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Estudos em Avaliação Educacional

versão impressa ISSN 0103-6831versão On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.32  São Paulo  2021  Epub 11-Dez-2021

https://doi.org/10.18222/eae.v32.8247 

Seção Temática: Educação em Tempos de Pandemia

A AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL E A GESTÃO NA/DA EDUCAÇÃO INFANTIL EM MEIO À COVID-19

LA EVALUACIÓN INSTITUCIONAL Y LA GESTIÓN EN LA/DE LA EDUCACIÓN INFANTIL EN TIEMPOS DE COVID-19

INSTITUTIONAL EVALUATION AND MANAGEMENT IN/OF EARLY CHILDHOOD EDUCATION IN THE MIDST OF COVID-19

IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro-RJ, Brasil; virginialouzada.feuerj@gmail.com

IIPrefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil; crisfcamancio@yahoo.com

IIIPrefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, Brasil; rossatbruno@yahoo.com.br


RESUMO

Este ensaio discute os processos de avaliação numa perspectiva da gestão democrática e participativa com o grupo de professoras de uma instituição pública de educação infantil do Rio de Janeiro, no cenário gerado pela pandemia da covid-19. Buscou-se compreender como as concepções presentes nos discursos e fazeres docentes traduzem-se em práticas pedagógicas que possibilitem experiências significativas às crianças menores de seis anos. Para tanto, utilizou-se a avaliação institucional como caminho formativo para que as docentes e os gestores pudessem refletir sobre suas ações naquele contexto, gerando a qualificação das práticas. Os resultados indicam que esse é um processo em desenvolvimento na instituição e evidenciam a potência da avaliação para a formação continuada de professores.

PALAVRAS-CHAVE: EDUCAÇÃO INFANTIL; AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL; GESTÃO DEMOCRÁTICA

RESUMEN

Este ensayo discute los procesos de evaluación desde una perspectiva de la gestión democrática y participativa con el grupo de maestras de una institución pública de educación infantil de Rio de Janeiro, en el escenario generado por la pandemia de covid-19 Se intentó comprender cómo las concepciones presentes en los discursos y quehaceres docentes se traducen en prácticas pedagógicas que posibiliten experiencias significativas a los niños menores de seis años. Para ello se utilizó la evaluación institucional como un camino formativo para que las docentes y los gestores pudieran reflexionar sobre sus acciones en aquel contexto, generando la calificación de las prácticas. Los resultados indican que éste es un proceso en desarrollo en la institución y evidencian la potencia de la evaluación para la formación continuada de profesores.

PALABRAS CLAVE: EDUCACIÓN INFANTIL; EVALUACIÓN INSTITUCIONAL; GESTIÓN DEMOCRÁTICA

ABSTRACT

This essay discusses the evaluation processes, from a perspective of democratic and participatory management, with a group of teachers from a public institution of early childhood education in Rio de Janeiro, in the scenario of the covid-19 pandemic. The aim was to understand how the concepts in the teachers’ discourses and actions translate into pedagogical practices that lead to meaningful experiences for children under six years of age. To this end, the institutional evaluation was used as a formative path so that teachers and managers could reflect on their actions in that context, generating the qualification of practices. The results indicate that this is a process under development at the institution, and emphasize the power of evaluation for continuing teacher education.

KEYWORDS: EARLY CHILDHOOD EDUCATION; INSTITUTIONAL EVALUATION; DEMOCRATIC MANAGEMENT

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA COMEÇAR A CONVERSA

O debate central desse ensaio refere-se a um conjugado de reflexões a respeito dos saberes envolvidos frente às políticas educacionais apresentadas no contexto da pandemia da covid-19 e dos desafios vivenciados por uma instituição que atende à educação infantil na rede pública municipal do Rio de Janeiro, a partir dos processos de avaliação institucional provocados e organizados pela equipe gestora. Optamos metodologicamente pelo gênero ensaístico por dois motivos: devido ao escopo desta Seção Temática; e porque nenhum de nós, autores do presente artigo, até o momento, assumiu a tarefa de pesquisar os efeitos da interrupção das atividades escolares presenciais provocados pela pandemia.1 Dessa maneira, o artigo visa a problematizar as orientações emanadas pelos órgãos competentes e, nessa perspectiva, a urgência em afirmar a importância de uma gestão2 escolar que atue pautada sobre o viés de uma perspectiva de participação e democracia no olhar, nas relações e nos processos pedagógicos na educação infantil. Nessa abrangência, é fundamental pensar os instrumentos de avaliação institucional como uma lupa que fomenta, integra e nos faz repensar, além de se apresentar, como instância mediadora, entre a avaliação de aprendizagem e a avaliação de políticas e sistemas (SORDI; LÜDKE, 2009).

A avaliação institucional é uma possibilidade por meio da qual os atores do contexto escolar podem estabelecer e aprofundar a relação entre as práticas tecidas no cotidiano e, respectivamente, refletir sobre “[...] os diferenciados posicionamentos ético-epistemológicos que embasam as escolhas aparentemente técnicas que fazem” (SORDI; LÜDKE, 2009, p. 314). De fato, o movimento de avaliação institucional, a partir de um posicionamento coletivo, é uma ocasião em que tanto os posicionamentos teóricos quanto os práticos começam a ganhar pesos complementares, no sentido de trazer evidências que permitam monitorar e interferir nas condições que prejudicam ou potencializam o alcance dos objetivos pedagógicos definidos por esses atores sociais da instituição; isto é, trata-se de um momento de reafirmar ou se desprender de práticas e concepções (SORDI; LÜDKE, 2009).

Da mesma forma, a instituição que concebe a avaliação institucional como agente direcionador que mapeia processos também tem a chance de se abrir, se reconhecer como espaço de discussão e ação daquele conhecimento produzido e ampliar seus horizontes. Por que não dizer a possibilidade de ampliar suas redes de conhecimentos e significações (ALVES; SOARES, 2012), a respeito de suas práticas e invenções, e vislumbrar as prescrições curriculares e/ou orientações instituídas como políticas? Contudo, nem sempre essa relação é vista como uma via de mão dupla, na qual tanto os atores envolvidos quanto a instituição - encarnada às vezes na figura da equipe gestora - podem se beneficiar, adotando, essa última, uma postura, em algumas vezes, de maior “conhecimento e experiência”.

Assim, entendemos que há uma relação muito próxima entre a avaliação institucional e avaliação de contexto, na medida em que ambas convocam o olhar para a instituição. A avaliação de contexto “[...] constitui-se em uma proposta orgânica, complexa, contextualizada, que compõe o olhar sobre a instituição por dentro, sua equipe, materiais, espaços etc.” (SCHLINDWEIN; DIAS, 2018, p. 139), envolvendo relações macro e micro dentro de cada instituição com o objetivo de mapear a realidade, sendo mais difundida na educação infantil. A proposta “[...] implica construir a participação e buscar modos democráticos de discussão e análise das próprias atuações e definição de caminhos e metas para agir, refletir, re-agir [...] de mudar para a melhora daquela realidade” (MORO; COUTINHO, 2018, p. 94), podendo contar com o suporte de um especialista externo. Já a avaliação institucional apresenta a questão da avaliação como uma tarefa coletiva, como parte do projeto político-pedagógico da instituição, inspirada na perspectiva da gestão democrática (FREITAS et al., 2009). Concordamos com os autores porque entendemos que o caminho coletivo para a construção de políticas públicas que almejam qualidade no atendimento da educação infantil perpassa, necessariamente, pela sua própria instituição.

Na abrangência dessas reflexões, o presente artigo visa a enaltecer uma discussão que versa sobre as normativas deliberadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e pelo Conselho Municipal de Educação (CME) do Rio de Janeiro (RIO DE JANEIRO, 2020a, 2020b), no contexto das ações pedagógicas previstas no âmbito da pandemia de covid-19, e, concomitantemente, mapear os esforços empenhados nesse período pandêmico, no contexto de uma creche pública na cidade do Rio de Janeiro. Desse modo, busca-se ressaltar a importância das pessoas envolvidas, no sentido de regular, problematizar e atuar no próprio cotidiano em um ano letivo tão desafiador. Nessa perspectiva, Louzada (2017, p. 35) afirma que “[...] o olhar sobre os documentos é feito procurando identificar as suas intenções e pensando de que maneira eles alcançam o cotidiano das escolas e das salas de aula”. Diante do interposto, os documentos objetivam mostrar todas as realizações produzidas pelos sujeitos, que aparecem como indícios de sua ação e podem revelar suas ideias, opiniões e formas de atuar e viver. Além disso, a representatividade dos documentos pode produzir inferências e o teor de subjetividade contido na fonte documental (SILVA et al., 2009).

No caso da elaboração de diretrizes aos processos na educação infantil, embora seja julgada por muitos como simples, mas ao mesmo tempo tão característica e desconhecida, o acervo documental pode proporcionar uma série de reflexões sobre as normativas emanadas para essa área de atuação. Acreditamos que esse mapeamento é urgente, relevante e específico, pois todo esse conhecimento produzido em forma de documento irá se reverter em referência para ampliar a formação docente − as crianças enquanto sujeitos produtores de conhecimentos, e significações − e o papel das instituições de educação infantil como espaços responsivos (BAKHTIN, 2003) nos processos educacionais. Essa problematização nos provoca no sentido de revermos como as instâncias que emanam diretrizes precisam buscar romper com seu papel de vigilante panóptico (FOUCAULT, 2009), para além de transmissor de normativas. Nesse aspecto, visando a romper essas nuances, podemos vislumbrar tais documentos normativos como um espaço de formação, diálogo, reflexão e comunhão com os atores sociais postos no contexto do cotidiano das instituições.

OS DOCUMENTOS NORMATIVOS E OS SENTIDOS PRODUZIDOS NO CONTEXTO DA PANDEMIA

As aulas presenciais, em diversos estados e municípios, foram suspensas no dia 13 de março de 2020, considerando as formas de contágio da covid-19, uma nova doença para a qual não havia vacina ou mesmo medicamento. De acordo com o site do Ministério da Saúde, a covid-19 é uma doença “[...] causada pelo Coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um espectro clínico variando de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves”.3

De março de 2020 para cá, inúmeros desafios foram e ainda são enfrentados todos os dias. No que diz respeito à educação e, mais precisamente, à educação infantil, como planejar propostas pedagógicas no formato não presencial, sem perder de vista as especificidades dessa etapa da educação básica? Como possibilitar experiências de aprendizagem às crianças que estão isoladas em suas casas? Como acolher crianças e famílias com sugestões de propostas pedagógicas em que os eixos das interações e brincadeiras estejam presentes?

Diante do cenário causado pela pandemia de covid-19, algumas alternativas foram pensadas com respaldo legal. No caso da educação infantil, dois documentos oferecem elementos para se pensar o contexto: o Parecer CNE/CP n. 5 (BRASIL, 2020a) e o Parecer CNE/CP n. 11 (BRASIL, 2020b).

O primeiro documento reforça a necessidade de se “[...] considerar as fragilidades e desigualdades estruturais da sociedade brasileira que agravam o cenário decorrente da pandemia em nosso país” e, ainda, “[...] as diferenças existentes em relação às condições de acesso ao mundo digital por parte dos estudantes e de suas famílias” (BRASIL, 2020a, p. 3). Ou seja, torna-se fundamental levar em conta tais fatores ao se propor estratégias que visam a mitigar os prejuízos causados pelo longo período de suspensão das atividades educacionais presenciais e pelo impacto das medidas de isolamento social na aprendizagem de todos/as os/as estudantes.

De acordo com o segundo documento, o retorno às atividades escolares presenciais pressupõe cautela - não apenas em relação às questões sanitárias, mas também às pedagógicas. Nesse sentido, o documento destaca a singularidade do contexto brasileiro diante do cenário pandêmico, uma vez que “[...] a pandemia surgiu em meio a uma crise de aprendizagem, que poderá ampliar ainda mais as desigualdades existentes” (BRASIL, 2020b, p. 3).

Sobre a educação infantil, o documento em questão alega os seguintes motivos para que as crianças sejam grupo prioritário para possível retorno das atividades escolares presenciais: liberar mão de obra para setores da economia formal e informal; diminuir o impacto nos serviços de transporte público - partindo-se do princípio de que crianças menores costumam morar perto da escola; viabilizar uma melhor organização do espaço físico da sala de aula a partir da necessidade de distanciamento social provocado pela covid-19, visto que turmas dessa faixa etária costumam ser menores do que as de ensino fundamental; e possibilitar, em alguma medida, uma retomada das atividades, uma vez que esse público teria menor autonomia para desenvolver atividades não presenciais, se comparadas às crianças e estudantes dos demais anos de escolaridade.

Em contrapartida, Louzada (2020) argumenta que a educação infantil, no cenário provocado pela covid-19, tem sido fruto de acalorado debate entre pesquisadores e profissionais que trabalham com a primeira etapa da educação básica, levando em conta os principais fatores: preocupação de contato físico entre profissionais e crianças (principalmente entre bebês e crianças bem pequenas, que ainda não têm autonomia para ir ao banheiro, tomar banho ou alimentar-se sem ajuda); restrição do uso de telas para essa faixa etária, de acordo com a orientação da Sociedade Brasileira de Pediatria;4 e preocupação com a fragilidade provocada pela interrupção das atividades escolares presenciais e o fato de a educação infantil ter sido incluída recentemente na educação básica (BRASIL, 1996).

Ao vislumbrar os documentos, ainda é possível destacar:

Nessa situação de excepcionalidade para a educação infantil, é muito difícil quantificar em horas as experiências que as crianças pequenas terão nas suas casas. Não existe uma métrica razoável capaz de mensurar estas atividades desenvolvidas pela família em termos de equivalência com horas letivas. E, dadas as particularidades socioeconômicas da maioria das famílias, deve-se cuidar para ampliar o sentido de atividades não presenciais a serem desenvolvidas com as crianças pequenas. Neste sentido, quando possível, é importante que as escolas busquem uma aproximação virtual dos professores com as famílias, de modo a estreitar vínculos e melhor orientar os pais ou responsáveis na realização destas atividades com as crianças. (BRASIL, 2020b, p. 9)

Percebe-se que os documentos destacam a inviabilidade de reposição de carga horária presencial no retorno às atividades presenciais. Além disso, são sugeridos materiais de orientação às famílias com atividades educativas, para realizarem com as crianças em casa, enquanto durar o período de distanciamento social, bem como propostas de aproximação virtual com o objetivo de fortalecer os vínculos afetivos com as crianças. Na abrangência dessas situações, as professoras de educação infantil são desafiadas a performar uma atuação carregada de aprendizagens: propor - conforme as orientações do CNE - o fortalecimento de vínculos e não antecipação de conteúdo para as crianças (BRASIL, 2010, 2020a). Nesse contexto, muitas utilizam - convocadas, convidadas ou, às vezes, obrigadas pela gestão - o audiovisual como dispositivo de prática docente, sendo possível perceber, diante desse panorama, algumas pistas sobre como as professoras tomam para si o protagonismo das telas e reinventam suas docências e os currículos em educação infantil. Nessa perspectiva, vislumbramos - ao longo do ano letivo de 2020 - como as professoras dessa etapa, praticantes culturais (CERTEAU, 1994), produzem seus modos de ensinar a partir dos atravessamentos nos modos de produzir conhecimentos e significações na/com a docência.

Além desses fatores de protagonismo docente, julga-se - diversas vezes - que a equipe gestora de uma instituição tende a considerar esse lugar, da prática docente, um espaço de uso restrito e solitário do professor. De acordo com Sordi e Lüdke (2009, p. 315), “[...] esta mentalidade se incorpora de tal forma que começa a se naturalizar a ideia de que o trabalho pedagógico pertence apenas ao professor”; indo mais a fundo, as autoras relatam que “[...] isso interdita a proposição de ações restauradoras quando este trabalho não revela eficácia social e, subtrai das crianças, o direito de aprender”. No entanto, percebe-se, por exemplo, em ambas as orientações do CNE, uma ausência de diretivas às equipes gestoras dos níveis de ensino e/ou das instituições em si. A palavra “gestão”, ainda assim, aparece apenas em dois momentos: quando mencionado “da competência da gestão do calendário escolar” e “investimento escolar”. Ou seja, ainda nas instâncias nacionais, a gestão educacional é resumida, nos discursos, como um ator organizador dos processos administrativos dos níveis de ensino e/ou instituições. Como indica Foucault (1996, p. 44), “[...] todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo”. É como se nesse jogo de palavras, carregadas de sentidos, as gestoras fossem, em alguma medida, (in)visibilizadas na relevância de sua função no processo educativo, resguardando apenas o seu caráter burocrático, tecnocrata e administrativo.

No alcance dessas inquietações, é urgente darmos visibilidade aos processos de gestão, aliados aos instrumentos de avaliação institucional, como um caminho possível para a ruptura desses discursos a respeito da gestão, bem como da cultura da avaliação (SORDI; LÜDKE, 2009). Na sedimentação desses processos, vislumbra-se no parecer CNE/CP n. 5 (BRASIL, 2020a, p. 10) a seguinte concepção de avaliação na educação infantil:

No contexto específico da educação infantil também é importante ressaltar o que estabelece o inciso I do artigo 31 da LDB, onde a avaliação é realizada para fins de acompanhamento e registro do desenvolvimento das crianças, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental. Ou seja, especialmente nesta etapa, a promoção da criança deve ocorrer independentemente do atingimento ou não de objetivos de aprendizagem estabelecidos pela escola. Nessa fase de escolarização a criança tem assegurado o seu direito de progressão, sem retenção.

Na presença dessas relações, Sordi e Lüdke (2009) reafirmam a proposição da incorporação, nos processos de formação de professores, da discussão a respeito da avaliação institucional como “[...] instância mediadora entre a avaliação de aprendizagem e a avaliação dos sistemas” (SORDI; LÜDKE, 2009, p. 313). Entretanto, ao mapear ambos os documentos do CNE, observa-se que a avaliação institucional surge apenas como uma perspectiva mediante o retorno presencial das escolas: “[...] processo de avaliação institucional diagnóstica da situação do aprendizado nos cursos e individualmente, para além das avaliações de desempenho já realizadas, de forma a construir cenários de políticas de aprendizado adequadas ao retorno à presencialidade” (BRASIL, 2020b, p. 19). Essa cultura da avaliação, emanada em documentos normativos nacionais, nos auxiliam a entender, porém não justificar, as possíveis recusas frequentes de alguns professores e/ou gestoras em discutirem a respeito de suas práticas pedagógicas, seja por ausência dessas concepções em sua formação inicial, seja pelo receio do confronto de lidar com um discurso de trabalho coletivo presente na escola. Nesse sentido, Sordi e Lüdke (2009, p. 316) defendem que “[...] a autonomia docente é muitas vezes confundida com autonomização” e ainda corroboram que “[...] certamente esta aprendizagem necessita ser incluída desde logo nos processos de formação docente para promover mudanças na cultura escolar, sobretudo, no tocante à avaliação”. Mais uma vez, percebemos a aproximação entre avaliação institucional e avaliação de contexto na medida em que temos os conflitos entre pontos de vista na instituição, nas relações interpessoais entre a equipe e no interior de um sistema de ensino. Tais conflitos tendem a fortalecer a relação quando imbuídos de um ponto comum, de uma meta em comum, de uma definição curricular explícita com vistas a uma identidade institucional, na busca da qualidade e de um plano de melhorias da instituição. Esse debate é extremamente necessário quando se trata de olhar de dentro da instituição com o objetivo de alcançar a qualidade tão almejada por todos.

UMA CRECHE PÚBLICA INSERIDA NESTE CONTEXTO PANDÊMICO

A partir das implicações e inquietações promovidas pelas normativas apresentadas anteriormente, pode-se indagar: como uma instituição municipal de ensino, localizada no bairro da Cidade Nova, Rio de Janeiro, que atende exclusivamente o segmento da educação infantil, com crianças de idades entre 1 ano e 5 anos e 11 meses, pratica, vivencia, experimenta e lança mão do seu cotidiano para se apropriar, de fato, desses documentos? E que, logo na primeira semana de março de 2020, vivenciou uma transição na sua gestão?5 Acolhimento, descobertas, dúvidas e anseios passam a permear as relações neste espaço que possui 16 anos de existência e, durante todo esse período, teve uma mesma profissional como gestora da instituição.

Na semana seguinte, todos fomos afetados por uma pandemia causada por um vírus, até então desconhecido, que circula mundialmente, nos isola (em tese) e nos coloca “dentro” de espaços denominados casas. Assim, alguns de nós são levados para as vivências, cada vez mais latentes, do digital em rede, provocadas pelo isolamento sanitário (SANTOS, 2020). Com suporte nessa premissa, peregrina-se, nesse cotidiano, com vídeos produzidos pelas profissionais, os quais passaram a ser enviados às famílias - a partir de uma decisão coletiva dos diversos atores da creche - para serem apreciados pelas crianças, conforme orientação do CME do Rio de Janeiro para o período de pandemia, uma vez que cabe à educação infantil “[...] a manutenção dos vínculos afetivos, sociais e culturais, não sendo admitida a antecipação de conteúdos relacionados ao Ensino Fundamental, conforme estabelecem as Diretrizes Nacionais Curriculares para a Educação Infantil e os atos normativos deste Conselho” (RIO DE JANEIRO, 2020a, p. 16). Ao visualizar as produções, muitos se afetam com tamanha sensibilidade, pois essas profissionais produzem vídeos curtos, de 1 a 5 minutos de duração, trazendo contação de histórias (orais ou de literatura); leitura de poesias - às vezes de autoria própria; exploração de obras artísticas; conversas informais envolvendo temáticas sobre racismo, corpo, gênero; músicas; e propostas de brincadeiras e interações com as famílias.

Porém, anterior e paralelamente a essa modalidade de atendimento no fortalecimento de vínculos, a gestão da instituição propôs uma imersão formativa nas especificidades da educação infantil, para, assim, pensarmos em propostas pedagógicas que fossem ao encontro da normativa do CME, bem como às particularidades dessa etapa da educação básica e do contexto da instituição. Necessitávamos rever e refletir sobre as concepções de criança, infâncias, educação infantil e formação docente presentes nos discursos e nas práticas cotidianas. Diante disso, ressignificar os processos avaliativos na educação infantil era urgente e necessário, no sentido de conceber um processo de avaliação que, para além de classificar, medir e rotular, tenha por objetivo propor uma reflexão em busca de práticas que façam sentido às crianças e aos educadores em creches e pré-escolas. De acordo com Nascimento (2011, p. 41),

A nova concepção sociológica considera as crianças como participantes de uma rede de relações que vai além da família e da escola ou creche. Como sujeitos sociais, elas são capazes de produzir mudanças nos sistemas nos quais estão inseridas, ou seja, as forças políticas, sociais e econômicas influenciam suas vidas ao mesmo tempo em que as crianças influenciam o cenário social, político e cultural. Nesse sentido, a infância é formada por sujeitos ativos e competentes, com características diferentes dos adultos. As crianças pertencem a diferentes classes sociais, ao gênero masculino e feminino, a um espaço geográfico onde residem, à cultura de origem e a uma etnia, em outras palavras, são crianças concretas e contextualizadas, são membros da sociedade; atuam nas famílias, nas escolas, nas creches e em outros espaços, fazem parte do mundo, o incorporam e, ao mesmo tempo, o influenciam e criam significados a partir dele.

Para tanto, conceber a gestão democrática e autônoma torna-se condição para uma educação que possa promover formação para a cidadania numa sociedade democrática. Ou seja, numa escola democrática, seus participantes estão compromissados, e coletivamente organizados, na busca da promoção de uma educação de qualidade para todos. Lück (2011, p. 117) nos convida à reflexão:

O desenvolvimento da escola e a realização de seu trabalho assentam-se sobre valores e fundamentos que se traduzem na proposição de objetivos que, para realizar-se, é necessária a orientação clara e objetiva de seus resultados intermediários e finais. Estes funcionam como parâmetro para o acompanhamento e a avaliação do processo educacional, realizados de modo a garantir a necessária correção de rumos, o cuidado com o ritmo constante do trabalho, a identificação de dificuldades a serem contornadas e de desafios a serem assumidos.

Nessa perspectiva, estar nesse lugar da gestão escolar nos permite pensar sobre a compreensão da experiência humana, de modo que nossos percursos oportunizem um diálogo sobre esse cotidiano de forma mais identitária para educadores. Entendemos que cabe à equipe gestora influenciar uma atuação coletiva das pessoas que compõem a instituição escolar, no sentido da promoção dos objetivos educacionais e do seu envolvimento na realização de ações educacionais necessárias à qualidade almejada por todos.

Percebemos, dessa maneira, que a avaliação institucional está intimamente articulada à gestão democrática e à formação continuada dos envolvidos, além da própria avaliação de contexto, justamente por ser um processo de tomada de consciência acerca do trabalho desenvolvido, propiciando, assim, a reflexão coletiva no sentido de repensar as condições e formas de organização do trabalho pedagógico. Trata-se de uma prática constante e contínua de observar, registrar, refletir e intervir no espaço educativo, provocando mudanças (BONDIOLI; SAVIO, 2015).

Diante disso, rever o projeto pedagógico da instituição torna-se imprescindível, pois as concepções presentes em nossas narrativas já não são as mesmas. E, além disso, percebemos que avaliamos não somente a criança, mas todo o contexto no qual está inserida, com o intuito de lhe oferecer propostas e experiências significativas. Dessa forma, Moro e Coutinho (2018, p. 93) assim definem a importância da avaliação de contexto para os processos formativos docentes: “[...] implica uma metodologia dialógica que permite identificar as necessidades de mudança e, de maneira construtiva, planejar as alterações para a melhoria da qualidade dos serviços ofertados em uma instituição educativa para a pequena infância.”

Com isso, reafirmamos a ênfase que a avaliação de contexto propõe: ela não avalia única e exclusivamente a criança, mas todo o contexto pedagógico, com o objetivo de melhorar a qualidade dos serviços oferecidos, bem como a ampliação da sua oferta. Para tanto, há de se ter um olhar observador, reflexivo, investigativo para esse contexto, de maneira que ele possibilite experiências de aprendizagens às crianças.

De acordo com Moro (2018, p. 71):

A observação das crianças precisa ser atenta, curiosa e investigativa, evidenciando os modos de aprender, de agir, de brincar, de expressar-se de maneira particular, própria, única. Pois avaliar deve necessariamente partir de um exercício que implica querer conhecer melhor cada criança. Tal processo deve realçar a identidade da criança que está sendo avaliada, assim como a identidade do professor que trabalha com ela. Nessa perspectiva, a avaliação passa a ser entendida como ética, zelo, respeito e atenção especial para com as crianças e seu bem-estar.

Indo nessa direção, os encaminhamentos nos documentos e orientações legais que norteiam o trabalho a ser desenvolvido nas instituições de educação infantil brasileira (BRASIL, 1996, 2010) descrevem a avaliação como um processo contínuo de acompanhamento das aprendizagens das crianças e do trabalho pedagógico, o qual precisa ocorrer por meio da observação, registro e reflexão docente sobre o material produzido acerca das manifestações infantis, nas múltiplas interações que as crianças estabelecem no ambiente escolar. Diante disso, a gestão da creche propõe aos profissionais uma reflexão coletiva do trajeto formativo percorrido até então. Muitas foram as leituras, diálogos entre os pares, escuta às suas próprias inquietações, assim como às inquietações das crianças, neste momento tão atípico e desafiador.

A equipe gestora, então, convidou os seus profissionais - e também se inseriu nesse movimento formativo − para uma reflexão no sentido de avaliar o caminho, a trajetória, os avanços, as dificuldades, os materiais planejados, o que ainda merece uma atenção maior por parte da instituição. A partir desse convite, os profissionais, organizados de acordo como os grupamentos que atendem, compartilharam com os demais uma trajetória única, pautados em experiências e singularidades que, juntas, constituem a missão e o propósito da instituição. Nesse movimento, as gestoras também apresentaram suas inquietações, anseios e caminhos trilhados a partir do estudo e das provocações desse grupo. Diante da apresentação de cada profissional, na qual a gestão não é apenas expectadora, mas também se insere no movimento, temos a oportunidade de nos fortalecermos enquanto instituição, apoiados nos direitos de aprendizagem das crianças pequenas (BRASIL, 2017) e na reflexão docente sobre sua própria formação, sobre as práticas presentes no cotidiano desse espaço educativo.

Como uma gestão ainda muito recente na creche poderia se aproximar das famílias num momento tão delicado e sensível? Famílias estas que, até então, só conheciam o modelo de gestão apresentado pela direção anterior; famílias que, muitas vezes, foram afetadas, dilaceradas pela morte de um parente ou pela perda do emprego, gerando medo, angústia, insegurança; famílias que, de uma hora para outra, tiveram que lidar com as aprendizagens das crianças fora do contexto da escola, distantes dos professores. Foi então que convidamos as famílias a estarem conosco, refletindo sobre os percursos da creche até então. Esse convite se deu a partir do movimento de escuta com relação aos materiais planejados pelos profissionais da creche. Cada família contribuiu com suas dúvidas, reflexões, sugestões acerca dos materiais que eram encaminhados às crianças. Além disso, em outros momentos, ainda que num contexto pandêmico e de isolamento social, procurávamos saber das famílias como estavam, se haviam sido afetadas pelo vírus em si ou pelo desemprego, etc. Essas contribuições foram oficializadas por meio de formulários planejados pela gestão e direcionados às famílias. Após a devolutiva pelas famílias, as informações eram compartilhadas com os educadores a fim de potencializar uma reflexão coletiva dos profissionais de educação que atuavam naquela instituição, para se pensar futuros encaminhamentos para os percursos propostos.

Pensamos que, enquanto gestoras, mas sobretudo educadoras, podemos provocar as outras educadoras, sejam elas gestoras ou não, a ressignificar o processo de avaliação nas instituições e observar os espaços, as relações que se constituem e as experiências, a ponto de se promover uma transformação. Marina Souza e Castro (2018, p. 113) afirma:

Dessa maneira, os professores ocupam um lugar de mediação importante, colaborando para uma prática avaliativa que não é concebida como algo diferente do processo de aprendizagem; constituindo-se como uma tarefa de observar, escutar, sentir, de estar disponível ao outro; é ter compromisso com a ampliação das experiências das crianças e com a transformação da realidade educacional.

A prática de avaliar na educação infantil exige um compromisso permanente com o olhar e a escuta: observar com olhos sensíveis e atentos e escutar no sentido da disponibilidade de estar com o outro; refletir e propor caminhos, possibilidades; rever percursos, trajetórias. Uma equipe gestora da educação infantil, comprometida com essa etapa da educação básica, não só propõe aos educadores essa reflexão, como também se insere nela.

Partimos do princípio de que a gestão é também formadora, isto é, alguém que propõe aos profissionais que compõem a equipe da instituição escolar analisar, conjuntamente, a própria prática e possibilitar mudanças. E isso acontece a partir das indagações a respeito de uma postura, mediante a redemocratização dos processos de avaliação que incidem sobre a escola, assumindo sua indissociabilidade do trabalho pedagógico nela desenvolvido. Nesse sentido, destacamos a pertinência de Freire (2011) em sua afirmação de que ninguém conscientiza ninguém; a conscientização vem de um movimento dialético de reflexão crítica sobre as ações que, no caso da creche, foram suscitadas por meio dos estudos e dos diálogos.

Sendo assim, trazemos para o debate a perspectiva de avaliação da aprendizagem e avaliação institucional, pois, segundo Freitas et al. (2009), as relações entre esses dois níveis de avaliação são muito potentes e promovem um novo olhar sobre o fazer do professor em termos de avaliação e, ao mesmo tempo, corroboram o entendimento de que a atuação do professor não é secreta, individual, mas se dá por meio do coletivo da escola. Os autores compartilham conosco da noção da existência de dois níveis de avaliação na escola, que vão ao encontro das reflexões propostas no texto: a avaliação institucional, cujo foco é o projeto político-pedagógico da instituição; e a avaliação da aprendizagem, em que o olhar atento é dedicado à relação professor-estudante.

Nesse sentido, seguem convidando-nos à reflexão:

Falar de uma avaliação “transformadora, contínua, comprometida com o desenvolvimento do aluno” sem questionar os objetivos da escola, é contribuir para ocultar poderosos dispositivos subjacentes ao processo ensino-aprendizagem e que - se desconhecidos - continuarão a travar o trabalho do professor e dos outros profissionais interessados em uma escola que seja destinada a todos e que resista à incorporação das desigualdades sociais como princípio de seu funcionamento, criando hierarquias escolares que refletem as hierarquias de desigualdade existentes na sociedade. (FREITAS et al., 2009, p. 20)

Sobre a questão da avaliação da aprendizagem na educação infantil, Hoffmann (2009) destaca que a observação e a reflexão são elementos estruturantes para a realização de práticas avaliativas na pré-escola. A autora defende que os princípios avaliativos na educação infantil precisam valorizar as manifestações infantis, afirmando que a ação avaliativa necessita “[...] se distanciar definitivamente do modelo de avaliação do ensino regular” e se aproximar das aprendizagens das crianças, a partir de “[...] um clima sem tensões e limitações” (HOFFMANN, 1991, p. 105).

A autora argumenta que discutir o assunto é enfrentar uma tarefa das mais complexas que se pode ter na educação, uma vez que envolve análises e reflexões sobre o próprio significado da educação infantil, as crianças e os caminhos trilhados na realização de um trabalho pedagógico efetivo. A autora alega que é necessário respeitar as crianças em sua individualidade, o que exige uma postura investigativa e de acompanhamento, por parte da professora, em relação ao desenvolvimento infantil.

Hoffmann (2009) ainda alerta sobre uma séria influência, nas práticas avaliativas promovidas na educação infantil, dos modelos de avaliação convencionais do ensino regular, embora a natureza dessa prática precise ser diferente desse modelo. Ela explica que a utilização de relatórios descritivos, fichas de avaliação e boletins para acompanhamento como instrumentos de avaliação nessa etapa não é suficiente para fugir da lógica da avaliação classificatória; essa acaba por se fazer presente, mesmo sem a atribuição de notas e conceitos, quando se restringe ao ato de avaliar no final de um período, a partir de “[...] listagens uniformes de comportamento, a serem classificados a partir de escalas comparativas” (HOFFMANN, 2009, p. 12), ignorando o cotidiano da criança e a postura pedagógica da professora. Segundo a autora, processos avaliativos pautados na perspectiva da avaliação classificatória não estão a serviço da criança, tampouco da docente - durante sua formação reflexiva no trabalho pedagógico.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) afirma que as instituições de educação infantil devem criar processos de acompanhamento e registro do desenvolvimento da aprendizagem das crianças sem o objetivo de promoção. Corroborando, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010) reafirmam a responsabilidade de creches e pré-escolas na criação de procedimentos de acompanhamento do trabalho educativo e avaliação do desenvolvimento das crianças sem objetivo de seleção, promoção ou classificação.

Diante do exposto, fica evidente, quando nos debruçamos sobre a necessidade de organizarmos a documentação pedagógica que historiciza o trabalho realizado em conjunto com as crianças e suas famílias, que não cabe a premissa de um relatório meramente burocrático, padronizado e embasado num ideal de desenvolvimento e aprendizado para a infância, reafirmando, assim, que uma avaliação padronizada não permite aos professores e gestores refletir sobre as práticas educativas realizadas, tampouco sobre as condições de aprendizagem oferecidas. Além disso, ratificamos que a avaliação não deve ser vinculada ao currículo do 1º ano do ensino fundamental, sob o risco de anteciparmos, na educação infantil, os conteúdos a serem trabalhados com as crianças em fases posteriores do ensino. No contexto de atuação da creche, essa normativa não chegou de forma tão intempestiva, tendo em vista a própria trajetória formativa que havíamos iniciado. Os diálogos e leituras nos fortaleceram enquanto instituição, no sentido de olharmos para a avaliação no contexto da educação infantil como investigação e não como julgamento (MORO, 2018).

Defendemos a necessidade de marcar uma avaliação na educação infantil sem perder de vista suas especificidades e seus objetivos. Pensar os processos de avaliação para além da verificação, contribuindo, de fato, para o desenvolvimento da escuta e observação atenta por parte dos educadores e para o conhecimento aguçado sobre as crianças, suas características e desejos, além do fortalecimento de vínculos com as famílias. O sentido da avaliação é a reflexão constante, assim como o questionamento sobre como as ações, as rotinas, as decisões, o planejamento, os recursos e espaços atendem aos objetivos pedagógicos e, ao mesmo tempo, aos princípios orientadores da educação infantil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O contexto da educação infantil brasileira é um campo em construção e que, por isso, envolve multiplicidade de contextos e questões polêmicas e sujeitas ao debate, antes mesmo do surgimento da pandemia que atinge a todos ao redor do mundo. O cenário atual potencializou esse debate, fazendo com que nós, profissionais da primeira etapa da educação básica, ficássemos ainda mais atentos aos desafios que estão por vir e que dizem respeito diretamente às crianças pequenas. É urgente fortalecermos nossas concepções de criança, infância e educação infantil, conquistadas num período histórico aparentemente curto, mas que travaram um debate árduo, longo e sério no qual ainda temos muito o que avançar e consolidar. Também é necessário estarmos alertas à relação entre os documentos normativos e o contexto das instituições.

Precisamos refletir, mais do que nunca, sobre o retorno das crianças às escolas num contexto pós-pandemia. Reafirmar os fazeres da educação infantil a fim de que não tenhamos uma antecipação dos conteúdos do ensino fundamental é premissa inegociável, tendo em vista que, anteriormente ao contexto da pandemia, já tínhamos um cenário de desafios no campo da educação infantil e sua possível subalternização ao campo da alfabetização. Esse desafio pode ser ainda maior e mais delicado em função da suspensão das atividades presenciais.

Além disso, precisamos estar atentos às experiências que serão oferecidas às crianças, no sentido de compensar qualquer tipo de “deficiência” causada pelo isolamento social. A esse respeito, Kramer (1982) compartilha que a educação compensatória deveria, de acordo com a vertente que acredita que é na pré-escola que solucionaremos a problemática da alfabetização, corrigir as supostas defasagens que provocam o fracasso das crianças. No entanto, acreditamos que tal cenário, embora se proponha a mitigar possíveis defasagens causadas pelo contexto pandêmico, pode provocar um empobrecimento das relações pedagógicas vivenciadas nas instituições que atendem à educação infantil. Tal prática, a nosso ver, constitui um “epistemicídio infantil” (FARIA et al., 2013), uma vez que revela total desconhecimento sobre a importância das interações e brincadeiras para os processos formativos infantis.

No início da atuação da nova gestão na instituição, percebem-se, no grupo de profissionais que compõem a creche, fragilidades nas concepções e práticas equivocadas que não dialogavam com as especificidades da educação infantil. Toda essa percepção partiu do diálogo inicial da equipe a respeito das deliberações - do CNE e CME − que foram publicadas no início da pandemia da covid-19. Essas fragilidades estavam relacionadas a um conhecimento muito superficial sobre as políticas educacionais que orientam o trabalho, bem como às concepções de infâncias e educação infantil que devem orientar os arranjos curriculares e as propostas pedagógicas nas instituições.

As brincadeiras, as interações e os saberes das crianças não eram considerados balizadores na organização curricular, tampouco nas propostas pedagógicas; a concepção de currículo era fragmentada, e a participação e as experiências das crianças não eram legitimadas. A avaliação não estava fora desse cenário, pois era entendida como dissociada de todo o processo pedagógico, como algo estanque, que vinha à tona somente na escrita dos relatórios das crianças, associado a uma lista de conteúdos e/ou objetivos meramente desenvolvimentistas em que se assegurava o que a criança havia e não havia aprendido.

A partir da atuação da gestão, que se inquietou com tal situação e que defende uma concepção de avaliação processual, contínua, voltada para a reflexão das práticas docentes e sua qualificação, evidenciou-se, de modo ainda mais latente, a busca pelo trabalho colaborativo e participativo de todos os profissionais que atuam na instituição. Como um processo de formação continuada centrado na própria prática docente, no cotidiano da creche, a partir das problematizações e situações diárias, fomos percebendo ser primordial a promoção constante de uma reflexão coletiva. Essa reflexão nos possibilitou - enquanto coletivo - repensarmos nossos discursos e práticas, nossa trajetória e formação docentes. Concebemos, assim, a avaliação constante dos processos como um “levante a poeira”, algo de extrema relevância, a fim de potencializarmos as melhorias necessárias para a garantia dos direitos das crianças neste ambiente educativo. Sendo assim, acreditamos que nossas ações abordaram a avaliação de forma interligada à concepção e às estratégias da formação em contexto, pensando essa avaliação institucional não como um formulário ao final de um ano letivo, mas como uma inquietação constante no cotidiano dos fazeres pedagógicos, do percurso de aprendizagem.

Ressaltamos que esse percurso formativo não foi fácil; ao contrário, foi permeado por tensões e desconfianças, visto que, além de uma pandemia em curso, foi urgente lidar com paradigmas estabelecidos e mexeu, de certa forma, com as certezas de cada professora, assim como reafirmou as convicções da concepção da gestão enquanto instituição formadora, provocando-as a confrontarem suas narrativas, fazeres pedagógicos e suas concepções acerca da avaliação. E tudo isso fez com que a gestão, cada vez mais, buscasse, em sua própria formação permanente, aprofundamentos nos estudos e parcerias, se permitir inquietar-se com as demandas do outro. Acreditamos que, a partir desse posicionamento, houve uma mudança nas percepções de cada profissional sobre as especificidades da educação infantil. Isso se refletiu nas práticas docentes e institucionais. Os materiais que foram direcionados às crianças, desde o início da pandemia até o final do ano letivo de 2020, ilustram essa mudança que ainda é gradativa, mas que apresenta para a equipe conquistas importantes e reafirma a importância do fortalecimento institucional.

Por fim, reafirmamos a relevância das ações de formação continuada e em serviço como um espaço potente para elevar a qualidade das práticas desenvolvidas com e para as crianças, refletindo, assim, em ações significativas da práxis docente na educação infantil, na qual a gestão possui papel primordial.

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1A primeira autora tem se debruçado sobre a questão da avaliação na/da educação infantil. A segunda autora está iniciando pesquisa de mestrado sobre gestão democrática na educação infantil. O terceiro autor tem pesquisado questões de gênero e de audiovisualidades.

2Utiliza-se ao longo do texto o termo em questão no feminino pelo fato de o magistério ser composto, em sua maioria, por mulheres, assim como busca-se borrar as fronteiras de gênero impostas na dinâmica das relações sociais.

3Disponível em: https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca#o-que-e-covid. Acesso em: 27 jan. 2021.

4Disponível em: https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/nid/sbp-atualiza-recomendacoes-sobre-saude-de-criancas-e-adolescentes-na-era-digital/. Acesso em: 6 set. 2020.

5Dois dos autores deste ensaio atuam como gestores da instituição em questão.

Recebido: 04 de Fevereiro de 2021; Aceito: 23 de Agosto de 2021

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