INTRODUÇÃO
O desenvolvimento das ideias e das iniciativas concretas relacionadas às creches durante o século XIX e a maior parte do século XX foi determinado não por considerações educacionais vinculadas à primeira infância, mas exclusivamente por considerações de assistência social vinculadas à necessidade de desenvolver “um equipamento substituindo certas mães: aquelas que trabalham fora” (Rosemberg, 1984, p. 74). Descrevendo a emergência de movimentos sociais nas capitais mais populosas do país em prol da expansão das creches a partir do final dos anos 1970, Fúlvia Rosemberg (1984, p. 75) constatava com assombro num artigo de 1984 que “é a Consolidação das Leis do Trabalho o único texto legal que legisla, até nossos dias, a obrigatoriedade de creches no país”, observando que a preocupação dessa norma trabalhista se relacionava à amamentação do bebê e não a considerações pedagógicas sobre a educação da criança pequena.
A construção política do direito à educação infantil como algo que vai muito além de seu tradicional caráter assistencial teve início efetivo, no Brasil, com os movimentos sociais que se mobilizaram nacionalmente para os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte convocada em 1985. Até então, não obstante a existência de iniciativas isoladas em sentido contrário, prevalecia um quadro estrutural em que
O Ministério da Educação não se ocupava da educação infantil (ou pré-escolar) e as ações públicas, seguindo a esteira das iniciativas privadas que buscavam apoio público, voltavam-se para as crianças das famílias de baixa renda. Ainda que visassem à ampla cobertura, seguiam o modelo de simplicidade e baixo custo: uma educação assistencial “pobre para os pobres”. (Nunes et al., 2011, pp. 20-21).
A Constituição de 1988 buscou romper com esse quadro: situou a educação como o primeiro dos direitos fundamentais sociais elencados no caput de seu art. 6º e considerou o “atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (redação original do art. 208, IV)1 uma garantia educacional específica que, não obstante também constitua um direito social dos trabalhadores, seus filhos e dependentes (art. 6º, XXV), não se confunde com a assistência social voltada para o “amparo às crianças e adolescentes carentes” (art. 203, II). Além disso, determinou que a família, a sociedade e o Estado assegurem os direitos das crianças e dos adolescentes com “absoluta prioridade” (art. 227).
As normas jurídicas que, de modo inédito em nossa história constitucional (Cury, 2014), conformaram o acesso à creche como uma garantia educacional específica das crianças foram desdobradas em leis ordinárias da década de 1990. Inicialmente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (LDB - Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990) determinou em seu art. 54, IV, que é dever do Estado proteger o direito à educação das crianças assegurando seu “atendimento em creche e pré-escola”. Em seguida, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996) deu um passo significativo e considerou a educação infantil (a ser oferecida pelos municípios em creches e pré-escolas) como a “primeira etapa da educação básica” (art. 29) e reforçou que o dever do Estado com a educação escolar pública engloba a “garantia de atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade” (redação original do art. 4º, IV).2
Todo esse bloco normativo constitucional e infraconstitucional produzido nos anos 1980 e 1990, nas expressivas palavras de Nunes et al.:
Levou a uma visão de criança mais ampla que a de menor, e ela passou a ser concebida como cidadã, não mais como problema, mas como pessoa sujeito de direitos, não mais fracionada em áreas independentes - físico, social, afetivo, cognitivo - mas um ser indivisível que requer, para ser compreendido e adequadamente atendido, atenção integral. (Nunes et al., 2011, p. 30, grifos do original).
No Plano Nacional de Educação aprovado em 2001, a importância da educação infantil foi também defendida à luz dos “argumentos advindos das ciências que investigaram o processo de desenvolvimento da criança”. Reconheceu-se nos primeiros anos de vida das crianças um período “crucial” durante o qual “o ambiente pode influenciar a maneira como o cérebro é ativado para exercer funções como em áreas como a matemática, a linguagem, a música” (Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001, Diagnóstico da Educação Infantil, item 1.1).
Ocorre que, na prática, a oferta da educação infantil pelos municípios acabou ficando numa posição subalterna àquela ostentada pela oferta do ensino fundamental, especialmente a partir da Emenda Constitucional n. 14, de 12 de setembro de 1996, que determinou que os municípios devem atuar prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil (art. 211, § 2º da Constituição) e criou um potente instrumento de subvinculação orçamentária que induziu os municípios a focalizarem sua oferta educacional no ensino fundamental (Cruz et al., 2014). Em 2002, Cury alertava para o claro risco de que essa focalização no ensino fundamental resultasse no “amortecimento ou [n]o retardamento quanto à universalização de outras etapas da educação básica e a sua sustentação por meio de recursos suficientes” (Cury, 2002, p. 175).
Em 2006, a Emenda Constitucional n. 53 alterou a política de fundos e subvinculações orçamentárias do financiamento da educação, superando a focalização anteriormente dirigida ao ensino fundamental para passar a abranger o ensino médio e a educação infantil, inclusive com maior aporte de recursos federais às redes estaduais com menos capacidade de financiamento próprio.
Em 2009, a Emenda Constitucional n. 59 passou a considerar como obrigatório não somente o ensino fundamental, mas também o ensino médio e especialmente a educação infantil das crianças de 4 e 5 anos, criando o conceito constitucional de “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade” (redação do art. 208, I, dada pela Emenda Constitucional n. 59, de 2009). Incluída no conceito de “educação básica obrigatória”, cujo não oferecimento pelo poder público gera a “responsabilidade da autoridade competente” (art. 208, § 2º da Constituição), a oferta da pré-escola (crianças de 4 e 5 anos) acabou rivalizando com a oferta de creches no âmbito dos municípios. Angela Coutinho constata que “há uma clara priorização do atendimento em pré-escola em detrimento do atendimento em creche”, sendo a “marginalidade da educação das crianças bem pequenas” um dado histórico (Coutinho, 2017, p. 20). Cruz et al. também constataram nas últimas décadas uma “subpriorização” da etapa da educação infantil em relação ao ensino fundamental (Cruz et al., 2014, p. 226).
Quando foi aprovado no Congresso Nacional o Plano Nacional de Educação (PNE) para o período 2014-2024, houve decepção entre os movimentos sociais e os especialistas em educação quanto à timidez da segunda parte da Meta 1 (Meta 1-B) do referido Plano, que consiste em ampliar a oferta de educação infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% das crianças de até 3 anos de idade até o final da vigência do Plano. Com efeito, o PNE de 2014, quanto à oferta de creches, limitou-se a repetir a meta de escolarização de 50% das crianças de 0 a 3 anos que já havia sido estabelecida em 2001 para ser alcançada até o ano de 2010 (Lei n. 10.172, de 9 de janeiro de 2001).
Mesmo sendo uma simples repetição de um alvo estabelecido 13 anos antes, a Meta 1-B do atual PNE provavelmente ficará muito distante da realidade ao findar-se a vigência do Plano no final de 2024. Segundo o módulo Educação da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), a taxa de escolarização das crianças brasileiras de 0 a 3 anos marcou 36% em 2022 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2023), valor ainda bastante distante da meta de alcançar no mínimo 50% das crianças de 0 a 3 anos até 2024.
Se foi de fato tímido ao simplesmente repetir a meta de atendimento das crianças de 0 a 3 anos fixada em 2001, o PNE de 2014 mostrou-se bastante ousado em relação à sua determinação de que, até 2024, a diferença entre as taxas de acesso à educação infantil das crianças de 0 a 3 anos oriundas do quintil de renda familiar per capita mais alta e do quintil de renda familiar per capita mais baixa seja “inferior a 10%” (Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014, Estratégia 1.2).3 Nesse aspecto haverá crasso descumprimento das determinações do PNE: segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2019 a taxa de atendimento por creches do quintil populacional de maior renda per capita foi mais do que o dobro da taxa de atendimento do quintil populacional de renda per capita mais baixa (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [Inep], 2022).
O presente artigo pretende contribuir para o processo de avaliação e controle social do PNE 2014-2024, elegendo como escopo sua Meta 1-B, de modo a responder a duas perguntas básicas e abrangentes: como se apresenta hoje e evoluiu historicamente a taxa de atendimento por creches de crianças de 0 a 3 anos em nosso país, considerando especialmente as diferenças estaduais, regionais e socioeconômicas? Em que consiste o fenômeno da judicialização do direito à educação infantil, quais os seus movimentos mais recentes e de que modo esse fenômeno vem efetivamente interferindo na dinâmica da ampliação do acesso às creches nos municípios brasileiros?
METODOLOGIA
A pesquisa tem caráter sociojurídico, analisando criticamente o conteúdo das normas educacionais relacionadas à oferta de creches e sua ampliação, as relações e os possíveis conflitos jurídicos existentes em seu conjunto, e, especialmente, a concreta eficácia social de seus comandos.
A metodologia é baseada na revisão bibliográfica da literatura produzida por pesquisadores da área de educação relativamente ao cumprimento da Meta 1-B do PNE 2014-2024 e da literatura produzida na área do direito e políticas públicas acerca do fenômeno da judicialização do direito à educação infantil e seus efeitos. Para operacionalizar tal revisão bibliográfica, contou-se especialmente com as bases de dados contempladas no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
A pesquisa tem natureza qualitativa. Os dados quantitativos e estatísticos apresentados, analisados e correlacionados no âmbito da pesquisa foram obtidos por meio da revisão bibliográfica descrita e do acesso direto a documentos e relatórios oficiais de órgãos governamentais e a repositórios e bases de dados educacionais mantidos por instituições não governamentais. Também foram examinadas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) acerca das consequências jurídicas derivadas da norma constitucional que considera “dever do Estado com a educação” a garantia de “educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças de até 5 (cinco) anos” (art. 208, IV da Constituição).
NÚMEROS GLOBAIS DA EDUCAÇÃO INFANTIL EM 2022. TAXAS DE ATENDIMENTO. COMPARAÇÃO INTERNACIONAL
Do total de 47,38 milhões de matrículas na educação básica em 2022, aproximadamente 9 milhões corresponderam à educação infantil. A pandemia da covid-19 reduziu sensivelmente o número de matrículas na educação infantil nos anos de 2020 e, especialmente, de 2021, tanto na pré-escola como na creche. Mas, enquanto o número de matrículas na pré-escola em 2022 (5,09 milhões) foi inferior ao número de matrículas no ano de 2019 (5,22 milhões), nas creches o número de matrículas de 2022 (3,93 milhões) foi superior ao número de matrículas de 2019 (3,75 milhões). Numa comparação entre as duas etapas, chama atenção como a presença da rede particular na oferta de creche é muito mais acentuada do que na oferta de pré-escola: no primeiro caso (creche), 33,6% dos alunos frequentam a rede particular, enquanto no segundo caso (pré-escola) esse valor cai para 21,2% (Inep, 2023).
A taxa de escolarização entre as crianças de 4 e 5 anos cresceu significativamente em termos nacionais nos primeiros anos do PNE 2014-2024. Segundo dados do Inep, essa taxa saltou de 87,9% em 2013 para 93% em 2017. A partir de 2017 esse crescimento arrefeceu, ficando a taxa de escolarização em 94,1% em 2019 (Inep, 2022), portanto com poucas perspectivas (mesmo sem considerar o efeito da pandemia da covid-19) para alcançar em 2024 a meta de universalização do atendimento, que deveria ter sido alcançada já em 2016 segundo o atual PNE (Meta 1-A). Com o advento da pandemia da covid-19, as taxas de escolarização entre as crianças de 4 e 5 anos caíram significativamente em 2020 e 2021 (Inep, 2023).
Com relação ao ano de 2022, a taxa de escolarização das crianças de 4 e 5 anos foi de 91,5% e a das crianças de 0 a 3 anos foi de 36% (IBGE, 2023). No primeiro caso (crianças de 4 e 5 anos), a taxa de escolarização de 2022 foi ligeiramente inferior à taxa registrada no último ano antes da pandemia (2019). No segundo caso (crianças de 0 a 3 anos), a taxa de 2022 foi ligeiramente superior à taxa registrada no último ano antes da pandemia (2019).
Nas publicações do Inep (2022, 2023) e do IBGE (2023), informam-se as taxas de atendimento ou de escolarização da população de 4 e 5 anos, ou seja, a proporção entre o número de indivíduos dessa faixa etária que frequentam a creche ou a pré-escola e o número total de indivíduos dessa faixa etária. Tais publicações comparam essas taxas de escolarização com o previsto na primeira parte da Meta 1 do PNE. Contudo, como observam Ximenes e Grinkraut (2014), a Meta 1 do PNE, como previu uma meta de atendimento (50%) das crianças de 0 a 3 anos “em creches” e outra meta de atendimento (100%) para as crianças de 4 e 5 anos “na pré-escola”, está se referindo à taxa de escolarização líquida das crianças de 4 e 5 anos, ou seja, a proporção entre o número de indivíduos dessa faixa etária que frequentam a pré-escola (e não a creche ou a pré-escola) e o número total de indivíduos dessa faixa etária. Caso as publicações do Inep e do IBGE apurassem essa taxa de escolarização líquida das crianças de 4 e 5 anos, os valores seriam ainda mais distantes da Meta 1 do PNE. Por outro lado, conforme reconhece o próprio Inep, o aumento da taxa de escolarização da população de 4 e 5 anos ocorrido no atual PNE deve-se, em sua maior parte, à queda da população brasileira com essa faixa etária, visto que, “na faixa de 4 e 5 anos, o número de crianças frequentando escola ou creche entre 2013 e 2019 praticamente não variou, ficando em torno de 5 milhões de atendidos” (Inep, 2022, p. 55).
Em termos de diferenças regionais no atendimento das crianças de 4 e 5 anos, chama atenção o fato de que o Nordeste, região do país com a menor renda per capita, é, desde o início do atual PNE, e segue sendo, a região com maior taxa de escolarização, alcançando 96,7% em 2019 segundo o Inep (2022, p. 55) e registrando 93,6% em 2022 segundo o IBGE (2023). Com relação a diferenças socioeconômicas, é de apenas 6,8% a diferença entre a taxa de escolarização do quintil populacional de 4 e 5 anos com maior renda per capita e a taxa de escolarização do quintil populacional de 4 e 5 anos com renda per capita mais baixa (Inep, 2022, p. 55). Em comparação com as taxas de atendimento da população de 4 e 5 anos, as taxas de atendimento da população de 0 a 3 anos são muito mais baixas e muito mais desiguais em termos regionais e socioeconômicos, conforme será detalhado nas seções seguintes.
Numa sintética comparação internacional, vê-se que a taxa atual de escolarização das crianças brasileiras é bastante inferior à média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para a idade de 3 anos (65,3% contra 82,3%) e para as idades de 0 a 2 anos (24,4% contra 36%). Já quando a comparação se refere à idade de 3 a 5 anos, a taxa brasileira é bastante similar à da média da OCDE (84,6% contra 87,1%). Numa comparação com países latino-americanos, as taxas brasileiras superam ligeiramente as taxas chilenas em todas as etapas e mostram-se bastante superiores às taxas de Argentina e México, especialmente quanto à idade de 0 a 2 anos (Organization for Economic Cooperation and Development [OECD], 2023).
EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS TAXAS DE ESCOLARIZAÇÃO DE CRIANÇAS DE 0 A 3 ANOS EM CRECHES
O primeiro ano para o qual foi possível coletar uma informação específica acerca da taxa de escolarização de crianças entre 0 e 3 anos foi o de 1995. Nesse ano, a taxa era de apenas 7,6% conforme levantamento de Castro com base nos dados da Pnad do IBGE (Castro, 2009).
Na Tabela 1, são apresentados os valores das taxas entre 1995 e 2022, com um avanço médio de 1,05 ponto percentual por ano, chegando a 36% em 2022.
ANOS | 1995 | 2005 | 2006 | 2010 | 2016 | 2018 | 2019 | 2022 |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Taxa de escolarização crianças 0 a 3 anos | 7,6% | 13% | 15,5% | 23,5% | 30,3% | 34,1% | 35,5% | 36% |
Fonte: Elaboração dos autores com base em dados de Castro (2009), Alves e Silva (2013) e IBGE (2023).
Podemos dividir esse longo intervalo de 27 anos em três períodos bem distintos. Num primeiro período, de 1996 a 2005, foi bastante lento o avanço da taxa de escolarização das crianças de 0 a 3 anos, numa média de apenas 0,5 ponto percentual por ano. Num segundo período, entre 2006 e 2018, o ritmo de avanço mais do que triplicou, alcançando uma média de 1,62 ponto percentual por ano. A partir de 2019, retorna-se a uma etapa de crescimento bem mais lento (menos de 0,5 ponto percentual por ano), especialmente pelo impacto da pandemia da covid-19 em 2020 e 2021.
No período entre 1996 e 2005, o fraco avanço das taxas de escolarização se deveu sobretudo ao fato de que a Emenda Constitucional n. 14, de 12 de setembro 1996, induziu um processo de acelerada municipalização do ensino fundamental, fazendo com que o ensino infantil, não incluído no mecanismo de subvinculação orçamentária do Fundef, ficasse numa posição de clara subpriorização em relação ao ensino fundamental (Cury, 2002; Coutinho, 2017; Cruz et al., 2014).
No período entre 2006 e 2018, a aceleração do avanço das taxas de escolarização de crianças de 0 a 3 anos se deveu sobretudo à inclusão do ensino infantil no mecanismo de subvinculação (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - Fundeb) inaugurado pela Emenda Constitucional n. 53, de 19 de dezembro de 2006, ao sensível aumento do valor das complementações federais aos fundos estaduais em relação ao período da Emenda Constitucional n. 14 (Pinto, 2018) e à existência de normas e programas federais de apoio aos municípios especificamente no âmbito das creches (Cruz et al., 2014; Falciano et al., 2019; Costa et al., 2020).
Mas a partir de 2019 houve uma nítida mudança de comportamento da União Federal com relação aos investimentos na ampliação da oferta pública de creches, o que reduziu os repasses para os municípios e impactou negativamente o ritmo de avanço da taxa de escolarização das crianças de 0 a 3 anos. Programas federais como o Proinfância4 e o Brasil Carinhoso5 passaram a receber muito menos recursos, o mesmo ocorrendo com as transferências da Lei n. 12.722, de 3 de outubro de 2012, destinadas a apoiar os municípios na abertura de novas turmas de educação infantil no atendimento a crianças ainda não computadas no âmbito dos fundos estaduais que financiam a educação básica (Macedo & Veiga, 2021).
Em 2021 ocorreu a revogação do Programa Brasil Carinhoso e sua substituição formal pelo Auxílio Criança Cidadã. O Auxílio Criança Cidadã procurava replicar em âmbito nacional o programa da Prefeitura de São Paulo intitulado Programa Mais Creche (Nascimento et al., 2022) e consistia na previsão de entrega de recursos públicos diretamente a entidades privadas que ofertassem educação infantil na etapa creche. O Auxílio Criança Cidadã foi previsto na lei que criou o Auxílio Brasil (Lei n. 14.284, de 29 de dezembro de 2021), mas sua regulamentação, inicialmente contida no Decreto n. 10.852, de 8 de novembro de 2021, foi posteriormente revogada antes mesmo de entrar em execução pelo Decreto n. 11.013, de 29 de março de 2022, com o resultado prático de que o Auxílio Criança Cidadã, mesmo apresentando previsão orçamentária, não chegou a ter nenhum efeito concreto (Madeiro, 2022).
Os gastos federais com obras de creche e pré-escola despencaram de R$ 495,5 milhões em 2018 para apenas R$ 101,4 milhões em 2021 (Saldaña, 2022); na proposta do orçamento de 2023 apresentada em 2022 pelo executivo federal houve redução de 97,5% dos recursos destinados à implantação de escolas de educação infantil (Ventura, 2022). Essa mudança de prioridades do governo federal bem como os impactos da pandemia da covid-19 em 2020 e 2021 fizeram com que, entre 2019 e 2022, tenha sido muito tímida a expansão da taxa de escolarização das crianças entre 0 e 3 anos, não obstante o sensível aumento, a partir de 2021, nos repasses federais aos municípios (Silva, 2023) conforme as novas formas de complementação da União no âmbito do Fundeb permanente aprovado pela Emenda Constitucional n. 108, de 26 de agosto de 2020.
SIGNIFICADO DO DESCUMPRIMENTO DA META 1-B DO PNE, COM IMENSAS DESIGUALDADES REGIONAIS E SOCIOECONÔMICAS
Por todas as informações e análises contidas na seção anterior, constata-se que a Meta 1-B do PNE 2014-2024 será descumprida. Mesmo que durante os anos de 2023 e 2024 se consiga duplicar o ritmo de avanço da taxa de escolarização alcançado nos anos anteriores à pandemia da covid-19, ainda assim não será possível alcançar em âmbito nacional a meta estabelecida no PNE.
Para avaliar de modo adequado o que significa esse descumprimento, é necessário relembrar que em nosso país o ensino obrigatório somente tem início quando a criança atinge 4 anos de idade (art. 208, I da Constituição). Apesar de existir há tempos um robusto consenso científico sobre a importância decisiva dos estímulos educacionais ocorridos na primeira fase da primeira infância para o desenvolvimento integral do ser humano ao longo de toda sua vida (Crespi et al., 2018), compete à família de cada criança decidir por matricular ou não a criança numa creche.6 O PNE estabelece a meta de 50% para a taxa de escolarização das crianças de 0 a 3 anos e exige a adoção de estratégias de busca ativa para identificar, registrar e monitorar de modo transparente a efetiva demanda por creches, preservando o direito de opção da família. Nesse sentido, Ximenes e Grinkraut (2014, p. 80) observam que “será a demanda manifesta em cada município que definirá, no fim das contas, o quanto essa meta se aproximará do somatório do direito de cada criança detentora da prerrogativa de acesso à educação infantil em creche de qualidade no país”.
Se um município adotar todas as estratégias de busca ativa e garantir identificação, monitoramento e atendimento da demanda manifesta por creches, uma eventual taxa de escolarização inferior a 50% entre as crianças de 0 a 3 anos não se revelará necessariamente uma violação do direito fundamental à educação, visto que, especialmente no caso das crianças de 0 e 1 ano de idade, boa parte das famílias opta livremente por não efetuar sua matrícula em creche.
Ocorre que na grande maioria dos municípios brasileiros a taxa de escolarização das crianças de 0 a 3 anos é inferior a 50%, não como decorrência de uma opção das famílias, mas como consequência da ausência de busca ativa - conforme constatado pelo Tribunal de Contas da União (2017) - e do não atendimento da demanda manifestada pelas famílias, havendo em muitos municípios imensas filas de crianças aguardando a abertura de vagas em creches. No caso das crianças de 0 e 1 ano, 31,7% dos indivíduos que não frequentam a creche em âmbito nacional não o fazem por falta de vaga em seu município, proporção que sobe para 39,7% no caso das crianças de 2 e 3 anos (IBGE, 2023). A situação do município do Rio de Janeiro é bastante representativa da realidade do país: a taxa de escolarização das crianças de 0 a 3 anos para o ano de 2020 foi estimada em apenas 34,99% pelo Instituto Rui Barbosa (2023), e metade das 35 mil crianças que buscaram vagas em creches no ano de 2023 não foram atendidas por falta de vagas (Madureira & Espírito Santo, 2023). Em levantamento efetuado na plataforma TCEduca do Instituto Rui Barbosa (2023), constata-se que, com relação ao ano de 2020, apenas 20,2% dos municípios contavam com taxa de escolarização com valores de 48,5% ou mais para crianças de 0 a 3 anos.
Pesquisa recente baseada em estimativas populacionais e em resultados da Pnad Contínua estimou que no estrato populacional mais pobre a taxa de frequên- cia à creche em âmbito nacional no ano de 2019 foi de apenas 22%. Em estados com alta taxa de escolarização das crianças de 0 a 3 anos, como São Paulo e Santa Catarina, a taxa de frequência em determinados estratos é próxima de 90%, mas a taxa verificada entre a população mais pobre é inferior a 40% (Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, 2021).
São, portanto, abundantes as evidências de que a grande maioria dos municípios brasileiros não alcança a Meta 1-B do PNE nem desempenha satisfatoriamente as estratégias de busca ativa e identificação, monitoramento e atendimento da demanda manifesta por creches. O resultado é um contingente considerável de crianças de 0 a 3 anos que permanecem fora das creches não por livre e informada opção de suas famílias, mas por falta de vagas. E o que determina se uma criança estará ou não nesse contingente não é o acaso ou a sorte, e sim a condição socioeconômica de sua família. Ao longo do PNE 2014-2024, essa realidade permaneceu praticamente intocada: a diferença entre a taxa de escolarização do quintil populacional de 0 a 3 anos com maior renda per capita e a taxa de escolarização do quintil populacional de 0 a 3 anos com renda per capita mais baixa era de 31 pontos percentuais em 2014 e permanecia em 27,3 pontos percentuais em 2019 (Inep, 2022). Essa constatação revela que o descumprimento da Meta 1-B do PNE carrega consigo uma perversa estratificação do acesso à educação nos primeiros anos da infância segundo a classe social das famílias das crianças, em aberto descumprimento da norma do PNE 2014-2024 segundo a qual, em 2024, a diferença entre as taxas de acesso à educação infantil das crianças de 0 a 3 anos oriundas do quintil de renda familiar per capita mais alta e do quintil de renda familiar per capita mais baixa deveria ser inferior a 10% (Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014, Estratégia 1.2).
A grande diferença de taxas de escolarização das crianças mais novas em função do nível socioeconômico de suas famílias é notável também nos ricos e igualitários países europeus. Na Holanda, por exemplo, a taxa de escolarização das crianças de 0 a 2 anos do terço superior com maior renda per capita é de 85,5%, contra apenas 51,1% do terço inferior. Na França, a discrepância é ainda maior: 76,3% contra 26,8% (valores relativos ao ano de 2020) (OECD, 2023).
Voltando à realidade brasileira, ao longo do atual PNE houve um ligeiro aumento das já imensas desigualdades regionais e estaduais quanto à efetividade do direito ao acesso à creche. A diferença entre as taxas de escolarização das crianças de 0 a 3 anos entre a região Sudeste e a região Norte aumentou de 22,5 pontos percentuais no ano de 2014 para 24 pontos percentuais em 2022, enquanto a distância entre as taxas do Sudeste e do Nordeste cresceu de 9,5 pontos percentuais para 10 pontos percentuais no mesmo período. No mesmo sentido, a distância entre a taxa de escolarização das crianças de 0 a 3 anos no estado de São Paulo e no estado do Amazonas aumentou de 31 para 40 pontos percentuais entre 2014 e 2022 (Inep, 2022; Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2023).
JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL E SUAS POSSÍVEIS RELAÇÕES COM A EXPANSÃO DA OFERTA DE CRECHES NOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS
A judicialização das políticas públicas consiste na interferência do sistema de justiça em diversos aspectos da formulação, da execução e da avaliação de políticas públicas relativas a vários setores da vida social, como educação, saúde, segurança e meio ambiente. O sistema de justiça inclui o poder judiciário e outros órgãos, tais como o ministério público, a defensoria pública e as entidades organizadas da sociedade civil que atuam em juízo na defesa de direitos de determinados grupos sociais. No Brasil, a judicialização das políticas públicas ganhou relevância com o advento da Constituição de 1988, que aumentou consideravelmente o acesso da população tanto a direitos fundamentais individuais e sociais quanto ao sistema de justiça responsável pela aplicação do ordenamento jurídico sob uma nova perspectiva de efetividade e transformação social (Barroso, 2006; Sarlet, 2015).
A judicialização no campo da educação decorre das profundas inovações da Constituição de 1988 no tratamento do direito à educação (Cury & Ferreira, 2010) e abrange variados aspectos, como a responsabilidade civil dos educadores e gestores públicos (Chrispino & Chrispino, 2008), a garantia de padrão de qualidade do ensino (Ximenes, 2014; Taporosky, 2017) e, em especial, o acesso a vagas em creches e pré-escolas.
Para avaliar adequadamente seus efeitos sobre a ampliação da oferta de vagas em creches, é preciso identificar as principais fases do fenômeno da judicialização do direito à educação infantil. Num primeiro momento, que vai da década de 1990 até 2005, as ações judiciais individuais ou coletivas que pleiteavam vagas em creches recebiam respostas hesitantes do poder judiciário, numa jurisprudência oscilante e incerta (Jung et al., 2014), com muitos tribunais utilizando o art. 208, § 1º da Constituição, para argumentar que somente o acesso ao “ensino obrigatório” constituiria um “direito público subjetivo” passível de exigência perante o judiciário. O ano de 2005 pode ser visto como um marco na medida em que, nesse ano, o STF começou a proferir decisões unânimes e definitivas no sentido de que a garantia constitucional de acesso à educação não se inicia somente com o ensino obrigatório, estando os municípios impedidos de alegar genericamente problemas administrativos ou que não possuem condições orçamentárias para abrir vagas em creches e pré-escolas para os autores das ações judiciais (Supremo Tribunal Federal, 2006).
Em virtude desse entendimento do STF, começou a consolidar-se nos tribunais de todo o país uma jurisprudência francamente favorável a ações pleiteando abertura de vagas em creches e pré-escolas. Contudo, nesse segundo momento somente costumavam ter êxito as ações individuais ou coletivas que pleiteassem vagas em favor de indivíduos certos e determinados. No caso de ações (em geral propostas pelo ministério público) que procuravam influenciar a política pública educacional de modo mais estrutural e difuso, pleiteando que o judiciário determinasse a paulatina ampliação das vagas em creches e pré-escolas em favor de toda a população infantil do município, o poder judiciário quase sempre denegava os pedidos, ora alegando que não poderia interferir na política educacional ou nos rumos do orçamento municipal, ora alegando que os pedidos eram por demais genéricos (Taporosky, 2017; Oliveira et al., 2018). Nesse contexto em que o poder judiciário somente acolhia ações em benefício de indivíduos determinados, os efeitos positivos sobre a expansão da oferta de creches eram bastante duvidosos. Na prática, o resultado das ações judiciais exitosas consistia em autorizar os demandantes a furar a longa fila de espera para as vagas, em detrimento do direito das crianças que haviam se cadastrado junto à Prefeitura, mas não possuíam ação judicial em seu favor (Gotti & Ximenes, 2018).
A partir de 2013, identifica-se o surgimento de uma nova etapa nas formas em que o sistema de justiça pode interagir de modo mais virtuoso e efetivo com o poder executivo municipal na formulação, na execução e na avaliação da política educacional. Numa decisão do final do ano de 2013, o Tribunal de Justiça de São Paulo, após a realização de audiência pública, acolheu os pedidos de duas ações coletivas propostas por organizações da sociedade civil contra a Prefeitura da capital paulista, determinando que o município criasse ao longo de três anos 150 mil novas vagas em educação infantil, com a instauração de um Comitê interinstitucional para supervisionar a execução da decisão. Conforme observam Bezerra (2023), Refosco (2020) e Ximenes et al. (2019), decisões como essas, guiando-se por uma lógica estrutural e de diálogo institucional em que se preservam as capacidades institucionais dos atores em questão, têm muito mais a contribuir com a expansão do acesso a uma educação infantil de qualidade do que no caso da judicialização tradicional voltada para demandas de satisfação de interesses imediatos de indi- víduos específicos.7
O julgamento do STF que poderia ter provocado sério retrocesso no acesso a creche e pré-escola
No ano de 2022, um julgamento do STF por pouco não provoca um grave retrocesso na dinâmica de acesso a creches por meio de ações judiciais. Tratava-se de um caso semelhante a inúmeros outros já julgados nos últimos anos pelo tribunal: o município de Criciúma fora condenado pelo Tribunal de Santa Catarina a matricular uma criança numa creche e recorreu ao STF, alegando que o poder judiciário não poderia se imiscuir na política educacional do município, visto que a etapa da creche não é obrigatória e, desse modo, a norma da Constituição que prevê a garantia de acesso à creche (art. 208, IV) seria meramente “programática”, devendo ser cumprida “dentro dos limites orçamentários do poder público” (Supremo Tribunal Federal, 2023, p. 4).
Quando tudo indicava que o STF iria confirmar sua antiga jurisprudência, eis que o relator do caso, ministro Luiz Fux, proferiu voto julgando procedente o pedido judicial de abertura de vaga em creche ou pré-escola no caso de “incapacidade financeira do requerente de arcar com o custo” da matrícula numa instituição privada, voto que obteve o apoio inicial dos ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes (Supremo Tribunal Federal, 2023, pp. 30-34). Diante desse voto surpreen- dente, que desconsiderava toda a jurisprudência construída anteriormente pelo STF e retrocedia a uma concepção meramente assistencialista da educação infantil, várias associações civis do campo da educação (Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2022) reagiram prontamente e se manifestaram publicamente no sentido de alertar para o retrocesso que tal orientação certamente provocaria.
Retomado o julgamento alguns dias depois da sessão em que o relator proferira o seu voto inicial, todos os julgadores, com exceção do ministro André Mendonça, se deram conta do retrocesso que o voto inicial do relator provocaria e decidiram reafirmar a jurisprudência tradicional do STF, decidindo que o direito fundamental à educação pode ser exigido individualmente e inclui a garantia de acesso à educação infantil, não podendo o município considerar a norma do art. 208, IV, como meramente programática e genericamente condicionada às disponibilidades do orçamento público (Supremo Tribunal Federal, 2023).
O julgamento do recurso do município de Criciúma ainda não está finalizado, visto que o município interpôs novo recurso ao STF, alegando, dentre outras coisas, que não possui condições orçamentárias de arcar com os custos necessários para a abertura de novas vagas em creche pleiteadas em juízo.
Essa argumentação do município de Criciúma sugere aos ministros do STF que, ao efetuar uma nova matrícula na educação infantil, o município assume novo ônus sem qualquer contrapartida em termos de fontes de recursos, ignorando ou fingindo ignorar que uma nova matrícula em creche na rede municipal aumenta os recursos a serem recebidos pelo município no ano seguinte no âmbito do Fundeb de seu estado (além das complementações federais adicionais do Fundeb previstas na Emenda Constitucional n. 108, de 26 de agosto de 2020) e que, enquanto essa nova matrícula não é processada para fins de sua inclusão oficial no rateio de recursos do Fundeb estadual, a legislação federal prevê no art. 2º da Lei n. 12.722, de 3 de outubro de 2012, uma hipótese específica de transferência de recursos da União para não prejudicar a execução do orçamento municipal relativamente a essa nova matrí- cula. Espera-se que, no julgamento do recurso do município de Criciúma, os ministros do STF não deixem de levar em consideração essas normas da legislação sobre o financiamento da educação.
Judicialização do direito ao acesso a creches e aumento da proporção da rede conveniada
Há evidências de que um dos efeitos da judicialização é uma expansão da oferta de vagas em creches num processo que tende a aumentar a proporção de creches privadas conveniadas com o setor público. O caso do estado de São Paulo e especialmente do município de São Paulo parece indicar exatamente isso.
No início do PNE, em 2014, o estado de São Paulo já apresentava a segunda maior taxa de escolarização no país entre crianças de 0 a 3 anos (40,2%), ficando atrás somente de Santa Catarina (44,6%) (Inep, 2022). Ao longo do PNE, o estado de São Paulo foi dos que mais expandiu sua taxa de escolarização, chegando a 52% em 2022, a maior taxa entre os estados brasileiros (Campanha Nacional pelo Direito à Educação, 2023). Em muitos municípios paulistas vem ocorrendo um intenso processo de judicialização do acesso às creches, sendo que um dos efeitos já identificados pelas pesquisas realizadas é exatamente o aumento da proporção da rede conveniada (Oliveira et al., 2018; Rodrigues et al., 2021).
O município de São Paulo, que como visto na seção anterior vivenciou um intenso processo de judicialização e atualmente não possui listas de espera para acesso a creches (Secretaria Municipal de Educação, 2022), possui, segundo o Instituto Rui Barbosa (2023), uma taxa de escolarização de 57,59% para as crianças de 0 a 3 anos. Contudo, essa alta taxa de escolarização sem a existência de filas de espera para acesso às creches foi obtida no contexto de um processo de contínua privatização da educação infantil, em que a expansão de vagas direcionadas a entidades privadas conveniadas foi de 151% entre 2010 e 2016 (contra uma expansão de apenas 32% no caso das creches da rede pública municipal), fazendo com que a proporção de matrículas em entidades conveniadas saltasse de 50% em 2010 para 65% em 2016 (Rodrigues et al., 2021). Esse processo continua a ocorrer no conjunto dos municípios paulistas entre 2017 e 2022: em 2017, as matrículas em creches públicas correspondiam a 66,3% do total (Inep, 2020), caindo para 64,1% em 2022, a terceira menor proporção em âmbito nacional (Inep, 2023). No município de São Paulo, a hegemonia da oferta em âmbito privado impressiona ainda mais: em 2020, havia 427 centros de educação infantil direta (rede pública) e 1.724 creches particulares conveniadas; em termos de matrículas, a rede pública atende somente 20% da demanda, contra 80% de atendimento pela rede conveniada (Nascimento et al., 2022).
Como o custo orçamentário de atender uma criança numa creche conveniada costuma ser inferior ao custo relacionado ao atendimento via expansão da rede pública, vem ganhando força o modelo paulistano de expandir as vagas em creches via aumento sistemático da rede conveniada sem expansão de monta da rede pública, o que levanta preocupações em termos do controle da qualidade da oferta do ensino nessa etapa (Franco et al., 2019).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se pode negar que ao longo do atual PNE houve avanços na expansão da taxa de escolarização das crianças brasileiras de 0 a 3 anos, especialmente até o ano de 2019. Mas esses avanços foram insuficientes para o cumprimento de uma meta de ge- neralização do acesso à creche que já havia sido fixada e descumprida ao longo do PNE anterior.
Além do não cumprimento da meta quantitativa de 50% de taxa de escolarização, a grande maioria dos municípios brasileiros tampouco desempenha satisfatoriamente as estratégias de busca ativa e identificação, monitoramento e atendimento da demanda manifesta por creches.
O avanço insuficiente da taxa de escolarização das crianças de 0 a 3 anos se deu ao longo do atual PNE sem nenhuma alteração de seu padrão historicamente desigual e excludente, a condenar as crianças de famílias de menor renda per capita e residentes em estados e regiões mais pobres a taxas de escolarização bastante inferiores às que vigoram nos estratos sociais de maior poder aquisitivo e nos estados mais ricos da federação.
Se, em 2022, num julgamento do STF, correu-se o risco concreto de retroceder décadas e retomar uma noção ultrapassada meramente assistencialista de educação infantil, o período que se inicia em 2023 traz a perspectiva concreta de retomada de programas e investimentos na expansão da oferta de creches, como é o caso do Pacto Nacional pela Retomada de Obras e de Serviços de Engenharia destinados à Educação Básica instituído pela Medida Provisória n. 1.174, de 12 de maio de 2023.
Iniciativas como essa são fundamentais para evitar que a necessária e esperada expansão da oferta de vagas em creches, pressionada pelo fenômeno da judicialização, conduza a um quadro de privatização da educação infantil, com uma expansão desproporcional da rede de entidades privadas conveniadas sem que seja dada prioridade à expansão da rede pública, conforme determina a Constituição de 1988 e sua compreensão do ensino educacional necessariamente vinculado à sua gestão democrática com garantia de padrão de qualidade.