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Estudos em Avaliação Educacional

versão impressa ISSN 0103-6831versão On-line ISSN 1984-932X

Est. Aval. Educ. vol.33  São Paulo  2022  Epub 10-Nov-2022

https://doi.org/10.18222/eae.v33.9087 

Artigos

LITERATURA NO ENADE E A FORMAÇÃO LITERÁRIA NOS CURSOS DE LETRAS

LITERATURA EN EL ENADE Y FORMACIÓN LITERARIA EN LOS CURSOS DE LETRAS

LITERATURE IN THE ENADE AND LITERARY EDUCATION IN COURSES OF LANGUAGE AND LITERATURE

LUCIANA MARA TORRES BUCCINII 
http://orcid.org/0000-0001-8299-9476

MARIA ZéLIA VERSIANI MACHADOII 
http://orcid.org/0000-0002-6474-6966

IUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte-MG, Brasil; luciana_mtorres@hotmail.com

IIUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte-MG, Brasil; zelia.versiani@gmail.com


RESUMO

Este artigo traz uma análise do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes aplicado em 2017 aos alunos dos cursos de Licenciatura em Letras. Com base em discussões dos campos de pesquisa sobre ensino de literatura e acerca da relação teoria-prática na formação de professores, apresenta-se um estudo das questões ligadas à literatura a fim de compreender a concepção de formação literária pressuposta na avaliação. Os resultados são apresentados em comparação com um estudo das quatro edições anteriores, feito em 2019. As constatações apontam uma diversidade de autores, um discurso de flexibilização em relação ao cânone e uma concepção de educação literária voltada para o letramento crítico dos estudantes.

PALAVRAS-CHAVE AVALIAÇÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR; FORMAÇÃO DOCENTE; ENADE; LITERATURA.

RESUMEN

Este artículo contiene un análisis del Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes [Examen Nacional de Desempeño de los Estudiantes] aplicado en el 2017 a los alumnos de los cursos de Licenciatura en Letras. En base a las discusiones en los campos de investigación sobre la enseñanza de literatura y sobre la relación teoría-práctica en la formación de profesores, se presenta un estudio de los temas vinculados a la literatura con el propósito de comprender la concepción de la formación literaria que se presupone en la evaluación. Los resultados son comparados con un estudio de las cuatro ediciones anteriores, efectuado en 2019. Las constataciones señalan una diversidad de autores, un discurso de flexibilización en lo que se refiere al canon y una concepción de educación literaria destinada al letramiento crítico de los estudiantes.

PALABRAS CLAVE EVALUACIÓN DE LA EDUCACIÓN SUPERIOR; FORMACIÓN DOCENTE; ENADE; LITERATURA.

ABSTRACT

The present paper analyzes the Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes [National Student Performance Examination], applied in 2017 to undergraduate students in Language and Literature courses. Based on the reflections in the fields of research on literature teaching and on the theory-practice relationship in teacher training, a study of the issues related to literature is presented to understand the conception of literary education assumed in the evaluation. The results are presented in comparison with a study of the four previous editions, carried out in 2019. The findings point to a diversity of authors, a discourse of flexibilization in relation to the canon, and a conception of literary education focused on the critical literacy of students.

KEYWORDS HIGHER EDUCATION ASSESSMENT; TEACHER TRAINING; ENADE; LITERATURE.

INTRODUÇÃO

Neste artigo, propomos uma análise do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), aplicado a discentes do ensino superior no início e no final de seu curso. Nosso foco é a prova destinada aos alunos do curso de Licenciatura em Letras - Português, aplicada em 2017 (BRASIL, 2017a), a fim de compreender como se caracteriza a presença da literatura e do ensino de literatura nessa avaliação. Dessa forma, neste artigo, propomos: a) analisar questões da prova do Enade 2017, última edição, em que haja a presença de textos literários, a fim de examinar a abordagem direcionada a eles; b) verificar a seleção de textos e gêneros literários, observando, por exemplo, se a presença do cânone é priorizada e se/quais outras literaturas estão presentes na avaliação; c) averiguar e buscar entender em que medida o ensino de literatura se faz presente nessa avaliação, uma vez que ela é aplicada a discentes do curso de licenciatura, que atuarão na educação básica.

Visamos, assim, a contribuir com uma reflexão sobre expectativas em torno da formação acadêmico-profissional do professor de Literatura, considerando que, como instrumento oficial de avaliação, o Enade é um mecanismo de regulação dos cursos de graduação no país e, portanto, apresenta tendências relativas às abordagens mais presentes nesses espaços de formação. Desse modo estruturamos este texto da seguinte maneira: 1) uma breve discussão acerca do ensino de literatura e de algumas questões que se apresentam quando se pensa na formação do professor para a educação básica; 2) sucinta apresentação do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade); 3) apresentação e análise dos dados do Enade 2017 - Curso de Letras - Licenciatura - sob a perspectiva da formação do professor de Literatura. Ao final, fazemos uma síntese dos resultados obtidos e apontamos algumas percepções acerca da presença da literatura no Enade como uma referência ao que se propõe nos cursos de Letras - Licenciatura.

Ensino de literatura e formação docente nas licenciaturas em Letras

Em seu livro Por que estudar literatura?, Vincent Jouve (2012) nos provoca a pensar sobre duas questões: “Por que ler literatura” e “Por que estudar literatura”, defendendo que a escola e, mais especificamente, o professor precisam compreender a diferença entre formar o gosto literário do aluno - missão muito difícil dada a sua subjetividade - e ensinar literatura, promovendo o entendimento desta como uma arte da linguagem capaz de expor e problematizar questões, dar algumas respostas, exprimir dramas humanos universais. Segundo o autor, a dimensão estética é sempre relativa e, em contrapartida, a originalidade e a riqueza dos saberes expressos pela obra de arte são dados objetivos cujo valor transcultural se pode mostrar. Para isso, Jouve defende que o primeiro papel da escola, no ensino da literatura, é munir o aluno-leitor do conjunto de informações necessárias para a leitura e interpretação da obra. Essa função não deve, contudo, ser desvinculada da experiência estética, uma vez que

[...] a informação transmitida pela literatura tem uma força de impacto que o discurso racional não pode ter: ela é “sentida” antes de ser entendida, portanto, sem ser compreendida. [...] Como a vocação do ensino é ensinar a dominar os saberes, os estudos literários têm como propósito conceitualizar aquilo que, na relação estética, é (no melhor dos casos) interiorizado por imersão. Se especifico “no melhor dos casos”, é porque existem várias obras nas quais é difícil imergir. Por isso, o professor não se pode limitar ao trabalho de interpretação: ele precisa começar tornando acessíveis (fornecendo todas as informações necessárias sobre elas) as obras cuja linguagem se tornou opaca para nós. (JOUVE, 2012, p. 137).

Assim, segundo o autor, haveria duas diferentes instâncias pelas quais um livro literário passaria até chegar ao aluno: em primeiro lugar, os estudiosos da literatura teriam como propósito construir saberes com base no que se apreende das obras literárias e de seus aspectos contextuais, culturais, antropológicos e históricos; em um segundo momento, os professores transformariam esses saberes em conhecimentos. Os alunos, enfim, acessariam esses conhecimentos como objetos de linguagem que exprimem uma cultura, um pensamento e uma relação com o mundo, também por meio de uma reapropriação pessoal. A dimensão estética, dessa forma, é considerada pelo autor não como um fim em si mesma, “[...] mas por aquilo que ela significa e representa” (JOUVE, 2012, p. 135) no conjunto desses saberes. Para o autor, o leitor está no centro da experiência estética, que só se realiza no confronto de “[...] sua visão de mundo com a que a obra implica” numa relação ao mesmo tempo receptiva e ativa (JOUVE, 2002, p. 127).

Para Graça Paulino (2007), a dimensão estética se insere nas práticas sociais de leitura e de escrita dos alunos, configurando um tipo de letramento, o literário. Assim, o letramento literário, segundo a autora, estaria associado ao trabalho estético da língua, à proposta de pacto ficcional e à recepção não pragmática do texto literário (PAULINO, 2007, p. 117).

A propósito dos modos de ler literatura na escola, Paulino (1999) reafirma o distanciamento existente entre as atividades escolares e as práticas de letramento literário, quando se assumem objetivos de ensino que passam ao largo da experiência estética. Para a autora,

A formação de um leitor literário significa a formação de um leitor que saiba escolher suas leituras, que aprecie construções e significações verbais de cunho artístico, que faça disso parte de seus fazeres e prazeres. Esse leitor tem de saber usar estratégias de leitura adequadas aos textos literários, aceitando o pacto ficcional proposto, com reconhecimento de marcas linguísticas de subjetividade, intertextualidade, interdiscursi- vidade, recuperando a criação de linguagem realizada, em aspectos fonológicos, sintáticos, semânticos e situando adequadamente o texto em seu momento histórico de produção. (PAULINO, 1999, p. 12).

As reflexões de Jouve e Paulino trazem à tona um debate que se estende há muitos anos no questionamento sobre o papel da escola na formação dos leitores literários: tomar a literatura como campo de conhecimentos e saberes excluiria ou não a dimensão da experiência estética da literatura? Jouve dá ênfase a uma formação de leitores literários na escola apoiada no campo de conhecimento e de saberes, reconhecendo as obras literárias como “objetos de linguagem” que exprimem “[...] uma cultura, um pensamento e uma relação com o mundo” (JOUVE, 2012, p. 135), e afirma que, no quadro da literatura tomada como objeto de estudo, essas obras “[...] não existem unicamente como realidades estéticas” (JOUVE, 2012, p. 135). O autor faz uma diferenciação entre relação estética e relação artística com as obras, a primeira fortemente subjetiva realizada pelo leitor e a segunda pautada por dados objetivos da obra produzida pelo autor. Assim, coloca em dúvida uma formação centrada unicamente na dimensão estética dos textos (JOUVE, 2012, p. 131), porque, segundo o autor, a experiência estética é variável conforme o que cada leitor projeta de si na obra, já o artístico, objetivamente dado pela obra, seria passível de ser mediado (JOUVE, 2012, p. 132).

Paulino defende que os saberes textuais, intertextuais, linguísticos, literários, entre outros mobilizados na leitura, seriam a condição para se acessar a dimensão estética das obras. No texto Letramento literário: cânones estéticos e cânones escolares (1999), a autora situa a discussão estética não só na recepção como também na produção, e aponta tensões históricas a respeito dos cânones literários. Com a sua abordagem, Paulino atinge o cerne da questão dos valores inerente ao tema da seleção ou escolha das obras em contexto escolar.

Os questionamentos de Jouve e Paulino - autores que tratam da experiência estética na formação literária dos estudantes na contemporaneidade - instigam a reflexão sobre possíveis formas de aproximação entre leitores e obras literárias, e as reflexões dos dois estudiosos confluem para a relevância do tema dos processos mediadores na escola.

Considerando a importância da mediação como fator que propiciaria a expe- riência estética, este artigo busca refletir sobre o lugar que essas discussões ocupam nos cursos de Licenciatura em Letras, espaços de formação do futuro professor de Literatura para a educação básica. Esse debate, entretanto, não pode se distanciar das reflexões sobre a articulação entre teoria e prática na formação e, consequentemente, no exercício docente.

Pesquisadores do campo da formação de professores destacam a necessidade de uma abordagem cada vez mais integrada dos saberes acadêmicos com os saberes práticos da docência. Essa discussão é feita por Gatti, Barreto e André (2011), que, após um estudo amplo das políticas públicas implementadas na década de 2000 e uma análise de currículos de diversos cursos de licenciatura de diferentes instituições do país, constatam que

[...] uma postura integrante quanto a conhecimentos fundamentais e práticas, numa visão não dicotômica, é rarefeita nos currículos efetivados nas instituições de ensino superior (IESs) brasileiras formadoras de professores para a educação básica. Há predomínio de formação acadêmica, mais abstrata, de caráter excessivamente genérico, nas proposições institucionais para essa formação. Não que esse tipo de formação não seja necessário, mas ele é insuficiente para a integralização da formação de um(a) profissional da docência. (GATTI; BARRETO; ANDRÉ, 2011, p. 91).

Essa resistência encontrada na articulação entre teoria e prática é herança de um modelo de formação docente adotado quando os cursos de bacharelado, no país, passaram a formar os professores de áreas específicas (Letras, História, Geografia, etc.) para a atuação no então ensino secundário. Naquele momento, década de 1930, adotou-se o paradigma 3 + 1, em que os graduandos estudavam os três anos de formação específica de suas áreas, cursando as disciplinas do bacharelado, e seguiam por mais um ano fazendo disciplinas da área da educação, a fim de obterem também o título de licenciados e atuarem no ensino secundário (GATTI; BARRETO; ANDRÉ, 2011, p. 97).

As análises de currículos de licenciaturas, feitas pelas pesquisadoras, demonstraram que a relação teoria-prática, enfatizada nos documentos do Conselho Nacional de Educação (CNE), não era contemplada nas grades curriculares da maioria dos cursos de formação de professores, ou seja, não se concretizava no cotidiano das diferentes licenciaturas. Assim, as autoras afirmam que havia uma formação panorâmica do professor, isto é, voltada para o conhecimento teórico básico, sem o necessário estabelecimento das relações desse conhecimento com as práticas docentes. Nos cursos de Letras analisados pelas pesquisadoras, apenas 11% da carga horária era voltada para a formação docente (GATTI; BARRETO; ANDRÉ, 2011, p. 115). Dessa forma, as autoras questionam se essa formação superficial seria suficiente para o futuro professor atuar assumindo todas as tarefas que lhe caberiam na escola.

Com o propósito de elucidar conexões entre teoria e prática em cursos de Letras, Aguiar e Suassuna (2020) discutem direcionamentos do ensino de Teoria da Literatura e suas relações com a formação de professores, sob a perspectiva dos professores da disciplina de quatro instituições particulares da Região Metropo- litana de Recife.

Conforme apontam as pesquisadoras, a disciplina Teoria da Literatura é vista como propedêutica, “[...] como um estágio preparatório que visa a instrumentalizar os alunos do curso de Letras para o verdadeiro estudo da Literatura” (AGUIAR; SUASSUNA, 2020, p. 23). Essa abordagem da Teoria da Literatura é apresentada como introdutória e superficial, segundo as autoras, e levaria a uma formação de professores ineficiente, com bases teóricas frágeis e insuficientes para a leitura e análise literária. A partir desse estudo, as pesquisadoras defendem um equilíbrio entre a leitura da teoria e da literatura, concomitante a “[...] reflexões sobre a educação e o processo de ensino-aprendizagem para uma formação mais ampla e integrada dos futuros docentes da educação básica” (AGUIAR; SUASSUNA, 2020, p. 26).

Segundo as autoras, é possível constatar a complexidade que envolve a formação do professor de Literatura da educação básica em nível superior, sobretudo no enfrentamento do desafio da articulação entre teoria e prática no cotidiano dos cursos de formação docente.

Aguiar e Suassuna defendem, então, uma aproximação mais efetiva entre os professores que ministram as disciplinas relacionadas aos saberes linguísticos e literários, e os que ministram as disciplinas relacionadas aos saberes didático-pedagógicos, o que permitiria uma maior autonomia e consolidação para os cursos de licenciatura em relação ao bacharelado, que ainda se constitui, em muitas instituições, fio condutor das matrizes curriculares da graduação em Letras.

Concordando com as autoras, acreditamos ainda que essa relação mais orgânica entre teoria e prática poderia oferecer elementos mais verticalizados de reflexão para que os futuros professores busquem uma melhor conciliação de diferentes abordagens da literatura em sala de aula - como aquelas discutidas por Jouve e Paulino - acerca de conhecimentos implicados na leitura literária e da atenção à sua dimensão estética, que, embora pessoal e intransferível, é passível de mediação na escola.

O Enade e sua aplicação para os cursos de Licenciatura em Letras

A Lei n. 10.861, sancionada em 2004 (BRASIL, 2004), colocou em vigor o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Essa legislação assegura o processo de avaliação das instituições de educação superior, dos cursos de graduação e do desempenho acadêmico dos discentes, formando um tripé avaliativo. Foi criada, portanto, com o intuito de obter dados para melhoria da qualidade do ensino superior quando o país começava a empreender investimentos na expansão do acesso a essa fase de escolarização e iniciava uma série de medidas e programas de ampliação das universidades públicas, a fim de colocá-las ao alcance das classes populares.

Para fazer frente ao crescimento desenfreado do setor privado na educação, entre 2003 e 2006, tornaram-se mais rigorosas as regras de credenciamento de faculdades particulares, e o status de universidade e centro universitário foi condicionado, à época, à existência de produção intelectual institucionalizada, com um terço do corpo docente com titulação acadêmica de mestrado ou doutorado e em regime de tempo integral. Nesse contexto, surgiu o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), criado para aferir

[...] o desempenho dos estudantes em relação aos conteúdos programáticos previstos nas diretrizes curriculares do respectivo curso de graduação, suas habilidades para ajustamento às exigências decorrentes da evolução do conhecimento e suas competências para compreender temas exteriores ao âmbito específico de sua profissão, ligados à realidade brasileira e mundial e a outras áreas do conhecimento. (BRASIL, 2004).

Com essa proposta, o Enade, desde então, passou a ser componente obrigatório para discentes do ensino superior, isto é, pré-requisito para a obtenção do título de graduação. Assim, o estudante deveria, ao início ou ao final do curso, se submeter à avaliação.

Para que seja possível executar essa complexa logística, garantindo a participação de todos os alunos de cada curso, o Enade é aplicado trienalmente conforme áreas de conhecimento e eixos tecnológicos, segundo consta da página do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).1

Em 2019, Santana e Lima publicaram artigo em que apresentaram resultados da análise de quatro edições do Enade com foco na formação do professor de Literatura. As pesquisadoras analisaram questões das provas aplicadas em 2005, 2008, 2011 e 2014 a fim de compreender como o Enade avaliava a formação dos professores de Literatura no período. Esse estudo evidencia permanências e mudanças, quando comparado ao estudo que propomos neste artigo, relativo à edição de 2017, aplicada a alunos concluintes do curso de Licenciatura em Letras - Português.

A prova aqui analisada foi dividida em cinco partes conforme os tipos de questão - discursivas ou objetivas - e o aspecto geral ou específico da formação:

  1. Formação geral: discursivas, com duas questões;

  2. Formação geral: objetivas, com oito questões;

  3. Componente específico: discursivas, com três questões;

  4. Componente específico: objetivas, com 27 questões.

Cinco meses antes da aplicação, publicou-se a Portaria n. 504, de 6 de junho de 2017 (BRASIL, 2017b), em que se apresentavam as definições estabelecidas pela Comissão Assessora da Área de Letras - Português para o componente específico do curso. No documento, esclareceu-se o número de questões de cada parte da avaliação, definindo-se também que, no componente específico, os itens seguiriam as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Letras e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica em nível superior. Entre as questões dessa parte da prova, cinco seriam vinculadas à Portaria Enade 2017 da área de Pedagogia.

Em relação aos itens específicos da área, a portaria traçou as seguintes características esperadas para o estudante concluinte do curso de Letras - Português:

Art. 5º A prova do Enade 2017, no componente específico da área de Letras-Português - Licenciatura, terá como referência as seguintes características do perfil do concluinte:

I. reflexivo em relação às questões de língua e de linguagem;

II. sensível às variedades linguísticas e às diferentes manifestações literárias;

III. crítico em relação ao fenômeno da criação literária e suas relações intersemióticas;

IV. receptivo às manifestações da literatura e da língua como prática social em contextos orais e escritos;

V. observador dos fenômenos linguísticos e discursivos em diferentes contextos de uso;

VI. comprometido com a formação dos estudantes nos diferentes contextos de atuação a partir de concepção ampla e contextualizada de ensino e de processos de aprendizagem;

VII. ético e ciente da importância de uma formação profissional contínua, autônoma e permanente. (BRASIL, 2017b).

Além das características esperadas para o discente ao final do curso, listaram-se também, na portaria, as competências almejadas para esse aluno e os conteúdos contemplados na avaliação. Aqui apresentamos os tópicos referentes direta ou indiretamente à literatura e à prática profissional docente:

Art. 6º A prova do Enade 2017, no componente específico da área de Letras-Português - Licenciatura, avaliará se o concluinte desenvolveu, no processo de formação, competências para:

[...]

IV. compreender a linguagem como fenômeno psicológico, social, histórico, cultural, político e ideológico;

V. analisar criticamente manifestações literárias e culturais;

VI. descrever e observar as variedades da língua portuguesa;

[...].

IX. refletir sobre a organização e o funcionamento dos elementos estruturadores do texto literário e não literário;

[...].

XII. articular teoria e prática para o ensino de língua e literatura;

XIII. realizar a transposição didática dos conhecimentos para os diferentes níveis de ensino;

XIV. utilizar recursos digitais em ambiente escolar visando ao multile- tramento.

Art. 7º A prova do Enade 2017, no componente específico da área de Letras-Português - Licenciatura, tomará como referencial os conteúdos que contemplam:

[...]

VIII. Conceitos de literatura e cultura;

IX. Especificidades da linguagem literária;

X. Teorias críticas da literatura;

XI. Gêneros literários da antiguidade à contemporaneidade;

XII. Movimentos literários;

XIII. Formação do cânone e do anticânone;

XIV. Literatura, performance e oralidade;

XV. Inter-relações da literatura com outros sistemas culturais e semióticos;

XVI. Ensino e aprendizagem da língua portuguesa;

XVII. Ensino e aprendizagem de literatura;

XVIII. Processos de letramento. (BRASIL, 2017b).

Os aspectos apresentados na portaria traçam, dessa forma, não só uma expectativa de verificar conhecimentos voltados para conteúdos e, em menor grau, para o ensino, mas também projetam indicadores para se repensarem os currículos dos cursos de Licenciatura em Letras - Português.

É interessante observar que, conforme apontam Santana e Lima (2019), as portarias que antecederam as provas de 2005, 2008 e 2011, além de apresentarem as habilidades e os conteúdos contemplados naquelas edições, traziam uma lista de autores e obras que poderiam aparecer nas questões de literatura. A partir da edição de 2014, essa seleção não é apresentada previamente e, somente no momento da avaliação, autores e obras escolhidos para as questões são conhecidos. No tópico de análise das questões, faremos algumas considerações a respeito dos autores listados nas edições analisadas por Santana e Lima e aqueles que aparecem na edição de 2017.

Os tópicos da Portaria n. 504, aqui apresentados, por sua vez, auxiliarão na análise que se seguirá do Enade 2017, com a finalidade de compreender em que medida esses aspectos relativos ao ensino de literatura são contemplados na prova e que tipos de abordagem ocorrem nas questões, considerando as discussões apresentadas no início deste artigo.

A formação literária do professor de Literatura na prova do Enade 2017

Com o propósito de investigar a abordagem que é feita da literatura na avaliação aplicada aos estudantes do curso de Licenciatura em Letras, analisamos, a seguir, as questões em que foram utilizados textos literários, a fim de apreender perspectivas adotadas e a sua relação com a formação docente para o ensino de literatura na educação básica - anos finais do ensino fundamental e ensino médio. O nosso corpus constitui-se, então, de questões que têm como foco a literatura sob diferentes perspectivas, desde aquelas que mobilizam conhecimentos da teoria literária ou que propõem uma análise literária de textos até outras, de viés pedagógico, orientadas para o ensino da literatura.

Uma primeira leitura da prova permitiu-nos constatar a presença de 12 questões que abordavam de alguma maneira a literatura, em um universo de 27 questões objetivas e três questões discursivas que integram o componente específico da prova.

Uma análise mais detida de cada questão - em que se observou a seleção tex- tual, a abordagem metodológica dos textos e a associação dos conteúdos com outras áreas como a teoria da literatura, a linguística aplicada e o ensino de literatura - permitiu-nos concluir que a edição de 2017 do Enade para estudantes do curso de Licenciatura em Letras - Português expõe algumas das práticas de leitura literária - tomadas aqui como conjunto de concepções, temas, repertórios e modos de abordagem - mais recentemente incorporadas aos cursos de Letras. Dentre os aspectos percebidos dois chamam a atenção: a ampliação do horizonte de seleção dos textos literários e um discurso de inconformismo com o processo tradicional de canonização de obras da literatura na universidade.

Outro aspecto que diz respeito à seleção textual é a frequência de gêneros literários na prova, o que indicaria presenças e ausências nas escolhas. Nesse quesito, nas questões em que a literatura foi destacada, não se nota diversidade de gêneros literários na seleção textual da edição analisada. O poema foi o gênero mais selecionado, o que se pode explicar pela possibilidade de reprodução na íntegra, condicionada ao espaço limitado que a prova oferece aos elaboradores das questões. Outros gêneros (basicamente conto e letra de música), quando apresentados, apareceram em fragmentos, com a exceção de um miniconto.

Quanto à diversidade de autoria no que tange à identidade de gênero, observou-se a presença predominante de autores do sexo masculino, com duas autoras no total de dez textos literários selecionados, o que corresponde a apenas 20% de presença de escritoras.

O Quadro 1 apresenta os textos literários utilizados nas questões.

QUADRO 1 Textos literários - Enade 2017: Letras - Português 

Texto Autor Gênero
Esteticar (Estética do plágio) Tom Zé Letra de música (Fragmento)
Moral e Cívica II Alex Polari de Alverga Poema (Fragmento)
Essa negra fulô Jorge de Lima Poema
Autopsicografia Fernando Pessoa Poema
Apontamento Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) Poema
De orla a barlavento Corsino Fortes Poema (Fragmento)
A indústria de tambores Dina Salústio Conto (Fragmento)
Uma vida inteira pela frente Cíntia Moscovich Miniconto
A primavera endoideceu Sérgio Caparelli Poema visual
Poema tirado de uma notícia de jornal Manuel Bandeira Poema

Fonte: Elaboração das autoras.

A fim de verticalizar a análise, cruzando aspectos relativos à seleção textual com o conjunto de conhecimentos que as questões buscam mobilizar, selecionamos algumas delas que nos permitirão alcançar os objetivos deste estudo. Destacamos inicialmente a primeira questão discursiva da parte específica da prova. Nela, tem-se um trecho da música “Esteticar (Estética do plágio)”, de Tom Zé, em que se abordam, em dois itens (a e b), os neologismos presentes na letra e as implicações desses neologismos na construção de sentidos ou na interpretação da canção. Essa questão aborda de maneira específica o processo de sufixação e o empréstimo linguístico no uso das palavras e mobiliza conhecimentos para a compreensão dos recursos semânticos provenientes desses usos linguísticos na produção de efeitos de sentido. A questão aponta que o trabalho com o texto literário, portanto, de natureza estética, se abre a múltiplas interpretações.

Apesar de haver pouca representatividade de gêneros literários na avaliação, vale destacar ainda que a escolha de uma letra de música revela uma ampliação do conceito de literatura e dialoga diretamente com o que se apresenta no item 2 do artigo 5º da Portaria n. 504, que projeta o perfil ideal do concluinte de Letras como um sujeito “[...] sensível às variedades linguísticas e às diferentes manifestações culturais” (BRASIL, 2017b). Nesse sentido, há a expectativa de que o aluno reconheça os empréstimos linguísticos e os neologismos associados a expressões na construção de um texto legítimo e de qualidade literária, que integra um repertório cultural relevante para o estudante de Letras. Dessa forma, revela-se uma questão que contempla a diversidade literária e a compreensão da condição plástica e mutante da língua, concebida como fenômeno histórico, social e cultural.

Ainda em relação ao gênero textual, destaca-se a questão 20, que apresenta um poema visual de Sérgio Caparelli, “A primavera endoideceu”, e aborda a palavra como elemento de construção da imagem composta pelo texto verbal. Na questão, o estudante deveria reconhecer a relação do poema com outros sistemas semióticos, observando seu efeito imagético e semântico. Além da abertura conceitual da literatura ao incluir um poema visual como um gênero relevante na formação do futuro professor, destaca-se ainda a escolha por um autor que tem uma produção voltada para crianças e jovens, públicos para os quais os licenciandos irão também lecionar, visto que terão como alunos desde pré-adolescentes, quando iniciam o sexto ano, até jovens na faixa de 17 anos, quando concluem o ensino médio.

A seleção de autores e obras da prova, mostrada no Quadro 1, também reforça a abertura para autores não canônicos, e, nesse contexto, a apresentação do poema visual de Sérgio Caparelli sobressai principalmente pelo fato de o autor ter um maior reconhecimento no campo da literatura infantojuvenil. O caráter único e inusitado da presença desse autor para figurar entre os outros da seleção indicia a já constatada baixa ocorrência da literatura infantojuvenil nos cursos de Licenciatura em Letras - Português.

Quando comparada a provas anteriores, confirma-se que a avaliação de 2017 dá espaço a autores não canônicos, indicando uma tendência de abertura para a diversidade autoral. Outro aspecto que revela essa tendência se apresenta na ampliação da seleção textual para países africanos de língua portuguesa, o que sugere uma crítica a cânones escolares tradicionais, apoiada em estudos pós-colonialistas. Nessa direção, a questão 15 apresentou três textos: o primeiro é um trecho de um livro em que se aborda a cultura cabo-verdiana, suas formas de expressão e a questão identitária; o segundo, um poema de Corsino Fortes, escritor de Cabo Verde, em que se destaca a sonoridade como recurso expressivo; e o terceiro, o excerto do conto “A indústria de tambores”, de Dina Salústio, também ela uma escritora cabo-verdiana, que explora o clima tropical e os sons cotidianos do país. Nesse item, esperava-se a interpretação dos textos e a inferência de informações e sentidos pelos estudantes. É importante salientar que os três textos têm em comum o elemento da sonoridade, fortemente presente na cultura e literatura daquele país. Nessa vertente de exploração dos textos, a questão elege dois aspectos apresentados na Portaria n. 504 do que se espera do concluinte do curso de Letras - Português: mostrar-se receptivo às manifestações da literatura e da língua como prática social em contextos orais e escritos e analisar criticamente manifestações literárias e culturais (BRASIL, 2017b). No entanto, essa diretriz se atrela, no que se propõe na questão, a elementos da sonoridade e seus efeitos de sentido, como entrada para uma possível experiência estética sensível à materialidade sonora da linguagem literária.

A diversidade de autores, conforme se pode perceber no Quadro 1, não excluiu, entretanto, autores canônicos, representativos da cultura literária brasileira e portuguesa. A questão 11, por exemplo, apresenta dois poemas de Fernando Pessoa, “Autopsicografia” e “Apontamento”, este segundo assinado por Álvaro de Campos, um de seus heterônimos. O estudante deveria analisar três afirmações: a primeira acerca da heteronímia pessoana e o fingimento poético como artifício estético; a segunda com foco na teoria da poesia e no processo de heteronímia; e a terceira sobre a questão da metalinguagem (metapoema), presente nos textos. Com base nesses três eixos entrecruzados, a questão solicitava ao discente uma análise interpretativa dos poemas e o conhecimento teórico de aspectos do fazer poético do escritor.

Vale, neste ponto, estabelecer uma comparação do Enade 2017 com edições anteriores, cujas questões foram analisadas por Santana e Lima (2019). As pesquisadoras, ao fazerem um levantamento dos autores literários apresentados nas edições de 2005, 2008, 2011 e 2014, constataram a presença constante de escritores reconhecidos pelo cânone, com forte tendência para escritores do século XIX e XX, como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. É importante lembrar ainda que, até 2011, esses autores já eram indicados nas portarias do Inep que orientam a elaboração da prova, as quais apresentam os conteúdos avaliados em cada edição. Na edição de 2017, figura dentre os autores listados por Santana e Lima (2019) apenas Manuel Bandeira, com o texto “Poema tirado de uma notícia de jornal”. Ganha visibilidade na edição de 2017 analisada neste artigo um corte em relação ao cânone e uma inflexão em direção à formação de um “anticânone”, assim expresso na Portaria n. 504 (BRASIL, 2017b), que diminui significativamente a presença daqueles autores considerados até então imprescindíveis na formação do estudante de Letras.

Ainda sobre a seleção textual, destacam-se outras duas questões. A última questão discursiva da parte específica da avaliação traz dois textos, um cartum e um poema, ambos com temáticas raciais. O primeiro texto da questão aborda o feriado do Dia da Consciência Negra, colocando como contraponto a figura de brancos aproveitando a folga na praia e a figura de um negro que trabalha como vendedor ambulante nesse mesmo espaço. O texto 2 - poema “Essa negra fulô”, de Jorge de Lima - associa o negro ao sujeito serviçal e aborda o estereótipo da mulher negra sob uma perspectiva eurocêntrica. Essa questão solicita ao estudante uma leitura e análise dos textos com o objetivo de discutir a representação das diversidades sociais, sob a perspectiva do letramento crítico esperado para o futuro professor da educação básica. Os estudantes deveriam redigir um pequeno texto (15 linhas), articulando dois aspectos temáticos que fundamentassem a leitura comparativa dos textos e propondo uma possível estratégia de abordagem a eles para a sala de aula.

Com o propósito de atender às expectativas de “[...] articular teoria e prática para o ensino de língua e literatura” (BRASIL, 2017b), a questão traz a diversidade racial como um dos temas associados ao ensino de literatura. A abordagem do letramento demonstra um posicionamento voltado para a literatura como prática social atravessada por tensões ideológicas que devem ser pautadas na atuação profissional, a partir de uma visão crítica que se desenvolve por meio da leitura e da escrita literária.

Outro importante aspecto observado na questão, ao abordar as relações étnico- -raciais por meio do cartum e do poema, é a sua relação com a Lei n. 10.639 (BRASIL, 2003), que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, com destaque para a luta dos negros e a sua presença na formação da sociedade.

Nessa mesma linha crítica, outra questão, também discursiva, traz um texto teórico de Valdeci Rezende Borges, que aborda a literatura como expressão cultural e histórica, e o poema “Moral e Cívica II”, de Alex Polari de Alverga, cuja temática faz menção a torturas durante a Ditadura Militar. Nessa questão, o estudante deveria abordar a relação entre os textos 1 e 2 e, segundo a expectativa de resposta, esperava-se que o aluno considerasse a poesia de Alverga como um bem cultural e estabelecesse relações entre o texto literário e a história do Brasil.

Assim, o licenciando deveria situar o poema como objeto sócio-histórico, literatura de testemunho, representação da experiência e/ou denúncia social. A perspectiva estético-analítica de trechos que fazem menção à tortura no poema também era esperada na resposta dos estudantes. Nessa proposta, duas competências apresentadas na Portaria n. 504, que traça os objetivos gerais do Enade, são avaliadas: a compreensão da linguagem como fenômeno psicológico, social, histórico, cultural, político e ideológico, bem como a análise crítica de manifestações literárias e culturais (BRASIL, 2017b). A escolha do poema de Alex Polari de Alverga também chama a atenção pelo fato de esse autor contemporâneo ser menos conhecido no campo literário, o que aponta mais uma vez a mencionada abertura dos textos literários e sua circulação escolar.

Ainda sobre a seleção de textos, mas agora com o olhar voltado para a teoria, evidenciou-se que os autores dos textos teóricos sobre a literatura, utilizados na avaliação, são representativos de concepções sócio-históricas dos estudos literários, pautadas, sobretudo, pela relação da literatura com o contexto histórico, com a sociedade, com a cultura e com o ensino.

O Quadro 2 apresenta os textos teóricos utilizados nas questões relacionadas à literatura.

QUADRO 2 Textos teóricos sobre literatura - Enade 2017: Letras - Português 

Texto Autor Gênero
História e literatura: algumas considerações Valdeci Rezende Borges (UFG) Artigo acadêmico (Fragmento)
A literatura fantástica: gênero ou modo? Marisa Martins Gama-Khalil (UFU) Artigo acadêmico
(Fragmento)
Cabo Verde: interfaces entre literatura, culinária e música Simone Caputo Gomes (USP) Capítulo de livro
(Fragmento)
Cânon Roberto Reis
(University of Minnesota)
Capítulo de livro (Fragmento)
Estética da criação verbal Mikhail Bakhtin Livro (Fragmento)
Língua e literatura: uma questão de educação? Cyana Leahy-Dios, Cláudia Lage Livro (Fragmento)
Teoria da literatura Terry Eagleton Livro (Fragmento)

Fonte: Elaboração das autoras.

Nota: UFG - Universidade Federal de Goiás; UFU - Universidade Federal de Uberlândia; USP - Universidade de São Paulo.

Na prova de 2017, comparecem dez textos literários e sete textos teóricos e observa-se também a diversidade de autores quando a teoria se apresenta, conforme se pode ver no Quadro 2. Entre eles, Bakhtin e Eagleton são os mais conhecidos, reconhecidos pela academia e, provavelmente, utilizados nos diversos cursos de Letras. Nota-se, em contrapartida, a presença de outros estudiosos como Roberto Reis, professor da Universidade de Minnesota, e outros pesquisadores de diferentes regiões do Brasil (Goiás, Uberlândia, São Paulo), que não representam aqueles de maior impacto no campo acadêmico.

A análise feita das provas de 2005, 2008, 2011 e 2014, por Santana e Lima (2019), mostra que Bakhtin e Antonio Candido eram os dois autores teóricos mais citados nessas edições do exame e houve, com exceção de 2008, uma maior presença de textos teóricos do que de literários, o que levou as pesquisadoras a concluírem que se tratava “[...] de uma prova essencialmente de teoria literária e não de literatura”; para elas havia “[...] mais textos de teóricos que discutem e analisam literatura do que dos próprios autores” (SANTANA; LIMA, 2019, p. 236).

Na seleção de 2017, para além dessa presença diversa de autores, constata-se que o conteúdo dos textos teóricos, de modo geral, reforça o rompimento com a rigidez de um cânone literário tradicional. Nesse sentido, em duas questões, a prova coloca em xeque os processos de canonização, como se pode ver na questão 19, que apresenta artigo de Roberto Reis, cujo texto problematiza a existência de um cânone fixo e imutável, o qual, segundo o autor, reproduziria as relações desiguais que seccionam a sociedade.

Em sintonia com esse pensamento, a questão 29 apresenta um excerto do livro Teoria da literatura, de Terry Eagleton, em que o crítico literário britânico discute a efemeridade da ideia de valor literário e estético, afirmando que essas concepções variam conforme os valores estéticos de uma época e de cada grupo social. O segundo texto da questão traz uma experiência escolar na qual alunos precisavam separar, em um conjunto de textos diversos, gêneros literários e não literários, e, nessa tarefa hipotética, um dos grupos de alunos não fez qualquer separação, demonstrando que não concordavam com a divisão tradicional. No item, os discentes deveriam compreender que os textos abordavam o aspecto da qualidade e do que se concebe como obra literária e, com base no exemplo prático, relacioná-lo à concepção fluida, não estável da literatura, segundo a percepção de Eagleton.

Além da questão 29, apenas um outro item da avaliação aproxima literatura e ensino, e nele também se percebe essa tendência de abertura da seleção textual literária e teórica. Trata-se da questão 27, na qual a educação literária é abordada pelo texto teórico-reflexivo Língua e literatura: uma questão de educação, de Cyana Leahy-Dios e Cláudia Lage. No trecho apresentado, as autoras discutem a educação literária tanto como arte literária quanto como construção ideológica vinculada a determinado contexto social. Solicita-se ao estudante a leitura de trecho teórico e a identificação de sua concepção de literatura. A resposta correta para a questão sinaliza uma concepção abrangente que busca tirar a literatura de um campo estritamente formal e essencialista e situá-la como uma prática discursiva, a nosso ver, comum às demais questões da prova, pois esperava-se que o aluno assinalasse a seguinte alternativa: “o texto literário pode vir a formar leitores críticos por ser um fenômeno de linguagem que congrega aspectos estéticos, éticos, sociais e culturais” (BRASIL, 2017a).

Neste tópico, buscamos mostrar, por meio de exemplos, pressupostos concei- tuais e teóricos relativos ao ensino da literatura na avaliação do Enade 2017, que sinalizam mudanças decorrentes de tendências predominantes no processo que leva à consolidação de referências para os cursos de Letras. As questões da prova indicam o que se projeta como conteúdo curricular esperado em um determinado contexto histórico da produção teórica sobre a literatura e, nas entrelinhas, deixam ver a construção de uma resposta a abordagens que vieram antes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo apresenta uma análise das questões do Enade, edição de 2017, com foco na formação do futuro professor de Literatura. Assim, com base nas reflexões acerca da preparação desse professor que está sendo formado para atuar na educação básica, fizemos uma leitura analítico-reflexiva das questões da prova que trouxeram textos literários e/ou de teoria literária, ou ainda sobre educação literária, a fim de entender, por meio da análise da seleção textual literária e teórica e da abordagem desses textos, as concepções acerca do ensino de literatura que perpassam esse instrumento oficial de avaliação do ensino superior.

As questões que trouxeram, em sua maioria, textos literários do gênero poema reforçaram um discurso de rompimento com cânones escolares preestabelecidos, apontando, em seus pressupostos, a fragilidade de um sistema que não consegue abarcar a diversidade literária ou, mais especificamente, a diversidade autoral, temática, representativa de gêneros, tendências, etnias, territórios.

Nas questões em que o ensino de literatura se apresenta, direta ou indiretamente, demonstra-se que a educação literária abordada na prova dialoga com perspectivas teóricas contemporâneas que tiveram sua gênese sobretudo com os Estudos Culturais e que vêm se firmando nas últimas décadas nos cursos de Letras.

Essas constatações, que revelam disputas internas ao campo dos estudos literários, ganham destaque quando comparamos nossos resultados com aqueles obtidos por Santana e Lima (2019) ao analisarem as edições anteriores (2005, 2008, 2011 e 2014). As pesquisadoras apontam que as questões estudadas por elas indicavam um estreitamento da literatura com a tradição - representada por uma lista de autores consagrados - e a ausência de manifestações literárias não contempladas pelo cânone, adotando-se, segundo elas, uma concepção de literatura limitada e pouco democrática (SANTANA; LIMA, 2019, p. 238). O estudo mostra que as provas não contemplavam discussões contemporâneas da teoria literária, tais como as oriundas dos Estudos Culturais e da Semiótica, bem como questões voltadas para o ensino da literatura. Em um intervalo de três anos, no entanto, na prova do Enade de 2017, nota-se uma mudança de paradigma que foi o foco do estudo proposto neste artigo.

Destaca-se, na edição analisada, a abertura da concepção de literatura e da sua abordagem sob as perspectivas estética, social, histórica e cultural inter-relacionadas, quando se pensa a formação do professor de Literatura por um ponto de vista inclusivo e multifacetado. Sabe-se que a avaliação não é um retrato fiel de todos os cursos de Licenciatura em Letras do Brasil, mas uma vez que o Enade é uma ferramenta reguladora do ensino superior no país, cujos resultados geram rankings das melhores universidades e faculdades, aquilo que aparece nas questões acaba por ser mais valorizado por algumas instituições e assim passa a estar presente com mais frequência na formação acadêmico-profissional do graduando.

No exame, o ensino da literatura mostra-se em diálogo também com aspectos políticos e ideológicos, e salienta debates da sociedade como a questão da diversidade étnico-racial, colocando em evidência uma habilidade que se destaca nos documentos orientadores dos diversos níveis de educação: o letramento crítico dos estudantes. Esse aspecto se mostra como uma das concepções predominantes da avaliação, na defesa de o texto literário ter o poder de formar leitores críticos por ser um fenômeno de linguagem que reúne de forma articulada aspectos estéticos, éticos, sociais e culturais. Nesse sentido, as discussões empreendidas por Jouve (2012) e Paulino (2007), apresentadas no início deste texto, a respeito do ensino de literatura e da dimensão dos saberes que perpassam o literário como fatores que confluem para a experiência estética, confirmam-se como um direcionamento contemporâneo em disputa com proposições anteriores nas questões voltadas para a literatura no Enade 2017.

Conclui-se ainda que a articulação entre teoria e prática, que corresponderia às expectativas e proposições dos cursos de formação de professores de Literatura para atuarem na educação básica, se projeta timidamente na prova. Há, portanto, uma forte necessidade de inclusão da discussão sobre a educação literária e o letramento literário, na universidade e na educação básica, como parte relevante dessa formação. Das 15 questões que abordaram a literatura, apenas duas aproximaram ensino e literatura. Nota-se, assim, o que apontam os estudos de Gatti, Barreto e André (2011) sobre a predominância do saber acadêmico, de forte peso teórico, em relação ao saber prático, evidenciando, também no Enade, esse óbice a ser enfrentado nos cursos de licenciatura.

Por fim, a análise das questões de literatura da edição de 2017 do exame, principalmente quando colocada em comparação com a análise de edições anteriores, mostra que existem questões a serem resolvidas na formação do futuro professor de Literatura. Entre elas, uma mais equilibrada discussão a respeito do cânone que repercute diretamente nas escolhas dos autores e obras que serão estudados. Nesse sentido, valeria um esforço não pela via da disputa, mas do diálogo com a tradição. É certo que as provas, a cada edição, seguem tendências relacionadas a pesquisas e estudos das diversas áreas que englobam, tendências essas que não excluem aspectos políticos e ideológicos que orientam as abordagens adotadas e que constituem respostas a teorias que as antecederam. Nesse sentido, é necessário enxergar essa dinamicidade refletida nos diferentes momentos de aplicação do exame com cautela, a fim de compreender mudanças e permanências para vislumbrar o impacto dessas abordagens nas práticas do professor de Literatura.

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Recebido: 19 de Outubro de 2021; Aceito: 05 de Setembro de 2022

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