INTRODUÇÃO
O acesso a uma educação de qualidade é direito de todo cidadão, garantido pela Constituição Federal de 1988. Entretanto, são muitos os fatores que se impõem e dificultam seu alcance, especialmente quando estão relacionados à desigualdade de condições enfrentada pelos estudantes brasileiros.
Sobre essas desigualdades reportou-se ao Relatório de Coleman (Coleman, 1968), que é um marco na pesquisa educacional. O referido relatório apontou que as diferenças nos recursos escolares entre alunos brancos e negros não eram tão marcantes, destacando que a maior influência no desempenho dos estudantes advinha de fatores externos, como ambiente familiar e condições socioeconômicas. Esses dados incitaram debates e reformas nas políticas educacionais, especialmente com relação à segregação racial e desigualdade de recursos.
No Brasil, reflexos do Relatório de Coleman podem ser percebidos no desenvolvimento de pesquisas educacionais pela Fundação Getulio Vargas, desde 1966, particularmente no Centro de Estudos de Testes e Pesquisas Psicológicas, que realizou estudos pioneiros sobre a relação entre desempenho acadêmico e variáveis socioeconômicas (Gatti, 2009).
Seguindo a tendência de realização de estudos com uma análise crítica sobre a realidade educacional brasileira, o Plano Nacional da Educação (PNE), previsto pela Lei n. 13.005 de 2014, busca abordar e mitigar disparidades educacionais no Brasil. Com suas dez diretrizes e um plano detalhado que inclui 20 metas e 254 estratégias, o PNE mira uma transformação abrangente, compreendendo todos os níveis de ensino e aspectos variados como investimento público, educação especializada, educação integral e gestão democrática.
Contudo, não basta a criação de metas e estratégias sem um monitoramento dos resultados obtidos e das possíveis lacunas encontradas. A identificação dessas lacunas, inclusive, vai ao encontro da proposta deste artigo no que se refere à Meta 7 (a que tem o maior número de estratégias), cujo foco é fomentar a qualidade da educação básica (EB), de modo a atingir as médias nacionais estimadas para o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) (Ministério da Educação [MEC], 2014). O monitoramento do alcance dessas médias se dá pelo Sistema de Avaliação da EB (Saeb) e pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa).
O Saeb e o Pisa são avaliações educacionais de grande escala, aplicadas no Brasil, que contemplam a área de Ciências da Natureza (CN).1 No entanto, a referida área não tem avaliações de larga escala contínuas e, quando aplicadas, são amostrais, como ocorreram nas últimas edições do Saeb, nas quais a ênfase foram Língua Portuguesa e Matemática. Diante desse contexto, Garcia et al. (2019, pp. 4-5) afirmam que:
No Brasil, as consequências das ALEs [avaliações de larga escala], entre outras questões, têm induzido os alunos a acreditarem que as disciplinas mais importantes na escola são as de português e matemática, percepção que é reforçada pelos professores, pelas escolas e secretarias de educação (Garcia et al., 2018a). De algum modo, essa situação explica por que a disciplina de ciências tem sido considerada de segunda classe. (Observatório da Educação do Grande ABC [OEGABC], 2015).
Os mesmos autores ainda concluem que:
. . . os fortes investimentos apenas nessas duas áreas [Língua Portuguesa e Matemática] trazem consequências significativas para o desenvolvimento do ensino de Ciências e para o (des)interesse dos alunos pelos conhecimentos científicos. (Garcia et al., 2019, p. 4).
Portanto, diante desse cenário, considera-se pertinente ampliar a discussão deste artigo, em razão de o PNE (2014-2024) ter na Meta 7, mais especificamente na estratégia 7.07, a obrigatoriedade de englobar o ensino de CN nos exames aplicados nos anos finais dos ensinos fundamental e médio. Essa obrigatoriedade torna-se importante à medida que, por meio do ensino de CN, é possível refletir e discutir sobre o manejo dos espaços naturais, a intervenção nos ciclos biogeoquímicos e a apropriação dos mecanismos naturais de produção, como formas de interferir na relação existente entre o ser humano e a natureza, que, nos últimos anos, vem culminando em diversos impactos para o meio ambiente. Entre as heranças recentes desses impactos estão a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, o agravamento do aquecimento global, a crise climática gerando chuvas intensas e elevadas secas, a má distribuição alimentar, entre outras, que colocam em risco a sobrevivência dos seres vivos e do próprio planeta Terra.
A Base Nacional Comum Curricular (Ministério da Educação [MEC], 2018, p. 9) aponta como uma das competências gerais da EB:
Exercitar a curiosidade intelectual e recorrer à abordagem própria das ciências, incluindo a investigação, a reflexão, a análise crítica, a imaginação e a criatividade, para investigar causas, elaborar e testar hipóteses, formular e resolver problemas e criar soluções (inclusive tecnológicas) com base nos conhecimentos das diferentes áreas.
Diante da importância das Ciências, outras estratégias, além da 7.07, referem-se a ela, como a 7.03 e a 7.11: a primeira tem como foco a criação de indicadores para avaliações institucionais que considerem as particularidades do ensino e da aprendizagem de Ciências, enquanto a 7.11 se concentra no desempenho dos estudantes em avaliações internacionais como o Pisa.
O monitoramento efetivo dessas estratégias é reforçado pela estratégia 7.10, que preconiza a transparência e o acesso aos resultados para garantir que os avanços na educação científica sejam efetivos e inclusivos, superando os desafios identificados tanto em âmbito nacional quanto no contexto mais global.
No entanto, a educação científica pode sofrer influência dos contextos socioculturais dos envolvidos, agravados por desigualdades no acesso à escola e aos recursos educacionais. Ferrão e Alves (2023), por exemplo, analisaram como os fatores socioeconômicos afetam a repetência escolar no Brasil, concluindo que, apesar de uma redução geral nos índices, as diferenças baseadas em renda, cor/raça, gênero e localização ainda persistem, uma vez que são identificadas nos testes padronizados.
Nesse sentido, Bennett (2023) ressalta a necessidade de métodos de avaliação que considerem as diversas experiências socioculturais dos estudantes, de forma inclusiva e holística, contemplando a diversidade cultural e linguística para que possam refletir de forma mais precisa a aprendizagem em diferentes contextos. Isso envolve a incorporação de conteúdos e perspectivas que se alinhem com as vivências dos alunos.
Diante do exposto, a questão central que direcionou o desenvolvimento deste artigo é: de que maneira o desenvolvimento da Meta 7 do PNE vem afetando o ensino e a aprendizagem de CN, nos últimos anos, no Brasil? Para respondê-la, serão apresentados dois mecanismos: o primeiro consistiu em compreender o que está sendo realizado para garantir a inclusão de CN nas ALEs nacionais; o segundo apresenta uma análise do perfil da proficiência média dos estudantes no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), na área de CN, considerando as condições socioeconômicas. Para essa segunda etapa, utilizaram-se dados dos estudantes, tais como localização por estado, gênero (masculino e feminino), cor (amarelo, pardo, preto, branco, indígena e não declarado), tipo de escola (pública ou privada) e deficiência (surdo e cego) no período de 2014 a 2022.
A seguir, é feita uma breve descrição da Meta 7 do PNE e das estratégias relacionadas ao ensino de Ciências.
ESTRATÉGIAS DA META 7 DO PNE (2014-2024) DIRECIONADAS AO MONITORAMENTO DO ENSINO DE CIÊNCIAS NO BRASIL
A Meta 7 do PNE 2014-2024 visa a melhorar a qualidade da EB em todas as suas etapas e modalidades. O conceito de qualidade no âmbito educacional é polissêmico e sujeito a várias interpretações. Centrais para as propostas do Plano são o desenvolvimento de programas de avaliação de larga escala e a institucionalização de indicadores educacionais.
Esses programas têm como objetivo fornecer dados para aprimorar o fluxo escolar e a aprendizagem, comparando os resultados com as metas do Ideb. As médias nacionais projetadas para o Ideb de 2015 a 2021 são apresentadas na Tabela 1.
MÉDIA IDEB | 2015 | 2017 | 2019 | 2021 |
---|---|---|---|---|
Anos iniciais do ensino fundamental | 5,2 | 5,5 | 5,7 | 6,0 |
Anos finais do ensino fundamental | 4,7 | 5,0 | 5,2 | 5,5 |
Ensino médio | 4,3 | 4,7 | 5,0 | 5,2 |
Fonte: Lei n. 13.005 (2014).
O Ideb efetivo é calculado com dados de aprovação, provenientes do Censo Escolar, e desempenho no Saeb (em Língua Portuguesa e Matemática). Assim, o Ideb oferece pouca informação sobre o aprendizado em Ciências.
Além do Ideb, o desempenho dos alunos da EB no Pisa é usado para monitorar a Meta 7. O Pisa é um instrumento de avaliação internacionalmente reconhecido. As médias nacionais do Brasil no Pisa, projetadas para 2015 a 2021, estão na Tabela 2.
PISA | 2015 | 2018 | 2021 |
---|---|---|---|
Média dos resultados em Matemática, Leitura e Ciências | 438 | 455 | 473 |
Fonte: Lei n. 13.005 (2014).
O Pisa, para a área de Ciências, busca avaliar o letramento científico dos estudantes por meio de três competências: explicação de fenômenos científicos; avaliação e planejamento de experimentos científicos; e interpretação de dados e evidências, cientificamente (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira [Inep], 2015; Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE], 2019).
As médias apresentadas nas tabelas 1 e 2 serão mais facilmente alcançadas quando a estratégia 7.07 for contemplada. Essa estratégia versa sobre aprimorar os instrumentos de avaliação, o que, de maneira geral, é um passo para o monitoramento e a garantia da qualidade e equidade da educação em Ciências ofertada no Brasil.
Para fomentar essa discussão, faz-se necessário descrever a área de CN por três principais aspectos: formação de professores de Ciências no Brasil; descontinuidade de monitoramento do desempenho dos alunos da EB em Ciências pelas avaliações nacionais; e uso do Enem como avaliação de desempenho e diagnóstica.
Formação de professores de Ciências no Brasil
Com a promulgação da Lei n. 5.692/1971, o ensino de CN no Brasil, já integrado ao 1º grau, foi estendido para o 2º grau, abrangendo as disciplinas de Biologia, Física e Química. No entanto, a abordagem adotada era predominantemente tecnicista, com ênfase em atender às demandas da produção industrial, sem a preocupação com o desenvolvimento integral dos cidadãos (Martins, 2005).
Também em 1971, para suprir a carência de professores qualificados, o Conselho Federal de Educação (CFE) implementou, por meio da Portaria n. 432 (1971), cursos de complementação pedagógica para profissionais com formação superior e média (Martins & Vidal, 2021; Costa et al., 2015; Lima & Leite, 2018). Mazzetto et al. (2002) criticam essa formação por ser apressada e superficial, especialmente nas áreas de Biologia, Física e Química.
A partir da década de 1980, houve um movimento significativo nas universidades brasileiras, visando a construir a identidade dos cursos de licenciatura plena em Biologia, Física e Química (Krasilchik, 2000). Esse período também marcou o crescimento do movimento Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) no Brasil, refletindo tendências internacionais e enfatizando a relação entre ciência, sociedade e tomada de decisões éticas.
No entanto, o fortalecimento da formação de professores de Ciências no Brasil ocorreu, principalmente, após a implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) em 1996, que promoveu uma mudança relevante por meio do Decreto n. 3.276 (1999), incentivando a criação de cursos de licenciatura plena, abolindo as licenciaturas curtas e promovendo políticas de incentivo à docência.
Entretanto, ainda há
. . . falta de articulação entre a formação inicial, a formação continuada, o ingresso e a permanência na carreira docente. Na América Latina, existem ações de formação focadas nesses níveis, mas, geralmente, acontecem de forma desarticulada, em espaços distintos e com pouca interação. (Moreno- -Rodriguez & Massena, 2020, p. 19).
No Brasil, esse fato se reflete nos dados recentes do Censo Escolar de 2022 sobre a qualidade da formação docente na área de Ciências, Biologia, Física e Química na EB. Tais informações revelam que a maior adequação está entre os docentes de Ciências nos anos iniciais, com 71,7% possuindo a formação compatível com a disciplina lecionada, contrastando com 14,6% sem formação superior. Nos anos finais, 66% dos professores têm formação na área das Ciências que leciona, enquanto docentes com formação em outras áreas equivalem a 22,1%, evidenciando ainda a necessidade de um aprimoramento na qualificação específica.
No ensino médio, destaca-se um índice de 80,9% de professores de Biologia licenciados nessa área, mas em Física e Química a situação é preocupante, com apenas 53,1% e 66,6%, respectivamente, de professores com formação certificada à disciplina. Esses dados apontam para a necessidade de políticas de formação continuada que promovam a adequação profissional e, por conseguinte, a melhoria da educação científica (Inep, 2022).
Entre os estados, o Censo Escolar de 2022 (Inep, 2022) revelou que Mato Grosso do Sul e Paraná tinham a maior porcentagem de professores licenciados em Biologia (92%), enquanto Bahia e Espírito Santo registraram os menores índices (23% e 16%, respectivamente). No tocante aos docentes formados em Química, o Distrito Federal apresentou o melhor resultado (87%) e a Bahia, o pior (14%). Por fim, para a disciplina de Física, o melhor resultado também foi do Distrito Federal (77%), ficando Bahia e Pernambuco com o menor índice (16%).
Esses dados fornecem elementos relevantes sobre o cenário educacional de Ciências no Brasil ao longo dos anos, evidenciando a necessidade de políticas contínuas para a formação de professores e o monitoramento do desempenho dos alunos em CN.
A descontinuidade do monitoramento do desempenho dos alunos da EB, em Ciências, no Brasil
As ALEs que incluem conceitos de Ciências, no Brasil, apresentam uma frequência limitada em comparação com as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, gerando assim informações relativamente escassas (Medeiros et al., 2017).
As Ciências, em avaliações de larga escala, estiveram presentes nas edições do Saeb em 1992, 1995 e 1999. Em 2001, ocorreu uma reestruturação nesse sistema e, assim, priorizaram-se as áreas de Linguagens e Matemática, mantendo-as até a 11a edição do Saeb. Em 2013, o Saeb não gerou diagnósticos robustos sobre a aprendizagem em Ciências, uma vez que aconteceu de forma amostral, com estudantes do 9º ano do ensino fundamental. Portanto, os dados de desempenho não possibilitaram ações efetivas para a melhoria da educação científica, nem a promoção de diretrizes para uma nova matriz de referência (Medeiros et al., 2017). A falta dessa retroalimentação pedagógica resultou na ausência de avaliações em Ciências nas edições do Saeb de 2015 e 2017.
Em 2018, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) anunciou o retorno das avaliações de Ciências para a edição de 2019, seguindo o formato amostral de 2013. Esse retorno pode ter sido influenciado pela estratégia 7.7 do Plano Nacional de Educação (2014-2024), que visa ao aprimoramento dos instrumentos de avaliação da qualidade dos ensinos fundamental e médio (Lei n. 13.005, 2014).
Ademais, o artigo 23 das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM), Resolução n. 3 de 2018 (Inep, 2018), também contribuiu para esse retorno, orientando os sistemas de ensino que utilizem os resultados do Saeb para avaliar e propor políticas públicas para a EB.
Além do Saeb, o Enem é outro instrumento que pode fornecer dados valiosos sobre o conhecimento científico dos estudantes egressos do ensino médio.
O uso dos resultados do Enem para monitorar a qualidade da educação em Ciências
Criado em 1998, o Enem constitui uma fonte valiosa de informações sobre o desempenho dos alunos que concluem o ensino médio, especialmente na área de CN. Desde 2009, o Enem adotou o modelo logístico de três parâmetros da Teoria de Resposta ao Item (TRI) para o tratamento centralizado de dados, o que permite comparar o desempenho dos alunos anualmente, entre diferentes regiões e escolas. Embora tal modelo seja aplicado há quatorze anos, os dados ainda são pouco explorados nas pesquisas.
O Enem serve a propósitos duplos: seletivo e diagnóstico. Conforme explicado por Luckesi (2022), o uso seletivo classifica os participantes, dividindo-os entre aqueles que atingem determinado ponto de corte e os que ficam abaixo dele. A eficácia dessa abordagem depende dos critérios estabelecidos pelos administradores do teste. Por outro lado, o uso diagnóstico visa a acompanhar continuamente os alunos, auxiliando na tomada de decisões para elevar a qualidade da educação. Nesse contexto, os resultados do Enem proporcionam aos gestores escolares dados relevantes para monitorar o progresso dos alunos ao longo do tempo.
Contudo, é importante ressaltar que o Enem, por não ser um exame censitário nem amostral, não é ideal para fundamentar políticas públicas. Como o perfil dos alunos inscritos no Enem varia anualmente, isso pode comprometer a representatividade dos resultados. No entanto, ao divulgar informações sobre a proficiência média em CN para diferentes segmentos da população brasileira, o Inep fornece diagnósticos que podem inspirar discussões enriquecedoras sobre o ensino, a aprendizagem e o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a melhoria dessa área no Brasil.
PERCURSO METODOLÓGICO
Este estudo exigiu a integração de abordagens quantitativas e qualitativas, utilizando a triangulação de fontes conforme Creswell e Clark (2015). A triangulação consiste em coletar dados de múltiplas fontes, como documentos e registros, para analisar o fenômeno em estudo sob diferentes óticas.
O objetivo dessa técnica é fortalecer a validade e a confiabilidade dos resultados, combinando métodos, fontes de dados ou perspectivas na investigação do mesmo fenômeno. A triangulação permite uma compreensão mais abrangente e profunda do tema, corroborando os resultados por diferentes ângulos e reduzindo possíveis vieses para reforçar a confiança nas conclusões.
Para desenvolver este estudo, foram estabelecidos três mecanismos para monitorar o desempenho dos alunos em CN, relacionados à estratégia 7.07 do PNE. O primeiro envolveu a análise de documentos oficiais da EB de 2014 a 2022, incluindo leis, decretos, portarias e a participação em avaliações internacionais, com o objetivo de compreender a inclusão de CN nas avaliações nacionais e sua relação com o desempenho dos alunos no Enem.
O segundo mecanismo adotou uma abordagem quantitativa, utilizando dados do Enem para traçar o perfil da proficiência média em CN dos alunos concluintes do ensino médio. Para tanto, foram analisados dados do Inep relativos às questões de conhecimento e socioeconômicas, incluindo informações sobre escolas e alunos, com foco na obtenção das proficiências médias em CN, considerando variáveis como localização por unidade federativa, gênero, cor, tipo de escola e deficiência, de 2014 a 2022. O software IBM SPSS Statistics 22 foi usado para processar essas variáveis.
A Tabela 3 detalha os procedimentos para o tratamento da base de dados do Inep.
SEQUÊNCIA DO PROCESSO | DESCRIÇÃO DAS AÇÕES DO PROCESSO |
---|---|
1 | Leitura dos dados no software SPSS |
2 | Filtro dos casos de “concluintes do EM” |
3 | Análise de frequência de participação na prova de Ciências |
4 | Cálculo da proficiência média nacional e do respectivo desvio-padrão |
5 | Separação dos alunos por unidade federativa |
6 | Cálculo da proficiência média por estado e respectivos desvios-padrão |
7 | Separação dos alunos por sexo (gênero disponível pela base de dados - masculino e feminino) |
8 | Cálculo da proficiência média por gênero (masculino e feminino) e respectivos desvios-padrão |
9 | Separação dos alunos por cor/raça (não declarados e autodeclarados branco, preto, pardo, amarelo e indígena) |
10 | Cálculo da proficiência média por cor/raça (não declarados e autodeclarados branco, preto, pardo, amarelo e indígena) e respectivos desvios-padrão |
11 | Separação dos alunos por tipo de escola em que concluiu o EM (pública ou privada) |
12 | Cálculo da proficiência média por tipo de escola em que concluiu o EM (pública ou privada) e o respectivos desvios-padrão |
13 | Separação dos alunos por tipo de deficiência (cego ou surdo) |
14 | Cálculo da proficiência média por tipo de deficiência aparente (cego ou surdo) e respectivos desvios-padrão |
Fonte: Elaboração dos autores.
Após a realização da sequência 1, foram eliminados os dados dos alunos treineiros (sequência 2) e considerada a seleção dos alunos que, pelo dicionário de variáveis, são concluintes do EM no mesmo ano da edição. Verificou-se a frequência de participação dos alunos selecionados nas edições de 2014 a 2022 no teste de CN (sequência 3). A partir disso, identificou-se a proficiência desses alunos de acordo com a nota obtida e o programa gerou a proficiência média nacional em CN e seu desvio-padrão (sequência 4).
Assim, iniciou-se o tratamento pelas variáveis de interesse. Pelo código da unidade federativa, foi possível aplicar um filtro e categorizar os avaliados por estado, incluindo o Distrito Federal (sequência 5) e, a partir dessa informação, também foi possível executar a estatística do software SPSS para determinar a proficiência média e o desvio-padrão por estado (sequência 6).
Outra variável de interesse, no presente estudo, foi o gênero do aluno, que permite a análise da proficiência média dos alunos, em CN, por gênero. Para isso, foi preciso identificar a variável TP_SEXO. Entretanto, por não ser uma variável numérica, antes de analisar as frequências de participação, foi necessário transformá-la em uma variável numérica e, por conseguinte, a categoria M (masculino) dessa variável na base de dados do Inep foi codificada como 1 e a categoria F (feminino) como 2 (sequência 7). Após a obtenção da população de interesse classificada, foi possível filtrar a base para cada código e determinar a proficiência média desses alunos e o desvio-padrão por gênero (sequência 8).
Em seguida, tratou-se a base de dados para obter a proficiência média dos alunos por cor/raça em CN. Para tanto, recorreu-se à variável TP_COR_RAÇA, a qual agrupa no código 0 os alunos que optaram por não declarar a cor ou a raça, no código 1 aqueles que se declararam brancos, no 2 os que se declararam pretos, no 3 os alunos pardos, no 4 os que se reconhecem como amarelos e, por fim, no código 5 os que se declaram indígenas (sequência 9). De posse dos participantes classificados nessa variável de interesse, executou-se a estatística para a obtenção da proficiência média dos alunos na prova de CN e seu desvio-padrão para cada uma das categorias da variável cor/raça (sequência 10).
Na sequência dos processos, filtrou-se a variável TP_ESCOLA. No dicionário de variáveis, que pode mudar a cada edição, em 2022, por exemplo, no código TP_ESCOLA 2, estão os alunos que concluíram o EM nas escolas públicas, e no 3, os concluintes nas escolas privadas (sequência 11). Com base nessa classificação, verifica-se a frequência de participação e executa-se o cálculo da proficiência média e desvio-padrão desses alunos por tipo de escola (sequência 11).
Por fim, a última variável de interesse são as proficiências médias por alunos com deficiências. Como não há uma variável para as deficiências (cego e surdo), foi preciso identificar o tipo da prova destinada a alunos que necessitam de acessibilidade. Nesse sentido, a avaliação apresentada em formato diferente a esses alunos (ampliada para cegos e vídeo-prova para os surdos2) contém um código específico na prova de CN (sequência 13). A partir dessa seleção, foi possível filtrar a base para cada código e gerar os dados sobre a proficiência média desses alunos por deficiência e seu desvio (sequência 14).
Após a integração de abordagens quantitativas e qualitativas e a implementação da triangulação de fontes para garantir a robustez dos resultados, este estudo se concentrou na análise da média da proficiência em CN no Enem dos alunos concluintes do EM no período de 2014 a 2022. Essa análise foi fundamental para monitorar a qualidade do ensino em CN, um indicador-chave para avaliar o impacto da estratégia 7.07 do PNE, vigente até 2024.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Os documentos oficiais relacionados à educação e à Meta 7 do PNE
Para contextualizar a discussão sobre as ações desenvolvidas até o momento com relação às estratégias da Meta 7 do PNE (2014-2024), com viés para área de CN, elaborou-se a linha do tempo ilustrada na Figura 1:
A linha do tempo organiza os processos que ocorreram a partir de 2014 no tocante à inclusão de Ciências nas avaliações nacionais. Procurou-se salientar aqueles que, de forma direta ou indireta, impactaram o cenário analisado.
Após a aprovação do PNE, observa-se, inicialmente, um gap de tempo maior que o esperado, uma vez que a primeira ação concreta foi a publicação da Matriz de Referência de CN para as avaliações amostrais do Saeb, em 2019. Esse intervalo corresponde ao movimento realizado no âmbito do Ministério da Educação (MEC) para a elaboração e homologação da BNCC, que passaria a representar as diretrizes para as avaliações nacionais.
Além da BNCC, em 2018, foi regulamentada a Política Nacional de Avaliação e Exames da EB, por meio de decreto presidencial. No documento, além de serem estabelecidos os objetivos da política, ratificou-se no art. 7° que o propósito primeiro do Enem é “aferir o domínio das competências e das habilidades esperadas ao final da EB” (Inep, 2018). Não foi descartado, contudo, que o exame poderá também “ser utilizado como mecanismo de acesso à educação superior e aos programas governamentais de financiamento ou apoio ao aluno do ensino superior” (Inep, 2018).
Apesar da finalidade expressa pelo decreto, vale lembrar que o Enem não é obrigatório e isso significa que fica mesmo a cargo do Saeb a avaliação da qualidade do EM ofertado nas escolas públicas brasileiras. Entretanto, até 2015, a avaliação realizada pelo Saeb era amostral. Apenas em 2017 é que se tornou censitária para Língua Portuguesa e Matemática.
Em 2019, teve início o alinhamento do Saeb à BNCC. Nesse sentido, foram publicados documentos de referência que orientaram a transição para as matrizes reestruturadas. Também é nesse ciclo avaliativo que foi implementada a avaliação amostral de CN e Ciências Humanas no 9º ano do ensino fundamental.
No contexto das avaliações internacionais, em 2022, o governo brasileiro aderiu ao Trends in International Mathematics and Science Study (TIMSS), uma avaliação internacional realizada pela Associação Internacional para a Avaliação do Desempenho Educacional (IEA). O TIMSS já está presente em cerca de 70 países e tem como principal objetivo produzir e divulgar dados sobre o desempenho dos alunos em Ciências e Matemática (Mullis & Martin, 2017). As avaliações foram aplicadas até 30 de setembro, no Brasil, aos alunos do 4º e 8º anos do ensino fundamental, pela primeira vez, em 2023. Um ponto importante a se destacar sobre essa avaliação é que sua realização se dá inteiramente de forma digital, o que permite inferências mais sofisticadas sobre as tarefas que os alunos são capazes de realizar (Inep, 2022).
Com o Pisa, o TIMSS significará uma fonte de dados importante para o campo das CN. Entretanto, ambas as avaliações são amostrais e, consequentemente, seus resultados possibilitam apenas leituras mais gerais sobre o contexto nacional.
Perfil da proficiência média em CN dos alunos concluintes do ensino médio
Segundo dados do último Censo Escolar, em 2022, o ensino médio no Brasil experimentou um aumento notável nas matrículas, alcançando 7,9 milhões - um crescimento de 1,2% em comparação a 2021 e um incremento significativo de 5,4% desde 2019.
O Censo Escolar também informa que, em 2022, a rede estadual se destaca com a maior parcela de alunos, representando 84,2% do total, com 6,6 milhões de estudantes, enquanto a rede federal contribui com 232 mil alunos, ou seja, 3% do total. A rede privada, por sua vez, atende a cerca de 971,5 mil estudantes, o que corresponde a 12,3% do total de matrículas.
Quanto à distribuição dos turnos e à localização das escolas, o Censo Escolar de 2022 afirma que 81,9% dos alunos estudaram durante o dia e 18,1%, no período noturno. Além disso, a grande maioria, 94,8%, frequenta escolas urbanas, e 43,8% das escolas de ensino médio têm mais de 500 estudantes.
De acordo com a base de dados do Inep, o número de alunos egressos do ensino médio que se inscreveram no Enem foi de 1.220.035, o que representa aproximadamente 15,51% dos estudantes matriculados, indicando uma discrepância entre os alunos matriculados e os que buscaram essa avaliação externa. Entretanto, é relevante recorrer aos dados do Enem para compreender o panorama do ensino e da aprendizagem de Ciências no Brasil, pois a amostra de estudantes nessa etapa está na casa de um milhão de estudantes. Outro aspecto a ser considerado é que o Enem tem sido o teste que mais apresenta constância em avaliar a área de CN ao longo dos anos.
A seguir, são apresentados os dados dos estudantes participantes do Enem, no período de 2014 a 2022. A Figura 2 mostra as porcentagens de distribuição desses alunos nas redes de ensino.
Pela Figura 2, nota-se uma predominância de alunos oriundos de escolas públicas em comparação com as privadas no período analisado. Em média, cerca de 958.010 alunos de escolas públicas e 240.166 provenientes de escolas privadas participam anualmente do Enem. Isso sugere que é um exame acessível para um grande número de estudantes de escolas públicas, destacando a importância de políticas de educação que considerem a realidade e as necessidades desse grupo majoritário.
Contudo, alunos de escolas públicas e privadas podem apresentar diferenças significativas em matéria de experiências educacionais, recursos disponíveis, ambientes de aprendizado e oportunidades (Moraes & Belluzzo, 2014), fatores esses que podem interferir no desempenho nas avaliações.
No Pisa 2018 (OCDE, 2019), por exemplo, as médias de proficiência em Ciências dos alunos foram 395, na rede estadual, e 330, na municipal, diferença estatisticamente significativa. Cabe ressaltar que a rede estadual representa 68% dos participantes do Pisa 2018. Nessa edição, os alunos das escolas particulares tiveram maior média de proficiência (495) do que os das federais (491), embora essa diferença não seja estatisticamente significativa.
Embora os fatores citados não sejam os únicos que influenciam a diferença de proficiência dos alunos oriundos desses diferentes tipos de escola, estes podem ser indicadores para compreender o desempenho dos alunos concluintes do ensino médio no Enem, como apresenta a Figura 3.
Os dados revelam uma dinâmica interessante na trajetória da proficiência média dos alunos nas provas de CN do Enem, refletindo discrepâncias significativas entre as instituições de ensino público e privado. A tendência ascendente observada nas escolas privadas até 2017, seguida por um decréscimo e subsequente recuperação em 2022, pode sugerir a influência de variáveis econômicas e políticas educacionais que afetam de maneira diferenciada as instituições privadas.
Por outro lado, as escolas públicas, após uma melhoria contínua até 2017, sofreram uma queda em 2018 e, desde então, vêm apresentando um lento progresso. Esse padrão sugere que as escolas públicas podem estar sujeitas a fatores sistêmicos que retardam a melhoria ou causam declínios na qualidade do ensino e da aprendizagem de Ciências. A média nacional, influenciada predominantemente pelas escolas públicas, reflete essa tendência, salientando a necessidade de um olhar atento às políticas em todo o território nacional.
Quanto ao desvio-padrão da proficiência média (Figura 4), a maior variabilidade encontrada nas escolas privadas, ao longo dos anos, mostra a heterogeneidade do desempenho dos alunos, possivelmente aludindo a discrepâncias em recursos, metodologias pedagógicas e perfis estudantis.
A menor variabilidade no desvio-padrão das escolas públicas pode indicar uma maior homogeneidade no ensino. No entanto, também pode sinalizar a falta de representação de alunos com desempenhos muito altos ou muito baixos. A redução observada no desvio-padrão em 2022 para todas as categorias sugere um evento ou uma série de eventos - como modificações nas políticas educacionais - que impactaram a dispersão dos resultados de maneira uniforme. Entender essas variações é crucial para direcionar esforços no sentido de promover uma educação mais equitativa e de alta qualidade, bem como para identificar práticas pedagógicas que podem ser replicadas para melhorar a educação em CN em diferentes contextos.
Desses mesmos alunos identificamos uma proporção significativa entre os gêneros masculino e feminino que concluem o EM, como mostra a Figura 5. Observa-se que as mulheres estão procurando realizar o Enem e, consequentemente, ingressar no ensino superior, o que corrobora os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] (2018), que comprovam a maior parcela de mulheres com ensino superior em relação aos homens.
De acordo com a Associação Brasileira das Mantenedoras das Faculdades (Abrafi), em 2021, entre as pessoas de 25 a 34 anos, 25,1% das mulheres tinham formação superior, em contraste com 18,3% dos homens. Embora essa discrepância diminua com o aumento da idade, ela reflete mudanças sociais e maior acesso à educação para as mulheres ao longo do tempo.
No entanto, ainda persiste a predominância das mulheres em certas áreas de estudo, sendo mais representativas em campos tradicionalmente feminizados como Saúde (com exceção de Medicina), Serviço Social, Ciências Sociais e Educação, e menos representadas em setores como Tecnologias da Informação, Computação e Engenharia.
A Figura 6 apresenta a proficiência média dos estudantes, separados por gênero (2014 - 2022), que realizaram as questões de Ciências do Enem, corroborando as observações da Abrafi.
A análise dos dados da Figura 6 indica que os alunos do gênero masculino possuem uma proficiência média de aproximadamente 497,9 em CN, superando suas contrapartes do gênero feminino, cuja média é de cerca de 477,8. Embora o Enem seja o mesmo para ambos os gêneros, esses resultados podem refletir diferenças nas oportunidades de aprendizado ou na forma como os alunos de gêneros distintos interagem com o conteúdo de Ciências.
Quanto ao desvio-padrão da proficiência média (Figura 7), há uma tendência em que os alunos do gênero masculino apresentam uma variabilidade maior em seus resultados, com uma média de desvios-padrão de 77,6, comparado a 70,8 para o gênero feminino.
Essa diferença sugere que, embora os alunos do gênero masculino, em média, tenham maiores pontuações, também há uma maior dispersão em suas notas, indicando que sua performance é mais heterogênea. Por outro lado, as alunas apresentam uma consistência relativamente maior em seu desempenho. Esse padrão de variabilidade pode ter implicações significativas para o desenvolvimento de estratégias pedagógicas direcionadas, em que o foco pode elevar o desempenho de alunos com pontuações mais baixas, especialmente entre os alunos do gênero masculino, sem comprometer o apoio àqueles que já estão alcançando um alto nível de proficiência.
A proficiência média dos alunos concluintes do EM sugere que a escolha profissional das mulheres pode estar intrinsecamente ligada às experiências educacionais, em que barreiras culturais e estereótipos de gênero frequentemente moldam suas percepções e interesses, particularmente em campos tradicionalmente dominados por homens. Por essa razão, iniciativas como o “Projeto Meninas na Ciência”, que promovem a participação feminina desde a EB até o ensino superior e se estendem ao mercado de trabalho, são fundamentais para empoderar mulheres a prosseguir carreiras nas áreas das Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM), enfrentando a persistente desigualdade de gênero nesses setores.
Além disso, a incorporação dos princípios STEAM (Ciência, Tecnologia, Engenharia, Artes e Matemática), apesar de não ser formalmente reconhecida pela BNCC, pode alinhar-se a seus objetivos de fomentar competências essenciais como pensamento crítico, criatividade e colaboração. Ao adotarem práticas pedagógicas que integram o ensino STEAM, as escolas não só reforçam habilidades valorizadas pela BNCC, como também promovem a igualdade de gênero na educação e na escolha profissional, embora essa abordagem ainda não esteja consolidada como estratégia no PNE para o período de 2014 a 2024.
As habilidades, anteriormente citadas, podem ser mais facilmente desenvolvidas por meio de práticas científicas. Sobre elas, Costa e Broietti (2023, p. 1) afirmam que as práticas científicas
. . . têm sido um tema central de recentes reformas educacionais de Ensino de Ciências dos Estados Unidos e o interesse por este tema também tem se reverberado nas pesquisas em Ensino de Ciências constituindo-se como um tópico de repercussão internacional (Europa, América do Sul, Ásia, Oceania e África).
A cor/raça também foi um aspecto considerado e que mostrou influência na diferença na proficiência dos alunos avaliados. Segundo o Inep (2018), a importância de analisar a variável cor/raça é verificar as desigualdades no sistema educacional brasileiro. No Pisa de 2018, por exemplo, os resultados mostraram que os alunos autodeclarados brancos possuem uma média de desempenho (450) significativamente superior àquela dos alunos autodeclarados pretos (389), o que corresponde a uma diferença de cerca de dois anos de escolarização, quando se analisa a leitura (62 pontos na escala de desempenho).
Quando essa diferença entre cor/raça é analisada no grupo de alunos mais pobres e no grupo dos mais ricos, ainda assim observam-se discrepâncias significativas. Isso evidencia que o nível socioeconômico por si só não é capaz de explicar as desigualdades raciais no campo educacional (OCDE, 2019).
O mesmo ocorre para os dados do Enem, obtidos da base do Inep. Alunos de cor branca apresentam melhor desempenho nas avaliações de Ciências. A Figura 8 identifica outra preocupação relevante para o futuro do ensino de Ciências no Brasil: o rompimento de uma ciência discutida em uma perspectiva eurocentrada.
A análise da proficiência média na prova de CN do Enem entre 2014 e 2022 revela diferenças significativas entre as categorias raciais, com alunos brancos apresentando a maior média de proficiência (aproximadamente 504,9) ao longo do período, enquanto alunos indígenas têm a menor (aproximadamente 455,6). Esses dados podem indicar a existência de desigualdades estruturais no sistema educacional, em que fatores socioeconômicos e acesso desigual a recursos de qualidade podem impactar o desempenho acadêmico.
A persistência dessa disparidade aponta para uma necessidade crítica de políticas educacionais inclusivas que enderecem as barreiras enfrentadas por alunos de comunidades marginalizadas, visando a nivelar o campo de oportunidades educacionais e garantir que todos os alunos, independentemente de sua cor ou raça, tenham as mesmas condições para alcançar a excelência acadêmica em Ciências. Para melhor discutir esses dados, a Figura 9 apresenta seus desvios médios.
Uma análise do desvio-padrão nas edições do Enem, em CN, revela uma heterogeneidade marcante entre as categorias raciais, especialmente na categoria amarela, que apresenta a maior variabilidade, refletindo especificamente uma maior diversidade nas experiências educacionais dos alunos. Em contraste, a homogeneidade na categoria indígena pode indicar limitações no acesso a recursos educacionais específicos ou uma educação que não abarca a riqueza das tradições científicas indígenas. Essas observações reforçam as críticas de Morais e Santos (2019) e Rosa et al. (2020) sobre a prevalência de uma ciência eurocêntrica que pode negligenciar outras perspectivas científicas, perpetuando desigualdades educacionais.
O debate sobre a “descolonização” da ciência, destacado por Pinheiro (2019), sugere um movimento em direção a uma Ciência mais inclusiva, que regule e incorpore conhecimentos de diversas culturas. Essa abordagem pluralista pode enriquecer a educação científica, tornando-a mais representativa e acessível a estudantes de diferentes contextos culturais, no sentido de contribuir para um letramento científico mais holístico e equitativo.
O PNE (2014-2024) não estabelece metas para o desenvolvimento de uma Ciência inclusiva, mas ressalta-se que só a partir de 2017 os surdos conquistaram o direito de participar do Enem utilizando a Língua Brasileira de Sinais. Os dados relacionados aos estudantes cegos e surdos são apresentados na Figura 10.
Fonte: Elaboração dos autores.
* Os dados de alunos surdos passaram a ser computados a partir de 2017.
Os dados da Figura 10 revelam que ambos os grupos apresentaram pontuações abaixo da média nacional em 2022 (491.1): os participantes cegos alcançaram uma média de 466,9, enquanto os surdos registraram 443,8 pontos. Essa diferença pode ser atribuída a vários fatores, incluindo barreiras linguísticas no acesso a materiais didáticos adaptados e metodologias de ensino que atendam às suas necessidades específicas (Carvalho, 2017).
A persistência de uma pontuação média mais baixa, ao longo dos anos, sugere que os esforços para nivelar o campo educacional para alunos com deficiências ainda são insuficientes e que há uma necessidade urgente de estratégias pedagógicas inclusivas e de maior suporte no processo de ensino e de aprendizagem para essa população.
Analisando o desvio-padrão das pontuações, observa-se que os participantes cegos apresentaram uma variabilidade em suas pontuações de 58,9 em 2022, com redução de 72,1 pontos em relação ao ano anterior, como revela a Figura 11.
Fonte: Elaboração dos autores.
* Os dados de alunos surdos passaram a ser computados a partir de 2017.
A análise do desempenho de alunos surdos no Enem mostra uma variabilidade nas pontuações, que se manteve estável entre 2021 e 2022, com desvios-padrão de 50,4 e 50,5, respectivamente, sugerindo que, apesar das intervenções educacionais, ainda existem desafios significativos em atender adequadamente a esse grupo. A constância do desvio-padrão pode refletir a necessidade de aprimorar a qualidade e a eficácia das adaptações e dos recursos de aprendizado, apontando para a urgência de revisões nas práticas pedagógicas que atendam às demandas específicas dos alunos surdos. Por outro lado, a diminuição observada no desvio-padrão entre os participantes cegos significa progressos na consistência e eficácia do suporte educacional ofertado.
A promoção do acesso ao ensino de Ciências para alunos com deficiências visuais e auditivas é um pilar da educação inclusiva que visa não só a garantir a igualdade de oportunidades, mas também a valorizar a diversidade de experiências dos alunos. Carvalho (2017) destaca que é essencial reconhecer e incorporar as perspectivas únicas dos alunos com deficiência, criando um ambiente que não apenas permita a plena participação no processo educacional, mas também os habilite a contribuir ativamente para o conhecimento científico. Isso implica desenvolver recursos educacionais acessíveis, como materiais em audiodescrição, videolibras e braile, além de investir na formação de professores e na adaptação de currículos para que os alunos cegos e surdos possam compreender os conceitos científicos com autonomia, dentro de seus contextos pessoais e sociais.
Ao se tratar de contextos locais/nacionais, sabe-se que o investimento em educação no Brasil varia de estado para estado, uma vez que cada qual possui sua própria gestão e orçamento para a área educacional. Esse investimento é influenciado por diversos fatores, como o tamanho da população, a arrecadação de impostos, a alocação de recursos públicos e as prioridades locais. No entanto, em termos gerais, o Brasil estabelece um valor mínimo de investimento em educação com base em sua Constituição e na legislação educacional.
A Lei n. 9.394 (1996) estabelece que estados e municípios devem investir, no mínimo, um percentual específico de suas receitas resultantes de impostos e transferências constitucionais e legais na manutenção e desenvolvimento do ensino. Esse percentual varia de acordo com a etapa de ensino, sendo mais elevado para a EB (ensinos fundamental e médio). Logo, não há obrigatoriedade para o uso do investimento em educação científica por estado e também não existem informações sobre o destino dessa verba para educação em Ciências em cada estado.
Diante disso, a Figura 12 apresenta a proficiência média dos concluintes do EM desde a implementação no PNE vigente.
A proficiência média dos estados brasileiros na prova de CN do Enem mostra variações consideráveis entre as unidades federativas, refletindo as disparidades regionais na qualidade da educação. Estados como Santa Catarina, Minas Gerais e Distrito Federal, consistentemente, superam a média nacional, enquanto estados como Amapá, Maranhão, e Amazonas permanecem abaixo dessa média. Essas diferenças podem ser atribuídas a fatores socioeconômicos, políticas educacionais estaduais, investimentos em infraestrutura escolar e programas de formação de professores. A variação observada ressalta a importância de um olhar atento às políticas de educação que possam endereçar as necessidades específicas de cada região, com o objetivo de reduzir desigualdades e promover uma educação de qualidade equitativa em todo o território nacional.
Analisando os desvios-padrão da proficiência média por estado (Figura 13), é evidente que há uma heterogeneidade significativa dentro de cada unidade federativa.
Com base nesses resultados, estados como Sergipe e Distrito Federal apresentam os maiores desvios, sugerindo uma ampla variação nas pontuações dos alunos, o que pode significar diferenças acentuadas na qualidade da educação dentro do estado. Por outro lado, estados como Amapá e Amazonas, embora tenham desvios mais baixos, ainda refletem uma variabilidade considerável, o que pode indicar a presença de núcleos de excelência em contraste com áreas de baixo desempenho. Essa análise preconiza a necessidade de abordagens de ensino mais personalizadas, que considerem as realidades locais e que sejam capazes de fornecer recursos onde são mais necessários, para garantir que todos os alunos tenham a oportunidade de atingir seu potencial pleno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados apresentados neste artigo evidenciam a complexidade inerente ao ensino de CN no contexto educacional brasileiro, dentro do escopo do PNE e suas metas específicas. A pesquisa, ancorada na triangulação de métodos quantitativos e qualitativos, fornece uma análise multifacetada, destacando a importância das ALEs, a formação de professores e o papel do Enem como ferramentas de diagnóstico e avaliação.
Um aspecto central dos dados é a irregularidade na inclusão e no tratamento das Ciências nas avaliações nacionais, em comparação com disciplinas como Língua Portuguesa e Matemática. Isso indica um desafio sistêmico no alinhamento das políticas educacionais com as demandas de um ensino de CN robusto e equitativo. A formação de professores emergiu como um ponto crítico, revelando uma lacuna significativa entre a preparação e a prática pedagógica, especialmente nas áreas das Ciências. As disparidades regionais na adequação da formação docente sugerem a necessidade de políticas educacionais mais refinadas que considerem as especificidades locais para fomentar a equidade.
A análise dos dados do Enem revelou discrepâncias notáveis no desempenho dos estudantes em Ciências, influenciadas por variáveis como gênero, cor/raça, tipo de escola e região. Esse achado é particularmente revelador das desigualdades estruturais no sistema educacional brasileiro, apontando para uma necessidade urgente de estratégias pedagógicas inclusivas e adaptadas para garantir a equidade no acesso e na qualidade do ensino de CN, além de repensar o constructo das avaliações externas considerando uma abordagem sociocultural. A constatação de que estudantes de escolas públicas, mulheres, negros, indígenas e estudantes com deficiências apresentam desempenhos inferiores na proficiência em CN ressalta a relevância de intervir em múltiplas frentes para superar essas barreiras.
Embora o estudo apresente uma abordagem metodológica abrangente na avaliação da proficiência em CN dos alunos do EM no Brasil, ele enfrenta limitações. Primeiramente, os dados do Enem podem não representar a totalidade da população estudantil, dada a variabilidade na participação dos alunos, influenciada pela motivação e preparação, que podem divergir significativamente entre diferentes grupos demográficos e regiões. A triangulação de dados, embora enriqueça a pesquisa, traz desafios de consistência e comparabilidade entre variadas fontes, e a interpretação qualitativa de documentos oficiais pode estar sujeita a viés do pesquisador. As categorizações utilizadas, especialmente em matéria de gênero, cor/raça e deficiências, são limitadas e podem não capturar toda a complexidade desses aspectos. Metodologicamente, a transformação de variáveis não numéricas em numéricas e o cálculo da proficiência média e do desvio-padrão médio podem simplificar fenômenos complexos e ocultar variações significativas. Fatores externos como o contexto socioeconômico e a qualidade da educação prévia, não considerados no estudo, também podem influenciar o desempenho em CN. Além disso, há riscos de viés de confirmação na interpretação dos dados e limitações inerentes ao software utilizado (IBM SPSS Statistics 22). Essas limitações não diminuem a importância do estudo, mas ressaltam a necessidade de interpretações cuidadosas e de pesquisas futuras para abordar essas questões.
Em suma, este estudo pode contribuir significativamente para o entendimento do estado atual do ensino de CN no Brasil, oferecendo indicadores valiosos para futuras pesquisas e para o desenvolvimento de políticas educacionais mais eficazes. Contudo, ressalta-se a importância de interpretações cautelosas dos resultados e da continuidade de pesquisas que abordem as complexidades e os desafios inerentes ao ensino de Ciências na EB, visando não apenas ao cumprimento de metas estabelecidas pelo PNE, mas também à promoção de um ensino de Ciências mais inclusivo, equitativo e eficaz, que prepare os alunos para enfrentar os desafios de um mundo em rápida transformação.