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Estudos em Avaliação Educacional

versión impresa ISSN 0103-6831versión On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.32  São Paulo  2021  Epub 21-Jul-2021

https://doi.org/10.18222/eae.v32.6964 

ARTIGOS

A EDUCAÇÃO FÍSICA NO NOVO ENEM: UM ESTUDO ANALÍTICO DE CONTEÚDO

LA EDUCACIÓN FÍSICA EN EL NUEVO ENEM: UN ESTUDIO ANALÍTICO DE CONTENIDO

RENATO CAPHYSICAL EDUCATION IN THE EXAME NACIONAL DO ENSINO MÉDIO: AN ANALYTICAL STUDY

VALCANTI NOVAESI 
http://orcid.org/0000-0003-3804-2313

JOÃO GABRIEL DE MELLOII 
http://orcid.org/0000-0002-8353-5777

ANTONIO JORGE GONÇALVES SOARESIII 
http://orcid.org/0000-0001-7769-9268

SILVIO DE CASSIO COSTA TELLESIV 
http://orcid.org/0000-0003-2652-6118

IMarinha do Brasil; Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro-RJ, Brasil; rennovaes@hotmail.com

IIEscola Sesc de Ensino Médio, Rio de Janeiro-RJ, Brasil; jgmello@hotmail.com

IIIUniversidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro-RJ, Brasil; ajgsoares@gmail.com

IVUniversidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro-RJ, Brasil; telles.ntg@terra.com.br


RESUMO

Desde 2009, a Educação Física (EF) está presente no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), inaugurando sua participação em exames de larga escala na educação básica. Este estudo se dedica às questões dessa disciplina no Enem, desde sua inserção até 2019, e tem como objetivo analisar seu conteúdo ante a intencionalidade do exame e o conhecimento dessa disciplina. Os resultados apontam, nas 43 questões identificadas, uma inadequação dos conteúdos da EF, por desconsiderarem as habilidades e os objetos de conhecimento específicos indicados pela matriz do exame, além dos próprios conflitos no campo do currículo refletidos nas provas. Ao final, questionamos a fidedignidade do exame como instrumento avaliativo, assim como seu papel de incitar mudanças no campo do currículo.

PALAVRAS-CHAVE: EDUCAÇÃO FÍSICA; ENEM; CURRÍCULO; AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO

RESUMEN

Desde 2009, la Educación Física (EF) está presente en el Examen Nacional de la Educación Media (Enem), inaugurando su participación en exámenes de larga escala en la educación básica. Este estudio se dedica a los temas de esta asignatura en el Enem, desde su inserción hasta 2019, y su objetivo es el de analizar su contenido frente a la intencionalidad del examen y el conocimiento de tal disciplina. Los resultados señalan, en las 43 preguntas identificadas, una inadecuación de los contenidos de la EF, por no considerar las habilidades y los objetos de conocimiento específicos indicados por la matriz del examen, además de los propios conflictos en el ámbito del currículo que se reflejan en las pruebas. Al final, cuestionamos la validez del examen como un instrumento de evaluación, así como su papel de incitar cambios en el campo del currículo.

PALABRAS CLAVE: EDUCACIÓN FÍSICA; ENEM; CURRÍCULO; EVALUACIÓN DE LA EDUCACIÓN

ABSTRACT

Since 2009, Physical Education questions are present at the Exame Nacional do Ensino Médio [National High School Examination] (Enem), inaugurating its participation in basic education large-scale exams. This study aims to analyze the content of these questions, since their insertion until 2019, considering the consistency between the exam intent and the physical education knowledge in high school. The results point out, in the 43 questions identified, an inadequacy of the contents of Physical Education, once the questions disregard the specific skills and knowledge objects indicated by the exam matrix, in addition to the internal conflicts in the field of its curriculum reflected in the exams. Finally, we question the reliability of this compulsory exam as an assessment tool, as well as its role in encouraging changes in the curriculum field.

KEYWORDS: PHYSICAL EDUCATION; ENEM; CURRICULUM; EDUCATION EVALUATION

INTRODUÇÃO

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi criado em 1998 com o objetivo de avaliar as competências e habilidades desenvolvidas ao longo da escolaridade básica. A proposta do Enem é valorizar a interdisciplinaridade e a contextualização de situações-problema, diminuindo a exigência de conteúdos memorizados, privilegiando o raciocínio lógico e as vivências próximas dos participantes. No ano de 2009, o exame passou por reformulações, ampliou seus conteúdos e se tornou uma das principais formas de acesso às instituições de ensino superior, avançando no sentido de uma via comum para os estudantes concluintes do ensino médio (BRASIL, 2013a).

Com o novo Enem, como ficou conhecido a partir de sua recente reformulação, a Educação Física (EF) inaugurou sua participação no exame e em avaliações de larga escala na educação básica, integrando uma das quatro áreas de conhecimento do exame, a de Linguagens e suas Tecnologias1 (LST). Está, portanto, agrupada com as seguintes disciplinas: Língua Portuguesa, Língua Estrangeira Moderna, Artes e Tecnologias da Informação.

Para Beltrão (2014) e Zaghi (2014), a longo prazo, a EF sofrerá influência do novo Enem, uma vez que a experiência dos demais componentes curriculares indica que suas práticas pedagógicas são influenciadas e, até certo ponto, determinadas por exames de larga escala. Segundo Afonso (2005), as avaliações externas, como o Enem, inevitavelmente alteram as práticas escolares, pois funcionam como instrumentos de regulação do currículo. Nesse sentido, Lopes e Lopez (2010, p. 104) afirmam que:

O Enem se constitui como um dispositivo que entrelaça e interpenetra o processo de ensino e aprendizagem em múltiplos níveis [...]. Pelos efeitos que produz nas políticas de currículo, os discursos associados a esse exame constituem um contexto de influência para outras ações curriculares e também para outros sistemas de avaliação.

Consequentemente, o novo Enem não se limita a uma avaliação externa à escola; pelo contrário, sua repercussão incita mudanças no currículo e nas práticas avaliativas internas, cotidianas. Nessa concepção, avaliação e currículo devem ser entendidos como práticas sociais entrelaçadas e de impossível dissociação (FREITAS et al., 2014). O próprio discurso governamental reforça tal ideia, já que, nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (BRASIL, 1998b), o Enem é apontado como um instrumento da política de implementação do ensino médio que se propõe não apenas a avaliar, mas também a efetivar mudanças nos currículos escolares. Desse modo, o Enem tem duplo papel: por um lado, pretende servir como um instrumento de avaliação da educação básica; por outro, apresenta-se como capaz de auxiliar na reforma do ensino e de provocar ajustes curriculares positivos.

Assim, o Enem pode ser compreendido como uma construção social imbricada com o campo do currículo. Para Bernstein (1971), enquanto o currículo define o que e como será ensinado, a avaliação representa a validação desse conhecimento. Nessa perspectiva sociológica do currículo, a análise da constituição dos saberes escolares considera sua construção como decorrência de um lento, contraditório e conflituoso processo de fabricação social (SILVA, 2010).

Considerando a hipótese levantada tanto pela literatura quanto pelo discurso governamental de que o novo Enem pode induzir mudanças no campo do currículo da EF e avaliar o conhecimento dessa disciplina no ensino médio, este estudo tem como objetivo analisar o conteúdo dos itens de EF de 2009 até 2019 ante a intencionalidade do exame e o conhecimento da EF no ensino médio. Para isso, apresentamos como objetivos específicos inventariar os itens de EF nas provas de LST e identificar se os itens dialogam com o conhecimento da EF escolar.

MÉTODO

Tomamos como fonte documental as provas da área de LST aplicadas de 2009 até 2019, obtidas on-line no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep)2. Desse modo, foram analisadas no total 13 provas, incluindo as de 2009 e de 2010, canceladas por vazamento de seus conteúdos e posteriormente reaplicadas.

Para identificarmos os itens de EF, as provas foram lidas separadamente, na íntegra, por três dos autores deste artigo. Esse cuidado foi necessário porque os itens do exame não são explicitamente categorizados por disciplina, e seus conteúdos situam-se, por vezes, na fronteira das disciplinas que integram a matriz curricular. Assim, adotamos como critério de inclusão que os itens apresentassem traços dos conteúdos da EF presentes no documento matriz do Enem (BRASIL, 2009a, p. 14, grifos do original) discriminados a seguir:

Estudo das práticas corporais: a linguagem corporal como integradora social e formadora de identidade - performance corporal e identidades juvenis; possibilidades de vivência crítica e emancipada do lazer; mitos e verdades sobre os corpos masculino e feminino na sociedade atual; exercício físico e saúde; o corpo e a expressão artística e cultural; o corpo no mundo dos símbolos e como produção da cultura; práticas corporais e autonomia; condicionamentos e esforços físicos; o esporte; a dança; as lutas; os jogos; as brincadeiras.

Ao final desse processo, os pesquisadores se reuniram, cada um com seu mapeamento, para confrontar as leituras e estabelecer consenso sobre os itens. Destaca-se, contudo, que não ocorreu qualquer impasse em relação aos itens levantados.

O tratamento dos dados, por sua vez, foi realizado por meio da análise de conteúdo categorial temática de Bardin (2011). Esse método compreende três etapas: 1) pré-análise; 2) exploração do material; e 3) tratamento dos dados e interpretação (SOUZA JÚNIOR; TAVARES DE MELO; SANTIAGO, 2010). A primeira consiste numa “leitura flutuante” e tem como objetivo captar conteúdos genericamente e obter as primeiras impressões do material. Na segunda, os conteúdos são distribuídos de acordo com as categorias, as unidades de contexto e de registro. Essas divisões analíticas são criações dos pesquisadores e objetivam organizar e sintetizar os dados de forma que os textos conversem com o tema central da análise. Categorias, especificamente, são palavras-chave, pilares da análise que sintetizam as unidades de contexto. Estas últimas, por sua vez, são subcategorias que propiciam a compreensão dos sentidos das unidades de registro, sendo os menores segmentos do conteúdo analisado, ou seja, o resultado do processo de categorização. Ao final, ocorre a interpretação dos dados.

Dessa forma, o tema central de nossa análise de conteúdo consiste na coerência entre a intencionalidade do exame e o conhecimento da EF escolar, sendo pautada nas seguintes fontes:

  • a) Documentos elaborados pelo Inep sobre o Enem: Matriz de Referência do Enem (BRASIL, 2009a), que determina as competências, habilidades e objetos de conhecimento das áreas do Enem e de suas disciplinas; relatórios pedagógicos do Enem (BRASIL, 2002, 2013a), documentos sobre o desempenho dos alunos no exame; e fundamentação teórico-metodológica do Enem (BRASIL, 2005).

  • b) Documentos relativos à educação básica: Diretrizes Curriculares Nacionais (BRASIL, 1998b); Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1998c) e Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCNEM) (BRASIL, 2000).

  • c) Dados relativos ao conhecimento prático: literatura acadêmica da EF que emergiu no decorrer do estudo.

  • d) No campo do currículo: em especial o trabalho do curriculista inglês Ivor Goodson (2013a, 2013b).

Para atender aos objetivos do estudo, optamos por realizar a leitura dos itens a partir de duas categorias. Na primeira, focamos a seleção dos conteúdos que compõem as questões. Na segunda, debruçamo-nos sobre seus mecanismos de resolução. Apresentamos a seguir essas categorias e suas unidades.

QUADRO 1 Categorias e unidades da análise 

CATEGORIAS/UNIDADES
SELEÇÃO
UNIDADE DE CONTEXTO UNIDADE DE REGISTRO
Fonte dos textos-base Imagens
Publicações para professores
Revistas/jornais
Textos artísticos
Textos dos autores
Blocos de conteúdos Conhecimentos sobre o corpo
Dança
Esporte
Jogo
Ginástica
Lutas
RESOLUÇÃO
Tipo de conhecimento Item interpretativo
Item de conhecimento específico
Habilidades indicadas na matriz do Enem H1: reconhecer as manifestações corporais como necessidades sociais cotidianas.
H2: reconhecer a necessidade de transformação de hábitos cinestésicos.
H3: reconhecer a linguagem corporal como meio de interação.

Fonte: Elaboração dos autores.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nas 13 provas que ocorreram desde 2009 até 2019, identificamos 43 itens relacionados à disciplina da EF, apresentados no Quadro 2 a seguir:

QUADRO 2 Itens de EF no Enem 

ANO NUMERAÇÃO DOS ITENS COR DA PROVA
2009/cancelada 14, 20, 35 e 43 Azul
2009/reaplicada 103, 115 e 134
2010/cancelada 106, 110 e 120
2010/reaplicada 96, 118 e 127
2011 96, 105 e 108
2012 96, 100 e 115
2013 98, 101 e 108 Cinza
2014 108 e 109
2015 96, 107 e 131
2016 104, 105 e 106
2017 19, 26, 31 e 42 Azul
2018 13, 26, 31 e 43
2019 8, 18, 28, 31 e 40 Amarela

Fonte: Elaboração dos autores.

Considerando que a área de LST tem 45 itens por prova, sendo 585 ao todo, considerando as 13 provas de 2009 até 2019, podemos perceber que a EF é discretamente representada no exame, com apenas 7,35% dos itens da área, com média de 3,46 itens por prova. Portanto, partimos do pressuposto de que a abordagem dada à EF no exame constitui-se, inicialmente, num instrumento insuficiente para avaliar essa disciplina no ensino médio, apesar de refletir o status marginal de seu conhecimento nessa etapa da escolarização. Por outro lado, sua introdução no exame poderá pautar o que deve ser ensinado nesse componente curricular e servir como estratégia de valorização da EF na escola. Esse posicionamento, para Freitas et al. (2014), emerge do entendimento de que as disciplinas com menor valor acadêmico, no nosso caso a EF, devem igualar sua forma de operação às demais disciplinas escolares que, dentre outros artifícios, fazem uso de exames para valorizar seu conhecimento e “motivar” seus alunos.

Seleção - fonte dos conteúdos

Uma característica no enunciado dos itens do Enem é a presença de um texto-base, de caráter introdutório, que apresenta ao estudante uma contextualização do problema a ser resolvido. De acordo com a fundamentação teórica do Enem (BRASIL, 2005), todos os textos e figuras dos itens devem ser acompanhados de referências, salvo caso de elaboração do texto pelo próprio autor. No Gráfico 1, apresentamos as fontes selecionadas para a composição dos textos-base:

Fonte: Elaboração dos autores.

GRÁFICO 1 Fontes utilizadas no textos-base 

Percebemos que a maior parte das fontes dos textos-base são publicações pedagógicas/científicas, ou seja, aquelas destinadas a professores e pesquisadores. No Quadro 3, a seguir, discriminamos as fontes dessas publicações.

QUADRO 3 Fontes das publicações para professores 

FONTE AUTOR(ES) PROVA
Livros A EF na escola: implicações para a prática pedagógica Darido e Rangel (2005) 2010/reaplicada
2010/reaplicada
2011
O que é corpo(latria) Codo e Senne (1985) 2009/reaplicada
A cultura corporal da dança Bregolato (2007) 2010/cancelada
Exercício e saúde Nieman (1999) 2012
Dicionário do Folclore Brasileiro Cascudo (1976) 2013
Homo ludens Huizinga (2004) 2013
A música entra em cena: o rap e o funk na socialização da juventude Dayrell (2015) 2015
Corpo, ciência e mercado Silva (2001) 2019
Materiais on-line Caderno do Professor: EF Secretaria de Educação de São Paulo (2008) 2011
Proposta Curricular do Estado de São Paulo Secretaria de Educação de São Paulo (2009) 2011
Biblioteca Digital das Faculdades do Vale do Juruena Não revelado (acesso em 2015) 2015
Indisponível Miragya 2018
Periódicos científicos Revista Corpoconsicência Mattos e Aguiar (2006) 2009/cancelada
Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB Wéré’ É Tsi’róbó (2006) 2009/reaplicada
Jornal de Pediatria Alves e Lima (2009) 2014
Revista Movimento Fernandes e Mourão (2014) 2016
Revista do Observatório Brasil de Igualdade de Gênero Entrevistador não revelado (2014) 2016
Revista Brasileira de Ciência e Movimento Daolio (2002) 2016
EFDesportes Balzanq e Morais (2012) 2016
EFDesportes Gootsfriedt (2010) 2017
Revista Brasileira de Ciências do Esporte Ferreira (2001) 2018
Revista Movimento Teixeira e Caminha (2013) 2018
Motriz Betti (2001) 2019
Pensar a Prática Almeida e Suassuna (2010) 2019
Motriz Guedes (1999) 2019

Fonte: Elaboração dos autores.

Com base nesse quadro, observamos que, dentre as fontes destinadas aos professores, as mais adotadas foram os periódicos científicos, seguidos pelos livros e materiais on-line. A preferência por fontes destinadas a professores e pesquisadores contradiz a orientação do referencial do Enem, que preconiza a utilização de situações-problema próximas do cotidiano dos participantes (BRASIL, 2005). Existe, portanto, uma inversão de valores, evidenciada no Gráfico 1, pois os materiais que parecem mais interessantes ao público jovem - como a linguagem artística, as revistas, os jornais e as imagens - são pouco representativos na problematização das questões.

Dessa forma, os itens são predominantemente fundamentados em textos direcionados ao ensino superior, o que reflete a carência de literatura didática direcionada à EF no ensino médio para balizar seu ensino. Assim, temos um tipo de exame que pode estar reproduzindo em pequena escala o currículo de formação do professor de EF. Um exemplo de destaque nas provas foi o livro organizado por Darido e Rangel (2005), que compõe uma coletânea intitulada EF no Ensino Superior, utilizado em três itens do Enem. Como consequência, os itens, por vezes, parecem se adequar melhor a concursos para o magistério em EF do que para o ensino médio, como no exemplo na Figura 1. Essa carência de literatura didática poderia ser suprida se fossem adotados textos extraídos, por exemplo, de revistas, jornais e mídias virtuais, tão próximos e acessíveis ao público jovem.

Fonte: Brasil (2013b).

FIGURA 1 Item 108/caderno cinza - 2013 

Nesse exemplo, é possível observar como a linguagem, própria da formação docente, não está adaptada para o ensino médio. A seleção dos conhecimentos no Enem, portanto, parece estar condicionada à tradição da formação acadêmica. Para Goodson (2013b), o conhecimento disciplinar na escola é constituído a partir de uma tradição utilitária que, gradativamente, é substituída por uma tradição acadêmica, de caráter científico, a qual acaba por sobrepujar os conteúdos mais práticos e próximos da realidade dos alunos. A EF é uma disciplina adotada na escolarização básica com fins utilitários (defesa nacional, saúde das populações e lazer), mas que se constituiu como campo de formação científica, assim como outras disciplinas. Com isso, sem a devida mediação ou transposição didática, o conhecimento pode tornar-se distante da realidade dos estudantes.

Acreditamos, portanto, que os itens estão imbuídos do que Schwartzman (2011) denomina “viés acadêmico”. Essa expressão se refere à tendência das instituições de ensino em aumentar seu status ao imitar os modelos organizacionais e conteúdos das disciplinas de maior prestígio, notoriamente as do ensino superior. Nessa linha, para Goodson (2013b, p. 38):

[...] as escolas estão precariamente equipadas para resistir às pressões universitárias. Em grande parte, as escolas aceitam como legítimas as exigências universitárias, tendo mesmo desenvolvido uma estrutura de autoridade vinculada às universidades.

Dessa forma, o discurso acadêmico é reproduzido em outras etapas da escolarização em pequenas doses, como parece ocorrer com os itens de EF do Enem. Tal constatação é corroborada pelo fato de as provas do Enem serem idealizadas e elaboradas por professores do ensino superior (BRASIL, 2005), que, por vezes, estão distantes do “chão da escola”.3

Como consequência, essa falta de mediação do conhecimento da EF não atende ao público escolar e aos objetivos da escolarização. Na perspectiva apresentada, as questões de EF não se encontram próximas à realidade dos alunos, conforme preconiza a fundamentação teórica do Enem (BRASIL, 2005). Atrelado a essa observação, poucos itens se valem de linguagem artística, imagens ou mesmo de material de cunho midiático. Esse último, tão enfatizado e naturalizado como conteúdo a ser discutido nas aulas pelas orientações curriculares recentes (BRASIL, 2006), pouco aparece.

Para Goodson (2013a, 2013b), é justamente a distância entre o currículo prescrito (como os PCN e as OCNEM) e o de fato (ou praticado) que dificulta a implantação das reformas no ensino e sua eficácia. A literatura acadêmica traz inúmeros relatos sobre as dificuldades na articulação entre os conhecimentos prescritos da EF com sua intervenção prática (CAPARROZ; BRACHT, 2007; SANCHOTENE; MOLINA NETO, 2010). Nesse sentido, compreendendo o Enem como elemento entrecruzado das políticas públicas de currículo com a prática, os itens de EF no Enem reforçam o distanciamento entre teoria e prática.

Seleção - blocos de conteúdos

De acordo com as OCNEM (BRASIL, 2006), os conteúdos concebidos para a EF escolar brasileira comportam, além dos conhecimentos sobre o corpo, cinco manifestações da cultura corporal: jogo, dança, esporte, ginástica e lutas (BRASIL, 1998c).4 No Gráfico 2, apresentamos como esses conteúdos compõem os itens do Enem:

Fonte: Elaboração dos autores.

* Um item pode abranger mais de um ou nenhum grupo.

GRÁFICO 2 Itens distribuídos entre os conteúdos da EF* 

Entre as cinco manifestações da cultura corporal, as danças e os esportes destacaram-se como as mais abordadas, seguidos por jogos, lutas e ginástica. Acreditamos, entretanto, que uma maior parte dos itens de EF do Enem deveria dialogar com esses conteúdos, não apenas devido ao valor a eles atribuído nas prescrições curriculares da EF (BRASIL, 1998c, 2000, 2006), mas também por se tratar de manifestações corporais que servem como pano de fundo para os currículos praticados.

Sobre a dança, há indícios de que esse conhecimento não esteja devidamente difundido e sistematizado na EF. Segundo Kleinubing e Saraiva (2009), apesar de esse conhecimento estar presente nos currículos prescritos, ele tem sido negligenciado, especialmente por questões relacionadas à formação inicial docente. Considerando a qualidade interdisciplinar do Enem, a presença significativa dessa manifestação corporal pode se justificar por tratar de um conteúdo que transita entre as disciplinas de EF e de Artes.

Os esportes, por sua vez, são os conteúdos mais praticados nas aulas de EF, e sua hegemonia vem sendo alvo de críticas pelas prescrições curriculares (BRASIL, 2000) e pela literatura (MOURA, 2012; SANTOS; NISTA-PICCOLO, 2011). A forte presença do esporte no Enem não contemplou, portanto, tais críticas e se aproxima dos currículos praticados. A partir do exposto, não parece haver coerência entre a intencionalidade do Enem e as políticas curriculares que o orientam.

Já os conhecimentos sobre o corpo compuseram quase metade dos itens investigados. Na Tabela 1, distribuímos esses itens entre os objetos de conhecimento prescritos na matriz do Enem (BRASIL, 2009a).

TABELA 1 Objetos de conhecimento da matriz do Enem 

OBJETOS DE CONHECIMENTO N
Exercício físico e saúde 12
O corpo e a expressão artística e cultural 3
Mitos e verdades sobre os corpos masculino e feminino na sociedade atual 3
O corpo no mundo dos símbolos e como produção da cultura 3
Condicionamentos e esforços físicos 2
Performance corporal e identidades juvenis 2
Possibilidades de vivência crítica e emancipada do lazer 2
Práticas corporais e autonomia 0
Total* 27

Fonte: Elaboração dos autores.

* Um item pode abranger mais de um objeto de conhecimento.

“Exercício físico e saúde” foi o objeto de conhecimento que se destacou entre os demais. Esse resultado nos parece controverso, tendo em vista que o termo “saúde” aparece discretamente na matriz de LST do Enem como um dos objetos de conhecimento da EF e não está presente nas competências e habilidades dessa disciplina (BRASIL, 2009a). Vale ressaltar que a EF escolar se justifica na área de LST pela relação com a linguagem corporal e que os objetos relacionados aos signos corporais aparecem de forma mais evidente nos vários outros objetos de conhecimento citados na Tabela 1. Em contrapartida, o termo “saúde” está presente na matriz do Enem em cinco competências e habilidades da área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias, que engloba Biologia, Física e Química (BRASIL, 2009a).

Apesar de entendermos que a saúde pode ser ressignificada de diferentes formas, a relação entre EF e saúde nos remete a uma tradição biológica combatida por movimentos curriculares renovadores da EF no final do século passado. As críticas a essa tradição se fundamentaram na oposição ao caráter funcionalista da EF, questionando o papel ensimesmado do currículo pautado e naturalizado na aptidão motora, na técnica esportiva e na promoção da saúde, além dos conhecimentos biológicos sobre o corpo (RESENDE, 1994). Como consequência, para Moura (2012), originou-se a seguinte polaridade no campo da EF escolar: de um lado, uma EF tradicionalista; de outro, uma renovada. A primeira refere-se a uma concepção que defende uma postura conservadora da prática. A segunda, de característica crítica e reflexiva sobre a cultura corporal, destaca os aspectos sociais e políticos dessa disciplina, exercendo especial influência na recente formação de professores e nos currículos prescritos da EF (MOURA; SOARES, 2014).

Entendendo que o termo “saúde” não necessariamente remete a uma polaridade “biologicista” e tradicionalista, optamos por adensar a discussão, verificando quais itens remetem à EF tradicional. Para tal, selecionamos os itens com conteúdos vinculados à Biologia, à Biomecânica, à Fisiologia Humana, ao Treinamento Esportivo e aos aspectos técnicos do esporte. Identificamos, portanto, sete itens (16,3%) nessa polaridade. Nesses, os seguintes conteúdos foram abordados: 1) biomecânica do salto (fases de impulsão, voo e queda); 2) benefícios do exercício físico (frequência cardíaca e oxigenação); 3) habilidades corporais (flexibilidade); 4) fundamentos do voleibol (saque, defesa e ataque) (Figura 3); 5) sedentarismo; 6) obesidade (como fatores de risco para o desenvolvimento de doenças crônicas); e 7) drible (como progressão da equipe no handebol). Nesses itens, não houve aproximação com o caráter crítico e reflexivo, característico da EF renovada, assumindo uma dimensão utilitária da educação do corpo.

Assim, observa-se que a EF no Enem não deixa de contemplar seus aspectos tradicionais, o que não necessariamente consiste numa crítica. Isso porque, para Goodson (2013b), o currículo é um campo de conflitos, sendo as disciplinas compostas por amálgamas mutáveis, ou seja, formadas por subculturas e tradições que compõem um território de conflitos internos. No entanto, ao analisarmos a EF como integrante da área de LST, tanto nas prescrições curriculares como na matriz do Enem (BRASIL, 2005, 2009), os itens que remetem aos aspectos tradicionais não são coerentes com a intencionalidade da área em questão.

É importante dizer que a inserção da EF na área de LST surge nos documentos oficiais com a divulgação das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 1998b), em que a linguagem corporal é apresentada como objeto inerente e central dos conteúdos da EF. No entanto, para Santos, Marcon e Trentin (2012), os professores de EF não se reconhecem como pertencentes a tal área, dadas a falta de diálogo com as demais disciplinas que a compõem e a associação convencional no Brasil da EF ao campo da saúde. Desse modo, apesar da naturalização por parte das políticas de currículo em incluir a EF nessa área, a questão não nos parece resolvida.

Há também uma inadequação dos conhecimentos prescritos, de caráter renovador, às práticas pedagógicas estabelecidas na EF. Dito isso, ao passo que os conteúdos selecionados para os itens do Enem se aproximam das prescrições curriculares, inevitavelmente ocorre um afastamento dos currículos praticados. Não desejamos, contudo, apresentar os currículos praticados como naturalmente opostos aos currículos prescritos. Pelo contrário, entendemos que a prática cotidiana sofre influências dos debates acadêmicos, bem como das políticas curriculares, mas não podemos ignorar que, no caso da EF escolar, existem diversos relatos na literatura que questionam a adequação das prescrições curriculares renovadoras às propriedades do campo prático, como em Correia (2012).

Quanto ao conteúdo dos itens do Enem, em suma, é pouco coerente que a dança e os esportes sejam as manifestações corporais mais abordadas no exame, considerando que a dança é um dos conteúdos mais distantes do cotidiano das aulas e há duras críticas à hegemonia esportiva. Quanto ao tema da saúde, por sua vez, não há, nos documentos de referência do Enem, justificativa para sua centralidade nas questões, principalmente se considerarmos a área de inserção da EF nas prescrições curriculares.

Resolução - tipo de conhecimento

Itens interpretativos, segundo Depresbiteris e Tavares (2009), caracterizam-se pela capacidade de analisar informações, geralmente em textos literários ou científicos, para então sintetizá-los e avaliá-los. No Enem, interpretar as informações é uma competência fundamental, pois esse tipo de exame pretende romper com o paradigma dos tradicionais vestibulares centrados na memorização de conteúdos. Desse modo,

A mobilização de conhecimentos requerida pelo exame manifesta-se por meio da estrutura de competências e habilidades do participante que o possibilita ler o mundo que o cerca, simbolicamente representado pelas situações-problema; interpretá-lo e, sentindo-se “provocado”, agir, ainda que em pensamento. (BRASIL, 2002, p. 32)

Classificamos, portanto, os itens quanto ao tipo de conhecimento, ora como interpretativos, quando a resolução depende apenas da leitura do texto-base, ora como de conhecimento específico de EF. Verificamos que 26 itens (60,5%) apresentaram caráter integralmente interpretativo. Apesar do peso dado à capacidade de interpretação no Enem, acreditamos que essa competência deveria perpassar os conhecimentos disciplinares específicos. É certo que a interpretação é importante para que os itens não sejam ancorados na memorização e em conhecimentos descontextualizados, afinal essa é justamente a crítica do Enem ao modelo tradicional dos vestibulares (BRASIL, 2005); mas interpretar deveria fazer parte da resolução das questões de EF, e não ser um fim em si mesmo. Ao resolver uma questão, um aluno deve, ao mesmo tempo em que interpreta uma realidade, ser avaliado quanto a um conhecimento e a uma habilidade. Oferecemos, na Figura 2, um exemplo de item interpretativo.

Fonte: Brasil (2009b).

FIGURA 2 Item 103/caderno azul - 2009/reaplicado 

Esse item aborda o tema da saúde com base na definição de aptidão física. Sua resolução depende da interpretação do texto-base, em especial do trecho que define aptidão física como a capacidade de utilizar o corpo de forma eficiente em atividades cotidianas. Dessa forma, apenas a alternativa “c” apresenta coerência com o texto. Como essa questão está presente no relatório pedagógico do Enem de 2009/2010, sabemos que a maior parte dos estudantes a acertou, sendo, portanto, classificada nesse relatório como de fácil resolução (BRASIL, 2013a).

Segundo o referencial do Enem, a seleção dos itens ocorre de modo a compor uma prova com 20% de questões de nível fácil, 40% de questões de nível médio e 40% de questões de nível difícil (BRASIL, 2005). Apesar de o item de EF supracitado ser o único dessa disciplina presente num relatório pedagógico do Enem, levantamos a hipótese de que, de forma geral, os itens de EF foram de fácil resolução. Infelizmente, não temos dados oficiais ou métodos disponíveis neste estudo para quantificar tal afirmação, a não ser através da própria apresentação das questões presentes neste trabalho.

Mesmo entre os 17 itens de conhecimento específico (42% do total), não houve aprofundamento de conteúdos. Em 82% desse tipo de questão, os itens independiam de qualquer tipo de memorização, com exceção de três itens, dois sobre dança, que requeriam conhecimentos específicos sobre as manifestações folclóricas, e um sobre distúrbios alimentares (Figura 4). Cogitamos a possibilidade de haver especificidade nas questões de dança por se tratar, na verdade, de itens oriundos das Artes. Assim, podemos afirmar que os itens de EF requisitam pouca formação escolar específica, dada sua generalidade. Exemplificamos na Figura 3.

Fonte: Brasil (2010).

FIGURA 3 Item 120/caderno azul - 2010/cancelada 

Esse item requer a identificação dos fundamentos do voleibol nas figuras. Ainda que avalie um conhecimento que certamente pertence à EF escolar, sua resolução depende de conhecimentos de baixa complexidade, mesmo para um telespectador desavisado de vôlei, ainda mais para um aluno do ensino médio. O currículo prescrito para esse nível de ensino indica existir uma expectativa de aprofundamento das aprendizagens desenvolvidas ao longo da educação básica (BRASIL, 2000, 2006).

Apresentamos, a seguir, na Figura 4, uma das poucas questões que apontam para uma formação prévia do aluno sobre distúrbios alimentares:

Fonte: Brasil (2019).

FIGURA 4 Item 31/caderno amarelo - 2019 

A predominância de itens interpretativos no Enem, assim como a falta de aprofundamento nos conhecimentos, pode ser corroborada na pesquisa realizada por Zaghi (2014). Tal trabalho indica que os ingressantes no ensino superior em 2010 que se submeteram ao Enem em 2009 não se lembravam da existência dos itens de EF no exame, mesmo que, nesse ano, a prova tenha sido aplicada duas vezes, em função do vazamento de conteúdos da primeira aplicação. Além disso, demonstraram despreocupação com tais itens, pois se diziam capazes de respondê-los sem estudar, até mesmo aqueles que relataram não ter tido acesso a uma EF de qualidade, ou seja, que abordasse os conteúdos preconizados na educação básica.

Dessa maneira, o conhecimento da EF apresenta papel secundário na resolução dos itens do Enem, uma vez que a EF aparece mais como pano de fundo, protagonizando questões interpretativas e pouco específicas. Uma explicação possível seria a própria natureza do exame, mas esse argumento perde força no momento em que não se aplica às demais disciplinas, que têm itens com conteúdos bem estabelecidos.

Considerando que a natureza das questões não se explica integralmente pelos fatores externos à EF, recorremos aos conflitos internos. Para Ferraz e Correia (2012), nas últimas décadas, a EF foi submetida a inúmeras influências, muitas vezes antagônicas, como métodos e modelos (os modelos ginásticos europeus, os métodos esportivos generalizados, o tecnicismo esportivizante, o movimento do corpo humano, a educação motora, a corporeidade, o se-movimentar etc.) e vertentes pedagógicas (a psicomotricista, a desenvolvimentista, a construtivista, a crítico-superadora, a crítico-emancipatória, a progressista, a sistêmica, a antropológica, a saúde-renovada, a fenomenológica, a pós-crítica, entre outras). Para Lovisolo (1995), esse elevado número de propostas curriculares, metodológicas e pedagógicas é justamente o resultado da falta de acordo entre as tradições da EF escolar, que, para Goodson (2013a), remete à falta de acordos no campo acadêmico, o que inevitavelmente reflete nos currículos prescritos e na relação com a prática.

Assim, dado o caráter interpretativo do conhecimento da EF no Enem, é mesmo improvável que tais itens sejam capazes de avaliar essa disciplina no ensino médio e que incidam no currículo da disciplina, até mesmo pelo baixo peso que têm no exame. Essa interpretação corrobora os achados de Zaghi (2014), que alega não ter encontrado implicações do Enem na prática pedagógica de professores de EF.

Resolução - habilidades

O Enem se estrutura a partir de competências e habilidades desenvolvidas, transformadas e fortalecidas através da mediação da escola (BRASIL, 2005). De acordo com as Matrizes de Referência do Saeb (BRASIL, 1998a, p. 9),

[...] pode-se entender por competências cognitivas as modalidades estruturais da inteligência - ações e operações que o sujeito utiliza para estabelecer relações com e entre os objetos, situações, fenômenos e pessoas que deseja conhecer. As habilidades instrumentais referem-se, especificamente, ao plano do ‘saber fazer’ e decorrem, diretamente do nível estrutural das competências já adquiridas e que se transformam em habilidades.

Os termos competências e habilidades são usuais no cenário das políticas públicas de currículo no Brasil. No Enem, a EF é contemplada pela competência “Compreender e usar a linguagem corporal como relevante para a própria vida, integradora social e formadora da identidade” e por três habilidades, sendo a H1: “Reconhecer as manifestações corporais de movimento como originárias de necessidades cotidianas de um grupo social”; a H2: “Reconhecer a necessidade de transformação de hábitos corporais em função das necessidades cinestésicas”; e a H3: “Reconhecer a linguagem corporal como meio de interação social, considerando os limites de desempenho e as alternativas de adaptação para diferentes indivíduos” (BRASIL, 2009a, p. 2).

Assim, nossa primeira intenção foi classificar e discutir as habilidades dos itens. No entanto, deparamo-nos com barreiras significativas. Primeiro, porque os itens requisitam habilidades muito mais interpretativas do que específicas. Dessa forma, a interpretação de uma questão de EF não implica o desenvolvimento de uma das suas habilidades. Em segundo lugar, porque não consideramos que os itens, mesmo os específicos, correspondiam às habilidades anunciadas. Para defender esse argumento, procedemos à análise de alguns dos itens já apresentados neste artigo.

Oferecemos como exemplo o item sobre o jogo (Figura 1), que classificamos na primeira das três habilidades (H1). À primeira vista, ao responder que o jogo é uma atividade lúdica que permite experiências inusitadas, o aluno reconhece essa manifestação corporal originária de uma necessidade social e cotidiana. No entanto, tais informações já estão disponíveis ao longo do texto-base e do enunciado da questão. Esse item requer, na verdade, um reconhecimento de termos como “fruição” e “lúdico”. Dessa forma, não podemos considerar que sua resolução implique uma correspondência direta com sua habilidade.

Prosseguimos com o item sobre aptidão física (Figura 3) que consta do relatório pedagógico do Enem 2009/2010, classificando-o em H2. De acordo com esse documento, constrói “um olhar sobre como hábitos corporais precisam se adaptar às necessidades cinestésicas de um indivíduo” (BRASIL, 2009a, p. 37). Em nossa opinião, o item não requer tal habilidade (H2), mas uma habilidade exclusivamente interpretativa. Assim como no exemplo anterior, a questão não apresenta um problema específico a ser resolvido para além da interpretação. E, mesmo que houvesse, resolvê-la não indicaria o reconhecimento de uma necessidade de transformação de hábitos corporais, muito menos que o aluno compreende e que se valha disso como relevante para a própria vida, conforme indica a competência da EF no Enem. Indicaria apenas que o aluno reconhece os benefícios da atividade física regular, algo que é lugar-comum atualmente.

Quanto ao item sobre voleibol (Figura 2), a habilidade que consideramos mais consistente seria H3, apesar de uma possível inadequação a qualquer uma das três habilidades. Entretanto, ao identificar os fundamentos do voleibol nas figuras, não significa que o aluno seja capaz de reconhecer a linguagem corporal - no caso o esporte - como meio de interação social. De fato, o esporte é um meio de interação social, mas a questão não implica o domínio dessa habilidade. Para responder à questão, o aluno precisa, na verdade, compreender - ou conhecer - as manifestações esportivas presentes na cultura corporal.

Conforme argumentamos ao longo do artigo, nossa indagação não se restringe ao papel secundário das habilidades da EF no Enem, pois tal fato expressa o peso desse conhecimento disciplinar no campo contestado do currículo que se revela quando observamos os itens do Enem. A crítica, assim, passa pela absoluta desconsideração às habilidades específicas da EF. Em suma, as habilidades não parecem corresponder à resolução dos itens.

Além disso, ressaltamos que as três habilidades compartilham em seus textos o verbo “reconhecer”. De acordo com a taxonomia de Bloom revisada (FERRAZ; BELHOT, 2010), reconhecer requer distinguir e selecionar uma determinada informação, sendo um dos processos cognitivos mais simples, seguido por entender, aplicar, analisar, avaliar e criar. De todas as disciplinas do Enem, apenas a EF tem na matriz uma única ação para todas as suas habilidades, o que indica a falta de objetivos de tratamento dos seus conhecimentos de forma mais complexa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A inserção da EF no Enem é um marco para essa disciplina como componente curricular. No entanto, não implica, necessariamente, uma valorização disciplinar ou avanço na constituição de seus saberes escolares. Os resultados obtidos sobre a seleção dos conteúdos e a resolução dos itens da EF no Enem revelam certos dissensos na relação entre a intencionalidade do exame e o conhecimento que deve e pode ser tratado na EF do ensino médio.

O primeiro apontamento diz respeito à desconsideração às habilidades específicas da matriz de EF no Enem. A falta de relação entre as habilidades propostas pelo exame e os itens aplicados demonstra o quanto a EF precisa caminhar para se consolidar como componente curricular. Além disso, torna quase inviável uma análise da qualidade dos itens quando estes não dialogam com as prescrições da própria matriz do exame.

Outro apontamento importante - e relacionado ao primeiro - trata da interpretação das questões. Apesar de ser um elemento essencial no exame, os itens de EF apresentam um viés interpretativo que desconsidera as habilidades específicas e o conhecimento disciplinar, presente tanto nas prescrições curriculares quanto no arcabouço de conteúdos tradicionais da EF. Da forma que os itens são elaborados, a EF se apresenta mais como um tema para as questões do que como um saber disciplinar.

Não obstante, destacamos o quanto a EF precisa se debruçar sobre algumas questões no campo do currículo que distanciam teoria e prática. Uma dessas questões é a própria inserção na área de conhecimento de LST. Podemos confirmar tal afirmação respaldados, em parte, pela literatura acadêmica, que indica que a área não tem afinidade com a intervenção prática estabelecida (SANTOS; MARCON; TRENTIN, 2012), mas também pela alta repercussão do tema da saúde nos itens de EF do Enem, apesar de a matriz do exame direcionar tal tema para a área de Ciências da Natureza.

Outra questão é que os itens são formulados, em geral, a partir de uma tradição acadêmica que descontextualiza as questões, ao contrário do indicado pela matriz do exame. Assim, consideramos importante que a elaboração das questões esteja alinhada a temas do cotidiano e que converse, principalmente, com o público jovem.

Por fim, não pretendemos, com esse trabalho, apontar uma incompetência na elaboração das provas, mesmo considerando que existam pontos a melhorar, mas que os resultados encontrados resumem os conflitos dessa disciplina no campo do currículo. Nossa análise dos itens nos remete, inevitavelmente, a um questionamento sobre a presença dessa disciplina no exame e refuta a hipótese levantada pela literatura acadêmica e pelo discurso governamental de que o novo Enem possa induzir mudanças e avaliar o ensino. Pelo menos por enquanto, o Enem não demonstra ser um instrumento capaz de avaliar a EF no ensino médio, tampouco de influenciar seus currículos.

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1A área foi inicialmente nomeada Linguagens, Códigos e suas Tecnologias nas Diretrizes Curriculares Nacionais de 1998, mas foi renomeada Linguagens e suas Tecnologias pela Lei n. 13.415 (BRASIL, 2017a).

2Disponível em: http://portal.inep.gov.br/web/enem/edicoes-anteriores. Acesso em: 20 set. 2019.

3No site do Inep é possível encontrar os editais de chamada de instituições de ensino superior para elaboração de documentos e questões da prova.

4Recentemente a Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Fundamental (BRASIL, 2017b) incluiu nesse grupo as práticas corporais de aventura, o que ainda não foi observado no Enem.

Recebido: 09 de Novembro de 2019; Aceito: 23 de Setembro de 2020

NOTA:

Os autores Renato Cavalcanti Novaes, João Gabriel de Mello e Silvio de Cassio Costa Telles são membros do Grupo de Pesquisa em Escola, Esporte e Cultura (GPEEsC), vinculado à Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e participaram de todo o processo de elaboração do artigo, desde sua concepção até sua finalização. O autor Renato Cavalcanti Novaes foi o autor principal, sendo este trabalho fruto de sua dissertação de mestrado, orientado pelo autor Silvio de Cassio Costa Telles. O autor João Gabriel de Mello e Antonio Jorge Soares realizaram junto ao autor principal a análise das questões do Enem e participaram da reunião de consenso, sendo os resultados posteriormente discutidos com o orientador e autor Silvio de Cassio Costa Telles. Todos os autores participaram da revisão e colaboraram com trechos do texto da presente pesquisa.

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