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Estudos em Avaliação Educacional

versão impressa ISSN 0103-6831versão On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.33  São Paulo  2022  Epub 06-Jun-2022

https://doi.org/10.18222/eae.v33.7289 

Artigos

ESCOLARIZAÇÃO EM ÁREAS RURAIS: A DISTORÇÃO IDADE-SÉRIE NA ÓTICA DOS GESTORES1

ESCOLARIZACIÓN EN ÁREAS RURALES: LA DISTORSIÓN ENTRE EDAD-AÑO ESCOLAR DESDE LA ÓPTICA DE LOS GESTORES

SCHOOLING IN RURAL AREAS: AGE-GRADE DISTORTION FROM THE ADMINISTRATORS’ POINT OF VIEW

MARLICE DE OLIVEIRA E NOGUEIRAI 
http://orcid.org/0000-0002-6295-5473

LUCIANO CAMPOS SILVAII 
http://orcid.org/0000-0001-9717-8558

IUniversidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto-MG, Brasil;

IIUniversidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto-MG, Brasil;


RESUMO

O artigo apresenta resultados de uma pesquisa que investigou as condições em que ocorrem as situações de distorção idade-série entre estudantes que residem em territórios rurais. Foram analisadas as percepções de gestores escolares sobre esse fenômeno, em especial o modo como eles explicam sua ocorrência nas escolas. A metodologia utilizada foi qualitativa e envolveu a realização de entrevistas com os gestores de cinco unidades escolares. Os resultados indicam que, na ótica desses profissionais, dois conjuntos de fatores estariam na base do fracasso escolar dos estudantes: fatores extraescolares e fatores escolares, sintetizados como descompassos entre a modalidade de oferta escolar (currículos, tempos e espaços) e a realidade social e cultural vivenciada pelos estudantes em contextos rurais.

PALAVRAS-CHAVE DEFASAGEM IDADE-SÉRIE; FRACASSO ESCOLAR; EDUCAÇÃO RURAL

RESUMEN

El artículo presenta resultados de una investigación que averiguó las condiciones en las que ocurren las situaciones de distorsión entre edad-año escolar entre estudiantes que residen en territorios rurales. Se analizaron las percepciones de gestores escolares sobre dicho fenómeno, sobre todo el modo en el que ellos explican su ocurrencia en las escuelas. La metodología utilizada fue cualitativa e involucró la realización de entrevistas con los gestores de cinco unidades escolares. Los resultados indican que, desde la óptica de estos profesionales, dos conjuntos de factores estarían en la base del fracaso escolar de los estudiantes: factores extraescolares y factores escolares, sintetizados como descompases entre la modalidad de oferta escolar (currículos, tiempos y espacios) y la realidad social y cultural vivenciada por los estudiantes en contextos rurales.

PALABRAS CLAVE DESFASE EDAD-AÑO ESCOLAR; FRACASO ESCOLAR; EDUCACIÓN RURAL

ABSTRACT

This article presents results of a study that investigated the conditions in which situations of age-grade distortion occur among students living in rural areas. The perceptions of school administrators about this phenomenon were analyzed, particularly, how they explain its occurrence in the schools where they work. The methodology used was qualitative and mainly involved interviews with the administrators of five schools. The results indicate that, from the administrators’perspective, two sets of factors would be at the base of the students’ school failure: extra-curricular factors and in-school factors, synthesized as mismatches between the modality of school offer (curriculum, times and spaces) and the social and cultural reality experienced by students in rural contexts.

KEYWORD AGE-GRADE DISTORTION; SCHOOL FAILURE; RURAL EDUCATION

INTRODUÇÃO

O fracasso escolar tem sido objeto de estudo privilegiado da Sociologia da Educação, especialmente a partir das teorias da reprodução em suas duas vertentes principais: a cultural e a marxista (BOURDIEU; PASSERON, 1975; BOWLES; GINTIS, 1976). Desde então, as nuanças do fracasso vêm sendo investigadas, inicialmente em uma abordagem macroscópica e posteriormente em análises microssociológicas do fenômeno social e escolar. A adoção das perspectivas macro e microssociológicas (concomitantes ou não) possibilitou o levantamento e a elucidação de uma grande diversidade de fatores - extra e intraescolares - implicados no insucesso escolar e ampliou a explicação clássica da vinculação entre destino escolar e origem social. Entre esses diversos fatores estão as dinâmicas internas das famílias (LAHIRE, 1997), as lógicas de socialização familiares (THIN, 2006), os aspectos socioespaciais (WILSON, 1987), a oferta escolar (VAN-ZANTEN, 2009), a infraestrutura institucional, a gestão escolar (PARO, 1995) e os efeitos escola e professor (BRESSOUX, 1994).

A Sociologia da Educação vem demonstrando também um efeito importante da vulnerabilidade social dos territórios nos percursos de escolarização das crianças e jovens, embora os mecanismos internos da produção desse efeito ainda não estejam bem definidos (BATISTA; CARVALHO-SILVA, 2013; KOSLINSKI; ALVES, 2012). No entanto, o peso da dinâmica sociogeográfica nos itinerários escolares de estudantes moradores de regiões interioranas, e especificamente de áreas rurais, é menos visível dado que grande parte desses estudos tem se debruçado a compreen- der tais dinâmicas de desigualdades em contextos altamente urbanizados, principalmente nas metrópoles. Contudo, foi justamente um dado fundamental acerca da população escolar interiorana que instigou a realização deste estudo: no ensino fundamental no Brasil, as maiores taxas de defasagem escolar são encontradas nas áreas rurais2 (24,9% de estudantes brasileiros de escolas rurais e 14,9% de escolas urbanas), conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (BRASIL, 2019). Ressalta-se que nos anos finais do ensino fundamental, a taxa de defasagem escolar sobe para 36,3% nas escolas rurais brasileiras. Essa constatação impulsionou a realização desta pesquisa em contextos rurais de escolarização, considerando também os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que, por meio do Censo Demográfico de 2010, constatou que 76,6% das pessoas de zona rural com 25 anos de idade ou mais não tinham instrução ou tinham ensino fundamental incompleto (IBGE, 2012). Ou seja, apesar da maior democratização do acesso à educação básica no Brasil, os estudantes moradores de áreas rurais estão em desvantagem em seus percursos de escolarização em relação aos moradores de áreas urbanas.

Em síntese, a opção de estudar os elementos internos aos processos de atraso escolar em contextos rurais foi subsidiada por duas evidências: em primeiro lugar, a persistência de altos índices de distorção idade-série no Brasil nos anos finais do ensino fundamental, apesar das diversas políticas de correção de fluxo criadas nas duas últimas décadas (por exemplo, aceleração da aprendizagem e progressão continuada). Em segundo lugar, a constatação de que esses índices são ainda mais expressivos nas escolas localizadas em áreas rurais. Tomando como referência o estado de Minas Gerais, cenário da presente pesquisa, de cada 100 alunos mineiros matriculados em escolas rurais no 9º ano do ensino fundamental, 19 estavam com dois anos ou mais de atraso na escolaridade no ano de 2019 (BRASIL, 2020).

Assim, optou-se por tomar como campo empírico para o estudo um município do interior mineiro3 que vem apresentando nos últimos recenseamentos escolares (2015, 2017 e 2019) taxas expressivas de distorção idade-série na segunda etapa do ensino fundamental: 25,4% dos estudantes do ensino fundamental do município apresentaram, em 2019, atraso de dois anos ou mais, sendo que essa taxa tem seu ápice no 8o ano, com 30,5% dos adolescentes e jovens matriculados nessa série em situação de atraso escolar. E são justamente as escolas rurais desse município que apresentam as maiores taxas de atraso escolar, chegando ao índice de 30,1% de alunos matriculados nos anos finais do ensino fundamental com distorção idade-série, contra 24,8% dos alunos da mesma etapa de ensino nas escolas urbanas. No 8º ano do ensino fundamental, as taxas sobem para 35, 3% de estudantes de escolas rurais em situação de atraso escolar (BRASIL, 2019). O município apresentou, em 2019, um Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 4,5 para os anos finais do ensino fundamental e de 6,2 para os anos iniciais, e contou com uma população de 6.710 estudantes matriculados no ensino fundamental público, sendo que, desse total, 709 alunos estudavam em escolas localizadas em áreas rurais (BRASIL, 2019).

Nesse quadro, o artigo apresenta resultados de uma pesquisa que investigou as condições em que ocorrem as situações de distorção idade-série entre estudantes que residem em territórios rurais. Para isso, foram analisadas as percepções de gestores escolares sobre o fenômeno da distorção idade-série, com destaque para a forma como eles explicam a ocorrência desse fenômeno nas escolas em que trabalham. Ou seja, a principal questão que orientou o estudo foi: quais fatores, na percepção dos gestores escolares, poderiam ser associados ao fracasso escolar corporificado na situação de atraso escolar desses estudantes?

A opção por analisar as percepções que têm os gestores das escolas sobre o fenômeno da distorção idade-série se deu por entendermos que eles são atores escolares privilegiados para fornecer informações relevantes sobre a escola e seus estudantes. Estudos internacionais (BRASSARD et al., 2004; CATTONAR, 2006; CASASSUS, 2002) e nacionais (SOARES, 2002; RANGEL, 2013; OLIVEIRA, 2015) têm demonstrado o papel ativo do diretor escolar no funcionamento das escolas e os efeitos da gestão em seus resultados oficiais. Além disso, podemos considerá-los como informantes privilegiados por estarem em geral fortemente envolvidos nas diferentes dimensões do mundo escolar: pedagógica, administrativa, cultural e social. Tanto é assim que em avaliações em larga escala, como o Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa) e o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), os diretores escolares são considerados informantes primordiais para a obtenção de dados complementares sobre o desempenho dos estudantes, respondendo aos questionários contextuais que abarcam um conjunto de informações relevantes sobre os estudantes, os professores, o ensino, a organização e a dinâmica da vida nas escolas.

O artigo está estruturado em três partes, além dessa introdução e das considerações finais. Na primeira, apresenta-se o percurso metodológico da pesquisa; na segunda, são analisados os motivos pelos quais o atraso escolar se impõe às experiências escolares dos estudantes rurais, na perspectiva dos diretores escolares. Por fim, na terceira parte, são discutidos os limites do uso do conceito de distorção idade-série para compreender a situação complexa e multifacetada de fracasso de estudantes dos meios rurais e propomos o uso do conceito de ruptures scoilares (MILLET; THIN, 2005) nas análises sociológicas sobre esse fenômeno.

O DESENHO METODOLÓGICO DA PESQUISA

A metodologia utilizada para a realização do estudo foi qualitativa e se desenvolveu em duas etapas.4 Na primeira etapa foi realizado um mapeamento dos índices de distorção idade-série nos distritos e subdistritos rurais do município/campo da pesquisa. O município tem atualmente 60.724 habitantes (dados estimados pelo IBGE para 2019), sendo que, desse total, cerca de 7 mil pessoas vivem em áreas rurais (dados do Censo 2010) distribuídas em nove distritos e seus subdistritos (IBGE, 2012). Ressalta-se que algumas dessas localidades estão mais próximas à sede e não são reconhecidas como rurais por seus moradores, por apresentarem um conjunto de características “rurbanas”, nos moldes em que Carneiro (1998) define a imbricação urbano/rural e o crescente peso do urbano nessa configuração. Porém a maioria dos distritos tem uma vida cotidiana rural, em que grande parte da população local se dedica às atividades de cuidado com a terra e os animais, além de estarem localizadas em regiões bastante remotas e distantes da sede, cujo acesso se dá exclusivamente por estradas de terra.

O macrocampo de análise foi constituído por dez instituições de ensino fundamental registradas como “escolas rurais” do município, de acordo com os dados oficiais do Inep referentes ao Censo Educacional (BRASIL, 2015, 2017, 2018, 2019) e à Prova Brasil 2014. Os dados da distorção idade-série por unidade escolar, no período de 2013 a 2018, nas referidas localidades, podem ser visualizados na Tabela 1.

TABELA 1 Distorção idade-série nas escolas rurais do município/campo da pesquisa5 

ESCOLAS TAXA DE DISTORÇÃO
IDADE-SÉRIE (%)
TAXA DE DISTORÇÃO IDADE-SÉRIE 2016
- DETALHADO (%)
2013 2014 2015 2016 2017 2018 Anos iniciais Anos finais 1º ano 2º ano 3º ano 4º ano 5º ano 6º ano 7º ano 8º ano 9º ano
Escola A 41,2 33,3 36,5 29,3 25,0 20,5 13,2 45,9 0,0 0,0 27,3 0,0 20,0 30,0 60,0 62,5 33,3
Escola B 38,3 38,9 37,4 36,1 34,1 34,1 19,5 48,2 0,0 0,0 16,7 22,2 50,0 44,4 58,3 43,8 50,0
Escola C 53,5 44,4 47,7 42,5 36,1 25,8 27,3 48,3 50,0 0,0 33,3 33,3 0,0 50,0 62,5 50,0 28,6
Escola D 40,7 45,8 45,8 33,9 23,6 19,6 19,1 45,2 0,0 10,0 9,1 0,0 53,8 35,7 30,8 61,9 42,9
Escola E 46,8 35,9 35,8 37 28,0 23,7 5,3 54,3 0,0 0,0 0,0 12,5 0,0 50,0 30,0 66,7 75,0
Escola F 38,8 33,3 24,4 21,7 23,7 20,0 14,0 31,0 0,0 7,1 13,3 12,5 30,0 30,8 37,5 25,0 33,3
Escola G 27,8 19,5 23 16,3 12,3 9,6 2,0 36,1 0,0 0,0 0,0 0,0 11,1 18,2 50,0 33,3 45,5
Escola H 35,9 33,8 31,3 28,2 30,4 28,6 12,5 40,3 0,0 0,0 7,1 8,3 28,6 47,4 20,0 47,1 37,5
Escola I 41,1 36,8 31,8 28,7 -- -- 13,7 50,0 0,0 11,1 16,7 22,2 18,2 23,1 50,0 90,0 40,0
Escola J 33,8 30,6 30,8 19,4 13,9 8,9 8,8 28,9 0,0 0,0 11,1 14,3 12,5 20,0 11,1 57,1 33,3

Fonte: https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/indicadores-educacionais/taxas-de-distorcao-idade-serie. Acesso em: maio 2022.

Conforme apresentado na Tabela 1, as dez escolas rurais do município que ofertavam os anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º ano) apresentavam índices expressivos de distorção idade-série nessa etapa de ensino (acima de 45%), tendo uma variação de 45,2% a 54,3% (dados de 2016). É preciso, no entanto, atenção às especificidades das escolas localizadas em áreas rurais que apresentam geralmente um número reduzido de alunos matriculados nas turmas, o que exige que as referidas taxas sejam sempre analisadas levando em consideração os contextos reais das escolas. Por isso, optamos por realizar um estudo qualitativo nos contextos das escolas pesquisadas, cientes de que para compreender o fenômeno da distorção idade-série não bastava uma simples leitura dos índices apontados pelos órgãos oficiais.

Diante desse panorama, foram escolhidas, como campo de investigação, cinco escolas de ensino fundamental (B, C, D, E, I, ver Tabela 1) localizadas em distritos/subdistritos rurais, todas elas apresentando expressivos índices de distorção idade- -série nos anos finais dessa etapa de ensino, com uma variação de 45,2% a 54,3%, conforme dados do Inep de 2017 (Série 2016), sendo que algumas das instituições chegaram a apresentar índices maiores que 60% nos dois últimos anos do ensino fundamental (8º e 9º anos).

Na segunda etapa, após o contato com as cinco escolas selecionadas e o aceite dos diretores para participar da pesquisa, foram adotados os seguintes procedimentos: a) visitas observacionais aos distritos para coleta de dados sobre a infraestrutura, a organização institucional e o funcionamento cotidiano das escolas; e b) realização de entrevistas semidiretivas com os cinco diretores das unidades escolares. A gestão das escolas selecionadas para o estudo era feita, na maioria dos casos, por uma equipe composta pelo diretor escolar e um pedagogo (em um dos casos, itinerante), sendo que duas das escolas dispunham também, em seu quadro de funcionários, de um vice-diretor escolar. Em dois casos, os profissionais que exerciam a função de coordenação pedagógica das escolas (pedagogos) participaram das entrevistas juntamente com os diretores e, em uma escola, o vice-diretor participou de parte da entrevista. As entrevistas foram bastante longas, com duração que variou de 90 a 140 minutos, e os entrevistados se mostraram bastante interessados e eloquentes, além de promoverem uma gentil e respeitosa recepção aos pesquisadores na escola. Neste artigo serão explorados especialmente os dados provenientes das entrevistas realizadas com os gestores.

DISTORÇÃO IDADE-SÉRIE: FATORES INTRA E EXTRAESCOLARES

Com base nas percepções dos gestores escolares foram identificados alguns fatores explicativos da distorção idade-série entre os estudantes das escolas de meio rural analisadas. De modo geral, esses fatores podem ser divididos entre extraescolares e escolares.

Fatores extraescolares

De modo geral, os elementos que na percepção dos gestores entrevistados seriam os principais produtores da distorção idade-série nas cinco instituições analisadas se relacionam de algum modo com as precárias condições materiais e simbólicas de existência das famílias e das escolas, que, além disso, eram submetidas a um forte isolamento geossocial nos contextos rurais da região pesquisada.

Com relação à população residente nos distritos, foi possível constatar, por meio das entrevistas e da observação em campo, que, na maioria dos distritos, a população tinha como subsistência o pequeno comércio, o trabalho na lavoura e na atividade pecuária (leiteira em uma parte dos distritos), com a prestação de serviços nas fazendas da região (na maioria das vezes, temporários) e a posse de pequenas lavouras. Verificou-se também pelos relatos dos gestores que uma parte dos moradores dos distritos sobrevivia com benefícios sociais, como o Bolsa Família6 e o Programa Municipal de Renda Mínima e Inclusão Produtiva da Mulher (PRMIP).7

As escolas participantes da pesquisa estavam localizadas em distritos ou subdistritos rurais, sendo que a localidade mais próxima estava a 23 quilômetros da sede do município e a mais distante, a 56 quilômetros. O deslocamento dos moradores dessas localidades para a sede, a não ser quando realizado por veículo próprio (carro ou motocicleta), se dava pelo transporte público oferecido pelo município que, em algumas das localidades, disponibilizava somente dois horários, um de partida e um de chegada. A localização dos distritos e subdistritos, situados entre as montanhas da região, alguns deles com acesso apenas por estradas de terra, dificultava a frequência do deslocamento da população entre os distritos e entre esses e a sede do município.

Não por acaso, todos os gestores, três deles moradores das próprias localidades pesquisadas, destacaram em seus relatos como elementos explicativos centrais da distorção idade-série dos estudantes as condições de vida desfavoráveis de muitas famílias moradoras dos distritos, as dificuldades impostas pela distância entre o local de moradia e a sede do município e a forma como isso impactava a gestão da escola.

Sabe, a gente precisa, eles precisam da gente de vez em quando, então a gente tem que se ajudar, então precisa “ô mãe eu posso pedir para o pessoal daqui da policlínica pra nos ajudar”. Porque se ele for atendido à tarde, olha... ele vem pra escola, vai no ônibus escolar, você vai com ele lá pra [nome da cidade] ele é atendido e ele volta no carro que traz o pessoal que trabalha à noite, o município fornece transporte pra eles, então, além de ele assistir aula, você ainda vai conseguir uma carona, eu consigo essa carona pra você, no lugar de você pagar o ônibus que custa R$ 10 reais. São quase 10 reais a passagem daqui pra [nome da cidade]. E a dela e do menino seriam 20, mais alimento, não fica barato pra levar toda semana não. E olha, tem muitas famílias aqui que passam dificuldade... não tem como ir não. Então a gente tem muito problema de frequência por causa das doenças [...] fica muito difícil pra família levar ao médico fora do PSF, [há um posto de saúde em frente à escola] porque nem sempre resolve o problema do menino aqui. É muito difícil pra eles ter que ir à cidade, sabe. (Diretor - Escola D).

Pelos dados disponíveis, o isolamento geográfico a que as famílias estavam submetidas se convertia também em isolamento social, pois a falta de serviços e a distância entre as moradias e as outras regiões da cidade, quando associadas às precárias condições existenciais das famílias, produziam um distanciamento que não era apenas geográfico, pois se convertia em segregação social. Desse modo, fica evidente uma condição social fortemente marcada pelo isolamento e pela falta de serviços e de locais de sociabilidade nesses distritos. Assim, dos serviços públicos geralmente disponíveis nas cidades, foi possível identificar apenas o posto de saúde e as escolas públicas municipais de educação infantil e de ensino fundamental nos cinco distritos pesquisados (e em dois casos, também escolas estaduais de ensino médio). Já em relação aos locais de sociabilidade, além das igrejas e do salão paroquial, identificamos apenas alguns bares e campos de futebol. Os distritos e suas moradias tinham uma configuração geográfica similar: parte da comunidade se organizava em uma área central, onde se localizavam a igreja, a escola, comércios, posto de saúde e várias moradias e, no entorno dessa região central, estavam vários e pequenos aglomerados de casas, situados mais distantes entre si e em relação à comunidade central. As características do espaço físico (distância entre as moradias, localização entre montanhas, acesso exclusivo por estradas de terra, aglomerados de casas dispersos na extensão territorial do distrito) se retraduziam no espaço social, exprimindo as hierarquias e distâncias sociais e interferindo na oferta e distribuição de bens públicos e, também, sobre as oportunidades de sua apropriação por diferentes grupos e classes sociais (BOURDIEU, 2012).

Outro elemento explicativo importante detectado nas falas dos gestores diz respeito à distância entre as moradias e a escola. Algumas famílias residiam em áreas bastante afastadas do centro dos distritos, onde as escolas estavam localizadas, assim como outras estruturas sociais, como igreja, posto de saúde ou pequenos comércios. Na ótica dos entrevistados, por causa da distância entre casas e escola e das dificuldades que ela impunha aos deslocamentos dos estudantes e das famílias, principalmente em dias de chuva, muitos estudantes eram obrigados a faltar às aulas. Para os diretores, o absenteísmo contribuía expressivamente para o insucesso escolar de alguns estudantes, moradores dessas áreas mais distantes.

Nós temos aproximadamente cinquenta por cento dos meninos que fazem uso de transporte, ou seja, não moram tão perto, né? Moram longe da escola e [...] a outra metade mora aqui nas imediações dentro da própria comunidade, então muito próximo mesmo, né? Aquele que mora mais longe um pouquinho já faz o uso do transporte. E tem gente que mora bem longe daqui. E tem casos também de não ter transporte [...] aí eles precisam vir a pé mesmo, tem alguns alunos que demoram até uma hora pra chegar aqui [...] e aí quando chove eles não vêm não. (Diretora - Escola B).

Além disso, embora a maioria dos estudantes matriculados fossem moradores dos distritos, as escolas recebiam também crianças e adolescentes moradores de outros distritos, e até mesmo de outros municípios fronteiriços, cuja localização da moradia da família estava mais próxima da escola do que da instituição do próprio distrito de residência. Isso se dava porque a maioria dos distritos tem uma grande extensão geográfica e as moradias, e também alguns aglomerados de casas, estão distribuídos de modo bastante disperso nos territórios.

Por fim, ainda em relação aos fatores extraescolares, os relatos dos gestores indicam a forte influência das atividades laborais cotidianas desenvolvidas pelos adolescentes para auxiliarem as famílias no trato com terra e com animais como produtoras nas dificuldades escolares. As dificuldades encontradas por estudantes trabalhadores, moradores de áreas urbanas e rurais, para a permanência na escola e a conclusão da educação básica também foram relatadas por pesquisas recentes sobre a escolarização da juventude, como, por exemplo, os trabalhos de Windle e Nogueira (2020) e Franzói e Fisher (2019). Assim, segundo as percepções dos gestores, parece que para as famílias mais vulneráveis dos distritos pesquisados, embora a escola estivesse fortemente presente em seu cotidiano, em virtude de sua compulsoriedade legal, o trabalho ocupava lugar central, e não somente o trabalho por si mesmo, mas a ética que ele impunha às lógicas educativas familiares, como podemos ver nos relatos dos gestores:

Os meninos trabalham, precisam trabalhar, é a minha maneira de pensar, tá? Eu sei que tem o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente]. Ele não diz isso não, ainda diz que ele é estudante, que ele não pode trabalhar, o negócio dele é escola e brincar. Mas conhecendo a realidade da comunidade, realidade de algumas famílias, eu vejo que os pais querem que o menino estude [...] eles se importam, mas e a sobrevivência, como fica? E, também, a gente sabe [...], mas, a gente sabe que se esse menino não estiver trabalhando, fazendo alguma tarefa, ele vai estar na rua da mesma maneira, e ele estando na rua ocioso é pior pra ele. Então trabalha nos currais, cuidando do gado, essas coisas. Os pais precisam desse trabalho deles e, também, o trabalho é uma coisa séria pra eles. (Diretor - Escola D).

Contudo, os relatos dos gestores indicam que, embora muitos estudantes vivenciassem problemas escolares que se traduziam em situações de reprovação, repetência e abandono, era bastante visível, mesmo que em modos e graus diferenciados, o valor dado pelos pais à escola e à escolarização dos filhos. Na perspectiva dos gestores, a escola ocupava patamar importante nas dinâmicas familiares e, também, em suas expectativas de futuro, mas essa posição, situada no campo dos desejos e da percepção simbólica (mais ou menos consciente) do que a escolarização significa na vida social contemporânea era confrontada pelas necessidades urgentes das famílias, ou seja, pela “escolha do necessário”, como nos apresenta a teoria bourdieusiana, ao descrever as propriedades sociais e culturais das camadas populares. Segundo Bourdieu (2008, p. 350-351), a necessidade impõe uma “aceitação do necessário”, uma “forma de adaptação ao necessário”, uma “resignação ao inevitável”. No entanto, os efeitos da resignação ao necessário são dissimulados, pois “sua ação se confunde com a da necessidade”, não sendo quase nunca totalmente visíveis.

Por fim, os diretores destacaram a associação e imbricação de duas dimensões da vida cotidiana que afetavam o desempenho dos estudantes em defasagem idade-série. De um lado, como já relatamos, a experiência de um rural que se constituía na precariedade e na vulnerabilidade social, que os impelia a viver o trabalho intensa e precocemente e a buscar constantemente, nem sempre de forma exitosa, a conciliação entre estudo e trabalho.

Então os meninos ajudam na ordenha, ajudam no limpar curral, no manejo. Tem alguns que trabalham aqui no comércio, né? Ajudando nas entregas e tal, e [...] uma grande parte que trabalha nos próprios sítios, né? São pequenos proprietários e os meninos ajudam, e eles ajudam em casa. (Pedagoga - Escola E).

Se ele já é maior é difícil criar esse hábito [de estudo] nele, e ele vai ficando desestimulado, ele começa a trabalhar, ganhar seu próprio dinheirinho, e ele se acha independente, não depende mais da mãe, do pai, da família, que não precisa estudar, porque teve gente que não estudou e se deu bem, porque tem muita gente que já estudou e está aí passando dificuldade, né, então exemplos eles têm muito, e com isso o menino acaba evadindo no final do ano. (Diretor - Escola D).

De outro lado, a vivência plural das culturas juvenis produzidas pela contemporaneidade e, principalmente, pelas novas formas de comunicação e diferentes temporalidades, que produziam, em consequência, novos modos de conhecer o mundo. Parece que a imbricação dessas duas dimensões, aparentemente paradoxais - de um lado, a vivência do rural, em certa medida tradicional, mas atravessada por condições precárias de vida e, de outro, a experiência de novas e diversas culturas juvenis, possibilitada, principalmente, pelo acesso e contato virtual com diferentes e contemporâneas formas de comunicação e culturas - pode contribuir para produzir também novos rurais e, mais ainda, diferentes experiências sociais e culturais do rural. É bastante provável que o global e o local (o rural) se mesclassem na vida desses jovens e adolescentes rurais e afetassem suas experiências escolares e de vida.

É porque aqui funciona, aqui o 6º ao 9º é à tarde, e muitos precisam trabalhar, e o serviço aqui é o que, é na roça, é pedreiro, então é igual [nome de um aluno de 13 anos], mais [nome de um aluno de 14 anos], todo ano eles começam [se matriculam na escola], mas depois param, “uai [nome da diretora], uai, eu preciso trabalhar, eu preciso ter meu dinheiro, eu preciso de comprar as coisas, se não trabalhar, não dá”. Então, assim, eu vejo é [...] eles param muito por isso. Porque não têm outra opção, eles precisam de trabalhar, não tem 6º ao 9º à noite. E ainda eles querem ter o celular deles, querem internet, essas coisas [...]. (Diretora - Escola B).

Embora o trabalho rural estivesse bastante presente na realidade dos estudantes, segundo o relato dos gestores, Carneiro e Castro (2007) alertam para cuidados ao se pensar em uma “juventude rural”. Segundo as autoras, é comum a associação com jovens agricultores ou trabalhadores que complementam a renda familiar, não dando ênfase a todo um contexto mais amplo no qual estão envolvidos. Elas chamam a atenção também para a diluição das fronteiras entre campo e cidade que afeta diretamente a vida desses adolescentes e jovens, porém com formas e intensidades distintas a depender das condições de vida às quais as famílias e os jovens estão submetidos. No entanto, parece que, mesmo diante de uma diluição de fronteiras entre o rural e o urbano, na percepção dos gestores, os problemas escolares dos adolescentes e jovens eram produzidos, em grande parte (mas não somente), pela associação desequilibrada entre estudo e trabalho. Sendo assim, esses estudantes provavelmente vivenciavam em seus quotidianos, ainda que de modo inconsciente, e, nem sempre totalmente visível, uma tensão produzida pelo desequilíbrio entre trabalho e estudo.

Além disso, parece que, na percepção dos diretores, havia também certa dissonância entre a cultura escolar e as culturas dos jovens:

Deixa eu falar por alto desse menino nosso [...] Ele trabalha, tem um horário de trabalho, seis até as onze, ele vai pra casa pra tomar banho, pra almoçar e vir pra escola, nossa escola começa meio-dia e meia, a aula dele. Então de onze até meio-dia e meia, ele tem sim um tempo, né? Pra fazer esses trabalhos escolares, banho, almoçar e ir pra escola, mas não sai do Facebook, vai pros joguinhos no celular, e outros. A gente manda buscar no dia de prova, ele não vem às vezes. (Diretora - Escola B, destaques nossos).

Ah [...] deixa eu ver. Eu acho que eles não interessam muito pela escola, sabe. Eles gostam de outras coisas... é até engraçado, eles gostam de cavalgada... aqui é bem comum, né [...] mas adoram um Facebook. Então a escola não tem muito sentido, não. Acho que pode ser por isso que parece que a escola sempre fica em segundo plano. (Diretora - Escola C).

Uma possível explicação para essa dissonância percebida pelos gestores, mesmo que hipotética, refere-se a um fenômeno já identificado em pesquisas francesas: uma forte inversão do padrão de reprodução cultural nas gerações mais jovens (DONNAT, 1994; PASQUIER, 2005). Os mecanismos, que antes asseguravam a reprodução social e cultural, vêm se enfraquecendo, e não são mais tão automáticos, pois as crianças originárias de diferentes grupos sociais têm se distanciado cada vez mais dos seus grupos culturais de origem.

Nessa perspectiva, o modelo da forte homologia entre universo cultural e meio social (BOURDIEU, 2008), entre o grau de escolaridade e as práticas culturais, não pode mais ser identificado, tão facilmente, nas famílias. Há, de fato, uma inversão dos padrões de reprodução, e as hierarquias culturais são muito mais elaboradas no interior dos grupos de pares do que por meio de uma transmissão vertical familiar (PASQUIER, 2005). Segundo Pasquier (2005), a mídia tem um destacado papel nesse processo de inversão dos padrões, porque os objetos culturais da juventude são agora definidos, principalmente, por seu grau de compartilhamento com os outros, ou seja, com os pares por meio das redes sociais e culturais (corporais ou virtuais). A cultura “dominante” jovem é definida pela “cultura comum”, pela “cultura popular”, ou seja, por aquilo que pode ser compartilhado com os outros jovens, na rua ou na escola, por exemplo. No Brasil, esse processo híbrido e complexo da construção das culturas juvenis na contemporaneidade também vem sendo estudado por pesquisadores como Dayrell (2007a, 2007b), Sposito, Souza e Silva (2018), Abramo (2008), Groppo (2016), entre outros.

Assim, parece razoável inferir que, na percepção dos gestores, o desinteresse de alguns adolescentes e jovens pela escola era produzido, ao menos em parte, pela distância entre seus gostos hibridamente construídos (cuidar dos animais, fazer a ordenha, participar de cavalgadas e, ao mesmo tempo, compartilhar de redes sociais na internet, e utilizar recursos de sociabilidade da web, ouvir música, etc.) e a cultura escolar com seus tempos, espaços, conteúdos e ordenamentos. Esse conjunto de fatores produzia, por sua vez, o fracasso escolar.

Fatores intraescolares

Um primeiro aspecto escolar apontado pelos gestores como relacionado à distorção idade-série dos estudantes diz respeito às dinâmicas sociais dos distritos e ao isolamento que também era vivenciado pelas escolas em sua relação com a administração do município. Assim, além de estarem imersas em condições sociais e econômicas frágeis, agravadas pelo forte isolamento geossocial das localidades, as próprias escolas sofriam com a distância material e, principalmente, simbólica entre a unidade escolar e a secretaria de educação do município.

Antes a gente tinha um transporte muito mais fácil, né? Tínhamos mais carros, né? Da própria frota, tinha mais carros de cooperados. Então quando a [...] quando reduziu o número de transporte, essa vinda das meninas [pedagogas da Secretaria de Educação] pra cá já ficou dificultada. Então a gente tem, sim, um apoio da Secretaria de Educação, só que ele foi reduzido. E às vezes eles cobram muito da gente, mas o apoio que dá é pouco, é escasso. Para você ver, quando precisamos falar lá [...] é uma dificuldade mesmo [...] o telefone não funciona direito [...] só por WhatsApp mesmo. Mas não é sempre que funciona também [...] a gente se sente um pouco abandonado [...]. (Diretor - Escola D).

Os diretores foram unânimes em relatar sobre as dificuldades de interlocução com a Secretaria de Educação do município, e as temáticas principais abordadas foram: a) dificuldade de comunicação; b) ausência de programas e projetos da secretaria direcionados especificamente para as escolas localizadas em distritos; c) forte cobrança por desempenho da escola em um contexto de pouco apoio para o desenvolvimento do trabalho educacional das escolas; d) morosidade da secretaria de educação em atender às demandas das escolas; e e) carência de uma política pública específica para as escolas rurais, sendo insuficiente a discussão, no âmbito da administração pública, sobre as especificidades da educação do campo e a implementação de uma perspectiva pedagógica apropriada e que considere as particularidades sociais e culturais dessas realidades. Além disso, a diretora da Escola E abordou o receio e a forte preocupação da comunidade local acerca da intenção da prefeitura de aplicar o modelo de nucleação8 e transferir os estudantes dos anos finais do ensino fundamental para uma instituição situada em um outro distrito. Ressalta-se que a entrevista foi realizada no segundo semestre de 2018 e, no ano de 2019, o processo de nucleação foi realmente efetivado, sendo desativadas as turmas dos anos finais do ensino fundamental na escola e os alunos transferidos para uma instituição escolar de um outro distrito, apesar dos protestos dos moradores e profissionais da escola.

Diante dos dados coletados, pode-se afirmar que os moradores das comunidades pesquisadas e, também, as escolas e seus profissionais estavam, em grande parte das vezes, totalmente isolados e invisíveis perante o sistema educacional que os agregava administrativamente. Essa realidade se contrastava com os documentos oficiais sobre a educação no campo (BRASIL, 2012), que deveriam orientar tanto a organização das escolas em áreas rurais quanto o desenvolvimento das ações do poder público. Destaca-se que, de acordo com essas orientações legais, as políticas para a educação em áreas rurais (ou “educação no campo”) precisam considerar os contextos territoriais específicos da localização das escolas, abarcando as características sociais, culturais e econômicas das localidades e suas populações. E é nessa perspectiva, afirmam Martins (2012) e Bicalho e Oliveira (2018), que a gestão escolar (na rede de ensino e nas unidades escolares) deveria se articular aos interesses da comunidade campesina e oportunizar, de modo efetivo, às crianças e aos jovens o direito à educação.

Na ótica dos gestores entrevistados, outro elemento explicativo diz respeito à forma como os estudantes vivenciam cotidianamente atividades culturais e sociais muito distantes do mundo escolar tradicional. Ou seja, na ótica dos gestores, as escolas nem sempre reconheciam como legítimos o ritmo, as temporalidades e os modos culturais da região onde estavam inseridas.

Nós temos aqui no dia 13 de dezembro o dia de Santa Luzia, então na comunidade é costume, eles vão para [nome de um subdistrito] aqui perto. Isso [...] então todo ano tem uma cavalgada pra lá [...] o menino não veio fazer prova de Matemática. Ele foi para cavalgada, ele gosta muito mais de cavalo do que da escola [...] faz parte da cultura da família também, né?! Então ele não veio fazer prova de Matemática, prova de recuperação, né? “[nome de um estudante do 7º ano], não vai não, você tem que ficar pra você fazer a recuperação”, “uai [...] azar”, ele falou e foi embora, não fez prova de recuperação [...] aí ficou em dependência [...] de novo! (Diretor - Escola D).

Os relatos indicam que as escolas (e, principalmente, o sistema de ensino ao qual estavam subordinadas) não ajustavam, ou aproximavam suas temporalidades, os calendários e currículos escolares às realidades nas quais estavam imersas. Os estudantes, por sua vez, não reconhecendo alguma vinculação entre a escola e sua vida cotidiana e, diante de uma tensão desequilibrada entre trabalho (na maioria das vezes, informal e precário), culturas cotidianas (ou lazer) e escola, se tornariam “predestinados” ao fracasso escolar, apresentando dificuldades - muitas vezes difusas e nem sempre totalmente visíveis aos professores e à escola - em seus processos de escolarização, ou para dar o sentido socialmente esperado à escola em suas vidas.

No entanto, os relatos dos gestores também indicam que as distâncias entre, de um lado, os tempos, espaços e os conteúdos das escolas e, de outro, as culturas dos estudantes rurais não se davam de modo homogêneo em relação às diversas famílias rurais usuárias da escola. Parece que, de acordo com a ótica dos gestores entrevistados, algumas famílias vivenciavam com mais força e de modo mais pungente esse distanciamento por experienciarem mais intensamente (nem sempre por opção) as características de uma cultural rural tradicional (“elas são mais rurais”), mesmo que elas estivessem imbricadas e dominadas por condições precárias de vida. Contudo, a presença de algumas contradições materiais e culturais foram relatadas pelos gestores, pois alguns jovens oriundos dessas famílias “mais rurais” tinham uma experiência desse rural tradicional e precário em seus contextos familiares associada a um contato com outros artefatos culturais, como o acesso às redes sociais e a uma sociabilidade virtual.

Já outras famílias pareciam ser mais afetadas pelas dinâmicas contemporâneas de um novo rural, muito mais híbrido e com características “rurbanas” (CARNEIRO; CASTRO, 2007). Essas famílias “menos rurais” provavelmente podiam lidar, de modo mais consonante ou menos tenso, com as lógicas escolares, e com as formas e funcionamento da escola. Podemos supor assim que essa menor tensão aconteceria porque as formas de socialização, e as temporalidades vivenciadas nas famílias, se aproximavam em alguma medida das lógicas escolares, possibilitando a elas estarem mais aptas (no sentido bourdiesiano) a se adaptarem ao mundo escolar.

Aqui na escola é meio a meio [...] a gente tem famílias que são da roça mesmo, que trabalham nas próprias propriedades, ou acho que a maioria trabalha para terceiros, mas sempre tem uma rocinha no terreno de casa. Geralmente eles moram em áreas mais distantes da comunidade, nesses aglomerados que te mostrei no mapa. Esses faltam muito às aulas, e tem esses casos, desses que somem um mês ou mais. E a outra metade é de alunos que moram por aqui por perto. E os pais trabalham no comércio daqui. Ou na cidade mesmo. Igual a mim mesmo. Eu moro aqui a vida inteira, mas fui para cidade, estudei [...] já não penso tanto com a cabeça da roça [...] apesar de que não quero nunca me mudar daqui, né. (Diretora - Escola I).

Olha, a gente tem dois tipos de família aqui na escola, aqui no distrito mesmo. A gente tem famílias que elas são mais rurais, sabe [...] elas vivem na roça, elas trabalham na terra, com gado, galinhas, essas coisas. Então o avô fazia isso, o pai faz e o menino também [...] é uma família tradicionalmente rural, sabe. Mas ao mesmo tempo essas famílias são muito pobres na maioria das vezes, têm muita precariedade de vida, os pais são analfabetos [...] é assim. Aí tem o outro tipo de família, que mora no distrito, mas vive a cidade, sabe [...] assim, eles têm um comércio, um armazém aqui, moram na região mais central da comunidade, uns trabalham em [nome da cidade] e vão e voltam todo o dia. Eles não são tão rurais, sabe. Igual a mim e a minha família. Eu moro aqui pertinho, me casei e continuei morando aqui. Mas estudei, fui pra cidade, voltei e fiquei trabalhando aqui, mas a visão é outra sabe [...] não sei bem explicar o porquê. (Diretora - Escola C, destaques nossos).

Outro fator apontado pelos gestores diz respeito à falta de estratégias utilizadas pela secretaria de educação e pelas escolas individualmente para minimizar os efeitos da situação de fracasso escolar dos estudantes e para oportunizar a eles as condições mínimas para prosseguir no percurso escolar. Dos cinco gestores entrevistados, apenas dois relataram a disponibilização na escola, por exemplo, de aulas de reforço escolar e atividades de apoio pedagógico. Mesmo assim, eles reconheceram a pouca efetividade dessas estratégias, porque os alunos que estavam em situação escolar mais frágil quase não compareciam a essas ações e, na maioria dos casos, não conseguiam superar as dificuldades impostas pelo “acúmulo de defasagens escolares”, pela “baixa expectativa” e pelas poucas condições que as escolas tinham para oferecer um “apoio escolar adequado”.

Nas outras escolas, segundo os diretores, não havia, à época das entrevistas, nenhum projeto específico de apoio escolar financiado/implantado pela Secretaria de Educação e destinado aos alunos que apresentavam distorção idade-série. Segundo eles, as escolas não tinham as condições mínimas para providenciar ações de reforço escolar (professor recuperador disponível e condições materiais, como merenda, material escolar, transporte para os alunos no horário extraclasse) e, na perspectiva deles/as, atividades de reforço escolar no contraturno são ineficazes, porque os alunos não teriam “interesse” e disponibilidade para comparecer a essas atividades, por causa de seus compromissos familiares e, principalmente, de trabalho.

Olha só, vou te falar, a gente tenta, faz aos trancos e barrancos projetos pra eles, reforço, né, pra tentar melhorar, diminuir o problema, mas eles não vêm de jeito nenhum. A gente às vezes vai na casa deles, conversa com os pais, mas eles não conseguem fazer o menino vir. Eles têm outros interesses, vão trabalhar, vão andar no distrito [...] eles andam muito por aí [...] E o pior é que quando eles vêm na aula, ficam mais fora da sala do que dentro. [Pesquisadora: Tem problemas de indisciplina?] Até que não, acredita? Eles não são indisciplinados, assim, de violência, de responder professor, nada disso não. Mas eles não ficam na sala, inventam desculpa, saem e demoram a voltar, essas coisas. Eles não gostam da escola não [...] é difícil para eles. (Diretora - Escola I, destaques nossos).

Ah [...] eu não vejo eles [alunos em defasagem escolar] como maus alunos não [...] o [aluno de 15 anos - 6º ano] por exemplo é muito inteligente. Ele resolve até problema de conserto aqui na escola, ele é muito bom em matemática. Mas não dá conta da escola, ele falta demais [...] sabe. E, também, não gosta de ficar na sala. Os professores às vezes perdem a paciência e mandam pra direção. Ele também inventa muito de sair da sala. Então esse menino vem em reforço? Vem em aula de reforço? Ah... não vem não. (Diretora - Escola E, destaques nossos).

A experiência de fracasso escolar de estudantes em territórios rurais parece ser tensionada em dois polos. Se temos, de um lado, a instituição escolar, submetida às precárias condições materiais e simbólicas de funcionamento, com condições extremamente limitadas para ofertar um ensino que possibilitasse a superação do fracasso escolar dos estudantes, temos, de outro, as famílias e os próprios estudantes vivenciando lógicas de socialização e de vivência do mundo bastante distantes do mundo escolar (THIN, 2006) e condicionados a uma vivência social e educacional marcada pelo fracasso que os distancia ainda mais desse mundo, posicionando- -os às margens. Além disso, o absenteísmo dos estudantes (“eles não vêm de jeito nenhum”) parece ter também uma dimensão dupla, similar ao que Millet e Thin (2005) nomeiam como “absences de l’interior”, ou seja, alguns alunos, mais tensionados pela distância entre a vida e a escola, utilizam “estratégias de ausência” no interior da escola, quase sempre inconscientes, revelando mais uma faceta perversa do fracasso escolar (“ficam mais fora da sala do que dentro”). Alguns alunos, na perspectiva dos sociólogos, somente estão presentes em aula (materialmente e emocionalmente), quando os constrangimentos escolares se tornam insuportáveis e eles se veem impelidos a tentar mostrar algum tipo de adesão (frágil) às ati- vidades da escola.

Os gestores também apontaram os comportamentos de indisciplina dos estudantes como um elemento que afetava, em suas perspectivas, o desempenho escolar. De fato, a literatura acadêmica tem comumente associado o fenômeno da indisciplina a questões como o desempenho escolar, o número de reprovações, a repetência e a distorção idade-série (MATOS; FERRÃO, 2016; SILVA; MATOS, 2104, 2017). Perguntados sobre a caracterização desses comportamentos dos estudantes e a que fatores eles poderiam estar associados, os diretores citaram termos como “agitado demais em sala de aula”, “mexe com colegas”, “responde ao professor” ou “fica andando demais”. Na maioria das vezes, esses comportamentos foram associados, pelos diretores, principalmente à ausência ou negligência da família na educação e no acompanhamento da vida escolar dos filhos.

Então, geralmente eu tenho quatro famílias aqui que nossa [...] os alunos [...] são assim terríveis! Mas não é que são terríveis né, é a família, que não tem diálogo, não tem [...] não tem nada em casa, ficam soltos, então assim [...] aí eu tenho muita dó! Eles são boas pessoas, mas não têm referência nenhuma de pai e mãe em casa. (Diretora - Escola E).

O pai de [nome de um aluno do 6º ano] eu não conheço ele ainda não, não conheço ele! Já chamei várias vezes, já liguei, já mandei bilhete, ah [...] várias coisas né, então assim, “eu não quero responsabilidade e pronto acabou”, entendeu? Mas o [nome do aluno] não quer saber de nada, fica andando o tempo todo na escola, mexe com os colegas, essas coisas de menino indisciplinado. Mas ele é bom, sabe [...] só fica desajustado por causa da família que não olha... a vida dele é difícil demais [...]. (Diretora - Escola H).

De fato, como ressalta Silva (2007), os professores tenderiam a imputar primordialmente às famílias dos estudantes as causas dos comportamentos de indisciplina que eles manifestam nas escolas, produzindo um discurso culpabilizador das famílias, especialmente daquelas de origem popular, sem considerar a multiplicidade dos fatores que vêm sendo associados ao fenômeno pela literatura acadêmica que se dedica a esse tema. Ressalta-se, porém, que embora os diretores percebam esses comportamentos dos estudantes na escola como “inadequados” ou “indisciplinados”, eles tendem a atenuá-los tendo em vista as características sociais e individuais dos estudantes, que são percebidos pelos gestores como “boas crianças”, de “bom coração”, ou como jovens em situação de grande vulnerabilidade familiar (“não tem referência de pai e mãe”, “vida muito difícil”).

Pode ser também que, pela imbricação das ausências reais e simbólicas desses alunos nos espaços escolares, em alguns casos, os gestores oscilam entre vê-los como indisciplinados ou apenas desinteressados. Parece que os gestores consideram os comportamentos de indisciplina dos estudantes como sendo pouco agressivos ou transgressores e não os percebem como “maus alunos”, mas como estudantes desinteressados, que não têm a escola como principal objetivo, ou seja, que “não dão conta da escola”.

DA DISTORÇÃO IDADE-SÉRIE ÀS RUPTURAS ESCOLARES

Conforme nos mostram Paixão e Mello (2006), algumas questões relevantes devem ser consideradas nos estudos sobre as desigualdades escolares quando da interpretação dos dados da pesquisa: “que categorias são construídas e utilizadas com frequência pela própria escola e pelos professores ao lidar com o tema da exclusão escolar? Que significados essas categorias assumem?”. Assim, “[...] o ponto de partida de um estudo sobre qualquer instituição é entender as categorias que foram construídas em seu interior, pelos sujeitos que a constituem” (PAIXÃO; MELLO, 2006, p. 3).

Acreditando nesse pressuposto, perguntamos também aos gestores escolares sobre como eles percebiam as diversas formas de exclusão e fracasso no interior da instituição escolar e como elas atingiam os estudantes. O conjunto das respostas dos gestores revelou seis grandes e polissêmicos conceitos já bastante conhecidos pelos estudiosos do tema, pelo poder público e pelos agentes educacionais nas suas diversas instâncias de atuação: repetência, atraso, evasão, abandono, infre- quência e indisciplina.

Nesse sentido, o que se destacou foi que, na ótica dos gestores entrevistados, os estudantes que estão em defasagem escolar tendem a vivenciar ao longo dos seus itinerários escolares muitas dessas situações que, imbricadas e associadas, produzem uma escolarização “muito vulnerável” ou “muito frágil”. Desse modo, embora os gestores tenham chamado a atenção para as inúmeras estratégias que o sistema escolar brasileiro vem desenvolvendo, principalmente nas últimas duas décadas, para que o aluno progrida no ensino fundamental sem interrupções (estudos autônomos, projetos de recuperação, dependência em disciplinas específicas, não retenção, progressão continuada, entre outras), os itinerários escolares de muitos estudantes das escolas rurais pesquisadas ainda são atravessados por múltiplas e complexas situa- ções e formas de insucesso, ou seja, por diversos e diferentes tipos de tensões ou rupturas com o escolar.

Desse modo, os relatos dos gestores apontam que a distorção idade-série é um fenômeno multifatorial que tende a ser vivenciado concomitantemente a um conjunto de diferentes situações de tensão ou ruptura com o escolar tal como o abandono, as reprovações, a indisciplina, a repetência, o absenteísmo, o desequilíbrio entre estudo e trabalho e a ausência de adesão ao mundo escolar. Essas situações, com menor ou maior incidência e mais ou menos visíveis na vida escolar de cada estudante, são bem mais complexas e abrangentes a ponto de serem abordadas exclusivamente pelo conceito de distorção idade-série. Antes, nossos dados evidenciam que a distorção idade-série, presente no percurso escolar dos estudantes, deve ser entendida como integrada a um conjunto complexo de “rupturas escolares” que, de forma diferenciada e em maior ou menor intensidade, afetam, indelevelmente, o itinerário escolar de jovens estudantes moradores de áreas rurais (MILLET; THIN, 2005).

Desse modo, pareceu-nos que o uso do conceito de distorção idade-série para se compreender a situação complexa e multifacetada de fracasso a que estão submetidos os estudantes dos meios rurais é limitado. Nesse sentido, por diversos motivos, propomos como possibilidade teórico-analítica que as investigações sociológicas sobre o tema possam incorporar em suas análises a noção de ruptures scoilares (rupturas escolares), cunhada por Millet e Thin (2005), em estudos sobre as desigualdades escolares na França. Na França, os termos déscolarisation (desescolarização) e décrochage (abandono dos estudos) têm sido usados amplamente para se referir aos variados tipos de comportamentos sociais/culturais/escolares que obstaculizam o fluxo da escolaridade (GLASMAN; OEUVRARD, 2004). No entanto, para Millet e Thin (2005), a utilização do termo ruptures scolaires é mais apropriado para o estudo das diversas situações envolvidas nos processos de exclusão escolar porque leva em consideração a associação e o hibridismo de vários fenômenos sociais e escolares que se conjugam nas diferentes situações de exclusão, incluindo aspectos mais internos desses fenômenos, como menor ou maior distância entre as culturas juvenis e o universo escolar ou as dissonâncias entre os projetos escolares e as expectativas dos estudantes.

Em primeiro lugar, porque essa noção de rupturas escolares tende a permitir que se pense o fenômeno da distorção idade-série sob um ponto de vista mais abrangente, que busque dar conta da natureza multifacetada e complexa do fracasso escolar, deixando que as suas diversas facetas internas possam emergir na interpretação e análise dos dados da pesquisa. O conceito de rupturas escolares permite analisar as diversas situações envolvidas nos processos de exclusão escolar, como as vivenciadas pelos estudantes das escolas rurais analisadas no âmbito deste estudo, porque leva em consideração a associação e o hibridismo de vários fenômenos sociais e escolares que se conjugam nas diferentes situações de exclusão, incluindo aspectos mais internos desses fenômenos, como menor ou maior distância entre as culturas juvenis e o universo escolar, o absenteísmo na escola e na sala de aula, o desequilíbrio entre estudo e trabalho ou as dissonâncias entre as exigências escolares e as expectativas dos estudantes e todos os demais aspectos abordados pelos gestores e discutidos ao longo deste texto.

Em segundo lugar, a noção de rupturas escolares permite compreender que, mesmo que os estudantes estejam matriculados nas escolas e dela não evadam, pequenos e, por vezes, embaçados processos de ruptura com a escola (“não ficam na sala”, “andam demais”, “não dão conta da escola”, “não adianta fazer reforço escolar”, “não fazem a prova”, “os pais não ajudam nada”) têm um peso na produção das experiências de fracasso escolar desses jovens e adolescentes. Ou seja, a noção “rupturas escolares” permite um descolamento da ideia de déscolarisation (GLASMAN; OEUVRARD, 2004), da associação entre fracasso e abandono ou evasão escolar, pois as rupturas podem acontecer mesmo no interior de um fluxo escolar relativamente estável, quando ocasionadas, como vimos, por situações de indisciplina, fraca adesão ao mundo escolar e forte tensão no processo de escolarização e na relação que os estudantes estabelecem com a escola, com o currículo e com os professores. Todas essas situações podem conduzir ou caminhar lado a lado à situação de defasagem idade-série e de exclusão vivenciadas pelos estudantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se contemplar o quadro geral da pesquisa e as análises apresentadas neste artigo, confirma-se a existência de altos índices de distorção idade-série nas escolas rurais pesquisadas.

Constatou-se também, com base nas percepções dos gestores escolares, que esses índices estariam relacionados principalmente a dois grandes tipos de fatores: os escolares e os extraescolares. Todos esses fatores se associariam e estariam articulados de algum modo às condições materiais e, principalmente, simbólicas de existência das famílias e ao forte isolamento geossocial ao qual eram submetidos os distritos, as famílias, os estudantes e as escolas. A existência de uma confluência de fatores intraescolares e extraescolares para explicar o insucesso educacional em determinados grupos sociais apresenta-se bastante consolidada nos estudos sociológicos brasileiros, como podemos constatar, por exemplo, em Soares e Andrade (2006), Bonamino, Aguiar e Viana (2012) e Soares et al. (2015).

A existência de uma grande distância entre a modalidade de oferta escolar (currículos, tempos e espaços escolares, incluindo o calendário oficial) e a realidade social e cultural vivenciada pelos estudantes em contextos rurais também foi apresentada pelos entrevistados. Ou seja, parece plausível pensar que, tendo em vista as informações coletadas junto aos gestores escolares, essa distância e a ausência de elaboração e implementação de uma política pública municipal para as escolas do campo que respeitem suas particularidades sociais e culturais contribuem para submeter as escolas e as famílias a uma situação vulnerável e de certa impotência diante das diversas modalidades de rupturas escolares e, especialmente, da distorção idade-série, tão presentes, e com fortes efeitos nos destinos escolares e sociais dos adolescentes e jovens rurais pesquisados.

Apontamos ainda para os limites do uso do conceito de distorção idade-série para se compreender as situações de insucesso a que estão submetidos os estudantes dos meios rurais, tendo em vista a natureza multifacetada e complexa do fenômeno do fracasso escolar. Como vimos, a distorção idade-série é um fenômeno multifacetado que tende a ser vivenciado concomitantemente a um conjunto de diferentes situações de ruptura com o escolar, como o abandono, as reprovações, a indisciplina, a repetência, o absenteísmo, o desequilíbrio entre estudo e trabalho e a ausência de adesão ao mundo escolar. Estamos diante de rupturas que produzem novas rupturas, produzindo um ciclo de exclusão escolar que impacta, indubitavelmente, a vida e o futuro dos jovens moradores de áreas rurais.

Certamente novos estudos deverão ser realizados com o objetivo de aprofundar a presente análise e ampliar os pontos de vista sobre o fenômeno. Essa constitui a tarefa de uma segunda pesquisa derivada desta investigação, ainda em processo de coleta de dados, e que tratará de analisar a perspectiva dos familiares dos adolescentes das cinco escolas pesquisadas sobre as experiências mais amplas de rupturas escolares dos jovens em distorção idade-série.

2Quando o estudante não acompanha o fluxo esperado no ensino fundamental (6 aos 14 anos - 1º ao 9º ano), considera-se uma situação de atraso escolar, denominada oficialmente como distorção ou defasagem idade-série. Essa distorção é calculada em anos e representa a diferença entre a idade do aluno e a idade recomendada para a série que ele está cursando. Se a diferença entre a idade do aluno e a prevista para a série é de dois anos ou mais, para o Estado, esse aluno encontra-se em situação de distorção ou defasagem escolar (BRASIL, 2019).

3Optamos por não divulgar os nomes do município e das escolas para preservar o anonimato dos gestores participantes da pesquisa.

4O processo de coleta, transcrição e tabulação dos dados das entrevistas e das visitas observacionais contou com a colaboração das estudantes de iniciação científica Estefany Gonçalves Maia e Ludimila Maria da Silva Reis.

5Até o momento da elaboração deste artigo, só estavam disponíveis no site do Inep os dados de distorção idade-série detalhados por série/ano do ensino fundamental referentes ao ano de 2016 (BRASIL, 2016). Para os demais anos, 2017, 2018 e 2019, foram divulgados somente os dados gerais das duas etapas (anos iniciais e finais).

6O Bolsa Família é um programa de transferência de renda do Governo Federal instituído em 9 de janeiro de 2004, pela Lei Federal n. 10.836, e consiste na ajuda financeira às famílias que tenham em sua composição gestantes e crianças ou adolescentes entre 0 e 17 anos e extremamente pobres. As famílias beneficiárias devem cumprir alguns compromissos (condicionalidades) que têm como objetivo reforçar o acesso à educação, à saúde e à assistência.

7O PRMIP é um programa municipal que tem como objetivo a oferta de apoio institucional aos núcleos familiares em situação de vulnerabilidade social, visando à capacitação das chefes de família, ao auxílio econômico para a erradicação da pobreza, à promoção da dignidade, do desenvolvimento humano sustentável e à reinserção no mercado de trabalho.

8O modelo da nucleação em escolas rurais se baseia na criação de escolas-polo e compreende o fechamento ou desativação das classes multisseriadas isoladas e o redirecionamento dos estudantes e professores para escolas maiores localizadas em outras localidades do meio rural ou em áreas urbanas, adotando-se, assim, predominantemente, o método seriado de organização das classes e a unidocência (BRASIL, 2012).

REFERÊNCIAS

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Recebido: 10 de Abril de 2020; Aceito: 24 de Março de 2022

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A pesquisa contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig).

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