Avaliação em larga escala, índices e premiação: iniciativas de estados brasileiros e seus efeitos. In: SETTON, Maria da Graça Jacintho et al. (org.). Mérito, desigualdade e diferença: cenários da (in)justiça escolar Brasil e Portugal. Alfenas: Editora Universidade Federal de Alfenas, 2017. [ Links ]

WERLE, Flávia Obino Corrêa. Papel dos pais na busca de um padrão alto de democratização, acesso e permanência na escola. In: WERLE, Flávia Obino Corrêa (org.). Avaliação em larga escala: foco na escola. São Leopoldo: Oikos; Brasília: Liber Livros, 2010. p. 188-202. [ Links ]

YANNOULAS, Sílvia Cristina; SOUZA, Camila Rosa Fernandes de; ASSIS, Samuel Gabriel. Políticas educacionais e o estado avaliador: uma relação conflitante. Sociedade em Debate, Pelotas, RS, v. 5, n. 2, p. 55-67, jul./dez. 2009. Disponível em: http://www.rle.ucpel.tche.br/index.php/rsd/article/view/351. Acesso em: 10 nov. 2019. [ Links ]

1Amplamente difundido pela literatura da área, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova tornou-se marco inaugural do projeto de renovação educacional do país. Redigido por Fernando de Azevedo, em 1932, o documento consolidou a visão educacional de um segmento importante da elite intelectual brasileira. A principal bandeira de luta dos signatários do documento era por uma escola única, pública, laica, obrigatória e gratuita.

2É importante sublinhar que, apesar de o Saeb ser referência nacional em avaliação, a expressão nacional nunca foi incluída nas legislações pertinentes ao tema. O pacto nacional firmado entre a União, governos municipais e estaduais, a partir da publicação do Decreto n. 6.094 (BRASIL, 2007), que instituiu o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, tornou obrigatório o cumprimento das metas pactuadas pelos agentes públicos de todas as esferas federativas. Somente então o Saeb tornou-se uma política nacional de cumprimento obrigatório para todo território nacional. Considerando a forma como a denominação é tratada nos documentos regulatórios, neste texto optamos por manter sua designação oficial.

3Segundo Yannoulas, Souza e Assis (2009, p. 59), Neave teria utilizado a expressão “the rise of the evaluative state” pela primeira vez em 1988, num artigo publicado pelo European Journal of Education com o título Research, Development and Policy.

4Sem tradução exata para o português (CAMPOS, 1990; PINHO; SACRAMENTO, 2009), o conceito de accountability está associado à ideia de transparência, prestação de contas e responsabilização. Implica, pois, a mobilização de uma diversidade de ferramentas e de arranjos institucionais para sua implementação. Na educação, as políticas de accountability podem assumir formas muito diferentes, de acordo com a “natureza das ferramentas empregadas e da concepção institucional da accountability que incorporam” (MAROY; VOISIN, 2013, p. 883).

5MAROY, C.; MANGEZ, C. La construction des politiques d’évaluation et de pilotage du système scolaire en Belgique francophone: nouveau paradigme politique et médiation des experts. In: FELOUZIS, G.; HANHART, S. (org.). Gouverner l’éducation par des nombres?: usages, débats et controverses. Bruxelles: De Boeck, 2011. p. 53-76.

6Referimo-nos à Lei n. 10.861 (BRASIL, 2004), que institui o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes).

7Importa lembrar que essas disciplinas avaliadas coincidem com as do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Além de Língua Portuguesa e Matemática, o Pisa avalia também o domínio dos estudantes em Ciências.

8Participaram da elaboração da BNCC a Fundação Lemann, o Instituto Inspirare, o Instituto Península, a Fundação Roberto Marinho, o Instituto Ayrton Senna, o Instituto Natura, o Instituto Unibanco, personalidades políticas, gestores educacionais, entre outros sujeitos individuais e coletivos.

Recebido: 28 de Janeiro de 2020; Aceito: 01 de Outubro de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons