INTRODUÇÃO
Os estudos sobre avaliação devem ser construídos na interação entre a teoria e a prática da realidade educativa. Porém ainda persiste a lógica de melhoria de resultados como finalidade única dos estudos em avaliação (Fernandes, 2008).
Além disso, a prática evidencia que ainda é frequente o modelo educacional baseado na separação entre os processos avaliativos e os de aprendizagem (Roldão & Ferro, 2015; Trevisan, 2022), mostrando a necessidade emergente de desenvolver formas inovadoras de avaliar os alunos dentro da educação básica.
O estudo de Siqueira et al. (2021) evidencia que a falta de formação de professores de educação básica sobre avaliação da aprendizagem pode gerar a reprodução de modelos avaliativos desprovidos de critérios, com pouca validade e fidedignidade e que não regulam o processo de ensino-aprendizagem efetivamente.
O próprio conceito de avaliação formativa, que foi amplamente divulgado ao longo do tempo, degradou-se na prática escolar, esvaziando-se do sentido conceitual do termo, e passou a fazer referência a práticas que apresentam apenas intenção formativa, mas não necessariamente conduzem a melhorias nas aprendizagens (Fernandes, 2008; Trevisan, 2022).
Acredita-se que a avaliação formativa deve estar no centro do processo educativo e deve permitir a regulação do trabalho realizado, seja do aluno, do professor, do desenvolvimento curricular ou mesmo dos processos desenvolvidos, e não deve ser “um momento específico da ação pedagógica, mas um componente permanente dela” (Perrenoud, 1999, p. 111).
Muitos são os autores que concebem a avaliação de maneira integrada aos processos de ensino-aprendizagem e como elemento promotor de reflexão. Porém é relevante compreender de maneira detalhada como esse conhecimento teórico tem chegado ao chão da escola pela concepção do professor. Isto é, quão processual e regulatória a avaliação se apresenta ao aluno e quão integrada está em relação aos processos de ensino-aprendizagem?
Essas inquietações devem permear as mais variadas áreas do conhecimento escolar. No caso do ensino de língua portuguesa, o desafio é grande, pois as concepções de ensino se modificaram muito nos últimos anos e coexistem diversas noções acerca de o que se deve ensinar e avaliar na disciplina. Práticas pedagógicas baseadas no acúmulo de regras gramaticais descontextualizadas e nomenclaturas sem funcionalidade ainda permeiam as aulas de português, e as avaliações acabam refletindo esse olhar e não estimulando a reflexão sobre a linguagem. Além disso, nem sempre as avaliações estão integradas aos processos de ensino-aprendizagem da disciplina.
Este artigo, fruto de uma pesquisa realizada para a elaboração de uma tese de doutorado,1 visa a analisar as concepções de professores de língua portuguesa da educação básica sobre avaliação, considerando-a integrada aos processos de ensino-aprendizagem. Acredita-se que as concepções docentes norteiam as práticas na sala de aula, e, dessa forma, pode-se compreender como o conhecimento construído na área da avaliação tem tomado forma para alguns profissionais da educação.
Como objetivos específicos, pretende-se analisar as concepções de avaliação de professores de língua portuguesa, mais especificamente no que se refere ao ensino de análise linguística, leitura e escrita à luz dos pressupostos teóricos da avaliação formativa, bem como busca-se estabelecer um diálogo entre as concepções de avaliação de professores de língua portuguesa em relação ao processo de ensino-aprendizagem de língua materna.
Ainda que a amostra coletada seja reduzida e os resultados não sejam generalizáveis, as informações que eles expressam podem apontar caminhos para reflexão sobre como é concebida a temática na escola e nortear futuras práticas formativas na área.
Para isso, parte-se da ideia central de indissociabilidade entre ensino, aprendizagem e avaliação em língua portuguesa (Trevisan, 2022; Fernandes, 2008). Além disso, acredita-se que o ensino, quando considera essa indissociabilidade, potencializa seus resultados e sua qualidade (Black et al., 2018).
O termo “concepções” é entendido por Matos et al. (2013) como sistemas complexos de explicação sobre uma determinada área. Ou seja, a concepção pode indicar a maneira como as pessoas percebem, entendem e agem em relação a um fenômeno - no caso, a avaliação. Essa mesma definição será adotada como parâmetro para este artigo.
REFERENCIAL TEÓRICO
A concepção de avaliação tomada por base neste artigo se caracteriza por ser pluralista e orientada para a reflexão sob o ponto de vista dos interessados, somada à ideia de que as informações devem ser obtidas por meio da confrontação de variadas fontes, e deve estar pautada pela negociação, construção conjunta e parceria ao longo do processo.
Para Guba e Lincoln (1989), a avaliação não é um processo unicamente técnico e estatístico. Incluem-se fatos e critérios de qualidade aplicáveis, mas também apresenta elementos humanos, políticos, sociais, culturais e contextuais.
A situação avaliativa deve estar pautada pela ética, respeitando a dignidade, integridade e privacidade do avaliado. Consciente da ausência de sua neutralidade, o avaliador deve ter um papel ativo e dialógico em um processo centrado na pluralidade de interesses e valores.
A avaliação formativa deve ter função reguladora, o que a torna um instrumento privilegiado de ajuste e reflexão contínuo das situações didáticas por delimitar aquisições e modos de raciocínio de cada um dos alunos e possibilitar auxiliá-los a progredirem em função dos objetivos traçados. Segundo Perrenoud (1999), para que a avaliação tenha um papel regulador e formativo, é necessário que ela tenha um caráter metódico, instrumentalizado e constante, o que nem sempre acontece na realidade das escolas.
O autor defende que a avaliação requer um novo modelo de ensino e um professor comprometido dentro da interação com o aluno. Essa regulação intencional busca delimitar o caminho já percorrido por cada aluno a fim de otimizar os processos de ensino-aprendizagem.
Vianna (2005) também acredita que o processo avaliativo deve orientar os procedimentos docentes, sugerir estratégias eficientes de ensino que levem a uma aprendizagem relevante para o aluno, envolvendo não apenas conhecimentos, mas outros interesses e valores. Além disso, a avaliação deve servir como uma ponte que une professor e aluno, visando a um processo interativo gerador de novas aprendizagens, inclusive reconhecendo possíveis erros, mas, ao mesmo tempo, procurando apresentar novas ideias para que a escola se revele uma instituição criativa na superação de obstáculos diversos.
Embora muitos autores demonstrem concordância em relação a esse uso formativo da avaliação, os profissionais da escola ainda apresentam concepções que evidenciam subjetividade e ausência de critérios quanto aos procedimentos avaliativos, conforme apresentam Siqueira et al. (2021). Vianna (2005) afirma que precisam ser geradas novas formas de avaliar, o que demanda espírito criativo dos profissionais, combinando elementos quantitativos e qualitativos, com maior destaque para esses últimos, superando a tendência a que se sujeitam os avaliadores, que se restringem ao uso de instrumentos avaliativos.
Em tempos anteriores, preocupava-se com o ensino, mas não necessariamente com a aprendizagem, e a avaliação era o momento que separava os que tinham aprendido e deveriam seguir daqueles que foram insuficientes, restando-lhes a exclusão e a responsabilidade por seu próprio fracasso.
A avaliação, que antes era a materialização de opressão, exclusão e poder, pode agora ser pensada como aliada e estruturante do processo de ensino-aprendizagem, incluindo ativamente o aluno, por meio do diálogo e do respeito às suas necessidades.
Existe, ademais, confusão na hora de implementar a avaliação formativa e, até mesmo, tendência a rejeitar todo tipo de avaliação somativa. A avaliação formativa tem como finalidade melhorar as aprendizagens dos alunos através da criteriosa utilização da informação coletada para que se possam realizar perspectivas e planejamentos. Está associada a formas de regulação e autorregulação, que influenciam diretamente os processos de ensino e aprendizagem. De outro lado, a avaliação somativa reúne informações sobre o que os alunos sabem em um dado momento, proporcionando informações sintetizadas que se destinam a registrar e a tornar público o que foi aprendido. É possível fazer uma utilização formativa da avaliação somativa, contribuindo para regular as aprendizagens e o ensino (Fernandes, 2008).
Hadji (2001) salienta que a avaliação formativa tem a função de contribuir para a regulação da atividade de ensino, conduzir um ajuste do processo de ensino-aprendizagem e permitir adaptar as formas de ensino às características dos alunos. Hadji chama esse movimento de pedagogia diferenciada e coloca o erro como fonte de informação e não como uma falta a ser reprimida. Professor e aluno sempre devem estar dispostos a analisá-lo com vistas à aprendizagem.
Para realizar uma avaliação reguladora, é imprescindível ter clareza do objeto a ser avaliado e dos critérios a serem utilizados. Em termos práticos, o docente deve se questionar sobre o que os alunos devem aprender. Com base nessa resposta, pode refletir sobre seus critérios, instrumentos e formas de avaliação.
Vale relembrar que, conforme Depresbiteris e Tavares (2017), o valor da avaliação não repousa no instrumento em si, mas em sua utilização. Para seu bom uso, é necessário que o professor, antecipadamente, informe aos estudantes os critérios que serão empregados e não formule rotulações de nenhum tipo a partir de seus resultados. Para elaborar bons instrumentos, é preciso ter clareza sobre o que se entende por aprendizagem, o que se pretende avaliar e as respostas esperadas dos alunos.
A avaliação deve permitir uma devolutiva inteligente, diversificada, frequente e de elevada qualidade a fim de orientar os alunos no processo de aprendizagem, conforme orienta Fernandes (2008).
No que se refere ao ensino de língua portuguesa, Geraldi (2013) se pauta por uma visão sociointeracionista, na qual a língua não é entendida como imutável, mas como um sistema apropriado pelo sujeito segundo suas necessidades. O sujeito a reconstrói e se constitui a partir dela à medida que interage com o outro.
O autor defende que o professor deve ser um mediador entre o aluno, o objeto de estudo e a aprendizagem que se concretiza na sala de aula. O ensino da língua em sala de aula não deve ser a simples correção gramatical de textos, mas deve permitir aos sujeitos retomar suas intuições sobre a linguagem, aumentá-las, torná-las conscientes e mesmo produzir, a partir delas, conhecimento sobre a linguagem que o aluno usa e que outros usam.
Geraldi (2013) acredita que, a partir de atividades interativas em sala de aula, seja pela produção ou leitura de textos, cria-se um ambiente propício para o estudo da língua, evitando, assim, os exercícios de fixação descontextualizados. Propõe-se que os estudos linguísticos sejam sustentados pela integração entre ensino, aprendizagem e avaliação, ou seja, que a necessidade venha do aluno, de seu texto ou de suas perguntas, seguida de reflexão e sistematização de conceitos. O professor conduz, faz a mediação e avalia esse processo, que pode ser regulado pelos envolvidos durante todos os momentos.
No entanto, nas práticas escolares ainda estão presentes modelos baseados na gramática normativa para ensino e avaliação de língua materna. A redação escolar, como se chamava, era um texto lido apenas pelo professor, que adotava uma prática higienista, em que “limpava” a produção do aluno dos erros gramaticais e, segundo critérios quantitativos, atribuía-lhe uma nota (Passarelli, 2012b).
Passarelli (2012a) acredita que nota é apenas a descrição resumida de uma realidade, então propõe que o professor deixe de lado tal postura de eliminação de erros em benefício de uma escrita processual. A intervenção do professor deve promover momentos de reflexão e propiciar ao aluno o lugar de sujeito-autor.
A finalidade de tal intervenção é oferecer ao aluno a oportunidade de investigar seus erros, e, para isso, o professor deve torná-los perceptíveis por meio da “interação construtiva”. Esse seria o caminho da relação cooperativa, colaborativa e da autoaprendizagem que coloca o aluno no centro do processo.
A autora aposta na avaliação formativa e na devolutiva de qualidade a fim de ressignificar, junto com o aluno, seu processo de escrita. Com isso, desenvolve no aluno um ponto de vista crítico e regulador, além de convidá-lo a também se responsabilizar por seu desenvolvimento.
No entanto, Passarelli (2012a) alerta que a avaliação, por natureza, é tocada pela subjetividade e, por essa razão, acredita no uso de tábuas de correção2 para minimizar a visão subjetiva do avaliador, além de oferecer critérios claros ao aluno no momento da devolutiva. Assim, a avaliação do trabalho com a linguagem pode render frutos mais precisos e satisfatórios.
METODOLOGIA
Para analisar as concepções de avaliação de professores de língua portuguesa da educação básica dentro de uma perspectiva integrada ao ensino-aprendizagem, foi feita uma pesquisa qualitativa (Ludke & André, 1986) em uma unidade de ensino municipal localizada na cidade Estância Hidromineral de Poá, da Região Metropolitana de São Paulo.
A opção pela escola foi orientada por ser uma das escolas-modelo da rede de ensino analisada e ter, em seu quadro de funcionários, um grupo de professores engajados na formação continuada e no trabalho educativo. Dentre o grupo, os professores de língua portuguesa foram convidados a participar da pesquisa de maneira voluntária.
Somente quatro participantes manifestaram interesse na investigação, todos professores de língua portuguesa do ensino fundamental II na unidade escolar. Como o ano de 2020, momento dessa coleta de dados, foi marcado pelos protocolos de distanciamento social em função da pandemia de covid-19, realizou-se uma entrevista por meio da plataforma de videochamadas Google Meet.
Assim, os quatro participantes foram reunidos em um ambiente virtual e forneceram os dados em um mesmo momento de reunião com a pesquisadora. A técnica de coleta usada foi a entrevista semiestruturada, e o objetivo foi conhecer as concepções de avaliação dos participantes e como estes se relacionam com processos de ensino-aprendizagem em língua portuguesa. No início da entrevista a pesquisadora esclareceu os objetivos e procedimentos da investigação, bem como a garantia do sigilo e tratamento ético dos dados, orientados pelo Comitê de Ética.
A escolha por uma única reunião com todos os sujeitos se deu mediante a hipótese de que a interação favoreceria maior espontaneidade ao discorrerem sobre o tema da avaliação. A desvantagem é que existe uma tendência dos participantes a revelarem o que consideram ser uma boa imagem aos olhos do grupo, assim como a possibilidade de um membro influenciar a fala de outro. Parte-se da ideia de que o discurso é um meio válido para compreender as concepções que norteiam as práticas efetivas dos profissionais.
O roteiro para a entrevista semiestruturada teve duas perguntas orientadoras: 1. Como é um dia típico em sua sala de aula? e 2. Como você avalia? A primeira questão visa a obter a concepção sobre a relação entre os elementos ensino, aprendizagem e avaliação, enquanto a segunda visa a obter concepções de avaliação usadas pelo professor dentro do processo integrado de ensino, aprendizagem e avaliação de língua portuguesa.
A entrevista grupal foi gravada com autorização dos participantes e transcrita. Após essa etapa, foi feita a análise de conteúdo, apoiada nas ideias de Bardin (1977). A análise de conteúdo consiste em um conjunto de técnicas de análise da comunicação com a finalidade de chegar, por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo, à inferência de conhecimentos. Inicia-se com o tratamento descritivo dos dados, sabendo que o interesse central não reside meramente na descrição dos conteúdos, mas no que podem revelar após serem tratados.
A finalidade dessa abordagem é promover deduções lógicas e justificadas referentes ao emissor, contexto e, inclusive, efeitos dessas mensagens. Podem-se utilizar uma ou várias operações em complementaridade a fim de enriquecer os resultados ou aumentar a sua validade, aspirando, assim, a uma interpretação final fundamentada.
Destaca-se que a análise é feita sobre as falas proferidas pelos sujeitos, e isso significa que não há acesso às práticas concretas de sala de aula, somente aos discursos enunciados. Não há intenção de criticar o trabalho dos profissionais, e sim de compreender as concepções que norteiam suas práticas educativas.
Embora a entrevista tivesse como foco a avaliação, esse tema não apareceu espontaneamente quando se tratou do processo de ensino-aprendizagem de língua portuguesa com os sujeitos de pesquisa. Além disso, a indissociabilidade entre ensino, aprendizagem e avaliação em língua portuguesa também não foi mencionada de modo explícito nas falas coletadas. Ao contrário, esses eixos foram trazidos separadamente pelos docentes, como se apresenta a seguir.
ANÁLISE E DISCUSSÃO
Ao longo da entrevista, houve apenas uma menção acerca da perspectiva processual e reguladora da avaliação:3
A avaliação, na verdade, é um processo para saber se ele está alcançando, se ele está entendendo o conteúdo que nós estamos vendo ou não. Eu entendo que a avaliação é um processo que não serve só para o aluno, serve para mim também, porque, muitas vezes, a gente acaba precisando se reorganizar. Às vezes, você acha que deu uma excelente aula, que está tudo ótimo, maravilhoso, e aí, quando chega o momento, por exemplo, de uma avaliação formal, eles se confundem ou é o momento de reforçar aqueles conteúdos com eles. (Professor A).
No trecho selecionado, o docente relata sua concepção sobre avaliação como processo regulador do trabalho docente e a serviço da compreensão do aluno. Esse conceito se relaciona, inclusive, com a possibilidade de retomar conteúdos e ser mais uma oportunidade de aprendizagem. A fala também traz um caráter de regulação a partir do que o aluno aprendeu até determinado momento e os próximos passos de ensino que o professor construirá a partir dessa investigação. Também há a distinção entre a avaliação nomeada de “formal”, que se refere a uma avaliação somativa, possivelmente, e a avaliação processual realizada durante os momentos educativos em sala de aula, com caráter mais formativo. É possível notar que o docente compreende os limites da avaliação somativa, que somente são resolvidos se observado o processo avaliativo como um todo, como foi detalhado na sequência:
É uma responsabilidade, e então eu tento tirar esse caráter “olha, a prova vale tudo isso”. A gente passa a maior parte do tempo em sala de aula fazendo . . . porque é um processo avaliativo, você consegue notar nitidamente a evolução do aluno nesse tempo, e aí eu acho muito injusto colocar a avaliação, “olha, o que vale mesmo é esse dia aqui” . . . não estava bem em casa, brigou com alguém ou está triste com a paquerinha, namoradinho, ou está com dor de cabeça ou simplesmente está com sono, foi dormir tarde, então a gente sabe que, problemas, eles podem acontecer, e nós temos os alunos que são auditivos e são ótimos na oralidade, mas, quando vão colocar no papel, têm dificuldade de fazer isso. Às vezes, a cabeça dele é muito lógica, muito rápida e, quando vai escrever, que é um processo devagar, ele tem dificuldade, então precisa ser diversificado. (Professor A).
Observa-se que o docente demonstra ter consciência da responsabilidade de uma avaliação e compreende que o processo avaliativo não se restringe ao instrumento “prova”, como foi historicamente concebido. Inclusive há uma crítica ao peso dado ao instrumento em detrimento de todo um acompanhamento do processo de ensino-aprendizagem.
A fala do professor revela uma postura ética no fazer avaliativo, já que toda avaliação é inevitável no meio escolar, mas pode considerar a singularidade das situações e pessoas, com o objetivo de atenuar efeitos discriminatórios e excludentes.
O termo “avaliação” foi usado como sinônimo de “prova”, porém o professor apresenta uma visão processual dessa avaliação e a preponderância em avaliar a evolução que o aluno apresenta em detrimento do desempenho demonstrado apenas pela utilização do instrumento.
Outro participante relacionou avaliação à atribuição de nota, e os docentes expressaram sentimentos negativos e dificuldades a respeito. Esse processo foi relatado como algo penoso dentro das atribuições docentes, como citado abaixo:
Eu sou péssimo, sabe por quê? Para mim, tudo o que eles fazem é lindo, então . . . é claro, a questão gramatical tudo bem, você faz a correção e tal, mas a história, a ideia em si, eu perdoo muito os erros, a questão da coesão, eu perdoo tudo, porque, para mim, tudo é muito bom, eu sinto dificuldade na correção do texto, entendeu? E eu tomo muito cuidado quando vou dar a devolutiva porque tenho medo de desestimular, a minha crítica sempre é bem branda, assim, eu sou bem bonzinho com isso, eu tenho que admitir isso, porque eu tenho medo de que eles se decepcionem, então sou mais assim, sou mais calmo entendeu? Eu aponto algumas coisas, mas no começo eu riscava muito, e riscava, e marcava, e fazia flecha, e fazia balão, agora eu sou mais tranquilo nisso, porque eu acho que pode atrapalhar, eles podem ficar chateados mesmo, e isso ele vai dizer “ah, já que eu não consigo e ele acha que nada está bom, então eu não faço ou então faço de qualquer jeito”, mas acho que tenho que trabalhar isso, essa é uma certa deficiência minha, eu devia ser mais ruinzinho com isso. (Professor M).
O docente M revela explicitamente sua dificuldade em avaliar a produção textual do aluno e qualifica sua atuação como “péssima”. A avaliação, aqui, é sentida como instrumento para apontar erros e defeitos. Em oposição a essa ideia, o profissional relata que o produto de seus alunos é “lindo”, além de compreender a avaliação textual como uma prática higienista, que busca “limpar” o texto de erros gramaticais (Passarelli, 2012b).
O uso do verbo “perdoar” demonstra um caráter ofensivo do erro, como se fosse algo negativo, e não como possibilidade de regular o processo de ensino-aprendizagem e de auxiliar o aluno no caminho rumo à aprendizagem. Não fica explícita uma perspectiva processual com as etapas de produção de texto, e a avaliação é concebida como uma “crítica” que fere o aluno e o desmotiva porque só sinaliza problemas e não mostra caminhos; ao contrário, é vista como apontar, riscar erros gramaticais e fazer balões.
O docente revela, no entanto, compreensão da necessidade de fazer uma devolutiva ao aluno e expressa “tomar cuidado” com a forma como a avaliação chega a ele e o quanto pode impactá-lo negativamente. Quanto a isso, Black et al. (2018) orientam que se deve priorizar uma devolutiva detalhada e baseada em critérios que possibilitem o entendimento dos objetivos do trabalho e de sua qualidade. A “dificuldade na correção do texto”, expressa por M, talvez aponte uma ausência de clareza de tais objetivos e critérios, o que dificulta na hora de construir uma devolutiva assertiva da atividade.
O avaliador, aqui, é entendido como alguém maldoso, “ruinzinho”, cujo oposto seria o docente “bonzinho”, mostrando que não apenas o aluno é julgado pessoalmente, mas também o docente, por meio de sua forma de avaliar. Os termos “calmo” e “tranquilo” tocam na maneira como o avaliador se enxerga, quando assume uma postura mais cuidadosa e consciente das consequências de seu fazer avaliativo na vida do aluno.
A reprodução da fala do aluno dentro da fala docente demonstra o avaliador como alguém impiedoso e que acha que “nada está bom”. A “crítica branda” que evita mostrar ao aluno os problemas detectados e orientar o trabalho docente é construída em torno do medo da decepção e como algo que atrapalha o ensino. Muito provavelmente isso ocorre pois os erros não estão sendo utilizados como motor do processo de ensino-aprendizagem. Entretanto, M tem consciência de sua deficiência nessa seara e exprime que tal ponto deve ser mais trabalhado, corroborando a necessidade de investir nessa prática na formação profissional.
Outros sentimentos negativos em torno da tarefa de avaliar podem ser vistos a seguir:
Eu entro naquele conflito: “Meu Deus, o que estou fazendo na educação?, eu estou no lugar errado?”, porque isso não dá pra mim, eu não consigo fechar os olhos para tudo, eu estou dentro de um processo, então algumas vezes sou obrigada, por todo o contexto, a fingir que o seis é um sete, o que me dói bastante, então a gente tem que mapear, trabalhar com avaliação, a gente mapeia dentro disso aqui, dentro desta sala, o cinco tem um peso, o dez tem outro peso, o quatro . . . o que não vale para outra sala e é dentro da realidade de cada um, tem que estabelecer pesos e medidas diferentes, o que é muito ruim, porque lá fora o peso e a medida vão ser um só para todos eles. (Professor P).
Na fala acima, os sentimentos de conflito e dúvida aparecem relacionados à prática avaliativa, e a expressão “isso não dá para mim” revela o quão penoso é, para o profissional, encarar essa tarefa.
Percebe-se, ainda, que o termo avaliar é entendido como “mapear” e “processo”, e traz a ideia de investigar o que o aluno sabe, inclusive por meio de um percurso individual que compreende a “realidade de cada um”. No entanto, o uso de pesos e medidas diferentes pode indicar certa subjetividade na atribuição de notas em função do tipo de aluno ou de sala em questão, e não em torno de critérios previamente definidos e compartilhados com o estudante. O docente revela que é ruim ter pesos e medidas diferentes na avaliação, pois é necessário preparar o aluno para o mundo, que é um local que não compreenderá suas necessidades individuais e seu contexto.
A avaliação também vem atrelada à ideia de “fechar os olhos para tudo”, como se o avaliador não pudesse encarar o erro do aluno e fosse “obrigado” a alterar a medida a depender do estudante. Um termo que chama bastante a atenção é o uso da expressão “fingir que o seis é sete”, o que revela que as notas têm valores e pesos diferentes a depender do destinatário. O docente revela que esse fingimento “dói bastante”, como se estivesse contrariado em fazê-lo, talvez porque compreenda que os números não correspondem a uma medida justa e igualitária, mas devem se adaptar a fatores externos. A medida acaba sendo subjetiva e não traduzindo uma situação observável concreta de onde o aluno se encontra no processo de aprendizagem.
Aliás, nota-se certa confusão entre a medida fornecida pelo instrumento avaliativo ou por algum critério e a avaliação de um aluno como um todo. Essa distinção, possivelmente, faz o docente se sentir confuso no ato de avaliar.
Apesar da subjetividade, o docente tenta levar em conta um aspecto processual dentro daquilo que o avaliado apresenta para alterar sua medida e compreende um percurso mais individualizado na cena educativa. Ressalta-se que a avaliação, contudo, é vista de maneira quantitativa e sem perspectiva de ser utilizada em favor da aprendizagem. Essa perspectiva também aparece na continuação da fala: “Eu acho que, se nós formos avaliar realmente, fazer uma avaliação, vai ser terrível, então a gente tem que corrigir o texto como o M falou, tentando não desestimular o aluno, não apontando aquilo que é necessário apontar” (Professor P).
A fala acima evidencia a crença do docente P de que uma avaliação verdadeira seria “terrível” caso fosse feita, pois teria consequências ruins. Para não desmotivar o aluno, P revela a preocupação com tais efeitos na vida do estudante e procura não “avaliar realmente”. O docente tem consciência do impacto que a avaliação pode gerar na vida do aluno e desiste de exercer seu papel avaliativo. Porém demonstra a preocupação de não desestimular o estudante diante da tarefa de escrever.
O termo avaliação é entendido como “corrigir o texto” ou sinalizar erros, e não necessariamente ajudar o aluno a analisar esses erros. Percebe-se que o docente não se vê no lugar de quem auxilia o aluno a resolver os problemas evidenciados pelo texto nem no lugar de quem ensina a partir dos erros encontrados.
O profissional não estabelece uma ação dialógica no processo avaliativo nem um papel mediador entre aluno e objeto de conhecimento. Ele somente aponta erros sem usar uma tábua de correção para a devolutiva ao estudante ou o acompanhamento das etapas de construção do texto. Além disso, somente está sendo considerado o texto-produto, e não o texto-processo. Não fica clara a perspectiva processual e o erro não é fonte de aprendizagem ou reflexão reguladora.
Dito isso, a dificuldade expressa em torno da função avaliativa de “dar nota” pode estar relacionada com a ausência de critérios claros ao docente, que percebe essa atividade como difícil. Como as concepções de avaliação ditam as práticas avaliativas tanto em contexto remoto quanto presencial, esses sentimentos negativos aparecem em ambas as situações: “A avaliação… eu sofro com avaliação, seja presencial ou remota, avaliação para mim é horrível, esse negócio de dar nota pra mim é horrível, de qualquer forma eu acho que estou sendo injusto, eu sempre sofro com isso” (Professor M).
Nesse trecho, o docente M revela um sentimento de insatisfação em torno da construção do conceito final do estudante. Novamente termos como “sofrimento” e “horrível” emergem em torno da avaliação. A construção da nota também é relatada com pouca clareza quanto a seus critérios e objetivos.
Existe excesso de subjetividade e presença de dúvidas em torno da avaliação. Além disso, nota-se falta de clareza quanto à função da avaliação de regular o processo de ensino-aprendizagem e ajustá-lo às necessidades dos alunos.
Observa-se que a avaliação é colocada com centralidade na figura do professor, mas não vem vinculada ao processo de ensino-aprendizagem nem às características da tarefa solicitada com critérios e objetivos de aprendizagem. Novamente existe uma preocupação do profissional acerca do peso e das consequências da avaliação.
No entanto, coexiste, também, o sentimento de retorno ao antigo papel excludente da avaliação:
. . . então eu não posso cobrar do meu aluno porque não vai ficar retido, porque se ele aprendeu ou não vai dar no mesmo . . . o processo, todo sistema vai mandar para frente, mas, na hora de prestar um concurso público, na hora que ele for prestar um vestibular, como que fica tudo isso? (Professor P).
A fala acima retoma o verbo “cobrar”, como alguém que solicita desempenho do aluno e a realização de tarefas. Esse termo dá a entender que tais tarefas não necessariamente estão dentro de um processo contínuo e mediado. A cobrança é relacionada, inclusive, com a retenção. A avaliação, nesse exemplo, carrega o sentido de que não se pode avaliar o aluno porque ele não poderá ficar retido. A palavra processo aparece, mas se trata de um termo esvaziado de sentido, pois o docente justamente critica que o aluno terá continuidade em seus estudos por determinação do sistema.
Nessa fala, percebe-se a avaliação restrita ao final de um processo de ensino-aprendizagem e não como parte estruturante dele. Fica nítida, também, a perspectiva da educação voltada para a seleção futura dos “concursos públicos” e “vestibular”, reforçando a lógica excludente da avaliação. O “sistema”, que aprova automaticamente o aluno mesmo sem aprender, é visto como algo que deslegitima o papel docente. Assim, o professor não se vê no lugar de quem necessariamente ensina, e sim no lugar de quem tem o “poder” que a avaliação supostamente confere e que é anulado pelo “sistema”. A aprendizagem aqui é vista como tarefa do aluno unicamente e o sucesso depende dele e não da escola. Assim, o professor acaba se eximindo da responsabilidade de avaliar de maneira formativa e, sobretudo, de ensinar, dando justificativas como número elevado de alunos por sala, por exemplo:
Exatamente o que o M falou, é assim, de repente o aluno X, o cinco dele não é o mesmo cinco do outro. É o cinco dentro das possibilidades, daquilo que ele consegue fazer, dentro daquilo que é individual, por isso a nossa dificuldade em número de alunos por sala, por isso que nós não conseguimos fazer um trabalho como nós gostaríamos e como nós temos competência, porque, quanto maior o número de alunos, menos individualmente a gente consegue trabalhar, e é um indivíduo, a verdade é que ele vai ser cobrado lá fora como um todo, ali, naquele momento, ele precisa ser visto como único. (Professor P).
O trecho transcrito revela que a nota numérica varia a depender das possibilidades e características do aluno, mas também indica que o docente acredita na impossibilidade de fazer um trabalho de qualidade em função do número de alunos por turma. Por acreditar que a nota é dada a partir de critérios individuais, evidencia que o elevado número de pessoas em sala impossibilita essa tarefa, justificando por esse fato a falta de qualidade na tarefa avaliativa.
Obviamente, o elevado número de alunos por sala dificulta, e muito, o acompanhamento individual dos estudantes, e fatores como espaços e tempos rígidos também são obstáculos a serem superados na efetivação de uma avaliação verdadeiramente formativa. O percurso individual do aluno também é citado como aspecto a ser levado em conta quando se realiza uma avaliação formativa. No entanto, quando uma nota descrita por um número vem desprovida de critérios e acompanhada de um julgamento subjetivo do professor, o docente pode se ver em dificuldades ao explicar aos alunos tal diferença ou equivalência de notas ou, até mesmo, o significado desses conceitos em termos de aprendizagem. Talvez uma forma de atenuar essa subjetividade na atribuição de notas de um grande número de alunos por turma seja o uso de tábuas de correção, o que facilitaria a devolutiva.
O professor entende a necessidade de ver o aluno de modo integrado e único. Contudo, há dicotomia entre “lá fora” e na escola, entendendo a vida escolar como separada do contexto social. A fala traz a cobrança futura do exterior da escola como parâmetro para avaliar o estudante em contexto escolar.
Ao longo da entrevista, houve menção a uma perspectiva diagnóstica na regulação da aprendizagem. Quanto a isso, o docente relatou:
. . . eles escrevem uma carta para si logo nas primeiras semanas de aula, nos primeiros dias, e eles trazem envelope, selo, tudo bonitinho, e eles vão postar essa carta para eles e eu vou guardar, serve como uma primeira nota de produção textual para mim, mas eu não coloco nota lá, não coloco nada, só na minha caderneta de que isso é uma nota, e eu olho o que eles falam, sobre planos futuros, sobre o que eles estão vivendo no momento, o que eles acham daquele ano, e deixo tudo guardadinho, e, depois que encerra o ano letivo, uns dias antes do Natal, eu posto no correio, e aí chega para eles no ano seguinte ou quando eu os encontro de alguma forma. É muito legal porque eles percebem, assim, se eles fizeram, se eles não fizeram, como que está, “olha, a minha letra era assim, nossa, olha”, e é muito bacana. (Professor P).
Esse exemplo mostra a intenção docente de realizar uma regulação no processo de ensino-aprendizagem. Nota-se, no entanto, que o primeiro texto solicitado ao aluno não é utilizado como diagnóstico para orientar o trabalho pedagógico em língua portuguesa a ser realizado durante o ano e só oferta ao aluno a oportunidade de retornar a seu texto, reelaborar ou refletir no ano seguinte. Existe uma tentativa de estabelecer comparação da atividade na linha do tempo para perceber a evolução do aluno, mas a atividade fica “guardadinha” sem, necessariamente, um trabalho posterior.
O aspecto processual de construção desse texto também não aparece no excerto, nem os critérios que serão utilizados para avaliação de tal tarefa. Ao contrário, esse texto inicial já serve como uma nota mesmo sem ter sido desenvolvido um trabalho pedagógico ao longo do ano letivo. Aliás, existe um apego ao termo “nota”, frequentemente citado em torno da avaliação, e, aqui, esse ponto reaparece junto com o diagnóstico inicial. Observa-se, também, que os pontos de interesse na realização da atividade giram em torno dos planos, do momento de vida, da letra, e não propriamente em torno de práticas linguísticas.
Outra fala faz alusão a um diagnóstico que pode vir a orientar o trabalho pedagógico e que é feito oralmente em sala de aula: “Em um primeiro momento, eu vejo o que eles conhecem do assunto, converso com eles, e aí vou ver se aquilo ali que eles trouxeram inicialmente confere ou não” (Professor A).
Nesse trecho da entrevista, o professor apresenta preocupação em compreender os conhecimentos prévios do estudante no início de um período para a regulação de seu trabalho posterior, conforme orienta Perrenoud (1999). O professor usa a informação que obtém como forma de refletir sobre o que “confere” e o que “não confere” ao longo do trabalho pedagógico. Outra fala que toca na avaliação inicial que deveria regular a aprendizagem é apresentada a seguir:
. . . eu comecei a fazer [avaliação] com cruzadinha, então eles pegam lá o texto literário e vão montar cruzadinha. Quando eles vão no caderno, eu corrijo. Quando eles vão entregar, eles vão entregar sem resposta, só perguntas e nesse esquema mesmo de cruzadinha, e então eu troco. É feito normalmente em dupla, e eu troco. Então é aquela briga, “ô, professora, não tem sentido essa pergunta, como eu vou achar a resposta?”, “está vendo, para vocês verem como eu sofro!”. Eu ainda brinco com eles, “para vocês verem como é difícil e que vocês precisam entender . . . que você vai escrever para o outro, goste você ou não, você vai escrever para alguém ler, para alguém entender, você precisa se fazer entender, na sua vida, em qualquer coisa que você se proponha a fazer” . . . esse ano eu fiz com figuras de linguagem, então eu sempre pego ali um termo e então eles têm que montar de alguma forma, tem que ser no mínimo dez perguntas e tem que cruzar mesmo a palavra, tem que cruzar, então você precisa pensar em uma pergunta que tenha sentido, que vá dar uma resposta que seja uma, talvez duas palavras. (Professor P).
O exemplo citado traz um instrumento avaliativo na forma de cruzadinhas, que é, simultaneamente, um instrumento pedagógico que serve para estudar para a prova e um instrumento avaliativo em si. Essa fala revela a intenção de aproximar as esferas de ensino e avaliação como integradas e significativas ao aluno, já que se trata de uma tarefa lúdica.
Nota-se, pela fala de P, que há, inicialmente, parceria entre os colegas para a realização da atividade. Além disso, a atividade proposta proporciona certo grau de reflexão ao aluno quanto à clareza de sua produção, que é direcionada a um interlocutor real, o que promoveria maior sentido à atividade de escrita, mas existe um tom jocoso do erro por parte do professor, expresso em “como eu sofro”, que o coloca como negativo e não como parte natural e integrante do processo.
Outro ponto citado pelo docente em questão é o uso de cruzadinhas após estudo do texto literário ou de figuras de linguagem. Deduz-se que o foco da atividade é a construção da cruzadinha e não o trabalho em torno das práticas de linguagem, tanto no que se refere à leitura do texto literário quanto ao trabalho com as figuras de linguagem. O docente relata que os critérios fornecidos aos alunos para a realização da atividade são o número de perguntas, a estrutura da cruzadinha e ter suas perguntas compreendidas pelo outro. Observa-se que o conteúdo de literatura ou de figuras de linguagem em si não foi o principal elemento avaliado. Entretanto, o professor esclarece que existe uma correção da atividade no caderno do aluno feita por ele e salienta o aspecto de comunicação social da escrita durante a realização de toda a tarefa.
No discurso relatado, houve a tentativa de promoção de um ambiente escolar propiciador de reflexão e a intenção de partilhar sua responsabilidade no ensino, aprendizagem e avaliação, o que demanda necessariamente uma parceria entre aluno e professor. Entretanto, ao detalhar essa atividade, o profissional relata:
Eu faço normalmente essas cruzadinhas com escolas literárias, então eu trabalho de duas a três escolas literárias assim: momento histórico; as principais características; autores e suas obras, de uma forma bem resumida, bem em tópicos mesmo, e, depois de trabalhar com eles, fazer exercícios, eles se reúnem em dupla normalmente, e então eles vão montar para mim uma cruzadinha que tenha no mínimo 10 perguntas e respostas em que as respostas precisam ser de, no máximo, duas palavras para poder ficar bem na cruzadinha. Tem que ter uma cruzadinha, não pode ficar uma aqui, a outra lá, tem que cruzar mesmo as palavras, então eles formulam, eles deixam tudo pronto, a resposta no caderno deles, eu visto e aí eles vão passar a limpo. Então eles passam a limpo só com as perguntas e os quadradinhos, as indicações sem as respostas, e eu vou trocar. Não são eles que trocam, eu é que troco e vou passando, vou trocando de dupla para dupla, e a dupla tem que responder. (Professor P).
O trecho mostra um instrumento pedagógico que pode ser bastante produtivo em sala de aula, que é a formulação de questões sobre um assunto estudado. Por esse trecho, no entanto, vê-se que o maior foco é na transmissão de um conteúdo resumido e não na construção de sentidos acerca das escolas literárias, já que seu ensino e avaliação se baseiam em tópicos a serem memorizados. Após esse momento, existe a aplicação do conteúdo em uma atividade de montagem de cruzadinha, e o critério estabelecido pelo docente não se refere ao conteúdo ensinado, mas, sim, à estruturação de uma cruzadinha “que deve cruzar mesmo”. O visto é atribuído pelo docente e o aluno deve passar a limpo o que foi corrigido. Os critérios para avaliação desse tipo de instrumento foram detalhados na seguinte fala:
Então, eu atribuo: uma nota é para a dupla que montou, da forma que montou, se teve coerência, como estava a questão de ortografia, de coesão, eu faço toda a correção de como eles montaram e atribuo uma nota, e depois atribuo uma outra nota para quem respondeu. Aqueles que elaboraram direitinho e a dupla não conseguiu responder, então o problema é da dupla que não conseguiu responder; agora, existem situações em que não se consegue responder porque foi muito mal formulado, foi mal montada a cruzadinha, então, é, a questão da avaliação não ser bacana sobrecai sobre aquele que montou a cruzadinha, é mais ou menos assim. Só esqueci de uma coisa, normalmente eles realizam essa atividade uma semana antes da realização da avaliação, porque, como a gente sabe que os alunos não estudam em casa, não pegam um momento específico para estudar para uma avaliação, é uma forma que eu tenho de forçá-los a estudar o assunto para realizar a avaliação. (Professor P).
Os critérios citados para avaliação dessa atividade foram a montagem da cruzadinha, a presença de coesão e coerência e a ortografia. Nota-se que o conteúdo literário ou as figuras de linguagem trabalhadas durante os momentos de ensino não foram citados como critérios avaliativos, mostrando que talvez não haja integração entre os processos de ensino, aprendizagem e avaliação. O trabalho com as práticas de linguagem, proposto por Geraldi (2013), e que seriam suscitadas pelo estudo literário ou pelas figuras de linguagem, também se mostra secundário no exemplo em questão.
Além disso, é expressiva a recorrência do termo “nota”, citado três vezes no trecho, podendo revelar a tendência a sobrevalorizá-la no processo avaliativo. Quando a cruzadinha é mal formulada, o docente não se revela como parceiro para auxiliar o aluno nessa tarefa, e a responsabilidade por sua “má formulação” recai unicamente sobre o estudante, que acaba sendo punido na forma de nota. A nota beneficia aquele que soube fazer a tarefa bem-feita segundo os critérios estipulados e compartilhados pelo docente.
A palavra avaliação foi usada como sinônimo de prova, e esta, por sua vez, é concebida como uma atividade que deve demandar o “estudo forçado”, muito provavelmente porque se baseia na memorização dos itens resumidos e citados anteriormente. Deve-se salientar, no entanto, que existe uma preocupação com o desenvolvimento de uma atividade lúdica e interativa com os estudantes e a presença de uma intenção mediadora por parte do professor. Apesar disso, a mediação não se efetiva plenamente, já que o estudante é punido por seu mau desempenho na atividade.
Houve, nas falas, a preocupação docente de variar os instrumentos avaliativos em sala de aula. Um exemplo foi citado em relação ao uso de jogos para o estudo da língua:
. . . eu corrijo, eu vejo o que está certo ali no jogo. Também têm jogos de desafiar o outro, tem um desafio que eles gostam, da roleta com a garrafa, . . . é mais fácil porque estudo da língua para eles é mais difícil. O texto, a criação, a gente consegue estimular de outras formas, com filmes, a gente trabalha o pessoal deles também, o conhecimento de mundo deles, . . . dá para tirar da vivência. Agora, o estudo da língua, eles acham que não usam, então a gente faz com jogos e depois eu pego os textos deles e eles conseguem ver que estão utilizando o que estão estudando, só não conseguem fazer o link do que estão estudando com o que estão usando. (Professor E).
Os jogos para o estudo da língua, segundo o trecho, apresentam avaliação com perspectiva de “certo” e “errado”. O professor relata que o estudo da língua é difícil para os alunos porque “eles acham que não usam”, provavelmente porque esse estudo gira em torno da gramática normativa e da linguagem formal, que é pouco praticada pelas crianças em seu cotidiano, tanto que o aluno não “faz o link” entre o que estão estudando e o que estão usando.
Nota-se que existe uma diferença na concepção de ensino de texto e de estudo da língua. Percebe-se que o docente intenciona motivar e estimular a criação do texto com intertextualidade na forma de filmes e compreende que essa atividade trabalha conhecimentos de mundo mais amplos e com maior sentido ao estudante.
No entanto, existe a preocupação de pegar os textos em momento posterior para que os alunos vejam aplicado o conteúdo gramatical visto anteriormente de maneira mediada pelo professor. Esse “link” feito pelo professor para que o aluno perceba que utiliza no texto o conteúdo que estuda em sala de aula tem certa aproximação com as ideias de Geraldi (2013), que orienta que se tome a linguagem como ponto de partida e considere o contexto das interações verbais como o espaço onde o trabalho linguístico deve acontecer. Sobre a avaliação desses jogos, o docente apresenta que o aluno está incluído nessa ação:
A avaliação tem participação deles. Eles dizem de qual gostaram e por quê. Mas dá para perceber qual é o preferido porque pedem para jogar novamente. Lanço a nota no bimestre seguinte. Avalio os textos produzidos também. Anoto o nome dos alunos que se dedicam mais e os grupos que entregam no prazo. Avaliação, é muito complicado fazer sozinha porque acabo gostando de quase todos. Nas aulas remotas, eles estão criando jogos, ficarão prontos em novembro, usam aplicativos variados. Mas é somente um desafio, não é obrigatório. (Professor E).
No caso acima, a nota é novamente citada e é produzida com base nos jogos e nos textos feitos, mas também são considerados aspectos como a dedicação dos alunos e o cumprimento do prazo. O docente relata anotar os alunos que se dedicam mais, sendo esse um critério relativamente subjetivo.
No entanto, apesar de haver participação dos alunos na tarefa avaliativa e a intenção de partilhar essa responsabilidade, o critério utilizado pelo docente é o de que os alunos digam “de qual gostaram”, o que demonstra que não lhes foi dado um critério objetivo para o julgamento dos jogos elaborados pelos colegas. Outro critério utilizado pelo próprio docente é seu gosto pessoal pelo trabalho do aluno, o que também gira em torno da subjetividade. Inclusive essa subjetividade acaba gerando a sensação de dificuldade sentida pelo professor ao realizar a avaliação. E, em relação aos textos produzidos, o docente esclarece:
Primeiro, eu leio o texto. Consegui entender? Foi agradável? Criativo? O texto cumpriu com a função esperada? Seis pontos. Conseguiu estruturar os parágrafos em início, meio e fim? Começou com letra maiúscula, pontuação correta, sem muita repetição? Dois pontos. Corrigiu os erros já sinalizados, comentados em sala? Dois pontos. Não rabisco a produção. Faço um texto com caneta vermelha no final ou verso. (Professor E).
Um instrumento avaliativo de que o professor pode fazer uso na avaliação de produção textual é a tábua de correção. Pelo detalhamento dado pelo profissional, nota-se o uso de critérios de correção que não se estruturam na forma de ficha, mas que estão claros ao docente. Um dos critérios usados é “ser agradável e criativo”, que revela novamente a subjetividade no julgamento docente. O uso do termo pontuação “correta” dá a entender que busca a norma culta, e a expressão “sem muita repetição” também pode indicar certa dose subjetiva por não estipular uma medida precisa como parâmetro.
No entanto, quando é citada a “correção de erros sinalizados”, pode-se inferir que há um trabalho processual de ensino do texto feita pelo professor previamente, embora haja referência novamente ao aspecto normativista buscado pelo professor no texto do aluno.
A preocupação de não rabiscar o texto demonstra que o docente evita desestimular o aluno, mas salienta a cor da caneta “vermelha” ao se comunicar com ele, escolha que a tradição escolar construiu ao longo do tempo. Essa devolutiva mencionada e colocada no verso da produção textual do aluno mostra que o professor procura estabelecer uma mediação com ele e fazê-lo refletir sobre seus erros.
Outra atividade avaliativa foi citada:
. . . vou te dar um exemplo de trabalho que eu peço para eles. No ano passado, eu pedi uma atividade para as crianças do sétimo ano que falava de gênero instrutivo. . . . Eu coloquei algumas regras e eles teriam que escrever um manual sim, mas esse manual era de um brinquedo com recicláveis, que eles iam fazer, e o público-alvo era uma turminha de uma colega de trabalho lá do segundo ano. Então eu falei: “Quem vai avaliar o trabalho de vocês em parte são as crianças”, tiveram que montar uma sala de brinquedos para as crianças. Elas adoraram, e aí o segundo ano foi supercrítico, esse aqui eu gostei por isso, esse aqui não funcionou, então acho que deu supercerto. (Professor A).
No caso apresentado, o professor faz uma proposta que teve sua avaliação parcialmente realizada pelos alunos do segundo ano, ou seja, houve uma prática de avaliação entre os pares. O critério utilizado pelos alunos do segundo ano se baseia, aparentemente, no “gosto” subjetivo da criança ao utilizar o brinquedo e se ele funciona ou não, até porque os alunos são de outra faixa etária e não se situam na mesma etapa de desenvolvimento dos alunos avaliados, e talvez não tenham as condições necessárias para avaliar tal produção. O trecho, porém, revela que essa avaliação pelos alunos mais jovens foi parcial, dando a entender que a atividade também foi avaliada pelo docente, que compartilhou essa responsabilidade.
Além disso, salienta-se que a reflexão sobre a linguagem se dá apenas no trabalho com o gênero instrutivo e que as crianças avaliaram inclusive o brinquedo, o que não necessariamente envolve o uso de práticas linguísticas, mas há a intenção docente de estabelecer um ambiente lúdico, interativo e motivador para a aprendizagem.
Nota-se que houve a preocupação do docente de realizar um trabalho mais significativo para o aluno, levando em conta a flexibilização da proposta avaliativa em relação às características dos envolvidos. Também houve a intenção de propor a confecção do texto para um receptor real, que deveria compreender as instruções - no caso, os alunos do segundo ano. Essa ideia se aproxima de pontos trazidos por Geraldi (2013) sobre a proposta de produção textual que deve promover uma situação real de interlocução.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo teve como objetivo analisar as concepções de avaliação de professores de língua portuguesa de educação básica dentro de uma perspectiva integrada ao ensino-aprendizagem na disciplina. Como as concepções docentes norteiam as práticas na sala de aula, por meio dessa investigação pode-se compreender como o conhecimento construído na área da avaliação formativa tem tomado forma para alguns profissionais atuantes na escola.
As informações encontradas a partir da análise indicam que há a necessidade de investir na formação docente no que tange à prática avaliativa integrada ao ensino-aprendizagem de língua portuguesa, pois ainda há confusão e sentimentos negativos em torno da tarefa de avaliar e problemas na integração entre os elementos ensino, aprendizagem e avaliação de língua materna.
Além disso, nota-se que existe a intenção dos profissionais em estabelecer a regulação das aprendizagens, a promoção de um ambiente lúdico e aprendizagens significativas para o estudante, mas falta clareza quanto às funções da avaliação e quanto ao estabelecimento de critérios. Também existe excesso de subjetividade como parâmetro avaliativo, o que demonstra que o processo não se fundamenta em noções claras pautadas por uma teoria de base na área avaliativa.
Acredita-se que a formação docente deve aliar as práticas e os problemas reais da sala de aula, com um embasamento teórico aprofundado sobre avaliação, de modo que se retroalimentem e melhorem a qualidade educacional.