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Estudos em Avaliação Educacional

versão impressa ISSN 0103-6831versão On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.32  São Paulo  2021  Epub 25-Fev-2022

https://doi.org/10.18222/eae.v32.8265 

Seção Temática: Educação em Tempos de Pandemia

LETRAMENTO E AVALIAÇÃO EM TEMPOS DE COVID-19: UMA ANÁLISE COM ESTUDANTES DA EJA

LETRAMIENTO Y EVALUACIÓN EN TIEMPOS DE COVID-19: UN ANÁLISIS CON ESTUDIANTES DE LA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

LITERACY AND EVALUATION IN TIMES OF COVID-19: AN ANALYSIS WITH STUDENTS OF EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

MARCIO SERAFIM DA SILVAI 
http://orcid.org/0000-0003-1701-0515

MARIA CELESTE REIS FERNANDES DE SOUZAII 
http://orcid.org/0000-0001-6955-5854

CRISTIANE MENDES NETTOIII 
http://orcid.org/0000-0002-5725-8323

ISecretaria Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE-MG), Galiléia-MG, Brasil; brasilgamon@yahoo.com.br

IIUniversidade Vale do Rio Doce (Univale), Governador Valadares-MG, Brasil; celeste.br@gmail.com

IIIUniversidade Vale do Rio Doce (Univale), Governador Valadares-MG, Brasil; cris.netto@gmail.com


RESUMO

O estudo toma como objeto de análise o acesso ao ensino remoto de uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA) de ensino médio, instalado em função da covid-19, e correlaciona práticas de letramento e avaliação. O material empírico foi produzido por meio de observação do grupo de WhatsApp da turma, meio de comunicação nas atividades pedagógicas não presenciais. Tomam-se como referência estudos sobre letramento, avaliação e tecnologia, para a análise das práticas de letramento e de como nelas se engendra a avaliação escolar. Os resultados mostram que nas práticas de letramento se encontram tensionadas as razões de vida de estudantes da EJA e as lógicas escolares, sobressaindo nessas lógicas os aspectos regulatórios e predominando uma avaliação técnica e somativa, em detrimento dos aspectos formativos.

PALAVRAS-CHAVE: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS; AVALIAÇÃO; LETRAMENTO DIGITAL; ENSINO PELA INTERNET

RESUMEN

El estudio tiene el objetivo de analizar el acceso a la enseñanza remota de un grupo de Educação de Jovens e Adultos [Educación de Jóvenes y Adultos] (EJA)/educación media, instalado en función de la covid-19, y correlaciona prácticas de letramiento y evaluación. El material empírico se produjo por medio de la observación del grupo de WhatsApp de los alumnos, medio de comunicación en las actividades pedagógicas no presenciales. Se toman como referencia estudios sobre letramiento, evaluación y tecnología, para analizar prácticas de letramiento y ver cómo en ellas se engendra la evaluación escolar. Los resultados muestran que en las prácticas de letramiento se encuentran tensionadas las razones de vida de estudiantes de la EJA y las lógicas escolares, y sobresalen en tales lógicas los aspectos regulatorios, predominando una evaluación técnica y sumativa en detrimento de los aspectos formativos.

PALABRAS CLAVE: EDUCACIÓN DE ADULTOS; EVALUACIÓN; LETRAMIENTO DIGITAL; APRENDIZAGE EN LINEA

ABSTRACT

This study aims to analyze the access to remote instruction of Educação de Jovens e Adultos [Youth and Adult Education] (EJA) high school class, implemented in response to Covid-19, and to correlate literacy and assessment practices. The empirical material was produced through observation of the WhatsApp group of the class, a means of communication in non-face-to-face teaching activities. Studies on literacy, assessment and technology are used as a reference, in order to analyze literacy practices and how school assessment is developed within them. The results show that the reasons for life of EJA students and school logics are found in literacy practices, with the regulatory aspects standing out in these logics, with technical and summative assessment predominating, to the detriment of educational aspects.

KEYWORDS: ADULT EDUCATION; ASSESSMENT; DIGITAL LITERACY; ONLINE LEARNING

INTRODUÇÃO

Uma das primeiras manifestações teóricas sobre a pandemia da covid-19, e que possibilita refletir sobre a educação, foi feita por Boaventura de Souza Santos no livro A cruel pedagogia do vírus (SANTOS, 2020). O título do livro é provocador, pois o vírus é portador de uma pedagogia cruel, um modo de ensinar que rompe com o que nos é mais caro: a vida. Essa cruel pedagogia escancara também as desigualdades educacionais, como mostra o relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) sobre os impactos da pandemia em diferentes países, entre eles o Brasil, e que prenuncia o acirramento dessas desigualdades (2020a). No livro, o autor nos chama a atenção para “[...] as zonas de invisibilidade [que] poderão multiplicar-se em muitas outras regiões do mundo, e talvez mesmo aqui, bem perto de cada um de nós. Talvez baste abrir a janela” (SANTOS, 2020, p. 9).

O esforço deste artigo é trazer à visibilidade estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que carregam as marcas históricas da interrupção de suas trajetórias escolares e que são invisibilizados nestes tempos de pandemia (ARROYO et al., 2020), sofrendo com as agruras do fechamento das escolas e de acompanhamento das atividades de modo remoto. Portanto, a equalização das desigualdades para a EJA distancia-se, em função do contexto pandêmico, das já modestas metas propostas pelo atual Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2014).

Tomamos como objeto de análise o acesso ao ensino remoto de uma turma de EJA de uma escola pública localizada no interior de Minas Gerais, correlacionando dois focos de discussão - as práticas de leitura e escrita desse grupo e os processos avaliativos que acompanham a prática pedagógica no ensino remoto. O esforço em estabelecer a correlação entre esses dois focos é feito pelo reconhecimento da leitura e da escrita como fundamentais para a inserção cidadã efetiva, e do forçoso entrelaçamento entre competências e habilidades em leitura e escrita, aferidas em avaliações destinadas a esse grupo, como o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), e em avaliações em larga escala que visam a aferir usos sociais da leitura e da escrita de pessoas jovens e adultas (RIBEIRO; FONSECA, 2010; RIBEIRO; LIMA; BATISTA, 2015). Interessa-nos refletir, nas práticas de letramento que analisamos, como a avaliação escolar se encontra engendrada nessas práticas, mediada pelo uso da tecnologia.

ESCOLHAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

As experiências humanas com práticas de leitura e escrita são diversas e, na contemporaneidade, com a incorporação da tecnologia em nossas vidas influenciando a forma de nos relacionarmos, comportarmos, comunicarmos, bem como a maneira como aprendemos e convivemos em sociedade, aumentam-se as demandas dessas práticas no domínio das competências que se encontram nelas implicadas, entre elas a criticidade necessária ao usuário da tecnologia.

No contexto do distanciamento social como consequência da covid-19, a tecnologia se apresenta como possibilidade mediadora para garantia do acesso à educação. No Brasil, a medida adotada pelas instituições educacionais públicas e privadas durante o período pandêmico foi a suspensão das atividades pedagógicas presenciais, atendendo à regulamentação do Ministério da Educação (MEC) (BRASIL, 2020a). No âmbito de responsabilidade dos sistemas de ensino estaduais e municipais, coordenados pelas secretarias de educação e pelos conselhos estaduais e municipais de educação, as aulas foram substituídas por materiais disponibilizados por meio das Tecnologias de Informação e Comunicação e, em casos excepcionais, por material impresso aos estudantes.

Pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (BRASIL, 1996), a realização de atividades a distância é admitida em situações emergenciais para os ensinos fundamental, médio, EJA, educação especial e profissional. No entanto, dada a urgência e o curto prazo para implantar as ações com o intuito de não prejudicar o ano escolar, consideramos que não houve tempo adequado para o planejamento e a organização didática que a modalidade de educação a distância requer para uma oferta de qualidade. Dessa forma, a prática denominada de ensino remoto emergencial (OLIVEIRA; CORRÊA; MORÉS, 2020) se instalou com a transposição de práticas da escola presencial para a disponibilização de materiais pedagógicos e instrucionais por meio da utilização de tecnologias.

Nessa perspectiva, impõem-se como desafios para a educação brasileira a integração das tecnologias nas práticas educacionais, a simultaneidade trazida pela internet e, ao mesmo tempo, o acesso a essa tecnologia pelos estudantes, vista a necessidade de desconstrução do mito “estamos todos conectados” quando muitas escolas brasileiras sequer estão conectadas - “proporção inferior a 60% nos estados do Acre, Amazonas, Maranhão, Roraima, Pará e Amapá” (BRASIL, 2021, p. 52).

Essa é uma reflexão que nos parece necessária, já que no enfrentamento da covid-19 o formato de ensino muda radicalmente, e docentes e estudantes são impulsionados a estarem inseridos em universos digitais, por meio dos quais se faz o acesso, se aposta na permanência dos estudantes na escola e se mudam práticas pedagógicas. Entre elas, as avaliativas, pois o aspecto formativo da avaliação, defendido no campo da educação (BOLDARINE; BARBOSA; ANNIBAL, 2017; SILVA; GOMES, 2018), faz-se a distância, por meio digital, e, assim, instauram-se preocupações com os aspectos regulatórios do processo educativo, como os registros de frequência e avaliação, de caráter somativo.

Sobre a avaliação, o Parecer n. 05/2020 do Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2020b) - que dispõe sobre a reorganização do calendário escolar e a possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia da covid-19 - orienta a avaliação diagnóstica, formativa e somativa de forma equilibrada e equitativa. Reconhecendo as dificuldades de acesso à tecnologia de parte dos estudantes, o documento sugere diferentes estratégias que, analisadas em conjunto, apontam para uma perspectiva de avaliação mais dialógica, e de envolvimento do estudante no processo em todos os níveis e modalidades da educação básica, em que pese ainda existirem preocupações de ordem normativa, como conferência de frequência via acesso ao ensino remoto e aferição de desempenho.

Subjaz a todo o processo educativo, incluindo a avaliação, o uso da leitura e da escrita, nesse caso mediado pela tecnologia, instigando-nos neste estudo a buscar aportes dos estudos no campo do letramento, para reconhecer como práticas de letramento os usos da leitura e da escrita da turma de EJA que acompanhamos no ensino remoto emergencial.

Discutir sobre a leitura e a escrita é refletir sobre as práticas sociais nas quais elas comparecem e na sociedade contemporânea, em diferentes tarefas mediadas pela tecnologia: receber e responder e-mails, atender e resolver demandas de trabalho, realizar tarefas domésticas, preencher formulários, manusear o celular, utilizar o computador, acessar as redes sociais, efetuar operações financeiras, estabelecer redes de amigos, etc. Na escola em tempos de pandemia, elas marcam fortemente o acesso, a participação e a organização da ambientação do processo educativo, via ensino remoto emergencial. Estudiosos do campo do letramento afirmam que o que interessa na análise de práticas de letramento, exercício no qual nos empenhamos neste artigo, é refletir sobre “[...] como as pessoas usam os textos escritos e o que fazem com eles em diferentes contextos históricos e culturais” (STREET, 2014, p. 9).

Rojo e Moura (2012, p. 36) argumentam que “[...] o conceito de letramento abre o horizonte para compreender os contextos sociais e sua relação com as práticas escolares”. Os autores destacam que as mudanças no mundo contemporâneo, especialmente as relativas aos meios de comunicação e à circulação de informações, impulsionadas pelas tecnologias de informação e comunicação, apresentam novos contextos de letramento nos quais:

[...] foram surgindo novos gêneros do discurso, tais como blog, o e-mail, chat, as homepages, os podcasts, os infográficos e os diversos outros trazidos para/pela internet. Basta abrir uma página da web para encontrar uma multiplicidade de textos multimodais, combinando diversos modos de significar. (ROJO; MOURA, 2012, p. 76).

Dessa forma, a sociedade contemporânea é composta por multiletramentos, sejam eles de cunho de escrita ou imagético, impressos ou digitais, que visam a responder às demandas sociais e ao constante avanço tecnológico. Portanto “[...] os multiletramentos levam em conta a multimodalidade (linguística, visual, gestual, espacial e de áudio) e a multiplicidade de significações e contextos culturais” (ROJO; MOURA, 2012, p. 38).

Hoje, no Brasil, empreendem-se esforços para a universalização da educação de crianças e adolescentes, mas a escolarização de jovens acima de 18 anos e pessoas adultas é ainda uma meta a ser efetivada, com redução expressiva das matrículas em 2020 (BRASIL, 2021), o que impõe a jovens e adultos maior esforço para o uso cotidiano de práticas de leitura e escrita. Esses não são desafios novos e o debate não pode reduzir-se a habilidades e domínios (de professores e estudantes) no uso de ferramentas tecnológicas; pelo viés dos estudos do campo do letramento, em uma abordagem antropológica e cultural, ler e escrever, na mediação tecnológica, não são habilidades neutras (ROJO; MOURA, 2012; STREET, 2014; ROJO, 2015). Com efeito, são práticas de letramento, tendo em vista que não prescindem dos sujeitos, das culturas, das relações, das intencionalidades, do uso da tecnologia, etc., que forjam os novos letramentos digitais.

Rojo (2015, p. 455) esclarece que “[...] o conceito de novos letramentos (digitais) é um construto relativamente recente no campo dos estudos do letramento” e é, segundo a autora, mais do que o mero uso das tecnologias, mas implica práticas participativas, colaborativas, marcadas por “[...] normas mais fluidas, características dessa nova mentalidade, que maximizam relações, diálogos, redes e dispersões, buscando a livre informação” (ROJO, 2015, p. 457).

Pode-se afirmar que é consensual, no campo dos estudos do letramento, o reconhecimento da presença dos letramentos digitais nas práticas educativas, bem como se pode conferir seu comparecimento delineando novas demandas avaliativas, como objeto de matrizes de avaliações sistêmicas e de outras avaliações que buscam aferir seu comparecimento nas práticas sociais de jovens e adultos, seus usos, competências e o envolvimento dos sujeitos nessas práticas letradas (RIBEIRO; FONSECA, 2010; ROJO, 2015).

No contexto pandêmico, temos acompanhado, no cenário brasileiro, a tecnologia se impor como modo preponderante de acesso ao ensino remoto emergencial e do acompanhamento do processo ensino-aprendizagem, instigando, pois, diferentes práticas de letramentos digitais e provocando reflexões sobre os processos avaliativos. Moreira, Henriques e Barros (2020) argumentam que as tecnologias possibilitam uma grande variedade de recursos para apoiar os processos de avaliação, tanto formativa quanto somativa, no ensino remoto. No entanto, o êxito requer dos professores empatia e habilidades comunicativas para desafiar a forma como os estudantes consideram a aprendizagem, suas responsabilidades e participação no processo realizado em tempos e espaços diferentes.

A temática da avaliação nesse contexto é complexa, pois ainda prevalece no meio educacional uma concepção punitiva da avaliação, muitas vezes restrita à aplicação de provas como principal instrumento avaliativo, sobressaindo-se na avaliação os aspectos técnicos sobre os formativos (BOLDARINE; BARBOSA; ANNIBAL, 2017). Cumpre considerar que a sala de aula da EJA, pelas especificidades e singularidades desse grupo, como jovens e adultos envolvidos em diferentes práticas sociais nas quais se demandam conhecimentos, habilidades, estratégias e usos diversos da leitura e da escrita, e em inúmeras situações mediadas pela tecnologia, pressupõe outras práticas leitoras e avaliativas.

É nesse sentido que se coloca a importância de considerar a avaliação como parte do processo educativo da EJA e, na situação do ensino remoto, a multimodalidade como possibilidade para o ensino-aprendizagem, incluindo-se nela as práticas de avaliação. Do ponto de vista pedagógico, práticas de leitura e escrita a partir da utilização de diferentes dispositivos tecnológicos, e marcadas pela multimodalidade, instigam novas formas de interação e, no ensino remoto, estimulam novas práticas e demandam atitudes reflexivas: “Precisamos pensar um pouco em como as novas tecnologias da informação podem transformar nossos hábitos institucionais de ensinar e aprender” (ROJO; MOURA, 2012, p. 26), assim como de avaliar.

No tocante à avaliação, tem-se que as práticas de letramento digitais dos estudantes podem ser incorporadas ao processo avaliativo, e a cibercultura apresenta-nos uma gama de possibilidades favoráveis à autoria, colaboração e interatividade, tanto pela utilização quanto pela produção de recursos como portfólios digitais, blogs, vídeos e podcasts. Reconhecemos que essas potencialidades podem ser muito favoráveis à educação, no entanto requerem docentes com domínio tecnológico e pedagógico para transformar um ensino remoto emergencial em uma educação digital em rede de qualidade (MOREIRA; HENRIQUES; BARROS, 2020).

Balizados por essas escolhas teóricas, acompanhamos o ensino remoto emergencial de uma turma de jovens e adultos, estudantes da EJA de ensino médio de uma escola situada em uma cidade do interior mineiro, escolhida intencionalmente por ser a única no munícipio que oferece essa modalidade educativa, com duração de um ano e meio, organizado em três períodos semestrais (MINAS GERAIS, 2019).

A turma da EJA cursa o 3º período e é composta por: 14 homens (11 mais jovens, com idade compreendida entre 18 e 29 anos; 3 adultos acima dessa faixa etária) e 19 mulheres (12 mais jovens, com idade compreendida entre 18 e 29 anos; 7 adultas acima da faixa etária de 29 anos). Para separar a faixa etária (jovens de adultos), foi tomado como referência o Estatuto da Juventude, que estabelece como pessoas jovens aquelas com idade entre 15 e 29 anos; como pessoas adultas as com idade a partir dos 29 anos (BRASIL, 2013).

O grupo é composto por trabalhadores(as) em diferentes segmentos do mercado de trabalho local, como: trabalhadores do campo, donas de casa, atendentes do comércio, empreendedores e trabalhadores informais, desempregados, vendedores, empregadas domésticas e aposentados - conforme dados disponibilizados na ficha de matrícula escolar.

A produção do material empírico foi gerada por meio do acompanhamento de atividades no grupo de WhatsApp, recurso utilizado pela escola para estabelecer a comunicação com os(as) estudantes no ensino remoto, atividades pedagógicas não presenciais, instituído pela Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE/MG), em 17 de abril de 2020 (MINAS GERAIS, 2020a). Dessa forma, a escola, campo de pesquisa, dedicou o restante do mês de abril para o planejamento da modalidade de ensino remoto e iniciou suas atividades com os estudantes no princípio de maio.

A pesquisa foi iniciada nesse contexto,1 e, após anuência dos participantes, um dos pesquisadores foi adicionado ao grupo de WhatsApp da turma do 3° período da EJA. Essa participação possibilitou acompanhar o movimento da turma na nova modalidade de ensino, como: acesso, práticas de letramento, acompanhamento docente, interação e avaliação dos processos. Os registros virtuais foram capturados no período de 17 de maio a 8 de agosto de 2020. As mensagens por áudio foram transcritas, as mensagens escritas e emojis enviados durante as conversas também foram copiados e mantidos em arquivo particular do pesquisador, primeiro autor deste artigo, para análise posterior.

Para a análise do conjunto do material empírico, mobilizamos as contribuições de Hamilton (2000), que investigou práticas de letramento por meio de fotografias. A autora discute os elementos visíveis nessas práticas (o tipo de artefato, os participantes, as atividades) e elementos menos visíveis e que requerem uma interpretação mais acurada (relações sociais de produção, interpretação, circulação e regulação dos textos escritos; domínio e propósito da prática; formas de pensar, sentir, habilidades e conhecimentos). Ao refletir sobre as práticas de letramento que se apresentam no grupo de WhatsApp, interessa-nos refletir sobre o processo educativo que permeia essas práticas e como a avaliação se encontra engendrada nele.

PRÁTICAS DE LETRAMENTO E AVALIAÇÃO MEDIADAS PELA TECNOLOGIA

No site do Governo de Minas Gerais, na Secretaria de Estado da Educação, encontra-se o “Estude em Casa”,2 e por ele os estudantes podem acessar os materiais digitais específicos para o desenvolvimento das atividades pedagógicas não presencias durante o período do afastamento social. Encontram-se disponíveis nessa plataforma: “Planos de Estudos Tutorados” (PETs), “Conexão Escola Web”, “Se liga no Enem”, “Libras”, “Guias práticos para estudantes, pais e responsáveis”, “Guias para professores e diretores”, “Projeto Vamos aprender”, “Jornal Joca”, “Legislações e Publicações”, com o objetivo de subsidiar o Regime Especial de Atividades Não Presenciais.3

Dessa gama de materiais, destacamos os Planos de Estudos Tutorados, mais conhecidos como PETs pela comunidade escolar:

O Plano de Estudos Tutorado (PET) consiste em um instrumento de aprendizagem que visa permitir ao estudante, mesmo fora da unidade escolar, resolver questões e atividades escolares programadas, de forma autoinstrucional, buscar informações sobre os conhecimentos desenvolvidos nos diversos componentes curriculares, de forma tutorada e possibilitar ainda, o registro e o cômputo da carga horária semanal de atividade escolar vivida pelo estudante, em cada componente curricular. (MINAS GERAIS, 2020a, p. 1).

No “Estude em Casa”, há PETs disponíveis para toda a educação básica e para o ensino médio (EM), 1º, 2º e 3º ano. No EM, os PETs se encontram divididos em ensino regular diurno e noturno, integral, profissional (este último apenas para o 1° ano), modalidades especiais e atendimentos específicos, além do PET 300 Anos, PET Final Avaliativo e simulados para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Encontram-se disponibilizados, para o 1° ano, 30 exemplares; para o 2° ano, 28 exemplares; para o 3° ano, 28 exemplares - totalizando 86 exemplares.

Ressaltamos que, além da disponibilização do material em modo virtual, para os casos específicos de estudantes sem o acesso às tecnologias e redes virtuais, as escolas estaduais foram orientadas a atender às situações excepcionais disponibilizando aos discentes materiais impressos, como indicado na legislação.

O Plano de Estudos Tutorado (PET) será disponibilizado a todos os estudantes matriculados no Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação Profissional, por meio de recursos das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e, em casos excepcionais, será providenciada a impressão dos materiais e assegurado que sejam disponibilizados ao estudante. (MINAS GERAIS, 2020a, p. 1).

A experiência analisada mostra a preocupação da escola em mobilizar os estudantes. Entre as estratégias que a escola campo de pesquisa adotou, houve a criação do grupo de WhatsApp utilizando os contatos dos estudantes disponibilizados nas fichas de matrícula. O grupo se colocou como um artefato tecnológico criado para fins pedagógicos, com o objetivo de oferecer condições para que os estudantes tivessem acesso às informações sobre a organização das atividades nessa nova modalidade, e uma forma de acompanhamento docente quanto ao cumprimento das atividades. O grupo de WhatsApp funcionou para direcionar a organização e a interação dos docentes e estudantes, acompanhar o processo educativo e conferir a participação dos estudantes. Através dele, foi possível realizar o acompanhamento pedagógico e verificar o desenvolvimento de toda a equipe envolvida nos trabalhos pedagógicos, incluindo as propostas dos docentes.

Esse recurso propiciou a entrada dos sujeitos no ensino remoto emergencial. Como artefato importante nessa prática de letramento, buscamos verificar, por meio de uma contagem manual das postagens diárias de docentes e discentes no período em análise, quem acessou o grupo e quantas vezes o acessou.

As postagens docentes foram 359 e englobaram, além dos diferentes componentes curriculares - Arte (11), Biologia (26), Educação Física (8), Geografia (20), Inglês (31), Língua Portuguesa (48), Matemática (24), Química (44), Sociologia e Filosofia (90), Física (35) -, aquelas feitas pela professora de uso da biblioteca (22). Embora o acesso dos professores estivesse condicionado ao número de aulas, podem-se observar algumas curiosidades: por exemplo, 1 aula por semana em Educação Física gerou 8 postagens, e o mesmo relativo à Arte (11), o que pode levar-nos a refletir, no caso da Educação Física, sobre as dificuldades do ensino remoto em lidar com a corporeidade presente nesse componente. Por sua vez, o componente curricular Sociologia e Filosofia, também com 1 hora-aula, gerou 90 postagens, motivadas não só pelo conteúdo, mas pela função de moderadora do grupo desempenhada por essa professora. Destacamos esses componentes, embora os demais se encontrem em um patamar parecido - entre 20 e 50 postagens.

Os discentes fizeram 462 postagens. Nessa turma de 33 estudantes matriculados, 25 acessaram o grupo de WhatsApp e protagonizaram práticas de letramento, a despeito das dificuldades e vicissitudes como estudantes da EJA, o que pode ser considerado um número significativo de acessos, já que historicamente um dos problemas enfrentados pela EJA é a evasão escolar. Não foi possível na pesquisa identificar os motivos do não acesso de oito estudantes, porém identificamos, consultando as fichas de matrícula, que se trata de seis homens (quatro jovens e dois adultos) e duas mulheres (uma jovem e uma adulta).

O consolidado das participações pode ser conferido na Tabela 1, na qual discriminamos docentes e discentes e o número de postagens feitas por sexo:

TABELA 1 Consolidado das participações e postagens no grupo de WhatsApp 

PARTICIPANTES QUANTIDADE DE PARTICIPANTES QUANTIDADE DE POSTAGENS TOTAL DE POSTAGENS POR GRUPO DE PARTICIPANTES
Professor 1 8 359
Professoras 12 351
Alunos 7 108 462
Alunas 18 354
TOTAL GERAL 38 821

Fonte: Elaboração dos autores com dados da pesquisa.

Observamos que, dos sete estudantes do sexo masculino, seis são jovens, o que demonstra o engajamento, ainda que parcial, dos jovens com a escola. Entretanto, esse engajamento é mais feminino do que masculino, pois, das 12 mulheres jovens da turma, nove acessaram o grupo e as informações sobre a sala de aula remota. Com relação ao número de postagens, sobressaem-se também as postagens femininas.

Essa diferença das postagens nos provoca a refletir sobre as diferenças de gênero no contexto da pandemia. Nota informativa da Unesco preocupa-se com as disparidades de gênero nesse contexto e aponta para a “[...] excessiva e não remunerada carga de trabalho doméstico e com cuidados em geral, com impactos na aprendizagem” (UNESCO, 2020b, p. 2), a qual recai, predominantemente, sobre as mulheres. O documento reflete também sobre as diferenças de gênero no acesso à tecnologia:

[...] mais homens do que mulheres têm acesso e usam a internet em todas as regiões do mundo, e a diferença digital de gênero está aumentando, principalmente nos países em desenvolvimento. Em muitos países, as mulheres têm uma probabilidade 25% menor do que os homens de saber como usar as tecnologias de informação e comunicação (TIC) para fins básicos, como, por exemplo, usar fórmulas aritméticas simples em uma planilha, e as diferenças de gênero aumentam à medida que as tarefas se tornam mais complexas. (UNESCO, 2020b, p. 2).

A despeito dessas diferenças, o documento destaca que contextos nos quais as condições digitais são acessíveis para o ensino remoto podem ser equalizadores para as diferenças de gênero. As mulheres deste estudo, apesar do envolvimento com as práticas de cuidado da casa, ou das diferenças no uso da tecnologia entre mulheres e homens, mostram-se mais envolvidas no ensino remoto e protagonizam mais práticas de letramento digital do que os homens.

O acompanhamento dessa turma mostra que a entrada na escola se faz via tecnologia, que se tem mostrado como condição para se conectar e pertencer a diferentes comunidades escolares que se estabeleceram em espaços virtuais, através de grupos de WhatsApp, lives, videoconferências, aplicativos, sites e páginas interativas, no ensino remoto (OLIVEIRA; CORRÊA; MORÉS, 2020). A leitura e a escrita constituem-se, pois, ferramentas essenciais que se apresentam nas práticas de letramento dos sujeitos nessa sala de aula.

O telefone como um artefato nas práticas de letramento oferece condições a estudantes e professores(as) de construírem suas dinâmicas de trabalho e dinamizarem estratégias comunicativas que atendam aos objetivos do ensino e da aprendizagem. Durante o período de acompanhamento e observação dessa turma da EJA, registramos a movimentação das pessoas de acordo com as práticas de letramento nas quais estiveram envolvidas.

Nesse sentido, esforçamo-nos para acompanhar o desenrolar dos acontecimentos, visando a compreender as circunstâncias, interações, atividades e processos avaliativos que comparecem nessas práticas de letramento. A participação no grupo já é uma circunstância específica que carrega regras e códigos de comportamento próprios, organiza o modo das interações e padroniza, por meio de regras, os comandos e comportamentos a serem adotados pelos estudantes. Selecionamos três postagens4 feitas pela escola no grupo:

PP1: Bom dia. Preciso que coloquem o nome e foto de vcs no status para que o professor possa identificá-lo. Quem não colocar, será excluído do grupo. Desde já obrigada!

PP2: Boa noite, prezados alunos! Semana passada encerramos o PET 2. Vcs terão até o dia 30/07/20 (quinta-feira) para fazerem as atividades, fotografá-las e enviá-las para os professores. Lembrando que o aluno q não fizer as atividades corre o risco de ser reprovado, pois a carga horária só estará cumprida mediante a resolução das mesmas.

PP3: Se você não colocar, sua atividade não vale. Cuidado com as ordens do estado. [emojis: com luvas de boxes e carinhas de atenção]. Estou pedindo e orientando e alguns não estão ouvindo... isso pode dar sérios problemas para vocês... Não se esqueçam que suas atividades é a sua participação e frequência! Isso é documento...

A primeira postagem indica a abertura do grupo de WhatsApp como ferramenta de trabalho pedagógico que, naquele momento, encontrava-se em fase experimental e em condições de adaptação e aceitação pela comunidade escolar inserida na nova modalidade de ensino remoto. No entanto, a proposta de trabalho está condicionada em sentido unilateral, sem considerar as condições para o acesso e uso da ferramenta pelos estudantes, e sinaliza a prerrogativa de exclusão, caso os participantes não ajam conforme os padrões definidos para identificação e permanência para acessar e se manter na virtualidade dessa sala de aula.

Ressaltamos que o recorte da situação apresentado é da realidade educacional de jovens e adultos da EJA. O que se observa, no teor da postagem, são relações específicas de poder, nas quais se sobressaem as normalizações e regras escolares que têm dificultado ao longo dos anos a permanência dos sujeitos nas salas de aula da EJA, sobre as quais têm pesado diferentes dificuldades com relação à oferta e ao acesso: “[...] incompatibilidade de horários entre trabalho, escola e tarefas familiares [...] ou, ainda, porque a oferta escolar disponível não é adequada ou relevante face às necessidades de aprendizagem dos jovens, adultos e idosos” (CATELLI JR.; DI PIERRO; GIROTTO, 2019, p. 460-461). As relações estabelecidas pela escola se limitam a regras e relações de poder que sempre se confirmaram em exclusões dos sujeitos da EJA e, nesse caso, continuam excluindo no ensino remoto.

A segunda e a terceira postagens colocam em evidência o fato de que a escola, para conseguir resultados e atender às exigências do “estado”, persiste em ditar comandos, “pressionar” os sujeitos, reforçando a exclusão com a ameaça de reprovação, caso a carga horária de estudos não seja cumprida. Prevalece aqui uma concepção punitiva de avaliação, o atendimento a fatores externos à instituição escolar, distanciando-se dos aspectos formativos da avaliação inerentes aos processos de aprendizagem, como demonstram diferentes estudos que correlacionam avaliação e aprendizagens (BOLDARINE; BARBOSA; ANNIBAL, 2017).

Cabe, portanto, a reflexão de que os objetivos educacionais, nesse contexto, não acolhem o pensamento inclusivo, não consideram as dificuldades que possivelmente os(as) estudantes teriam ao ingressar na nova plataforma de estudos e no novo modo de funcionamento da escola, ainda não experimentado, e é possível aventar diferentes percalços para que esse acesso não aconteça: não ter o próprio dispositivo, disponibilidade de acesso à internet, situação financeira, dificuldade de manuseio da ferramenta, localização, etc.

Nas situações anteriores, a leitura e a escrita são mobilizadas pela escola como instrumentos que expressam regras e normas - de acesso, funcionamento e avaliação. Entretanto, retomando as contribuições dos autores do letramento que enfatizam os usos sociais da leitura e escrita, as interações, as perspectivas culturais, os sentidos, as competências e habilidades mobilizadas pelos sujeitos, os multiletramentos, a multimodalidade, os letramentos digitais, a amplitude da web (HAMILTON, 2000; RIBEIRO; FONSECA, 2010; STREET, 2014; ROJO; MOURA, 2012; ROJO, 2015), propomo-nos a refletir sobre as práticas de letramento dos(as) estudantes no ensino remoto, que observamos nesse grupo de WhatsApp.

Observamos que em resposta às normas da escola e às postagens feitas por parte dos profissionais da escola - orientações sobre a organização dos materiais, acordos éticos, cobranças sobre os retornos das atividades, postagem de filmes, emojis, mensagens motivacionais -, os(as) estudantes respondem, ou participam, de diversas formas, levando para aquela sala de aula virtual a condição de estudantes da EJA, e como se sentem perdidos com o excesso de atividades.

A organização didática sugerida pela escola campo de pesquisa foi elaborar um cronograma semanal para as postagens docentes relativas a cada componente curricular, em consonância com a matriz curricular da EJA, as apresentações das aulas transmitidas pela Rede Minas de Televisão, assim como orientar para os PETs.

O desenvolvimento da proposta de trabalho pedagógico remoto implicou mudanças significativas para os processos educativos e, consecutivamente, gerou excesso de informações. Por exemplo, postar os conteúdos e atividades de todos os componentes inclusos na Matriz Curricular da EJA do 3° período: 3 aulas de Língua Portuguesa, 1 aula de Língua Inglesa, 1 aula de Arte, 1 aula de Educação Física, 2 aulas de Matemática, 2 aulas de Física, 2 aulas de Química, 2 aulas de Biologia, 2 aulas de Geografia, 2 aulas de História, 1 aula de Sociologia e 1 aula de Filosofia, o que corresponde a 20 aulas semanais com a carga horária de 333 horas e 20 minutos, além da complementação das atividades integradoras do Projeto de Vida com 66 horas e 40 minutos, totalizando 400 horas de trabalho (MINAS GERAIS, 2019). Observa-se que no ensino remoto emergencial todas as atividades postadas devem ser lidas, interpretadas, respondidas e encaminhadas diariamente aos professores que, por sua vez, devem registrar e consolidar a participação dos estudantes (MINAS GERAIS, 2020a).

Nas postagens a seguir, é possível perceber as preocupações e aflições dos(as) estudantes para responder à demanda diária de atividades.

PE1: Têm alunos da sala que n está no gp e tá perguntando o que fazer pra entrar... alguém aí pode ajudar???

PE2: Eu não sei se desisto ou choro, professora... Meu Deus, tô perdida!

PE3: Misericórdias .... [emojis de caixões]

PE4: Têm mais alguma matéria ou apostila pra fazer pk já não sei pk tá td confuso esses deveres qe vcs mandaram...

PE5: Boa noite, quais as matérias a que deveram ser respondidas pela internet. Estou meio perdida [emojis de dúvidas] ... estou um pouco atrasada.

PE6: [emojis: imagens de uma mulher desesperada tomando remédio]

Meu pai do céu ... [emojis: Simpson com a mão na cabeça]

PE7: Ai meu Deus !!!

Nessas postagens, apresentam-se preocupações com colegas que não estão no grupo, com o excesso de atividades - que devem ser feitas individualmente, postadas ou entregues - e com o atraso; temperadas com o humor dos memes e emojis, e que se mostram pertinentes nessa sala de aula. As postagens colocam em evidência preocupações e angústias com um processo educacional que se reduz à distribuição de atividades a serem respondidas pelos estudantes, seja pela forma virtual através de links ou pelo material impresso disponibilizado aos estudantes sem acesso à internet para os estudos dos PETs, reduzindo o letramento a habilidades neutras e ignorando-se as potencialidades do letramento digital (ROJO; MOURA, 2012; ROJO, 2015).

Se para a escola predomina uma perspectiva instrumental nos usos da leitura e da escrita, moldados em regras unilaterais, que limita as escolhas dos sujeitos e desconsidera os contextos sociais e histórias de vida, para os(as) estudantes as práticas de leitura e de escrita no grupo de WhatsApp potencializam a comunicação, diversificam o conhecimento, possibilitam o acesso à escola nesse contexto, expressam sentidos, anseios, modos culturais e dificuldades engendradas na vida como estudantes da EJA.

Além da dificuldade de acesso ao grupo virtual, das diferenças da quantidade de postagens e participação no grupo, apresentam-se tensões advindas do trabalho, das ocorrências domésticas, da maternidade, dos problemas de saúde, das acessibilidades, da afetividade, da estrutura familiar e de outras questões que permeiam a vida de estudantes da EJA, muitas vezes silenciadas na escola, ignoradas nas políticas públicas da EJA (CATELLI JR.; DI PIERRO; GIROTTO, 2019; ARROYO, 2020), mas que permanecem presentes nessa sala de aula remota como constitutivas das práticas de letramento.

A maternidade aparece nas narrativas de mulheres da EJA e dessas estudantes em particular. Na situação de pandemia, a responsabilidade feminina com a família foi intensificada pelo isolamento social e pelo fechamento das escolas. Para as mulheres mães, acarretou o aumento das demandas do trabalho doméstico não remunerado e o acompanhamento a tarefas escolares de filhos(as) (UNESCO, 2020b).

A especificidade da maternidade - com seus dilemas, cuidados e preocupações - intercepta as trajetórias dessas mulheres, mas elas insistem na escola e, mesmo no contexto da pandemia, no ensino remoto, são protagonistas e mostram a correlação identitária na configuração das práticas de letramento:

PE8: Nossa gente mês qe vem já ganho bebê será qe vai dar tempo tenho tanta coisa pra fazer meu deus [vários emojis com a mão no rosto].

PE9: Estou no Hospital ... ganhei neném hoje!

PE10: Estou de resguardo ... [emojis de carinhas alegres e joinhas].

PE11: [emojis da mãe com bebê no colo].

Outro fator que surge interceptando as trajetórias escolares é o trabalho. Os descompassos entre trabalho e educação na EJA são históricos e mostram que, além dos desafios que esses sujeitos enfrentam para se inserirem no mercado de trabalho e das dificuldades que enfrentam como trabalhadores informais, também enfrentam as dificuldades em conciliar o tempo de trabalho com o tempo de estudo, especialmente pela rigidez das regras escolares com relação a horários e cumprimento de tarefas (CATELLI JR.; DI PIERRO; GIROTTO, 2019).

Assim, confrontando as determinações escolares no ensino remoto naquele grupo de WhatsApp, eles e elas expressam sua condição de estudantes da EJA, reafirmam a condição de trabalhadores e teimam em permanecer na sala de aula, como se pode conferir em cinco postagens feitas por diferentes estudantes (homens e mulheres trabalhadores):

PE12: Gente eu trabalho em dois serviços e não estou com tempo pra fazer este monte de trem não! Misericórdias, já pesou ter que ir pra escola de novo?

ÔÔOO arrependimento foi ter coeçado a pagar estas apostilas cara e este trem nojento. Era pra mim ter parado com isso. Não vou aprender nada em vista e ainda trablahando, ter que copiar trem de internet, há... merda!

PE13: Bom dia pra vcs professores! Olha, vocês ... é, fica não ! Vocês não aceitam eu fazer a apostila do meu marido. Só que ... ele tá trabalhando na prefeitura. Ele chega em casa lá pras 5:30 e 5:40 e vai pra outro serviço ... chega 9:00 h até 10:30 h por aí da noite... estourando 10:30 h. Ele não tá tendo tempo. Só chega, janta, toma banho e vai dormir par ir trablahar no outro dia ... Então gente, vou ter que fazer o dele!

PE14: Infelizmente não tive tempo, tá! Eu hoje trablahei o dia todo. Deixei pra postar muito tarde, porque eu estava trabalhando.

PE15: Eu vou precisar de um pouquinho mais, n consigo fazer muito em um dia só n, tem dia que chego do trampo e tô exauto ...

PE16: Professora [por causa do trabalho], não consegui finalizar seus deveres vc mim dá mais um tempo?

Essas cinco postagens mostram a sobrecarga de trabalho, geralmente “dois serviços”, a rotina que inclui “correr” de um trabalho a outro - “só chega em casa, janta, toma banho e vai dormir pra ir trabalhar no outro dia”, a exaustão ao final do dia e a solicitação de prazos para conclusão da atividade. Na postagem 13, a esposa explica a situação do marido, assume que fará o trabalho por ele e expõe a contradição entre o tempo exigido para o cumprimento da atividade e o tempo do trabalho e complementa:

PE17: vocês querendo ou não vão ter que aceitar a apostila dele com minha letra, entendeu? Ele não vai ficar sem fazer. Não vai perder serviço para responder apostila. Ele prefere trabalhar do que responder a apostila [...]. Desculpa aí qualquer coisa, mais não posso fazer nada.

Essas postagens também suscitam reflexões sobre a possível saída da escola e o arrependimento por insistir - “era para eu ter parado com isso” -, sobre um ensino que mesmo nas potencialidades da web se reduz a responder apostila (o PET), além de preocupações com a aprendizagem - “Não vou aprender quase nada em vista e ainda trabalhando, ter que copiar trem de internet” -, e apontam para uma forma de avaliação que se pauta na entrega das apostilas preenchidas.

Outra eventualidade comum nessas práticas de letramento são as precárias condições que a população rural encontra para conseguir frequentar a escola. Além da dedicação laborativa exigida dela durante o dia, que perpassa as atividades braçais que requerem bastante esforço físico, esbarra na questão de mobilidade e acesso às tecnologias. As políticas educacionais ainda não conseguem dar conta dessas questões singulares enfrentadas por esses estudantes. Nesse caso, é interessante a saída que a escola encontra para a inclusão dos sujeitos do campo: a impressão do material e a entrega aos estudantes, recursos para os quais a escola se mobiliza:

PP4: Boa noite, queridos alunos! Este é o PET II. Começaremos a trabalhar com ele na próxima segunda-feira (29/06). Para os alunos da Zona Rural a escola imprimirá o material, entregará e recolherá o PET I. Que Deus nos abençoe!!!

As marcas relacionadas às questões sociais e de vida, que se apresentam no percalço escolar desses(as) estudantes, ecoam na escola, que as acolhe como consegue nessa modalidade de ensino, como nos mostra a postagem a seguir feita por um profissional da escola:

PP5: Mas aí gente, sei que tem muitas pessoas que estão com problemas, uns tem problema de saúde, outros como já sei tem uma aluna que parece que está grávida, né, tem um casal que está apertado porque trabalha fora, inclusive, tem alunos que me informaram que tem que entregar atividade dela e do esposo na escola, mas conversa com o diretor ou especialista se vocês podem enviar pra mim para que possa estar inserindo as informações nos anexos de vcs.

A escuta sensível dessas questões se apresenta, mas não traz resoluções para a dinâmica escolar. No final da postagem, o profissional orienta para a necessidade de conversar com a direção da escola (diretor ou especialista) para que aprove a solicitação. Se for aprovada, esse docente se disponibiliza a organizar os trabalhos que forem postados em outra data, mostrando que compreende a inserção desses sujeitos em outros territórios para além da escola (do trabalho, da casa), apresentando razões de vida que tensionam a lógica escolar.

Essas razões de vida alcançam esse ensino remoto emergencial, e estudantes e professores estabelecem vínculos afetivos, de preocupação e cuidados com os colegas, como indicam duas postagens, a de uma estudante e a de uma professora - esta acolhe a dificuldade, se coloca como mulher que partilha dificuldades comuns das outras mulheres da EJA e procura incentivar a continuidade dos esforços pelo grupo:

PE18: Gente, a [colega de classe] está passando mal, tá! E foi para GV muito mal. Ela está com apostila dela toda pronta, tá! Vocês aguardam um pouquinho e façam uma oração pra ela, tá bom! [Suspiros] ...

PP6: Eu sei que vocês estão ansiosos e com razão, né! Com tanta coisa que aconteceu, com tantos problemas esse ano. E se fosse só escola estava bom, nè! Nós que temos casa, filhos, tem trabalho, então a gente fica ansiosa mesmo. Não tiro a razão, não! Mas com fé em Deus vocês estão chegando na etapa final, só mais um pouquinho que chegarão lá. Qualquer coisa, só me chamar aqui.

A disposição dos docentes em acolher os sujeitos da EJA se apresenta também em outras postagens, e os usos sociais da leitura e da escrita nesta situação estabelecem laços de respeito e reciprocidade.

PP7: A direção já escolheu os professores responsáveis pelo Projeto de Vida. A professora responsável pela turma de vcs é a professora de Sociologia e Filosofia. Ela vai orientá-los quanto às atividades.

PE19: Essa professora de Sociologia e Filosofia é uma santa, tô loco tanta coisa ficaria doido ... kkkk

PE20: Não sei como ela aguenta!

PE21: [Emojis de mão no rosto e carinhas de risos ... kkk]

PP8: Pessoal, boa noite! Tudo bem com vocês? Obrigada pelo carinho e respeito... é recíproco!

Presentes nas práticas de letramento digital dos(as) estudantes, encontramos os “[...] emojis, que são gravuras produzidas com a tecnologia criada por um grupo sem fins lucrativos denominado Consórcio UNICODE” (PAIVA, 2016, p. 382), cuja presença nas interações humanas demonstra a complexificação da linguagem, via uso das tecnologias de informação e comunicação, com sentido linguístico e cultural nos contextos nos quais são utilizados.

A seguir, apresentamos a Figura 1, com alguns emojis que capturamos nesse grupo de WhatsApp:

Fonte: Elaboração dos autores com dados da pesquisa.

FIGURA 1  Emojis e figurinhas capturados no grupo de WhatsApp 

Alguns desses emojis foram postados pelos professores, como os que se relacionam ao PET ou os que convocam para a realização de atividades, cumprimento de prazos e regras. Os(As) estudantes, em resposta, apresentavam suas emoções, expressando assombro, choro, preocupação, alegria, etc. Interessa, aqui, o uso linguístico adequado que se faz nessa prática de letramento e a resposta à convocação da escola, feita com humor.

Destaca-se a compreensão pelos(as) estudantes do tipo de linguagem usada em grupos de WhatsApp, e como a linguagem utilizada, do ponto de vista linguístico, é coerente e adequada, o que mostra apropriação do letramento digital por esse grupo: a interlocução, a incorporação dos emojis, os aspectos identitários, econômicos, culturais, as interpelações e o enfrentamento das lógicas da escola, contrapondo-se às razões de vida que justificam o protagonismo e o engajamento nas práticas de letramento.

Apesar disso, na constituição dessas práticas de letramento também se apresentam outras tensões especialmente demarcadas pelo cumprimento das atividades, e pelo processo avaliativo, como já destacado. Os(As) estudantes, frequentemente, são convocados(as) a atender às orientações, que se repetem constantemente a cada postagem do(a) professor(a) e que reafirmam semanalmente as normas e regras escolares.

Além das orientações, postadas no grupo, o desenvolvimento sequencial do ensino remoto também conta com as aulas ao vivo transmitidas pela Rede Minas de Televisão e a disposição do aplicativo Conexão Escola para o acesso aos vídeos gravados. Assim, os discentes são orientados no grupo a, após assistirem e acompanharem as aulas, completarem as atividades e encaminhá-las semanalmente para o WhatsApp de cada professor responsável por cada componente curricular.

Na sequência, o docente responsável pelo componente curricular insere os dados dos estudantes em formulário próprio (denominado anexo)5 e envia para o e-mail institucional da escola, que por sua vez informa o fluxo de recebimento das atividades e resultados para a Secretaria Estadual de Ensino.

Toda a dinâmica de trabalho é estabelecida em função do cumprimento das atividades, sem socializar e discutir as propostas e os conteúdos compartilhados com os(as) estudantes. As dinâmicas se repetem no ciclo mensal, com um intervalo para acolhimento da próxima edição do PET, como podemos perceber nas postagens docentes:

PP9: Prezados alunos, visto que muitos ainda não terminaram as atividades e estão com dúvidas quanto à data de envio, informo que estarei recebendo as atividades de FILOSOFIA, SOCIOLOGIA e HISTÓRIA até segunda-feira, dia 15/06/2020, prazo máximo, infelizmente, a data não poderá ser estendida. Vocês deverão enviar fotos legíveis e identificação das atividades da SEMANA 1, 2, 3 e 4.

PP10: Peço aos alunos que tirem fotos das atividades das semanas 1, 2, 3 e 4. Coloquem o nome, a turma e me enviem no privado. Isso é necessário para eu registrar quem está cumprindo com as tarefas, ok?

PP11: Boa tarde, Pessoal! Nem todos os professores irão utilizar a mesma apostila PET. Sendo assim, de acordo com as postagens dos professores no grupo separei o conteúdo que cada professor decidiu trabalhar até o momento. Os arquivos a seguir já foram enviados no grupo pelo professor e estarei reenviando para aqueles que não possuem o conteúdo. Compreende o Plano de Estudos Tutorados (PET) dos professores de: Língua Portuguesa, Matemática, Biologia, Geografia, História, Filosofia e Sociologia. Por favor aguardem os professores de Química, Física, Língua Inglesa, e Educação Física. Estamos passando por um período complicadíssimo, tenham paciência! As apostilas acima já estão disponíveis para os alunos que desejam realizar a impressão (opcional). O dono da gráfica [...] está ciente que alguns alunos irão procurá-lo.

Desse modo, perde-se o potencial oferecido pela própria tecnologia, pelo que se encontra disponível para os estudantes, e o grupo de WhatsApp, acessado pela tecnologia móvel, apresenta-nos um panorama de uma sala de aula que o reduz a um “[...] equipamento como outro qualquer e que pode ser suporte de práticas de leitura e escrita do letramento convencional” (ROJO, 2015, p. 460), ao se reduzir a meio de informação e direcionamento das atividades, em sua maioria escritas, a serem enviadas.

Nas práticas de letramento também surgem os momentos de tensão, nos quais os(as) estudantes interpelam sobre as normas e regras escolares. Esses sujeitos, enquanto estudantes da EJA, têm uma compreensão e leitura de mundo que os possibilita questionar e se posicionar sobre aquilo que julgam não estar correto e, assim, expressam nesse espaço virtual sua inconformidade com o processo.

PE22: Mais é isso que acho errado. Estão aceitando o PET 1 e já no PET 3? Aí o pessoal não faz mesmo. Não teria que aceitar mais para o pessoal acompanhar, uai... Determinou o tempo e não entregou já era...

As práticas de letramento também demonstram que os sujeitos se engajam nas relações, buscando lutar pelos interesses que os levam a determinados objetivos, como, por exemplo, conseguir concluir o EM. Diante das incertezas que os cercam a respeito da conclusão da etapa no contexto da pandemia, solicitam da escola esclarecimentos sobre a formatura, argumentam sobre a necessidade de se formarem e refletem sobre a condição de estudantes da EJA e sobre as dificuldades com o coronavírus, como nas postagens a seguir:

PE23: Então a gente vai formar com ano letivo normal ou nem formaremos? Pois quem ia formar com 6 meses, tudo bem que o corona veio, mais já q voltou com deveres temos q formar, né!

PE24: Vcs tinha q ter uma posição pelo menos para o terceiro período, pois sei q as outras séries isso é bom, pois não deixam as crianças atoa, e sempre ativas as aulas, mais nós!? Nós temos casa, trabalho, família, queremos respostas por favor!

PE25: E ainda temos esse vírus que está deixando muita gente sem chão eu msm passei passando mal e estou passando mal, veja os responsáveis o que pode fazer pq vejo que estamos seguindo como série normais e somo EJA... Desde já agradeço a compreensão!

PE26: É porque já estou quase surtando, entendeu? Realmente também estou querendo respostas. E ... João esquece isso meu filho! Nós se lascou com aquilo também ... kkkkkkk

Nas práticas aqui apresentadas, prevalecem as tensões com as regras escolares, e os cumprimentos de prazo dão o tom do retorno das atividades: informa-se aos estudantes a necessidade de postagem para cumprimento das atividades - evocando-se “as ordens do estado” -, as regras a serem cumpridas, a impossibilidade de dilatação dos prazos, a necessidade de registro do cumprimento das tarefas, e, nessas situações, o tipo de avaliação que se engendra nessas práticas é a prescritiva, prevalecendo as regras institucionais em detrimento do aspecto formativo.

Faz-se pertinente evocar a análise feita por Silva e Gomes (2018) nas discussões sobre a avaliação e seus embates teóricos, já que vislumbramos esses embates subjacentes nas postagens da escola e nos modos de conduzir o processo avaliativo. Se os professores sinalizam compreender as dinâmicas vividas no tempo de pandemia, as situações de trabalho, maternidade, entre outras, o que poderia engendrar uma perspectiva de avaliação mais “formativa, diferenciada e integradora” (SILVA; GOMES, 2018, p. 355), prevalece um regime de avaliação burocrático, marcado pelo caráter regulatório do Estado, incidindo fortemente nesse momento pandêmico, que torna atípicas as relações educativas, por seu próprio caráter emergencial, e que se tem estendido para além do que esperávamos.

Esse caráter regulatório, de mensuração e aferição, pauta as orientações do Conselho Estadual de Educação, em resolução específica de maio de 2020 (MINAS GERAIS, 2020b), visando à reorganização das atividades em função da pandemia de covid-19. A legislação explicita a importância do atendimento aos objetivos de aprendizagem, da comunicação com estudantes e com famílias, e orienta especificamente sobre o cumprimento da carga horária letiva, estabelecendo que

As atividades porventura executadas, de forma remota, que não atenderem aos critérios mínimos para serem consideradas atividades escolares, deverão ser consideradas atividades meramente complementares, ensejando a necessidade de reposição de carga horária posterior e, consequentemente, nova readequação dos calendários escolares. (MINAS GERAIS, 2020b, p. 5).

Essa legislação estabelece que as atividades não presenciais no ensino médio e na educação profissional “[...] deverão ser registradas e, eventualmente, comprovadas perante as autoridades competentes, e farão parte do total das 800 (oitocentas) horas de atividade escolar obrigatória” (MINAS GERAIS, 2020b, p. 6).

O art. 15 da referida legislação determina que se instituam critérios e mecanismos de avaliação que mostrem efetivamente o cumprimento dos objetivos e aprendizagem, para promoção da aprovação e diminuição do abandono escolar. Pelo acompanhamento que fizemos das atividades no período em análise, pode-se afirmar uma preocupação em se comprovar o cumprimento da carga horária e o atendimento ao exposto sobre os mecanismos de avaliação, geradores das cobranças feitas sobre a entrega das atividades, visando a cumprir o estabelecido na lei, em detrimento dos aspectos formativos do processo de avaliação (MINAS GERAIS, 2020a, 2020b).

Cabe nessa discussão refletir sobre o excesso de trabalho docente gerado nesse período, a carga de responsabilidades não apenas de orientar, ensinar e recolher as atividades, como ainda dar conta dos preenchimentos de documentos, diários, participar de plantões pedagógicos virtuais, atender diariamente chamadas e mensagens de áudio e textos da escola, pais/responsáveis e estudantes em uma rotina sem limites para atendimento da comunidade escolar.

No estudo de estado da arte produzido por Boldarine, Barbosa e Annibal (2017), no período de 2010 a 2014, sobre a avaliação da aprendizagem, os autores mostram que ainda predomina no cenário educacional uma perspectiva de avaliação técnica e como medida; identificam dois estudos sobre a EJA cujos resultados mostram a importância da avaliação como cerceadora da evasão e como estímulo da continuidade dos estudos para esse grupo específico, que difere por suas especificidades de outros estudantes tanto do ensino fundamental quanto do médio, como declara em uma postagem um dos estudantes no grupo de WhatsApp: “Estamos seguindo como séries normais e somos EJA” (PE25).

O contexto pandêmico apresenta desafios novos, ao mesmo tempo que expõe concepções arraigadas na educação brasileira no tocante à avaliação, ao atendimento a aspectos legais, que mensuram presença, e cujo estado regulador desconfia da autonomia e compromisso de docentes. A experiência analisada permite afirmar que prevalece a sobreposição de aspectos técnicos e resultados quantitativos sobre o processo de aprendizagem, e desconsideram-se as potencialidades do letramento digital e as demandas e necessidades dos(as) estudantes da EJA.

CONCLUSÃO

Em nossas conclusões, destacamos a insistência desses estudantes da EJA em se inserirem nas atividades não presenciais, e como se apresentam nas práticas de letramento razões de vida (trabalho, maternidade, adoecimentos e vida estudantil), tensionadas pelas lógicas escolares, nas preocupações com o cumprimento de prazos e entrega de trabalhos, que assumem a função avaliativa em um formato mais técnico do que formativo. Os(As) estudantes questionam essas lógicas, e mostram competência e adequação linguística nas postagens feitas no grupo, reconhecendo o artefato e o modo interativo de comunicação consoante com o letramento digital.

Reafirma-se a importância da leitura e da escrita para além de habilidades individuais, mas como constitutivas de práticas de letramento, nesse caso mediadas pela tecnologia, que, em sua multimodalidade e possibilidades amplas da web, como pauta e objeto de reconhecimento e discussão na escola, podem contribuir para um pensamento mais crítico, tão necessário neste contexto pandêmico, no qual se têm apresentado diferentes discursos oficiais de negação da ciência, e no qual as informações disponibilizadas na internet são por vezes contraditórias. Urge, assim, mais do que nunca o papel crítico e formador da escola.

Esse contexto apresenta desafios de acesso à educação, mas sobretudo instiga a refletir sobre as práticas educativas direcionadas por um aparato regulador, no qual se engendram modos de compreender a avaliação que instauram, no ensino remoto, a sobreposição dos aspectos regulatórios e somativos ao aspecto formativo.

REFERÊNCIAS

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1Pesquisa aprovada por um Comitê de Ética em Pesquisa.

2Disponível em: https://estudeemcasa.educacao.mg.gov.br/inicio. Acesso em: 27 jan. 2021.

3“[...] procedimentos específicos, meios e formas de organização das atividades escolares obrigatórias destinadas ao cumprimento das horas letivas legalmente estabelecidas, à garantia das aprendizagens dos estudantes e ao cumprimento das Propostas Pedagógicas, nos níveis e modalidades de Ensino ofertados pelas escolas estaduais” (MINAS GERAIS, 2020a, p. 1).

4As postagens foram retiradas do material de pesquisa de campo, transcritas literalmente e numeradas em sequência, com a identificação se pertencem ao docente ou ao estudante: PP (Postagem Professor) e PE (Postagem Estudante). Os nomes que aparecem nas postagens foram substituídos por pseudônimos.

5 Anexo 1: Registro das atividades do Plano de Estudos Tutorado (PET) e cumprimento da carga horária (MINAS GERAIS, 2020a.). O Anexo 1 é preenchido para cada estudante da turma. Outros cinco anexos também devem ser preenchidos por docentes e pela escola a respeito da organização geral das atividades e do regime de teletrabalho instituído pela Resolução n. 4.310/2020 (MINAS GERAIS, 2020a).

Recebido: 06 de Fevereiro de 2021; Aceito: 28 de Outubro de 2021

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