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Estudos em Avaliação Educacional

versão impressa ISSN 0103-6831versão On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.33  São Paulo  2022  Epub 20-Ago-2022

https://doi.org/10.18222/eae.v33.7463 

Artigos

AVALIAÇÃO E MILITARIZAÇÃO DE ESCOLAS NO DISTRITO FEDERAL: RELAÇÕES E IMPLICAÇÕES

EVALUACIÓN Y MILITARIZACIÓN DE ESCUELAS EN EL DISTRITO FEDERAL: RELACIONES E IMPLICACIONES

EVALUATION AND MILITARIZATION OF SCHOOLS IN THE DISTRITO FEDERAL: RELATIONSHIPS AND IMPLICATIONS

ENíLVIA ROCHA MORATO SOARESI 
http://orcid.org/0000-0002-7405-2167

ROSE MEIRE DA SILVA E OLIVEIRAII 
http://orcid.org/0000-0001-6135-5268

ISecretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEE), Distrito Federal-DF, Brasil

IISecretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEE), Distrito Federal-DF, Brasil


RESUMO

Compreender o trabalho pedagógico e a avaliação desenvolvida em uma escola pública do Distrito Federal onde foi implantado o Projeto Escola de Gestão Compartilhada (modelo cívico-militar de organização escolar) e suas implicações para a conquista de aprendizagens constituem objetivos deste artigo. Delineado como estudo de caso e de abordagem qualitativa, para o levantamento de dados foram aplicados questionários e realizados grupos focais. As análises revelaram interesses que subjazem as políticas de responsabilização e controle hierárquico nas relações estabelecidas no contexto es- colar. Dissonâncias entre a proposta de militarização de escolas e a de organização escolar em ciclos também foram identificadas, entre elas, práticas avaliativas voltadas à subserviência e conformação dos sujeitos.

PALAVRAS-CHAVE TRABALHO PEDAGÓGICO AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO GESTÃO ESCOLAR.

RESUMEN

Comprender el trabajo pedagógico y la evaluación desarrollada en una escuela pública del Distrito Federal donde se implantó el Proyecto Escuela de Gestión Compartida (modelo cívico-militar de organización escolar) y sus implicaciones para la conquista de aprendizajes constituyen los objetivos del presente artículo. Delineado como estudio de caso y de abordaje cualitativo, para el levantamiento de datos se aplicaron cuestionarios y se realizaron grupos focales. Los análisis revelaron intereses que subyacen en las políticas de responsabilización y control jerárquico en las relaciones establecidas en el marco escolar. Disonancias entre la propuesta de militarización de escuelas y de organización escolar en ciclos también se identificaron, entre ellas, prácticas evaluativas volcadas al servilismo y a la conformación de los sujetos.

PALABRAS CLAVE TRABAJO PEDAGÓGICO EVALUACIÓN DE LA EDUCACIÓN GESTIÓN ESCOLAR.

ABSTRACT

The aim of this article is to understand the pedagogical work and the evaluation developed in a public school in the Distrito Federal [Federal District], where the Shared Management School Project (civic-military model of school organization) was implemented, as well as its implications for the mastery of learning. Designed as a case study with a qualitative approach, questionnaires were applied and focus groups were held to collect data. The analyses revealed interests that underlie policies of accountability and hierarchical control in the relationships established in the school context. Conflicts between the proposal of the militarization of schools and school organization in cycles were also identified; among them, evaluation practices aimed at the subservience and conformity of subjects.

KEYWORDS PEDAGOGICAL WORK EDUCATIONAL EVALUATION SCHOOL MANAGEMENT.

INTRODUÇÃO

Em seu segundo dia de governo como presidente da república, Jair Bolsonaro assinou o Decreto n. 9.665 da Casa Civil da Presidência da República de 2 de janeiro de 20191 (BRASIL, 2019a), que estabelece como competência da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC) “[...] promover, fomentar, acompanhar e avaliar, por meio de parcerias, a adoção por adesão do modelo de escolas cívico-militares nos sistemas de ensino municipais, estaduais e distrital”. Em atendimento ao estabelecido no referido decreto, o Governo do Distrito Federal (GDF) implantou, no início do ano letivo de 2019, em quatro escolas públicas, o projeto Escola de Gestão Compartilhada, por meio da Portaria Conjunta n. 1, de 31 de janeiro de 2019 (BRASÍLIA, 2019a), revogada pela Portaria Conjunta n. 9, de setembro de 2019 (BRASÍLIA, 2019b).

A decisão governamental trouxe o debate em torno da questão, incitando manifestações contrárias e favoráveis à inserção de policiais militares no âmbito das escolas. A polêmica se fortaleceu quando, em setembro de 2019, o Governo Federal lançou o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), que deve ser implementado em 216 instituições de ensino públicas de diferentes localidades do país até 2023, sendo 54 por ano, com início em 2020.

Segundo o Governo Federal, o Pecim contribuirá para a melhoria do ambiente escolar por meio da redução dos índices de violência. Os defensores da proposta pontuam que nas escolas que funcionam sob a tutela de militares há mais disciplina e, consequentemente, melhor qualidade do ensino. Tal argumento é utilizado comumente como justificativa para os altos índices alcançados pelos estudantes dessas escolas nos exames aplicados em larga escala.

Os discursos que rechaçam a ideia de militarização das escolas públicas transitam desde a falta de formação específica dos profissionais da segurança para um adequado envolvimento no trabalho educativo até o processo excludente implícito nessa proposta, uma vez que privilegia os que se adequam ou se ajustam ao rigor disciplinar imposto pelos policiais militares, excluindo os que a ele se opõem por diferentes motivos, entre eles, a influência no capital cultural e de suas famílias.

As ambiguidades e contradições presentes nesse cenário indicaram a necessidade de um trabalho investigativo que permitisse conhecer melhor esse modelo de organização das escolas. Considerou-se o aumento dos índices nos exames externos como argumento em defesa da proposta que, no Distrito Federal (DF), foi também critério de escolha das escolas que inicialmente implantariam o projeto, sendo essa avaliação destacada como principal objeto de análise.

O principal objetivo da pesquisa originária dessa comunicação é compreender o trabalho pedagógico, em especial, a prática avaliativa desenvolvida em uma escola do DF onde foi implementado o Projeto Gestão Compartilhada - nome dado à proposta que militariza as escolas públicas dessa localidade -, bem como entender as implicações desse modelo de organização para a conquista de aprendizagens pelos estudantes e por toda a escola.

Analisar a temática a partir de uma visão crítica das múltiplas variáveis que a determinam, considerando a objetividade do mundo real produzido histórica e socialmente como mediador das relações entre os indivíduos e a sociedade, demandou a definição da epistemologia dialética como base para a construção do estudo. Sua condução por meio de uma abordagem qualitativa e seu delineamento como estudo de caso também contribuíram para o alcance do propósito estabelecido.

Uma das primeiras quatro escolas do DF a implantarem o Projeto Gestão Compartilhada foi o locus da pesquisa. A instituição trabalha com estudantes do 3º ciclo para as aprendizagens,2 ou seja, do 6º ao 9º ano do ensino fundamental. A aplicação de questionários a pais e professores e a realização de grupos focais com os estudantes foram os procedimentos utilizados para o levantamento das informações, que passaram por análises em articulação com os documentos que tratam da implementação do modelo cívico-militar no DF e no Brasil e à luz das teorias que alicerçaram o estudo.

O MODELO CÍVICO-MILITAR NO DF

Antes do lançamento do Pecim pelo Governo Federal, o DF aderiu ao modelo cívico-militar, implementando, no início de 2019, o Projeto Escola de Gestão Compartilhada em quatro escolas públicas. No segundo semestre, o projeto estendeu-se a outras quatro escolas e, em 2020, a proposta foi implantada em outras 12 escolas. O objetivo é, até o final de 2022, militarizar um total de 40 escolas.

A proposta prevê uma parceria entre a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) e a Secretaria de Estado de Segurança Pública do Distrito Federal (SSPDF) e objetiva, por intermédio de ações conjuntas,

[...] proporcionar uma educação de qualidade, bem como construir estratégias voltadas à segurança comunitária e ao enfrentamento da violência no ambiente escolar, para promoção de uma cultura de paz e o pleno exercício da cidadania. (BRASÍLIA, 2019a, p. 1).

A militarização das escolas públicas do DF gerou, desde o início, diferentes reações da comunidade escolar, especialmente por parte daqueles diretamente envolvidos no processo: profissionais da educação, pais, mães, responsáveis e estudantes. Inquietações se acentuaram com a publicação da Portaria Conjunta n. 11, de 23 de outubro de 2019 (BRASÍLIA, 2019c), que aprovou o Manual do Aluno (BRASÍLIA, 2019d), o Regimento Escolar dos Colégios Cívico-Militares do Distrito Federal - CCMDF - (BRASÍLIA, 2019e), o Regulamento Disciplinar (BRASÍLIA, 2019f), o Regulamento Básico de Uniformes (BRASÍLIA, 2019g), o Plano Operacional (BRASÍLIA, 2019h) e o Manual das Escolas Cívico-Militares (BRASÍLIA, 2020). São documentos que institucionalizam a parceria entre professores e militares e servem como um guia para a atuação dos gestores das escolas que desenvolvem o Projeto de Gestão Compartilhada.

Entre as orientações contidas nesses documentos estão: medidas disciplinares (advertências, suspensões e transferências) apresentadas como penalidades de caráter educativo aplicadas mediante falta disciplinar (BRASÍLIA, 2019f, p. 5); faltas disciplinares classificadas em leve e média (BRASÍLIA, 2019f, p. 4); meritocracia apontada como princípio norteador do trabalho desenvolvido nas escolas (BRASÍLIA, 2019e, p. 5); fiscalização do cumprimento, pelo estudante, de prescrições relativas à apresentação individual no que se refere a uniforme, maquiagem, unhas, cabelo, acessórios e outros elementos (BRASÍLIA, 2019e, p. 19).

Sob o argumento de manter ou restabelecer a ordem e a disciplina nas escolas, a legalização de recursos opressores, via normativas, formaliza processos excludentes. A vivência de situações punitivas constitui, para muitos estudantes, humilhação capaz de gerar constrangimento e revolta ou aceitação e assunção mecânica de posturas, porque não são objeto de reflexão. Em ambos os casos, a escola trabalha na contramão do seu sentido de existir, inviabilizando processos educativos formadores de sujeitos críticos e conscientes. A contribuição da escola seria, nesse caso, ensinar que os conhecimentos por ela veiculados são restritos aos que se comportam conforme seus preceitos, contrariando a perspectiva inclusiva que deve alicerçar a educação pública.

Contradições presentes nesse cenário se estendem ao campo legal quando contrariam os pressupostos teóricos do Currículo em Movimento da Educação Básica do DF (BRASÍLIA, 2014a) e demais documentos orientadores do trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas públicas do DF. Tais escolas defendem uma perspectiva de formação voltada à integralidade dos sujeitos, valorizando o ser humano em suas múltiplas dimensões e, nesse bojo, a avaliação formativa como a que melhor atende a esses propósitos. Informações levantadas por meio deste estudo e apresentadas a seguir destacam essa e outras incoerências.

GESTÃO COMPARTILHADA: ACEITAÇÃO, INTERESSES E IMPLICACÕES NO TRABALHO PEDAGÓGICO

O projeto neoliberal de sociedade, que inclui, entre outras coisas, o fortalecimento do mercado pelas privatizações, conta com intervenções do Estado que, por meio de mecanismos de controle e regulação, se encarrega de promover o desmonte das instituições públicas. No entanto, movimentos de resistência a esse cenário, fortemente comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa, indicam a necessidade de que os aparatos utilizados para alardear a ineficiência das instituições públicas sejam sutis a ponto de parecerem alternativas promotoras de melhorias e, por isso, aceitos sem maiores questionamentos.

O Projeto Gestão Compartilhada parece exemplificar essa assertiva. A proposta tem a disciplina e a segurança dos estudantes como principais argumentos de defesa, que, uma vez asseguradas pelos militares, também garantiria a melhoria da qualida- de do ensino oferecido nas escolas. Nessa perspectiva, a escolha das primeiras escolas que implantariam o projeto teve, entre outros critérios, baixos Índice de Desen- volvimento da Educação Básica (Ideb) e Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e um elevado número de ocorrências criminais nas regiões das instituições de ensino.

Esses critérios podem, em parte, explicar a ampla aceitação do projeto, especialmente por parte dos pais/mães/responsáveis pelos estudantes:

Melhorou muito na educação de crianças problemáticas, consequentemente melhorou para meu filho. (Pai).

Foi o maior projeto que ganhamos para melhorar a educação e a disciplina de nossos filhos. Eles aprendem a amar a família e a pátria. Ter respeito e valores morais. Deve ser implantado em todas as escolas do DF. (Pai).

Não vejo prejuízos. Vejo contribuições. (Mãe).

Vejo que foi uma mudança muito positiva para a educação pública. (Mãe).

A militarização foi excepcional. Deveria ser estendida de forma geral para formar cidadão de bem. (Pai).

Em proporção bastante inferior e com menor entusiasmo, alguns professores e estudantes também declararam apoio ao projeto. Vale destacar, entretanto, que as mudanças apontadas pelos interlocutores, inclusive por pais/responsáveis, se limitaram a melhorias na segurança e na disciplina:

A violência diminuiu muito. Hoje eles respeitam os professores e os colegas e sabem cuidar e valorizar o Brasil. (Pai/mãe/responsável).

Meu filho hoje é um garoto disciplinado e com isso será um cidadão de boa índole que vai acrescentar coisas boas para o Brasil. (Pai/mãe/responsável).

O professor se sente mais seguro para desenvolver seu trabalho. (Professor).

Uma contribuição favorável para a comunidade escolar é a disciplina e o comportamento dos alunos. (Professora).

Única coisa que melhorou é que ano passado tinha muita briga, tinha às vezes muito furto dentro da sala de aula. (Estudante).

A única coisa que eu vejo é a segurança. (Estudante).

Quando entraram os policiais, a escola ficou mais comportada. (Estudante)

Em relação à aprendizagem, eu acho que ninguém melhorou, está a mesma coisa. (Estudante).

Considerando os critérios de baixo IDH e de alta incidência de ocorrências criminais para a escolha das primeiras escolas que implementariam o projeto, incluindo a pesquisada, é de se supor que a comunidade escolar vivenciava uma realidade que colocava em risco a própria vida de seus membros. O justo clamor popular por segurança que daí insurge, potencializado pela mídia sensacionalista que se ocupa de amedrontar até os mais destemidos, incita o apoio a medidas como a inserção de policiais militares nas escolas, a fim de lograr um ambiente pacífico. Evita-se, com isso, ir ao cerne da questão, induzindo à crença de que é possível estancar um sangramento sem tratar da ferida que o ocasiona.

Isso ocorre porque o necessário combate à violência que tem adentrado nossas escolas, dissociado de uma análise crítica da organização social que as comporta, serve apenas para desviar o olhar dos reais motivos que impulsionam condutas agressivas. Deixa-se, assim, de discutir as vertiginosas disparidades sociais que assolam nossa sociedade, incitando atos violentos e obstaculizando a difícil trajetória rumo à construção de uma escola que ensine a todos.

Sem desmerecer a importância de um ambiente ordeiro para o desenvolvimento das atividades escolares, chama atenção a inversão de ordem para o tratamento da problemática. Em vez de investir na construção de um projeto educativo que possibilite aos estudantes um ensino vivo, vinculado aos problemas e às questões que permeiam a realidade, visando a compreendê-la e nela atuar com criticidade e autonomia, esforços se voltam ao intento de modelar comportamentos que, assim, se mostram estereotipados porque impostos externa e autoritariamente. Esse entendimento compromete a função formativa emancipadora conferida à escola, incluindo a avaliação que pratica, substituindo-a pela preparação de sujeitos acríticos e subservientes, aptos a, no máximo, adaptarem-se ao meio social tal como ele se encontra.

Isso implica dizer que a violência escolar não se extingue por meio do pa- trulhamento coercitivo comumente exercido pelos profissionais militares. A conquista da disciplina necessária ao desenvolvimento do trabalho pedagógico e, em consequência, para a construção de aprendizagens emancipadoras, objetivo maior da escola, passa, necessariamente, pela vivência de relações éticas e democráticas asseguradas pela participação responsável e pelo respeito mútuo entre estudantes, professores e demais profissionais que nesse espaço atuam. Promover o diálogo reflexivo acerca das diferentes situações que acontecem diariamente na escola e fora dela, incluindo os atos que violam direitos e, por isso, constituem violência, é tarefa dos profissionais da educação e parte do processo formativo que a eles cabe conduzir.

Não se trata de abdicar da parceria com os profissionais da segurança no processo de escolarização, ao contrário, a articulação entre trabalhadores de diferentes áreas permite a socialização de conhecimentos e enriquece o debate sobre questões que podem promover melhorias nos diferentes setores. Fatores geradores de violência que extrapolam os muros escolares - como as profundas desigualdades econômicas, culturais e sociais que assolam nossa sociedade - devem compor essas análises, contribuindo para que educadores e militares exerçam, com maior consciência e criticidade, suas respectivas atribuições.

No que concerne ao propósito de, por meio do Projeto Gestão Compartilhada, aumentar os índices do Ideb, não foi possível identificar avanços, retrocessos ou permanências, uma vez que os resultados finais do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), realizado em 2019, não foram divulgados até o momento de produção deste trabalho. Não é de se duvidar, porém, que a inserção de policiais militares na escola aumentará o escore das escolas militarizadas nos testes em larga escala. No entanto, os caminhos trilhados rumo ao alcance desse propósito precisam ser conhecidos, debatidos e rechaçados quando pautados na exclusão dos insubmissos ao enquadramento em um modelo disciplinar que visa a igualar o inigualável.

Se considerada ainda a forte associação, feita pelos interlocutores, entre o projeto e o aumento da segurança e da disciplina, e não a melhorias no processo ensino-aprendizagem, pode-se supor que o pretenso aumento de resultados nos exames em larga escala, se conquistado, resultará de estratégias nem sempre associadas à construção de aprendizagens. Essas podem incluir o treino para testes, a premiação dos estudantes com notas mais altas e até mesmo fraudes, como a dispensa, no dia da prova, de estudantes com necessidades especiais ou com dificuldades de aprendizagem (RAVITCH, 2011).

Interlocutores contrários ou insatisfeitos com o projeto assim se posicionaram:

Os policiais ficam só sentados dando advertência... Só sabem dar advertência. Tem que ter critérios. Meu filho é revoltado com isso e meu marido fica nervoso com o que vê. Eu acompanho, levo todos os dias o meu filho. Sei o que acontece. (Pai/mãe/responsável).

Não houve ganho disciplinar em sala de aula. Os alunos não respeitam o espaço do professor em sala de aula. (Professor).

A gente não aprendeu a ser comportado, a gente aprendeu a ter medo deles. (Estudante).

Ano passado podia andar livre, com a blusa fora da calça, não precisava andar com a mão para trás. As meninas podiam vir de cabelo solto e agora não pode. Tem que estar de coque ou cabelo preso. Não pode brinco muito grande e o colar também tem que colocar para dentro da blusa. (Estudante).

Nós queremos que a gestão compartilhada saia. (Estudante).

Mesmo entre os apoiadores do projeto houve quem apontasse aspectos que precisam ser observados para que o projeto se desenvolva a contento:

Precisa melhorar o tom autoritário, ter mais manejo com os nossos filhos. (Pai/mãe/responsável).

É preciso que, ao dar as advertências, seja melhor explicado o motivo. Que essa disciplina não seja só pelo lado da pressão, mas que seja conquistada no dia a dia, pelo respeito, buscando formas alternativas de melhorar esse convívio. (Pai/mãe/responsável).

Deveriam consultar mais os alunos [sobre o projeto]. (Pai/mãe/res- ponsável).

Poderia ter policiais dentro da escola, mas sem ficar mandando em nada. Sem ter esse negócio de ordem unida,3 cantar hino nacional. (Estudante).

Eu acho que se eles tratassem a gente normal aí seria melhor. Se conversassem, tipo, na boa, dialogassem melhor, aí acho que melhoraria. (Estudante).

Se os alunos tivessem voz, aí [o projeto] traria melhoria para muitas coisas, muitas coisas, seria uma das melhores escolas de Brasília. (Estudante).

Os depoimentos sinalizam haver insuficiência ou mesmo inexistência de diálogo entre estudantes e policiais militares, o que denota uma imposição autoritária e repressora de comportamentos considerados inaceitáveis. Quando obtida, a disciplina que nesses moldes se produz não garante a redução de atos violentos. Por não se assentar em bases sólidas, torna-se aparente, artificializada e propensa a voltar ao “normal” ou à indisciplina em situações nas quais a vigília se mostrar menos ostensiva. É bastante comum a reincidência da violação de regras por sujeitos que foram anteriormente punidos (GUIMARÃES, 2017). Posicionamentos como os a seguir reforçam esse pressuposto:

Eles [os policiais] começaram a avaliar a nossa aparência, mas eu discordo que o comportamento tenha mudado porque, tipo, mudou só o fato da gente ter que fazer ordem unida, essas coisas, servir mais à pátria. (Estudante).

Eu não concordo que os alunos tenham mudado. As atitudes continuaram as mesmas, quem quer atrapalhar a aula vai atrapalhar, quem quer estudar vai estudar, continua a mesma coisa. (Estudante).

Algumas pessoas, algumas meninas, prendem o cabelo na hora da formação e quando chega na sala solta. (Estudante).

Quanto ao valor das contribuições dos estudantes para o debate a respeito da educação a eles oferecida e do envolvimento desse segmento em espaços avaliativos, Rudduck e Flutter nos lembram que:

Para controlar la mejora escolar, tenemos que ver los centros desde la perspectiva de los alumnos y eso supone sintonizar con sus experiencias e ideas y crear un nuevo papel para ellos como participantes activos en su propio aprendizaje. (2007, p. 107).

Dar voz a sujeitos comumente emudecidos pela aceitação tácita de que a ausência de determinados conhecimentos significa ignorância, transformando o potencial criativo dos múltiplos saberes em impossibilidade (ESTEBAN, 2002) pode ser a oportunidade de refletir e explorar as contradições no âmbito da escola e reforçar possibilidades de construir uma educação que atenda a todos.

Isso implica dizer que a avaliação materializada em contextos onde predominam relações de poder, domínio, repressão e controle sobre pensamentos e corpos se apresenta privada de requisitos básicos que caracterizam uma educação voltada à formação integral dos sujeitos. Espaços coletivos de participação democrática, que oportunizem a escuta respeitosa e ética dos sujeitos participantes, bem como a reflexão e o diálogo parceiro acerca do trabalho desenvolvido, favorecem aprendizagens que conduzem ao pensamento crítico e autônomo, viabilizador do exercício pleno da cidadania. Destaca-se, nesse processo, a assunção, pelos diferentes atores, das responsabilidades que lhes cabem e pelas quais interessa lutar, incluindo a disciplina necessária ao ambiente escolar e social.

Em direção contrária, o tratamento autoritário e impositivo dispensado aos estudantes pelos policiais militares propicia aprendizagens que se aproximam, em grande medida, de uma formação voltada à conformação e à subserviência ao que está posto. A aceitação da realidade como uma fatalidade se agiganta em decorrência de tais aprendizagens, sendo a avaliação posta a serviço da intimidação e da coação dos sujeitos.

Debelar tais representações envolve processos formativos que permitam compreender a realidade como resultante de um processo social e historicamente construído pelo homem e que, por isso, pode ser modificada uma vez que, embora condicionada, não se mostra determinada pelo meio social em que se encontra. Da mesma forma, as implicações decorrentes de uma sociedade dividida em classes formadas de acordo com o capital que acumulam, alimentam desigualdades que limitam substancialmente as oportunidades a partir das quais são construídas as diferentes existências humanas, particularmente as dos mais pobres. Planejar e replanejar um trabalho que contrarie essa lógica demanda processos avaliativos-reflexivos permanentes, fazendo do par dialético avaliação/formação um todo indissociável e dinâmico.

Trata-se de uma caminhada que contraria a lógica neoliberal que sustenta o discurso hegemônico de culpabilização dos estudantes e de suas famílias por condutas que se desviam dos padrões considerados normais ou mesmo ideais. Requer, portanto, o enfrentamento de dificuldades que, se não compreendidas como desafios suscetíveis a superação, podem conduzir à aceitação passiva de decisões que, em vez de contribuírem para efetivas mudanças na qualidade social do trabalho pedagógico, reforçam desigualdades e excluem os menos favorecidos social e culturalmente.

A GESTÃO COMPARTILHADA E A ESCOLA ORGANIZADA EM CICLOS: A AVALIAÇÃO EM FOCO

O aumento da qualidade do ensino legitimado pela Gestão Compartilhada apoia-se em estratégias organizadas na lógica militar de enfrentamento da violência e superação da indisciplina no contexto escolar. Para isso, regula e coíbe atitudes dos estudantes que não condizem com as regras comportamentais estabelecidas, com consequências punitivas que revelam um ambiente educativo hierárquico e excludente, incluindo as práticas avaliativas que se desenvolvem nesse contexto. De forma antagônica, a organização escolar em ciclos, prevista nas Diretrizes Pedagógicas para Organização Escolar do 3º Ciclo para as Aprendizagens (BRASÍLIA, 2014b), pressupõe a ruptura de tempos/espaços lineares, com a adoção de estratégias pedagógicas e avaliativas diferenciadas, visando a atender às peculiaridades e aos diferentes ritmos de aprendizagem dos estudantes. Essa organização contraria a padronização de atitudes e comportamentos dos sujeitos envolvidos no processo formativo, especialmente quando unilateralmente imposta, uma vez que retira deles a autonomia necessária ao desenvolvimento de um trabalho educativo criativo e inovador. Há, portanto, uma dissonância entre os dois projetos, seja na forma de conceber, seja no modo de lidar com a formação escolar.

Outro importante desafio da escola organizada em ciclos “[...] consiste em superar o ensino fragmentado, criando experiências educativas que possibilitem a aprendizagem, a inclusão e o compromisso com a mudança de relações assimétricas de poder” (BRASÍLIA, 2014b, p. 9, grifo nosso). Ambientes institucionais de sujeição, que excluem, segregam e impedem o bem-estar de grande parte dos estudantes - como indicou ser o modelo de organização cívico-militar implementado na escola pesquisada -, inviabilizam práticas pedagógicas que colocam esse segmento em condição de paridade com os demais envolvidos no trabalho pedagógico desenvolvido na escola e em sala de aula.

A gestão democrática4 constitui, assim, elemento que alicerça o trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas que se organizam em ciclos. Gerir democraticamente pressupõe garantir a ampla e efetiva participação de todos os envolvidos no processo educativo, visando a garantir a todos o direito de aprender. A avaliação permeia todo esse processo jogando luz sobre o caminho trilhado e apontando os rumos a seguir.

É, portanto, de responsabilidade e competência dos profissionais da educação, junto com a comunidade escolar, planejar, desenvolver e avaliar continuamente o trabalho pedagógico objetivado pelo coletivo. O combate à violência e à indisciplina, que dificultam a conquista e o progresso contínuo de novas aprendizagens, deve compor o projeto construído por esses sujeitos, contemplando propostas concretas que venham a auxiliar o ensino que se pretende efetivar. Ele próprio é o principal meio para que comportamentos facilitadores da construção de aprendizagens componham o cenário escolar. O movimento dialético aí implícito incide sobre os projetos pessoais e sobre o projeto de sociedade que, mediados pelo projeto escolar, garantem ganhos em todas essas instâncias.

Por permitir impulsionar as aprendizagens e o desenvolvimento de todos, a avaliação ocupa centralidade nesse cenário, sendo, para isso, imprescindível que sua prática seja guiada por propósitos formativos. Essa concepção avaliativa não foi observada nas falas de parte significativa dos interlocutores da pesquisa:

Avaliar, pra mim, é medir a qualidade de alguma coisa. (Estudante).

Avaliar alguma coisa é quando você dá a nota a alguma coisa, quando você fala sobre algo né... Algum produto, alguma coisa, a qualidade. (Estudante).

É a verificação da aprendizagem do aluno diante daquilo que foi ensinado, por meios diversos. (Professor).

O desenvolvimento do conteúdo passado. (Professora).

Forma de mensurar o desenvolvimento e o aprendizado dos estudantes no decorrer do ano. (Professora).

Diagnosticar se houve ou não aquisição de conhecimentos dos conteúdos ministrados. (Professor).

Forma de colocarmos pontos positivos ou negativos de um serviço, de algo que nos foi oferecido. (Mãe).

Obter conhecimento referente ao que foi proposto a fim de saber resultados. (Mãe).

Classificação do que é bom ou não. (Pai).

Os depoimentos sugerem um caráter pontual e definitivo da avaliação, o que a destitui de sua condição mobilizadora de ações em favor de melhorias no trabalho pedagógico e nas aprendizagens que seriam favorecidas por ele. Não sinalizam a existência de movimento a partir da realidade avaliada, limitando-se a constatá-la, posicionar-se diante dela e, em alguns casos, atribuir-lhe algum valor. Assim compreendida, a avaliação se torna inócua, constituindo apenas um balanço do trabalho realizado a fim de classificá-lo em função dos resultados obtidos. A provisoriedade que caracteriza esse processo deixa sem o devido proveito percepções capazes de impulsionar mudanças positivas e tende a ser desvalorizada e desacreditada, uma vez que pouco ou nada serve ao trabalho escolar e aos que dele participam.

Em uma perspectiva formativa, a avaliação do real e o planejamento que se constrói a partir dele se articulam em um movimento dialético que os une em propósitos e em compromisso com a construção de uma escola democrática, em respeito tanto ao ensino que ministra quanto à aprendizagem dos saberes que veicula. Apropriar- -se da realidade escolar é importante, porém não basta. As informações levantadas por meio de diferentes práticas avaliativas devem fundamentar a tomada de decisões que, devidamente planejadas e permanentemente avaliadas, impulsionam avanços. É essa dinâmica, característica da avaliação formativa, que deve marcar o trabalho desenvolvido nas escolas.

Tais concepções avaliativas, como percebido na escola investigada, caminham em sentido inverso, mostrando-se discricionárias e classificatórias e, por isso, precisam ser analisadas, discutidas e revistas pela comunidade escolar. Para Hoffman (2005), as concepções e práticas docentes não são isoladas do seu contexto profissional, pois sofrem influências decisivas das instituições onde trabalham. Ainda segundo a autora, as práticas avaliativas revelam a proposta pedagógica adotada pelo docente, as relações de trabalho definidas pela escola e o tipo de hierarquia e de poder construídos. A maneira como um professor expôs seu modo de avaliar, a partir da implantação do Projeto de Gestão Compartilhada, ilustra bem essa assertiva: “Agora a gente se sente seguro para poder reprovar, aprovar, punir com mais liberdade”.

A afirmativa denota o poder que a avaliação outorga ao professor que, percebendo-se assegurado por ações coercitivas advindas das medidas punitivas previstas no projeto Gestão Compartilhada, sente-se suficientemente seguro para colocar a avaliação na contramão do direito de aprender. Essa forma equivocada de conceber a avaliação se opõe à defesa da avaliação formativa presente nas Diretrizes Peda- gógicas do 3º Ciclo para as Aprendizagens (BRASÍLIA, 2014b) e nas Diretrizes de Avaliação Educacional (BRASÍLIA, 2017). Além disso, reforça políticas de responsabilização e de controle hierárquico nas relações estabelecidas no contexto escolar. Declarações dos professores sobre a organização escolar em ciclos também sugerem fragilidade conceitual da avaliação:

O problema aqui não é a militarização e sim os ciclos. (Professor).

Só vamos ver mudanças significativas quando acabar com esse sistema de ciclos que só perpetua a falta de interesse dos alunos no aprendizado. Alunos sendo promovidos sem condições porque o sistema permite é revoltante. (Professora).

A questão do ciclo que está prejudicando e muito a educação dos alunos, mas estamos presos. (Professora).

Vamos acabar com os ciclos. Não pode um aluno indisciplinado ser aprovado sempre. (Professor).

O ciclo é um prejuízo para o ensino. (Professora).

Embora conceitualmente distintos, escola em ciclos e avaliação formativa não se dissociam. Eles coexistem, articulando-se em um movimento que possibilita a progressão contínua das aprendizagens. Posicionamentos como os que entendem a avaliação como um meio de “[...] ver se uma coisa está boa, se está certa” (estudante) e os que elegem a reprovação como meio de pressionar os estudantes à disciplina e ao estudo permitem inferir que os ciclos ainda não são, de fato, uma realidade na escola sede da pesquisa. São incompreensões dessa natureza que mantêm vivos argumentos falaciosos de que a avaliação classificatória, presente em algum momento na escola organizada em séries, é capaz de garantir a qualidade do ensino. Ledo engano. A reprovação consegue, no máximo, camuflar a baixa qualidade do ensino ao permitir excluir os que não atendem ao requerido pela escola no tempo por ela determinado. Os ciclos apenas denunciam quando expõem essa baixa qualidade (JACOMINI, 2010).

O pressuposto de que a progressão continuada das aprendizagens, princípio basilar da organização do ensino em ciclos e parceira inseparável da avaliação formativa, ainda não foi bem compreendido pela escola colaboradora do estudo pode ser evidenciado pelos dados da Tabela 1.

TABELA 1 Comparativo de estudantes aprovados (Ap.) e reprovados (Rep.) nos anos letivos de 20185 e 2019 

TOTAL DE ESTUDANTES APROVADOS E REPROVADOS
Ano letivo Ano de escolaridade
6º ano6 7º ano 8º ano 9º ano
Ap. Rep. Ap. Rep. Ap. Rep. Ap. Rep.
2018 81% 4% 78% 17% 88% 3% 68% 21%
2019 79% - 59% 21% 90% - 60% 29%

Fonte: Elaboração das autoras a partir dos dados do fluxo escolar obtidos pela Coordenação Regional de Ensino/SEEDF em fevereiro de 2020.

O alto e por vezes crescente percentual de reprovações ocorridas nos 7º e 9º anos, quando as retenções por motivos de não aprendizagem são permitidas, constitui indício de que a progressão continuada das aprendizagens parece estar sendo confundida com a progressão automática, que elimina reprovações, mas não garante aprendizagens. Nesse caso, a classificação e a exclusão de estudantes são apenas adiadas para o momento oportuno. Se a escola não se ocupar disso, a sociedade o fará.

Os índices de transferência e evasão7 da escola pesquisada, nos anos letivos de 2018 e 2019, apresentados na Tabela 2, também reforçam a necessidade de que a escola revise suas práticas avaliativas que, ao que parece, não estão sendo sempre voltadas à inclusão.

TABELA 2 Índices de estudantes transferidos e evadidos nos anos letivos de 2018 e 2019 

TOTAL DE ESTUDANTES TRANSFERIDOS E EVADIDOS
Ano letivo Ano de escolaridade
6º ano 7º ano 8º ano 9º ano
2018 15% 5% 9% 11%
2019 21% 20% 10% 11%

Fonte: Elaboração das autoras a partir dos dados do fluxo escolar obtidos pela Coordenação Regional de Ensino/SEEDF em fevereiro de 2020.

Embora não se possa atribuir unicamente ao projeto Gestão Compartilhada o abrupto aumento dos índices de transferência e evasão de estudantes no ano em que ele foi implantado, pode-se pressupor que o alegado propósito de melhorar a qualidade de ensino e, consequentemente, o desempenho dos estudantes, não foi alcançado. Indícios da rejeição dos estudantes ao Projeto foram percebidos no diálogo a seguir:

Estudante A: Pra mim era melhor ano passado, porque, tipo, a gente não tinha um uniforme para seguir, só a blusa. As pessoas podiam ir com a calça que elas quisessem, do jeito que elas quisessem: calça ou até de short e tal.

Estudante B: Sinceramente, na minha opinião, eu acho isso completamente desnecessário porque, tipo, para que ter que vir com blusa para dentro da calça e não poder vir com calça rasgada se isso não vai mudar em nada nos meus estudos?

Estudante C: Pois é, uma interferência completa.

Os depoimentos indicam que o trabalho pedagógico desenvolvido nesse contexto segue pautado por concepções seletivas de educação que privilegiam os que se enquadram nas normas unilateralmente estabelecidas e, por isso, conquistam o direito de permanecer na escola. Marcas identitárias parecem ser, no contexto pesquisado, compreendidas como rebeldias que devem ser coibidas por meio de ameaças e punições. Subjetividades são assim desconsideradas numa tentativa de invisibilizá-las ou até mesmo excluí-las. O objetivo é a padronização de condutas que se sustenta no entendimento equivocado de disciplina, ordem e respeito, criminalizando estudantes oriundos de localidades carentes e silenciando vozes capazes de denunciar as injustas disparidades sociais e exigir o acesso a direitos que lhes são legalmente assegurados.

Nessa lógica, os estudantes transferidos ou que abandonaram a escola são a materialização da “[...] segregação social dos indesejáveis” (FREITAS, 2018, p. 117), ou seja, são aqueles que se opõem ou não se adaptam às regras impostas pelos dirigentes militares e pelos profissionais da educação. Esses, por sua vez, contribuem de forma acrítica para essa segregação, por diferentes meios, entre eles, pelo uso de práticas avaliativas punitivas, desencorajadoras e, portanto, perversas. O projeto Gestão Compartilhada estende esse modo de avaliar ao segmento dos militares, complexificando negativamente esse processo, conforme exposto a seguir.

AVALIAR PARA FORMAR OU PARA CONFORMAR?

Se dissociada do sentido formativo, a avaliação é comumente relacionada a poder. Quando acontece no campo educacional, diz-se que o poder da avaliação está centrado no avaliador que, na maioria das vezes, é o professor ou um dos demais profissionais da educação que atuam na escola, responsáveis por decidir sobre o destino escolar dos estudantes. No caso das escolas adotantes do modelo cívico-militar - no caso do DF, as que desenvolvem o projeto Gestão Compartilhada -, esse poder estende-se a policiais militares que dividem a gestão da escola com os profissionais da educação nos cargos de diretor e vice-diretor pedagógico-administrativo. Esse pressuposto foi confirmado por estudante:

Ué, no ano passado a gente não era avaliado, ou melhor, a gente era avaliado só pelos professores e às vezes pelos coordenadores. Esse ano a gente agora é avaliado por militares também. Aí eles cobram que a gente seja do jeito que eles querem. (Estudante).

Segundo o Regulamento Disciplinar dos Colégios Cívico-Militares do Distrito Federal da Rede Pública de Ensino (BRASÍLIA, 2019f, p. 15), a avaliação praticada por esses gestores segue critérios de classificação definidos por grau numérico, organizados como no Quadro 1.

QUADRO 1 Critérios de classificação por grau numérico 

I Excepcional Grau 10
II Ótimo Grau 9 a 9,99
III Bom Grau 7 a 8,99
IV Regular Grau 5 a 6,99
V Insuficiente Grau 2 a 4,99
VI Incompatível Grau Abaixo de 2

Fonte: Regulamento Disciplinar dos Colégios Cívico-Militares da Rede Pública de Ensino do DF (BRASÍLIA, 2019f).

Ao se matricular pela primeira vez na escola, o estudante é classificado como “Bom” e recebe o grau numérico 8 (oito). As medidas disciplinares passam, então, a ser computadas por meio de abatimento de valores numéricos, como mostrado no Quadro 2.8

QUADRO 2 Medidas disciplinares 

I Advertência oral - 0,1
II Advertência escrita - 0,3
III Suspensão - 0,5 por dia
IV Ação educativa - 1

Fonte: Regulamento Disciplinar dos Colégios Cívico-Militares da Rede Pública de Ensino do DF (BRASÍLIA, 2019f).

Elogios9 também são valorados (Quadro 3), podendo influir positivamente no cômputo do grau, uma vez que “[...] constituem fatores de melhoria de comportamento” (BRASÍLIA, 2019f, p. 16).

QUADRO 3 Elogios 

I Elogio individual + 0,5
II Elogio coletivo + 0,3

Fonte: Regulamento Disciplinar dos Colégios Cívico-Militares da Rede Pública de Ensino do DF (BRASÍLIA, 2019f).

Não há, no documento, indícios de que esses valores interfiram nas notas bimestrais, fato que foi confirmado pelos estudantes. Chama atenção, no entanto, a inversão de ordem para o tratamento de questões disciplinares por parte da SEEDF. Em vez de investir em políticas de cunho pedagógico capazes de, por meio da melhoria da qualidade da educação, minimizar ou, quem sabe, eliminar a violência e a indisciplina no âmbito das escolas, estabelecem normativas que forjam comportamentos arbitrários e contrários à vontade dos estudantes, obtendo, quando muito, uma disciplina falseada, porque imposta por meio de medidas coercitivas. A pedagogia comportamental fundamentada no modelo “estímulo-resposta”, de concepção tecnicista, que predominou na ditadura militar, aparenta estar de volta por meio do projeto Gestão Compartilhada.

Além disso, a subjetividade inerente aos processos avaliativos, que faz deles “[...] uma utopia promissora” (HADJI, 2001, p. 20), traz sérios riscos a práticas que pontuam, punem e premiam. Qual seria uma atividade digna de elogio? O que caracteriza um estudante bem-comportado? Como definir a gravidade de um comportamento cujo autor mereça ser advertido, suspenso ou transferido? Os estudantes puderam confirmar o quão discricionários podem ser os juízos de valor:

Estudante A: Porque tem punições que eu fico de cara, assim... Outro dia, nossa, tipo assim, todo mundo sai de sala de aula quando bate o sinal para troca de professores, todo mundo. Aí um menino foi sair de sala de aula e levou advertência, não entendi porque essa punição sendo que todo mundo sai e só ele que levou.

Estudante B: A questão é que eles estão tentando punir todo mundo, porém são muitos alunos, não tem como eles punirem todo mundo.

Estudante A: Eles vão punir o que eles virem, o que eles virem que saíram eles vão punir. Porque eles já falaram que não é para sair de sala.

Estudante C: Fora que todos eles têm um caderninho e anotam o nome de quem eles viram, então se o nome tá lá, uma hora ou outra, o policial vai chegar.

As falas expressam arbitrariedades que incidem sobre as avaliações, especialmente quando movidas pelo propósito de controlar, vigiar e punir, tornando-as perversas porque capazes de selecionar e excluir. O entendimento de que a função formativa da avaliação está na intenção do avaliador (HADJI, 2001) é defendido nas Diretrizes de Avaliação (BRASÍLIA, 2017) e ajuda a explicar essa distorção. Quando o objetivo está no desejo de contribuir para o progresso, não de notas, mas das aprendizagens, a avaliação toma outra direção e a subjetividade a ela inerente ganha a possibilidade de ser menos injusta, uma vez que as providências tomadas a partir de então são guiadas por intenções construtivas.

Ao abordar as punições como meio de modelar comportamentos, Guimarães (2017) alerta para as “regras dos efeitos colaterais”, ou seja, para os desdobramentos da punição sobre os que não cometeram falta, para os quais serve como exemplo dos comportamentos que devem ser evitados. Ainda segundo a autora, a ameaça de extensão da punição aos não infratores é capaz de conduzi-los à delação que, desse modo, ganha status de mérito, uma vez que contribui para a retomada da normalidade. Soares (2019, p. 31-32) assim se posiciona a esse respeito:

O sistema de gratificação-sanção que se percebe em situações dessa natureza tende a colocar a avaliação a serviço da recompensa ou da penalização dos estudantes [...], distanciando-a de seu papel de auxiliar a conquista de saberes que conferem aos sujeitos a condição de pensar e agir autonomamente.

Punir e premiar visando a padronizar comportamentos constitui, portanto, um modo equivocado de compreender e atuar com o objetivo de solucionar problemas disciplinares ocorridos nas escolas. O disciplinamento subjacente a esse modo de avaliar, embora não violento corporalmente e imperceptível visualmente, mostra-se intenso e amplo (ESTEBAN, 2002), uma vez que envolve relações de poder, demonstração de força e estabelecimento da verdade viabilizada pelo controle e “[...] vigilância que permite qualificar, classificar e punir” (FOUCAULT, 2014, p. 181).

Pautado pelo ideal neoliberal de responsabilização unilateral dos sujeitos pelas faltas cometidas, esse entendimento tende a eximir professores e demais profissionais de reverem e retomarem suas práticas, uma vez que depende unicamente dos estudantes e, no máximo, de suas famílias modificar e adequar seus comportamentos ao que lhes é exigido. A fala a seguir reforça esse pressuposto:

Por que o homem passa na lombada eletrônica devagar? Porque existe a punição. A escola não pune [referindo-se à reprovação] e quando o professor exige mais, os pais reclamam. Muitos pais são coniventes com a preguiça de seus filhos. (Professora).

A professora depoente parece não se perceber como parte do processo educativo. Não lhe parece coerente a ideia de que a indisciplina é parte de um contexto do qual seu trabalho faz parte e sobre o qual ela também tem responsabilidade. Isso sugere um distanciamento de ideais formativos emancipadores. Cabe aqui questionar: como ser um “bom aluno” ou um aluno “bem-comportado” quando as aulas são cansativas e desinteressantes e os conteúdos desprovidos de sentido?

A construção de um ambiente pacífico e favorável à construção de aprendizagens é uma tarefa coletiva. Estudantes e seus familiares, professores e demais profissionais que atuam na escola devem, juntos, encontrar caminhos nessa direção. A autoavaliação é apontada por Soares (2019) como alternativa que permite o alcance desse propósito. Segundo a mesma autora, a (auto)análise crítica e conjunta dos diferentes comportamentos permite democratizar reflexões e decisões, corresponsabilizando os sujeitos envolvidos. Amplia-se, assim, a probabilidade de que a disciplina oriunda desse processo seja consciente e consistente, porque refletida. Ambientes propícios ao ato educativo estariam assim garantidos.

Vale destacar que práticas autoavaliativas demandam diálogo pautado por critérios avaliativos e objetivos estabelecidos, preferencialmente, pelas partes envolvidas. Isso passa, necessariamente, por relações que envolvem ética, respeito e afetividade entre avaliadores e avaliados. Considerando as já mencionadas queixas dos estudantes quanto ao modo como suas opiniões e ideias eram ignoradas, no campo pesquisado, a autoavaliação precisará ser aprendida a fim de que se estabeleça sobre bases formativas.

O distanciamento entre disciplina pautada por critérios arbitrários e assegurada de modo verticalizado e autoritário e a conquista de aprendizagens foi destacado pelos estudantes:

Cabelo preso, ou não, não vai te fazer passar no Enem, no PAS10 e em nada. (Estudante).

Eles [a direção da escola e os policiais] estão importando, tipo assim, com as notas dos alunos. Tipo assim, eles não importam se você aprendeu de verdade. Por exemplo, se cada professor dá 10 pontos para cada um e chegar lá nas mãos dele, ele fala: nossa... ótimo! Está maravilhoso! Mas eles não procuram saber se os alunos aprenderam de verdade. (Estudante).

Uma das medidas disciplinares prescrita no Regulamento Disciplinar (BRASÍLIA, 2019f, p. 6) diz respeito à aplicação de ações educativas que deverão corresponder a práticas relacionadas à preservação ambiental ou ação social; à reparação do dano e à realização de atividade pedagógica curricular. Essa última foi utilizada na escola pesquisada, conforme declarado pelos estudantes:

Estudante A: Igual agora se a gente não entrar em forma,11 que é um procedimento que a gente faz todo dia, a gente tem que fazer uma redação com o tema que eles escolherem.

Estudante B: É porque tem pessoas que passam mal, chegam atrasadas ou algo do tipo e aí eles passam uma redação para a gente fazer.

Pesquisadora: Mas aí a punição é fazer uma redação?

Estudante B: Sim. Você tem o direito de escolher, ou você faz a redação ou você leva advertência. Tipo, eles vão dar primeiro a opção de fazer a redação e se você não fizer você leva advertência por falta de responsabilidade.

Associar a elaboração de redação a comportamentos negativos, utilizando-a como meio de penalizar condutas consideradas inadequadas pela escola, pode contribuir para a construção de uma imagem negativa dessa atividade pedagógica, uma vez que passa, assim, a ser concebida como um castigo, e não como meio de aprender. A respeito dessa atividade ainda foi dito:

Pesquisadora: Pra quem são entregues as redações? Para os militares?

Estudante A: Não. Para o chefe de turma12 que entrega pra eles.

Pesquisadora: E eles devolvem, corrigem ou algo assim?

Estudante B: Então, até o momento eu fiz uma por não poder entrar em forma e até hoje não me devolveram, mas disseram que iam [devolver].

Pesquisadora: Então ela serve para quê?

Estudante B: Mas assim os temas, eles escolhem umas coisas para você ficar refletindo sobre o que você fez.

Pesquisadora: Por exemplo...

Estudante C: Se eu não me engano o tema dessa semana é a importância da pontualidade nos compromissos. Aí você vai ter que fazer uma redação sobre isso. Eu acho importante fazer porque você vai refletir sobre o que você fez ou algo do tipo entendeu?

Pesquisadora: Mas depois vocês têm nenhum retorno?

Estudante B: Até o momento não.

A ausência de feedback aos estudantes reforça a tese de que as redações produzidas como meio de remissão por faltas cometidas muito pouco ou nada contribuem para a conquista de aprendizagens. Mesmo a possibilidade de, por meio da escrita, refletir sobre determinada temática, destacada por um estudante, se vê comprometida pela ausência de um retorno dessa atividade, por privar o estudante de subsídios que permitam monitorar a qualidade do que foi produzido, bem como de encaminhamentos que viabilizem o aperfeiçoamento de seu trabalho. Se realizada desse modo por um profissional da educação, essa prática assumiria características de um processo avaliativo formativo.

Sem desconsiderar a importância da disciplina para o desenvolvimento do trabalho pedagógico, depreende-se das reflexões aqui apresentadas que, se obtida por meio de processos meritocráticos e repressivos, as aprendizagens que nesse contexto são construídas não condizem com uma educação que valoriza as diferenças e abre possibilidades de democratização dos saberes escolares por meio de um trabalho pedagógico colaborativo viabilizador de uma avaliação ética e propulsora de aprendizagens emancipadoras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A militarização de escolas públicas não tem respaldo nas principais leis e diretrizes que regem a educação. Não está prevista na Constituição Federal (BRASIL, 1988), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9.394/96 (BRASIL, 1996) ou no Plano Nacional de Educação 2014-2024 (BRASIL, 2015). Não é, portando, legítimo que policiais militares ocupem funções nas instituições escolares, responsabilizando-se pela disciplina/controle da disciplina dos estudantes, entre outras tarefas. Tal fato tende a romper com as relações democráticas que, em geral, caracterizam os espaços públicos de ensino, fomentando ideais de combate à violência por meios autocráticos, autoritários e repressores.

A iniciativa de introduzir nas escolas policiais militares que se encarregarão de separar os “bons” dos “maus” estudantes e tornar inviável a permanência dos que não se adequam às regras estabelecidas costuma repercutir positivamente na sociedade, uma vez que, ao reservar os ensinamentos escolares apenas aos que “querem aprender”, o trabalho pedagógico ganha ares de melhoramento. Isso constitui fator de desqualificação do trabalho docente e desvalorização da educação pública que aparenta não se sustentar sem ajuda externa. Reforçam-se, assim, convicções em defesa da privatização do bem público.

A maioria dos pais/responsáveis, estudantes e professores participantes da pesquisa consideraram a segurança, a disciplina e a organização do ambiente escolar como aspectos que melhoraram a partir da implementação do projeto Gestão Compartilhada. Reflexões sobre os meios utilizados para assegurar essa conquista parecem, no entanto, pouco aprofundadas. Quando não decorrente de intervenções pedagógicas mediadas pelo diálogo, que ensinam para a criticidade e autonomia, a disciplina não se sustenta, porque está dissociada de um processo consciencioso quanto à necessidade da adoção de comportamentos que favoreçam o avanço das aprendizagens. Nesse caso, não se trata de adequar-se ao que está (im)posto, mas de criar e optar por modos de agir que possibilitem a progressiva apropriação de conhecimentos.

Dissonâncias entre o projeto Gestão Compartilhada e a organização escolar em ciclos foram também desveladas neste estudo. A forma de conceber e conduzir a formação escolar dos estudantes, bem como a avaliação que a integra, são, em essência, contrastantes nos dois projetos, pois apresentam princípios educativos diferentes.

Na organização escolar em ciclos, o foco está nas aprendizagens que ganham, como aliada, a ampliação do tempo e dos espaços de aprendizagem numa relação social horizontalizada de compartilhamento de saberes, na qual o sujeito em formação não é coagido a encaixar-se em determinado padrão de comportamento, mas estimulado em suas potencialidades e acolhido em suas fragilidades. A progressão continuada, princípio básico da organização escolar em ciclos, associada ao desenvolvimento de estratégias de intervenção visando a atender, de imediato, as necessidades de aprendizagens dos estudantes, desmistifica a reprovação como sinônimo de garantia da qualidade do ensino. A bússola orientadora do percurso escolar de cada aprendente compreende, nesse caso, práticas avaliativas assentadas na metacognição, no feedback, na escuta sensível e no olhar atencioso sobre suas idiossincrasias.

A concepção de avaliação de grande parte dos interlocutores da pesquisa destoou do proposto para uma organização escolar em ciclos. Eles sinalizaram uma compreensão do processo avaliativo associado à lógica classificatória de verificação da aprendizagem, primando pela obtenção de resultados conclusivos. Revisões no trabalho pedagógico buscando promover melhorias nas condições de aprendizagem dos estudantes, características de processos avaliativos formativos, não foram apontadas pelos participantes da pesquisa.

A avaliação desenvolvida na e pela escola pesquisada assume, desse modo, uma dimensão social e política antagônica aos princípios democráticos inerentes à função social da escola de gestão pública, podendo cercear a conquista de aprendizagens que possibilitem superar projetos de educação coercitivos, punitivos e excludentes.

Espaços dialógicos viabilizadores de discussões sobre a função avaliativa adotada na e pela escola se mostraram pertinentes. Como construção coletiva, a avaliação tem a possibilidade de garantir aprendizagens ampliadas, porque decorre de um processo pautado por relações éticas e respeitosas. Uma vez instituído o trabalho colaborativo, normas disciplinares podem ser debatidas e estabelecidas. A corresponsabilização na elaboração de regras implica maior comprometimento no cumprimento delas, e a adoção voluntária de comportamentos necessários à condução de um trabalho pedagógico propositivo e voltado ao progresso permanente de todos se torna bem mais provável. A punição e a premiação como meios de controle e intimidação perdem, assim, o sentido de existir, e o direito a uma formação distanciada de condições morais discricionárias ganha reforço.

O caráter opressor, classificatório e excludente da avaliação mostrou-se ratificado na escola investigada, indicando que a gestão compartilhada entre educadores e policiais militares pode contrariar a natureza formativa que deve, necessariamente, caracterizar as práticas avaliativas que integram o trabalho pedagógico, especialmente quando desenvolvido em uma escola organizada em ciclos.

Abnegar a liberdade e o dinamismo que devem marcar os processos educativos e a cultura identitária dos estudantes não assegura um bom desempenho escolar. O exercício crítico da cidadania, exteriorizado por convívio ético, pensamento autônomo e liberdade de expressão, é favorecido pela formação integral dos sujeitos, o que potencializa a importância de aprendizagens escolares que divergem da cultura militar institucionalizada. Esforços se mostram, portanto, necessários, no sentido de resistir a políticas orientadas pela ideologia neoliberal de padronização de comportamentos, responsabilização unilateral dos sujeitos e privatização do bem público, como é o caso do projeto Gestão Compartilhada.

1 Revogada pelo Decreto n. 10.195, de 30 de dezembro de 2019 (BRASIL, 2019b).

2 No DF, o 3º ciclo para as aprendizagens é assim organizado: 1º bloco - 6º e 7º anos do ensino fundamental; 2º bloco - 8º e 9º anos.

3 Instruções de ordem unida são atividades nas quais os alunos, agrupados em frações, executam, a comando de um monitor, movimentos padronizados a pé firme ou em marcha (BRASÍLIA, 2019h).

4 A gestão democrática nas escolas da rede pública de ensino do DF, conforme disposto no art. 206 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e nos arts. 3º e 14 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n. 9.394/96 (BRASIL, 1996), regulamentada em 7 de fevereiro de 2012 por meio da Lei n. 4.751 de Gestão Democrática do Sistema Público de Ensino do DF (BRASÍLIA, 2012).

5 Ano em que a escola participante da pesquisa passou a organizar-se em ciclos.

6 Causa estranheza o grande percentual de reprovações ocorridas nos 6º e 8º anos em 2018, quando a retenção só é permitida nos casos em que o número de faltas excede o percentual de 25% do total de dias letivos. O mesmo não acontece no ano seguinte, indicando que ajustes foram feitos a fim de que tal fato não se repetisse.

7 Os índices em percentual foram registrados por aproximação.

8 A Transferência Educativa também é apresentada no Regulamento Disciplinar dos Colégios Cívico- -Militares do DF (BRASÍLIA, 2019f, p. 5) como medida disciplinar, não recebendo, por motivos óbvios, pontuação.

9 Propostas de elogio podem ser elaboradas por diferentes profissionais que atuam na escola e encaminhadas ao comandante ou ao subcomandante disciplinar para análise e, caso aprovadas, concedidas.

10 O Programa de Avaliação Seriada (PAS) é um processo seletivo promovido pela Universidade de Brasília (UnB) e realizado ao longo dos três anos do ensino médio regular pelos estudantes matriculados na escola pública ou particular.

11 No início de cada turno, no pátio ou em outro lugar convencionado, os alunos são divididos por turmas, anos ou séries e postos em forma (BRASÍLIA, 2019h).

12 Cada turma tem um estudante na função de chefe e um na função de subchefe de turma, designados por meio de um rodízio entre os discentes.

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Recebido: 03 de Junho de 2020; Aceito: 24 de Março de 2022

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