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Estudos em Avaliação Educacional

versão impressa ISSN 0103-6831versão On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.32  São Paulo  2021  Epub 21-Jul-2021

https://doi.org/10.18222/eae.v32.7719 

ARTIGOS

AVALIAÇÃO, QUALIDADE E EDUCAÇÃO INFANTIL: ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA MUNICIPAL

EVALUACIÓN, CALIDAD Y EDUCACIÓN INFANTIL: ANÁLISIS DE UNA EXPERIENCIA MUNICIPAL

EVALUATION, QUALITY AND EARLY CHILDHOOD EDUCATION: ANALYSIS OF A MUNICIPAL EXPERIENCE

NATÁLIA FRANCINE COSTA CANÇADOI 
http://orcid.org/0000-0003-2272-9575

BIANCA CRISTINA CORREAII 
http://orcid.org/0000-0003-1906-8729

IUniversidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto-SP, Brasil; nati.fran@hotmail.com

IIUniversidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto-SP, Brasil; biancacorrea@ffclrp.usp.br


RESUMO

Neste artigo buscamos discutir a interface entre avaliação e qualidade, tendo em vista a participação como pressuposto indispensável do processo avaliativo. Para tanto, este estudo buscou compreender os aspectos constituintes de uma proposta de avaliação no contexto da educação infantil desenvolvida nas pré-escolas de um município paulista. Com base na legislação, nos documentos e na literatura específica sobre avaliação no âmbito da educação infantil, apresentamos algumas discussões acerca do processo avaliativo realizado pelo município, procurando problematizar a avaliação enquanto possibilidade de participação na definição de indicadores de qualidade significativos e legitimados pelo coletivo que permitam o desenvolvimento de um projeto educativo autêntico.

PALAVRAS-CHAVE: AVALIAÇÃO; EDUCAÇÃO INFANTIL; PARTICIPAÇÃO; QUALIDADE DA EDUCAÇÃO

RESUMEN

En este artículo buscamos discutir la interfaz entre evaluación y calidad, teniendo en cuenta su participación como elemento indispensable del proceso evaluativo. Para ello, este estudio intentó comprender los aspectos constituyentes de una propuesta de evaluación en el marco de la educación infantil desarrollada en las preescuelas de un municipio de São Paulo. En base a la legislación, a los documentos ya la literatura específica sobre evaluación en el marco de la educación infantil, presentamos algunas discusiones acerca del proceso evaluativo realizado por el municipio, intentando problematizar la evaluación como posibilidad de participación en la definición de indicadores de calidad significativos y legitimados por el colectivo, que permitan el desarrollo de un auténtico proyecto educativo.

PALABRAS CLAVE: EVALUACIÓN; EDUCACIÓN INFANTIL; PARTICIPACIÓN; CALIDAD DE LA EDUCACIÓN

ABSTRACT

In this article we seek to discuss the interface between evaluation and quality, with a view of participation as an indispensable assumption of the evaluation process. To this end, this study sought to understand the constituent aspects of an evaluation proposal in the context of early childhood education developed in preschools of a municipality in the state of São Paulo. Based on legislation, documents and literature specifically about evaluation in the context of early childhood education, we present some discussions about the evaluation process conducted by the municipality, seeking to problematize evaluation as a possibility of participation in the definition of significant quality indicators and legitimized by the collective, that allow the development of an authentic educational project.

KEYWORDS: EVALUATION; CHILD EDUCATION; PARTICIPATION; QUALITY OF EDUCATION

INTRODUÇÃO

No presente trabalho, discutimos os dados de uma pesquisa, em nível de mestrado, realizada em um município da microrregião de Ribeirão Preto. O estudo decorre de uma pesquisa mais ampla coordenada por Correa (2018) cujo objetivo geral era mapear como se efetiva a gestão na/da educação infantil em 12 municípios da microrregião de Ribeirão Preto.

Considerando a relação entre avaliação e qualidade e que o município “G”1 foi identificado na primeira etapa da pesquisa mais ampla como tendo uma forma própria de avaliação desenvolvida nas pré-escolas, analisamos os aspectos constituintes dessa proposta, denominada Sistema Municipal de Avaliação (Sima). Para tanto, tendo em vista que estudamos um caso específico, realizamos uma pesquisa de caráter qualitativo, pois, tal como afirma Robert Stake (1983), na pesquisa qualitativa é possível compreendermos a sequência de aspectos que constituem um determinado contexto. Assim, utilizamos ainda algumas técnicas típicas dos estudos de caso, haja vista que, de acordo com Marli André (2005), são indicadas para o aprofundamento de um fenômeno particular, tal como se caracterizou o nosso objeto de estudo.

Buscando compreender os aspectos que constituíam a proposta de avaliação desenvolvida pelo município e por não podermos observar o processo de avaliação in loco, em decorrência de um corte de funcionários na rede que impediu a realização da avaliação pelo município no período em que fazíamos o levantamento de dados, realizamos entrevistas2 com oito professoras3 da pré-escola, sendo que cada uma atuava em uma unidade de ensino do município. Além disso, entrevistamos a mediadora pedagógica4 da educação infantil, principal responsável pela proposta de avaliação.

Como procedimento de pesquisa para ampliar e qualificar os dados relativos aos aspectos constituintes de nosso estudo, realizamos ainda a análise documental acerca de materiais relativos à avaliação, cedidos pela Secretaria Municipal de Educação (SME) e pelas professoras, sendo eles: manuais destinados às professoras para aplicação das provas, avaliações dos anos precedentes, tabelas e gráficos relativos aos dados das avaliações e cronograma de realização das avaliações.

Tendo em vista que a avaliação é um elemento essencial do projeto educativo, a qual visa a levantar informações acerca dos processos nele desenvolvidos, e que possibilita que as práticas sejam reconstruídas em função da qualidade do projeto, neste artigo discutimos a relação entre avaliação e qualidade da educação infantil, tendo em vista as prescrições presentes nos documentos oficiais do Ministério da Educação (MEC), a configuração das políticas públicas que tratam de avaliação para essa etapa da educação, bem como o debate atual acerca do tema no contexto da educação infantil.

Para tratarmos de qualidade, antes é preciso destacar que a atenção com a educação infantil no Brasil é recente; logo, pensar padrões de qualidade para essa etapa da educação básica se mostra imprescindível. Conforme explica Moysés Kuhlmann Junior (2000), nos anos de 1970, a expansão da creche e pré-escola aconteceu por meio de políticas de baixíssimo custo, quando ainda tínhamos parte do sistema de educação infantil ligado aos órgãos de saúde e assistência social.

Kuhlmann Junior (2000) informa que essa expansão ocorreu devido à pressão dos movimentos sociais, sindical, popular e feminista exigindo a responsabilização do poder público pelas creches e pré-escolas. Mesmo assim, essa expansão ocorreu com políticas de baixo custo - sendo um de seus exemplos mais representativos o Projeto Casulo -, em que não havia qualquer preocupação com a qualidade da oferta.

Ainda que tal expansão tenha sucedido, importa ressaltar que a atenção do poder público para as instituições de educação infantil sempre foi mínima, sendo o atendimento às crianças propiciado de modo muito tímido. Correa (2002, p. 14) afirma que, em relação às diferentes instituições infantis e em períodos distintos, o que há em comum entre elas “é o fato de que, de modo geral, os serviços prestados variam sempre entre o péssimo e o precário quando destinados à população de baixa renda”.

No que toca à educação para os pequenos, algumas conquistas vieram a ocorrer em meados da década de 1980, quando a criança passou a ser reconhecida como um sujeito de direitos. Por exemplo, por meio da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988),5 o atendimento aos pequenos, que deve ser de qualidade segundo o inciso VII do artigo 206, passa a se tornar obrigação do Estado, o qual deve garantir creches e pré-escolas a todas as crianças.

Nessa perspectiva, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL, 1990) também reafirma o reconhecimento da criança enquanto sujeito que possui direitos ao determinar que cabe ao Estado e à família zelar por seus cuidados e bem-estar.

Salientamos ainda a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB)6 (Lei 9.394 de 1996), uma vez que ela incorpora a educação infantil como primeira etapa da educação básica, o que, segundo Correa (2002, p. 25)

[...] significa dizer que a partir daí a educação infantil passa a fazer parte dos sistemas, das estruturas regulares de ensino, trazendo consequências para estes não mais apenas no seu efetivo oferecimento - o que a CF(88) já determinava ao colocar a educação infantil como dever do Estado -, mas também a sua normalização e a sua fiscalização.

Essas são conquistas importantes para os pequenos, uma vez que, do ponto de vista legal, o direito de acesso à educação infantil é legitimado. Conforme afirmam Piotto et al. (1988, p. 55), a legislação, embora não possa garantir que os direitos prescritos sejam respeitados, “assegura a sua legitimidade e representa um primeiro e importante passo para o respeito a eles”. Com efeito, podemos considerar, com Correa (2003), a garantia dos direitos da criança como um critério de qualidade e a legislação como um instrumento fundamental para tal garantia.

Nesse sentido, ainda que tenhamos conquistado alguns avanços, é importante ressaltar que além do acesso há que se lutar por um atendimento de qualidade no qual os direitos da criança sejam de fato respeitados. Isso porque estudos, tais como os de Correa (2003) e Maria Malta Campos, Jodete Fullgraf e Verena Wiggers (2006), demonstram que a qualidade da educação para as crianças de zero a cinco anos ainda é algo a ser conquistado e, portanto, necessita ser discutido. Em outras palavras, tendo em vista a precariedade na qual a educação infantil se originou e em que ocorreu a sua expansão, “garantir um padrão de qualidade é condição que jamais pode-se perder de vista” (CORREA, 2002, p. 19).

Buscando discutir os aspectos que constituem a qualidade da educação infantil, a avaliação emerge como instrumento essencial na definição e aferição da qualidade educativa. Posto isso, entendemos que algumas questões são importantes para seguirmos as nossas discussões, a saber: como a avaliação no âmbito da educação infantil tem sido concebida e realizada? De que forma a avaliação pode alterar a realidade do contexto educativo garantindo impactos positivos na qualidade do projeto desenvolvido?

Em se tratando da primeira indagação, Maria Malta Campos (2013) informa que o início do debate sobre a interface entre avaliação e qualidade foi marcado por uma abordagem psicológica, uma vez que, fundamentado na Teoria do Apego, havia o questionamento sobre os efeitos da separação entre mãe e criança; ou seja, os defensores dessa teoria questionavam o impacto da creche, uma vez que acreditavam que a separação mãe/criança seria um risco para o desenvolvimento sadio da criança, como afirmam Maria Clotilde Rossetti-Ferreira, Katia de S. Amorim e Zilma M. R. de Oliveira (2009).

Em seguida, na década de 1970, influenciada pelas teorias de privação cultural, a avaliação passou a ter como foco os aspectos do desenvolvimento cognitivo da criança, tendo em mente os resultados das etapas seguintes. Desse modo, com a intenção de aferir questões relativas ao desenvolvimento com vistas ao desempenho da criança, a avaliação da educação infantil teve em sua origem o foco na criança.

Em estudo, Elisandra Girardelli Godoi (2010) constatou que esse panorama ainda é observado na educação infantil, já que nas pré-escolas tem se realizado uma sistemática de avaliação cuja intenção tem sido avaliar algumas habilidades e conhecimentos fragmentados relativos aos conteúdos escolares, desconsiderando outras dimensões do desenvolvimento infantil.

No que tange à avaliação, uma vez que a educação infantil nunca ocupou a centralidade nas políticas públicas, até este momento ela se manteve livre dos dissabores das propostas de avaliação em larga escala introduzidas nas demais etapas de ensino, afirma Luiz Carlos Freitas (2003). Entretanto, nos últimos anos tem se instaurado um debate acerca da avaliação a ser realizada em educação infantil, buscando-se um novo consenso.

Fulvia Rosemberg argumentou, em estudo de 2013, que o cenário brasileiro no qual se constitui o debate sobre avaliação na/da educação infantil aponta para o início da construção do “problema social avaliação na arena de negociações da política de educação infantil” (2013, p. 44). De acordo com a autora, o início das discussões sobre esse tema demarca o processo de formalização da política de avaliação, mesmo sem estar claro se essa é na ou da educação infantil, o que, por sua vez, tem implicado um duplo movimento de discussões:

[...] o de incorporação da educação infantil na política de avaliação da educação básica, talvez em ritmo mais lento; e outro, mais intenso, que busca a incorporação da avaliação como tema/problema evocando uma atenção específica para a política de educação infantil. (ROSEMBERG, 2013, p. 48)

Correa e Andrade (2011) e Vanessa Neves e Catarina Moro (2013) discutem uma proposta do Governo Federal, no âmbito da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), durante o governo Dilma Rousseff, de adotar o instrumento de avaliação Agesand Stages Questionnares (ASQ), que considera as habilidades cognitivas e socioemocionais da criança como indicadores de qualidade. Dentre as críticas tecidas por Correa e Andrade (2011, p. 277) acerca do instrumento, salientamos que “há uma visão fragmentada de desenvolvimento, como se a criança fosse não um sujeito integral, mas, antes, um objeto passível de verificação por partes”.

Rejeitando a proposta da SAE e com o objetivo de propor a reflexão acerca da avaliação como um processo formativo amplo e não como uma prática pontual e limitada, o Grupo de Trabalho de Avaliação da Educação Infantil, instituído pela Portaria Ministerial n. 1.147/2011, produziu o documento Subsídios para construção de uma sistemática de avaliação. Em suma, a proposta era que fosse construída uma sistemática de avaliação que pudesse abranger as instituições de ensino, as políticas e os programas voltados à educação infantil.

É nesse momento que também discorremos acerca da segunda indagação que fizemos anteriormente - de que forma a avaliação pode alterar a realidade do contexto educativo, garantindo alterações positivas na qualidade projeto desenvolvido? -, posto que o documento define que a construção da qualidade da educação infantil é relativa à avaliação das políticas educacionais pelos gestores públicos, de modo a “subsidiar as diferentes instâncias responsáveis pela Educação Infantil na formulação e implementação de propostas e ações” (BRASIL, 2012, p. 11). Ou seja, a construção da qualidade articulada à avaliação decorre da análise e julgamento das condições de oferta da educação infantil, que ocorre de modo complexo e muito diversificado, fazendo-se necessário, portanto, atentar para a heterogeneidade existente quanto à qualidade das instituições educativas de educação infantil, tal como apontou um estudo conduzido por Maria Malta Campos em seis municípios brasileiros (CAMPOS et al., 2010).

Posto isso, nessa perspectiva de avaliação, entende-se que a qualidade da educação infantil necessita ser verificada considerando contexto local e por meio de um processo dinâmico no qual os sujeitos envolvidos com a tarefa educativa sejam protagonistas da atividade avaliativa. Isso significa, pois, garantir que haja processos compartilhados de reflexão acerca dos aspectos que constituem a identidade desse contexto para que as ações voltadas à melhoria da qualidade sejam delineadas.

Donatella Savio e Anna Bondioli (2013) argumentam que a definição da qualidade se relaciona com vários fatores que constituem o contexto sócio-histórico, tais como a concepção de infância e desenvolvimento infantil, os valores e tradições da comunidade, a concepção de aprendizagem etc.

Nesse sentido, as autoras explicam que a avaliação do contexto educativo pode implicar alterações na qualidade do atendimento na medida em que a referida avaliação tiver um caráter democrático e dialógico por meio do qual os indicadores de qualidade sejam definidos e apropriados pelo coletivo. Ou seja, nessa perspectiva, avaliar na educação infantil com vistas à qualidade pressupõe uma tarefa complexa que envolve mais do que a criança e o professor e que supera aquela avaliação da criança de modo desconexo das experiências que lhe foram garantidas. Significa, pois, envolver a instituição como um todo na reflexão de aspectos que possibilitem melhorias concretas no atendimento por meio da “produção coletiva de significados sobre o trabalho desenvolvido com e pelas crianças” (CAMPOS, 2013, p. 29).

Explorando essa perspectiva de avaliação, destacamos alguns documentos publicados pelo MEC que recomendam a observação e avaliação dos aspectos e insumos constituintes do contexto educativo ofertado. Tais documentos são: Referencial curricular nacional para a educação infantil (RCNEI) (BRASIL, 1998), Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças (BRASIL, 2009), Parâmetros nacionais de qualidade para a educação infantil (BRASIL, 2006) e Indicadores de qualidade na educação infantil (BRASIL, 2009c).

Buscando pensar a interface entre avaliação e qualidade, neste artigo discutiremos a proposta de avaliação do Sima, procurando contribuir com o debate acerca de uma sistemática de avaliação que respeite a criança como um sujeito único e de direitos. Exploramos, portanto, a avaliação como uma forma de garantir processos autênticos na definição e reflexão acerca de indicadores de qualidade.

CONFIGURAÇÕES DA AVALIAÇÃO DO SIMA: CURRÍCULO E AVALIAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Por meio das entrevistas e análise dos documentos cedidos pela SME, constatamos que a avaliação realizada busca aferir aspectos relativos ao desenvolvimento das habilidades de leitura e escrita. Para tanto, a SME elabora avaliações em formato de provas que são aplicadas nas turmas de Jardim I e Jardim II, compostas por crianças de quatro e cinco anos respectivamente.

Nas turmas de Jardim I, a avaliação é desenvolvida pela mediadora pedagógica, que, chamando individualmente cada criança, “aplica” a prova. Já no Jardim II, é realizada a troca das professoras, ou seja, as professoras que atuam no Jardim II se alternam para que cada uma aplique a prova na sala da outra. Para tanto, a SME organiza um quadro relacionando as turmas com as professoras responsáveis por aplicar as provas; tais professoras são denominadas “professor aplicador”.

A legislação e os documentos do MEC recomendam fortemente que a avaliação ocorra como um processo que possibilite acompanhar a criança em suas conquistas ao longo do percurso educativo, sem que haja intenção de classificá-la ou compará-la.

A LDB (BRASIL, 1996) em seu artigo 31, inciso I, sobre a organização da educação infantil, define que a avaliação deverá ocorrer “mediante acompanhamento e registro do desenvolvimento das crianças, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental”; e, em seu inciso V, determina ainda “a expedição de documentação que permita atestar os processos de desenvolvimento e aprendizagem da criança”. Logo, nega qualquer prática com a finalidade de avaliar a criança e classificá-la e, em contrapartida, aponta para um processo contínuo de acompanhamento da criança em suas conquistas.

Além da própria LDB, as Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil (DCNEI) (BRASIL 2009a) salientam a observação da criança em suas interações e brincadeiras, bem como a importância da expedição de documentação sobre esses processos.

Seguindo a perspectiva de que o desenvolvimento é processual e relativo às apropriações garantidas por meio das experiências vivenciadas pela criança (VYGOTSKY, 1989), tanto a LDB quanto as DCNEI determinam que a educação infantil deve garantir o desenvolvimento integral da criança em suas múltiplas dimensões. Logo, as DCNEI definem que a educação infantil deve ter como eixos norteadores a brincadeira e a interação, garantindo um currículo:

[...] concebido como um conjunto de práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento integral de crianças de 0 a 5 anos de idade. (BRASIL, 2009a)

Ainda de acordo com o documento, o objetivo previsto para a proposta pedagógica da educação infantil é “garantir acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens” (BRASIL, 2010, p. 18); logo, o foco na alfabetização encontrado no contexto de pesquisa nos propõe reflexões e questionamentos quanto aos múltiplos aspectos do desenvolvimento infantil que deixam de ser contemplados e garantidos nas práticas educativas em detrimento da alfabetização.

As DCNEI (BRASIL, 2010) expressam ainda a necessidade de que as práticas desenvolvidas nas instituições de educação infantil prevejam formas de garantir a continuidade dos processos de desenvolvimento e aprendizagem sem que os conteúdos que são próprios do ensino fundamental sejam antecipados, tal como o processo de alfabetização. A esse respeito, o Referencial Curricular Nacional, volume 2, buscando enriquecer as discussões pedagógicas sobre os objetivos, conteúdos e as práticas educativas, também ressalta a necessidade de superar a marca da antecipação da escolaridade das pré-escolas (BRASIL, 1998) para, então, desenvolver projetos singulares que respeitem as identidades das instituições de educação infantil e as especificidades dessa etapa da educação.

De acordo com Luiz Carlos de Freitas et al. (2014), a avaliação deve estar atrelada aos objetivos da tarefa educativa, e não como uma atividade isolada, desenvolvida apenas no final do processo. Assim, os eixos interligados - avaliação/objetivos e conteúdo/método - constituem o par dialógico que permite organizar o processo de ensino e aprendizagem. Desse modo, o conteúdo aferido na avaliação está diretamente relacionado aos objetivos definidos para a tarefa educativa.

Nesse sentido, se na educação infantil estão sendo avaliados aspectos relativos às habilidades de leitura e escrita, não nos parece descabido dizer que esses seriam os conteúdos valorados, sendo a alfabetização o principal objetivo previsto pelo município para essa etapa da educação.

Nos relatos das professoras entrevistadas, podemos observar essa relação estabelecida entre a avaliação e o objetivo para a atividade educativa quando as questionamos acerca do que o Sima pretende avaliar:

E: O que o Sima objetiva avaliar?

R: Era mais a fase mesmo, né? Porque, no meu caso, Jardim II, eles têm que chegar até o fim do ano escrevendo o nome completo, o alfabeto, né, e na fase silábica com valor, que foi o que foi proposto no nosso planejamento no começo do ano! Então, na prova a gente avaliava, né? Esse ano não teve, teve ano que tinha no meio e depois no final para ver se contemplou tudo. Então, era mais para saber mesmo a fase, né, a leitura e a escrita.

E: Então o objetivo era avaliar questões referentes à escrita?

R: Que era o que eles tinham [pausa] o objetivo final, né, até o final do ano! E para ver também, quando tinha duas vezes no ano, para ver o andar da criança, aquele que conseguia chegar, atingir o objetivo, aquele que não. (Professora Renata, 2016)

E: O que o Sima objetiva avaliar?

M: Ah, ver se ele está avançando e aí poder também diagnosticar também a dificuldade dele para poder fazer um trabalho em cima daquela criança, daquela turminha para poder melhorar!

E: Mas avançando em relação a que aspecto?

M: Assim, para atingir os objetivos no final do ano, né. Assim, no Jardim I, vamos falar do Jardim I, eles têm que saber escrever, saber, até o final do ano, tem que sair escrevendo o primeiro nome e não precisa estar grafando, precisa só estar reconhecendo as letras, o alfabeto. Então, para ver, “ah, espera aí, não está escrevendo, então vamos mudar a estratégia, vamos dar alfabeto móvel, vamos dar palavrinhas recortadas para ele montar esse nome, vamos escrever na lousa, vamos escrever no chão, né, vamos montar um alfabeto vivo! Vamos fazer alguma coisa com essa criança, para ele atingir o objetivo do final do ano”, que é em relação à etapa que ele está, né, da leitura e da escrita. (Professora Maria, 2016)

Nesses excertos, encontramos indícios de que a avaliação apresenta uma visão fragmentada da criança, privilegiando a dimensão cognitiva em detrimento das demais, focando ainda apenas um aspecto dessa dimensão: a aprendizagem da leitura e escrita. Nos relatos das oito professoras entrevistadas e da mediadora pedagógica, destacamos indícios de que a avaliação realizada, ao focar essa dimensão, orienta as práticas desenvolvidas junto às crianças de modo limitado ao processo de alfabetização, desconsiderando o processo de humanização e o desenvolvimento integral, que dizem respeito aos aspectos relacionais, formativos e humanizadores, e não a conteúdos fragmentados e áreas específicas.

Nesse sentido, entendemos que está estabelecida uma relação direta entre o currículo e a avaliação realizada, haja vista que o primeiro acaba sendo definido pela segunda. É o que demonstram também estudos tais como os de Sandra M. Zákia L. Sousa e Paulo Henrique Arcas (2010) e Freitas et al. (2014), segundo os quais, no caso do ensino fundamental, as avaliações padronizadas impactam o currículo de forma tão precisa que acabam definindo-o.

Ao questionarmos uma professora acerca do que é avaliado pelo Sima, o seu relato nos permite constatar essa relação entre a avaliação e o currículo previsto para a educação infantil no município: “Na educação infantil, aqui para a gente, a gente coloca o que vai ser cobrado lá no fim do ano, então, a Marta [mediadora pedagógica] dá os pontos que ela quer atingir com as crianças, e então você vê como que você vai trabalhar para chegar lá!” (Professora Glória, 2016).

No início de cada semestre, a mediadora pedagógica realiza reuniões com as professoras para informar e discutir o que será avaliado pelo Sima. Com isso, conforme é explicitado no relato da professora Glória e nos demais relatos expostos a seguir, as ações desenvolvidas acabam sendo orientadas pelo conteúdo aferido nessa avaliação:

E: Como você avalia essa forma de avaliação proposta pelo Sima?

L: Então, hoje o SIMA é assim, você sabe o que vai ser cobrado, você sabe, os objetivos são traçados, na hora que começa o ano todo professor já é conhecedor disso, porque no planejamento, se o professor é novo, ele está chegando na rede, já é colocado lá “olha, espera-se o que dessa criança?”. É gradativo, é para o começo que se espera? Não! É lá para o final do ano, então, o que o meu aluno tem que atingir? É isso e isso! Então, quais os trabalhos que eu vou desenvolver? Tem sugestões? O que eu tenho que fazer? Então, ele já dá, assim, um caminho, né, para você percorrer. Então, eu acredito que a avaliação, você já segue sabendo o que a criança tem que atingir. (Professora Larissa, 2016)

E: Qual a noção de qualidade definida para avaliação por meio do Sima?

L: Agora [pausa] como eu te falei, foram pensando mais, andaram recolhendo atividades que a gente fazia na sala para dar mais ou menos o mesmo modelinho para a gente não ficar muito [pausa] para avaliação não ficar muito fora.

E: Você participou, de alguma forma, do processo de construção do Sima?

M: Às vezes já vinha pronta a provinha, mas a gente já sabia o que seria cobrado, né, porque, se tratando da educação infantil, não dá para também colocar um conteúdo, uma coisa que não foi trabalhado, né? Então, a gente já sabia o que ia cair, assim, não o que ia cair, tipo assim, o alfabeto, números e quantidades, formas, cores, a palavrinha no texto, né, circular a palavrinha no texto, né? Então, a gente já sabia a estrutura da prova, só mudava, assim, os textos, as letras, as palavras. (Professora Maria, 2016)

Os dados demonstram o quanto a avaliação interfere no modo de organização do trabalho pedagógico. Os termos “provinha” e “modelinho”, usados para designar a avaliação, destacam-se como forte indicativo de seu significado para a organização das ações desenvolvidas. Assim, a “avaliação termina sendo uma categoria que modula o próprio acesso ao conteúdo e interfere, mais do que se possa pensar, no método de ensino escolhido para os alunos”, afirmam Freitas et al. (2014, p. 23). Ou seja, não é descabido inferirmos que o conteúdo aferido pelo “modelinho” de avaliação orienta o trabalho desenvolvido pela professora, haja vista que, uma vez que é mensurado pela avaliação, há uma tendência de que a professora vá trabalhar de forma a buscar que seu aluno esteja apto a responder positivamente a essa avaliação, pois, tal como afirma a professora Larissa, as professoras já iniciam o ano sabendo o que a avaliação irá mensurar.

Além de contrariar o contido nas prescrições legais, tal como já argumentamos, esses objetivos e conteúdos previstos para a educação infantil são um tanto quanto limitados, na medida em que reduzem a tarefa educativa apenas à memorização de conteúdos escolares fragmentados, separando a cabeça e o corpo do indivíduo, valorizando o cognitivo sobre o movimento (GODOI, 2010), entre outros aspectos.

Entendemos que, para superar essas fragilidades, é preciso que reconheçamos a criança como centro do projeto educativo, que se desenvolve em função das suas necessidades singulares. Trata-se, portanto, de garantir ações embasadas na curiosidade e reflexão constante da professora sobre a criança, negando-se propostas que a coloquem em situações de avaliação constituídas por objetivos e expectativas considerados como ideais pela escola, que acabam por direcionar o olhar da professora a essas expectativas definidas a priori.

Isso significa repensar a avaliação de modo a garantir a reflexão acerca da qualidade das práticas desenvolvidas junto à criança para que, assim, seja possível problematizar a aprendizagem e desenvolvimento a ela oportunizados em relação ao contexto de suas experiências. Outrossim, avaliar com vistas à qualidade da educação infantil supera a ideia de um processo meramente constatativo; ao contrário, consiste em um processo que deve revestir-se de um caráter mediador e investigativo; ou seja, como bem argumenta Jussara Hoffmann (2012, p. 25): “A permanente curiosidade dos professores sobre as crianças é premissa básica da avaliação em Educação Infantil, e não a intenção de julgar como positivo ou negativo o que uma criança é ou não capaz de fazer e de aprender”.

REFLEXÕES SOBRE PARTICIPAÇÃO E QUALIDADE NO MUNICÍPIO “G”

Com base em Bondioli (2013), a interface entre avaliação e qualidade da educação infantil existe na medida em que se instauram processos democráticos e dialógicos acerca da identidade das instituições educativas. Segundo a autora, no que tange à educação infantil, a “qualidade não é uma adequação a padrões definidos a priori ou impostos do alto, mas fruto de uma consciência compartilhada acerca das direções a seguir e das escolhas a fazer” (BONDIOLI, 2013, p. 35), o que, por sua vez, caracteriza a qualidade como participação negociada, pressupondo a avaliação por meio de processos reflexivos sobre uma dada realidade.

Nesse sentido, entende-se que a avaliação deve estar a serviço da participação, possibilitando momentos colegiados nos quais todos os sujeitos envolvidos com o projeto educativo em foco possam envolver-se com o processo avaliativo e “chegar à atribuição de sentido (meaning making) compartilhada, que tem lugar através de formas hermenêuticas (interpretação de dados da realidade) e de dialética (debate em situações colegiadas)” (BONDIOLI, 2013, p. 38-39).

Pois bem, se temos que avaliação deve garantir que os sujeitos se apropriem de dada realidade específica, importa informar que a avaliação do Sima foi desenvolvida no âmbito da SME por uma equipe composta pela mediadora pedagógica, pela coordenadora do Ensino Médio e por dois capacitadores (profissionais responsáveis por organizar atividades voltadas à formação das professoras). Para construir as avaliações, às professoras era solicitado que elaborassem provas compostas por questões/atividades relativas à leitura e escrita e as encaminhassem à SME. Em seguida, com base nesse material enviado pelas professoras, eram organizadas duas avaliações a serem aplicadas em todas as pré-escolas do município.

Embora o município tentasse garantir que de alguma forma as professoras participassem da constituição da avaliação, por meio dos discursos e da análise dos documentos, observamos que a proposta do Sima é compreendida pelas professoras como uma avaliação externa à instituição, como algo cobrado pela SME, conforme explica a professora Glória ao falar sobre sua participação na construção da proposta de avaliação: “Participamos de como seria cobrado, como seria aplicado, porque é cobrado, né, tem um índice, aí você vê o que vai ser cobrado!” (Professora Glória, 2016).

No que tange às formas de participação na elaboração do Sima, destacamos ainda outros relatos para que possamos discuti-los tendo em vista a avaliação da qualidade da educação infantil. A seguir, as professoras argumentam acerca da seguinte questão: “como foi a sua participação no desenvolvimento deste sistema de avaliação?”.

L: Não, não participei!

E: E como você ficou sabendo do Sima?

L: Ah, ela [Marta, mediadora pedagógica] avisou em todas as escolas que ia estar sendo aplicada uma provinha no meio do ano, no nível que eles [as crianças] estavam só para verificar, né, o conhecimento, até onde eles conheciam. (Professora Letícia, 2016)

R: Não, não participei de nada.

E: E como que você teve conhecimento dela [avaliação]?

R: Aí o pessoal da Educação [a professora se refere à SME] que entrou em contato, fez uma reunião com os professores e, a partir daí, eles apresentaram o modelinho e disse que todo ano ia ter. Teve alguns professores, assim, que participava [pausa], não, minto! Antes de ter o Sima, eles até recolheram atividades das salas, acho que para ver mais ou menos como a gente trabalhava, mas, assim, diretamente não. Foi o pessoal da Educação mesmo que elaborou. (Professora Renata, 2016)

De acordo com as professoras Letícia e Renata, embora tenham enviado algumas atividades com “conteúdos” específicos para a SME para a construção da avaliação, elas não participaram do processo de construção da proposta, tendo sido apenas informadas. A professora Glória, por sua vez, entende que essa é uma forma de participação.

Muito embora haja um movimento da SME para tentar ouvir as professoras quanto ao conteúdo a ser aferido pelas avaliações, constatamos, por meio das entrevistas, que as professoras não reconhecem tal prática com possibilidade de participação. Nesse sentido, observamos que há um distanciamento das professoras em relação à avaliação realizada pelo Sima:

E: Qual a sua participação no processo de avaliação desenvolvido por meio do Sima?

G: A avaliação é feita em duas etapas, primeiro eu faço a minha, eu tenho a minha avaliação no momento que eu pego os alunos, eu faço uma avaliação. E, quando tem a mediadora, que é a Marta, ela faz a dela, entendeu? A gente depois senta e discute, sempre bate, o que eu acho ela também acha, o nível que ela encontra na criança eu encontro, entendeu? Então, não tem diferença, ela fala o que vai ser cobrado, e a gente aplica a nossa, e ela aplica a dela, e depois a gente senta e discute para ver se bate, e bate. (Professora Glória, 2016)

Os pronomes “minha” e “dela” utilizados por Glória podem demarcar certo distanciamento entre a avaliação do Sima e o trabalho por ela desenvolvido. Desse modo, os indícios nos permitem inferir que não se trata de uma prática com significados compartilhados e com propósitos negociados, de modo que a professora reconheça a legitimidade do projeto e/ou proposta em questão, mas sim que se trata de uma proposta que se efetiva de forma verticalizada, na qual as ações são definidas pela SME, não sendo possibilitados momentos de reflexão sobre os objetivos, as intenções e concepções acerca da avaliação desenvolvida. Por isso, a relação entre qualidade e participação necessita ser discutida de forma que a qualidade seja algo construído pelo coletivo levando à “apropriação da escola pelos seus atores no sentido de que estes têm um projeto e um compromisso social [...]” (FREITAS, 2007, p. 987).

Essa relação verticalizada é ainda mais acentuada na medida em que os dados obtidos por meio das avaliações são organizados em gráficos e tabelas, quantificando o desempenho das crianças em relação aos conteúdos aferidos. Ou seja, o Sima contempla a organização de um gráfico para cada turma referente ao desempenho das crianças nas avaliações e de um segundo contendo o desempenho de todas as turmas da escola com a finalidade de relacioná-los. Tais gráficos são ainda disponibilizados a todas as professoras da rede municipal de ensino.

Segundo argumentaram algumas professoras, essa exposição por meio dos gráficos acaba por influenciar ainda mais o trabalho realizado, posto que há o receio de que sua turma tenha um desempenho ruim, o que, tal como já comentamos neste trabalho, influencia diretamente no conteúdo e nas experiências garantidas às crianças.

Os gráficos nos parecem uma tentativa de expressar quantitativamente aspectos da qualidade objetiva da educação infantil. Além da ausência de análise dos dados obtidos por meio da avaliação, notamos que a sua exposição acaba por responsabilizar as professoras pela suposta qualidade objetivada pelo Sima.

A esse respeito, Freitas et al. (2014) argumentam que, ainda que não possamos subtrair a importância do papel do professor na prática educativa, a responsabilidade pelo sucesso educativo, bem como por um pacto coletivo de qualidade, não pode se limitar ao discurso de professor reflexivo como uma solução redentora para os problemas da escola. É importante, pois, que haja espaço e tempo nos quais os sujeitos possam expressar livremente as suas ideias e impressões, “propiciando-lhes condições para um diálogo plural, no qual a linguagem crie formas de inteligibilidade entre eles, alimentando um pacto de qualidade que negociam à luz das necessidades sociais que pretendem atender” (FREITAS et al., 2014, p. 34).

Ressaltamos que a proposta de avaliação do Sima acaba dificultando esses processos mais democráticos e dialógicos sobre a avaliação institucional que permitiriam relativizar o contexto educativo. Com base nisso, questionamo-nos ainda como é possível problematizar a qualidade da educação infantil se a avaliação se limita a aferir o desempenho da criança em uma prova pontual por meio de conteúdos fragmentados. Ou mesmo, caso a intenção da avaliação seja problematizar as experiências e as possibilidades de aprendizagem da criança, não seria benéfico delinear propostas e reflexões junto com as professoras que são protagonistas no processo educativo?

Os relatos de algumas professoras demonstram que a avaliação não possibilita a reflexão acerca de aspectos que têm impactado negativamente a qualidade educativa; entretanto, dados os limites deste trabalho, expomos apenas os argumentos da professora Letícia:

Qualidade seria um espaço adequado, porque na nossa escola é tudo pequenininha, foi feita para pouco aluno, achavam que o bairro não ia ter tanto aluno assim, e agora não está comportando mais. Então, o espaço adequado, mais tempo para o professor preparar atividade, porque aqui na escola eu só tenho aqueles cinquentinha minutos [...] Sei lá, eu acho que é mais isso, eu acho que deveria ter mais tempo para a gente brincar, você entendeu, porque eu acho que a educação infantil, assim, eles estão exigindo demais de uma criança com seis anos. Na minha época, com seis anos, eu não precisava nem ir na escola; hoje em dia, com seis anos eles têm que ser alfabético, entendeu? Então, eu acho que eles têm que ter mais tempo de brincar. Eles estão perdendo esse meio de aprendizagem, entendeu? (Professora Letícia, 2016)

Com base no relato de Letícia, constatamos que há aspectos essenciais do contexto educativo que impedem que o trabalho pedagógico seja desenvolvido com qualidade, aspectos esses que, portanto, necessitam ser avaliados e discutidos à luz de indicadores que venham garantir ações que alterarão essa realidade. Tais processos compartilhados, além de possibilitarem que sejam definidas ações de modo significado pelo coletivo, podem permitir que as instituições educativas demandem apoio do Estado para desenvolver mecanismos de melhora da qualidade que ultrapassem as possibilidades da unidade de ensino e do município (FREITAS et al., 2014).

Nessa conjuntura, inferimos que tanto o indicador definido para avaliação quanto o modo como ele é avaliado, se repensados com a participação das professoras, poderiam ser mais efetivos para a melhoria da qualidade do processo educativo. De outro modo, a avaliação servirá apenas como um instrumento de diagnóstico superficial, inconsistente, e como um mecanismo de classificação, segregação e estigmatização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nos dados construídos ao longo do percurso de pesquisa, compreendemos ser necessário ampliar a discussão acerca da avaliação realizada na educação infantil, reconhecendo e respeitando as especificidades dessa etapa da educação. Isso significa compreender e respeitar a criança como um sujeito que tem o direito de ter acesso a experiências e aprendizagens que garantam o seu desenvolvimento integral, sem que nenhuma das dimensões de seu desenvolvimento fique à margem do processo educativo devido à valorização de outras.

Nesse sentido, reconhecemos que segue instaurado o desafio de repensar os processos avaliativos, cujo foco são os resultados pautados em abordagens pontuais para, então, construir uma sistemática de avaliação autêntica, democrática e que promova a participação; ou seja, conforme argumenta Maria Cristina Parente (2014, p. 117):

A avaliação na educação da infância não pode reduzir-se à utilização de uma grelha de observação previamente elaborada por especialistas, ou mesmo adaptada pelos educadores, porque as crianças e os seus contextos de vida são diversos e as aprendizagens construídas também.

Assim, é preciso que seja estabelecido um campo de investigação contínuo acerca das experiências oportunizadas à criança, de modo a relativizar as suas conquistas, aprendizagens e o seu desenvolvimento com o contexto educativo. Dessa forma, torna-se possível refletir sobre a qualidade das práticas e repensar aspectos que de fato serão significativos para a qualidade daquele contexto.

Constatamos que o nome da proposta de avaliação - Sistema Municipal de Avaliação (Sima) - sugere uma completude acerca dos processos envolvendo a avaliação, uma vez que se caracteriza como um sistema. Entretanto, observamos que se trata de uma avaliação pontual, que se limita a aferir aspectos relativos apenas à dimensão cognitiva, abordando ainda somente um aspecto dessa dimensão: o desenvolvimento de habilidades relativas à leitura e à escrita. Nessa conjuntura, a noção de qualidade para a educação infantil fica restrita ao desenvolvimento dessas habilidades, implicando a antecipação do processo de alfabetização que deveria ocorrer nos anos posteriores, assim como limitando o acesso da criança à interação com o outro, à brincadeira, ao desenho, à música e demais linguagens que são condições essenciais para o seu desenvolvimento integral.

Verificamos que o modo como essa avaliação se constitui, além de não possibilitar que a eficácia da ação educativa seja problematizada em sua relação com o contexto, acaba dificultando processos democráticos de definição e reflexão sobre indicadores de qualidade, na medida em que seus dados são expostos. É instaurado, portanto, um distanciamento das professoras em relação à avaliação realizada pelo Sima, não havendo o compartilhamento de significados, tampouco clareza quanto aos objetivos previstos para a educação infantil e para a avaliação desenvolvida. Não seria descabido entendermos que, diante desse contexto, as professoras podem vir a ser reconhecidas apenas como aplicadoras, e não como sujeitos ativos no processo de ensino e aprendizagem, assim como a avaliação pode ser percebida como algo desconexo do projeto educativo desenvolvido.

Nesse sentido, constatamos que, embora haja dimensões do contexto educativo que necessitem ser verificadas para que seja possível desenvolver um trabalho pedagógico de qualidade, a avaliação realizada não se propõe a discutir tais questões, que poderiam garantir um processo educativo mais eficaz. Assim, ressaltamos a necessidade de que a definição dos indicadores de qualidade relevantes para a rede ou unidade de ensino parta de processos dialógicos e democráticos, de modo que, sendo flexíveis e passíveis de mudanças, esses indicadores se tornem ferramentas de gestão para todos os níveis de concretização do projeto educativo - Secretaria de Educação, diretorias regionais e unidades.

A definição e a busca pela qualidade consistem, portanto, em fazer escolhas meditadas, assumindo uma responsabilidade partilhada na qual seja possível o compartilhamento e o empoderamento dos sujeitos acerca das necessidades e fragilidades do projeto educativo. Consiste, pois, em garantir que, por meio do diálogo e do confronto, todos os envolvidos nesse projeto tenham voz e se reconheçam sujeitos das ações educativas com vistas a uma qualidade negociada, conforme o que explica Bondioli (2015, p. 1130):

A avaliação, tal como a entendemos, não consiste em determinar se uma dada realidade está em conformidade com as normas estabelecidas pelos superiores e de cima, mas num processo em que as partes interessadas trabalham para esclarecer e definir, por consenso, valores, objetivos, prioridades, ideias sobre como uma instituição de ensino é e como ela deveria ou poderia ser.

Nesse sentido, verificar a qualidade é mais do que atribuir um juízo de valor sobre um possível resultado, uma vez que esse juízo, não sendo atribuído de modo contextualizado, em nada alterará a qualidade da realidade educativa. Avaliar com vistas à qualidade significa desenvolver um processo que preveja a construção de um compromisso coletivo acerca daquilo que se deseja para a prática educativa; assim, “o processo decisório é autenticamente compartilhado” (BONDIOLI, 2013, p. 34). Ou seja, como bem argumentam Neves e Moro (2013, p. 282) “trata-se de uma avaliação do contexto educativo e não uma avaliação individual e excludente da criança”.

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1Cada um dos municípios que integram a pesquisa mais ampla receberam uma letra para preservação de sua identidade.

2Todas as entrevistadas receberam Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para realização das entrevistas, sendo esses termos aprovados pelo comitê de ética em pesquisa.

3O uso do termo no feminino se justifica pelo fato de que a educação infantil é predominantemente exercida por atores desse gênero. O mesmo ocorreu no município no qual realizamos o estudo, no qual as entrevistadas eram mulheres.

4Conforme nos foi informado em entrevista, o cargo de Mediador Pedagógico é desempenhado por uma professora no âmbito da Secretaria Municipal de Educação, cuja função é oferecer suporte às professoras em relação ao trabalho desenvolvido, ou seja, uma forma de “coordenação geral da educação infantil”. Para oferecer tal suporte, são realizadas visitas às Unidades de Educação Infantil (UEI) a fim de observar o trabalho das professoras para que, junto com a mediadora, possam pensar possíveis intervenções pedagógicas. Cabe ainda à mediadora organizar as avaliações, orientar e participar do processo avaliativo nas UEI.

5A Emenda Constitucional n. 59, de 11 de novembro de 2009 (BRASIL, 2009b), altera a redação da CF (1988) e define que a educação infantil, em creche e pré-escola, será oferecida às crianças até 5 (cinco) anos de idade.

6A Lei n. 12.796, de 4 de abril de 2013 (BRASIL, 2013), altera a redação da LDB, lei n. 9.394/96, tornando obrigatória a matrícula na educação infantil aos quatro anos de idade.

Recebido: 14 de Agosto de 2020; Aceito: 02 de Março de 2021

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