INTRODUÇÃO
O Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 é o documento vigente no Brasil, aprovado pela Lei Federal n. 13.005 (2014), que define as vinte Metas da educação pública brasileira para o decênio. A governança de sua execução, focada nas Metas, está sob a responsabilidade do Ministério da Educação (MEC), que realiza também seu monitoramento e avaliação por meio do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep). A lei define que, além do MEC, são responsáveis pelo monitoramento e avaliação periódica do PNE a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, a Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal, o Conselho Nacional de Educação (CNE) e o Fórum Nacional de Educação.1
O alcance das vinte Metas do Plano se efetiva na educação pública nos 26 estados da Federação e Distrito Federal, nos 5.570 municípios. Portanto o PNE é uma política de Estado, uma empreitada de governo federal, com recursos da União. O princípio de cooperação federativa da política educacional presente na Constituição Federal e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) estabelece que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios atuarão em regime de colaboração” (Lei n. 9.394, 1996, p. 27834) para o alcance das Metas e para a implementação das estratégias do PNE, cabendo aos gestores federais, estaduais, municipais e do Distrito Federal a adoção de medidas governamentais necessárias ao alcance das Metas previstas no Plano.
A Lei do PNE previu a criação de uma Instância Permanente de Negociação e Cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios para contribuir para o alcance das Metas, a implementação das estratégias definidas no PNE e o fortalecimento dos mecanismos de articulação entre os sistemas de ensino, por meio de ações conjuntas. Somente em 2019 foi constituída a Instância Permanente e realizada sua primeira reunião, ocorrendo mais quatro reuniões em 2020 e 2021.2
O PNE implica a formulação, implementação e execução de políticas públicas federais de educação no âmbito das unidades federadas. Em nosso modelo federativo, a governança de uma política pública federal de educação é um processo de alta complexidade. Além dos diferentes níveis de governo, com suas competências e responsabilidades, a entrega da política ao cidadão acontece numa instância ainda menor, a escola.
O Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE) tem papel importante na execução das políticas, sendo uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Educação que opera diferentes programas educacionais com finalidades, objetivos e públicos específicos, que são desdobramentos de políticas educacionais. A forma de operação de cada programa é descrita em resolução específica do FNDE, que deve ser seguida pelas partes envolvidas para garantia da aplicação correta dos recursos públicos correspondentes.
A presente reflexão busca lançar luzes sobre a Meta 3 do PNE, referente ao ensino médio, que é uma política pública com seus objetivos definidos em lei. Na primeira seção são analisados o ensino médio no contexto do PNE e o desempenho da Meta 3 ao longo da vigência do PNE 2014-2024, com dados do monitoramento do Plano realizado pelo Inep. Como o PNE requer governança para o alcance das Metas, a segunda seção sistematiza referências teóricas sobre governança de políticas públicas e federalismo, que são categorias fundamentais para problematizarmos a governança da Meta do ensino médio.
Na terceira seção apresentam-se as políticas do governo federal para o ensino médio que prosseguiram em operação ou foram implementadas na vigência do Plano, adotando como evidência de execução os recursos federais. A quarta seção sistematiza os resultados do trabalho, realiza uma análise dos dados levantados e faz um cotejamento com o referencial teórico sobre governança. As considerações finais destacam a importância da governança para o alcance das Metas do novo PNE.
O ENSINO MÉDIO COMO META DO PNE 2014-2024
O PNE 2014-2024, em vigência, foi aprovado após quatro anos de tramitação no Congresso Nacional. O executivo federal encaminhou a proposta em dezembro de 2010 e, após emendas e participação da sociedade civil, o Plano foi sancionado e aprovado pela Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014. O atual PNE teve origem na Conferência Nacional de Educação, de 2010, sendo o segundo após a Constituição Federal de 1988 e o terceiro após o Manifesto dos Pioneiros da Educação, anunciado há 90 anos (Amâncio et al., 2021).
O PNE é uma política pública, com Metas a serem seguidas e atingidas pelo Estado em dez anos. Para que o Plano se materialize, são fundamentais dois mecanismos: gestão e financiamento. Para cada uma das vinte Metas do PNE, foram definidas estratégias que implicam a formulação e implementação de políticas e programas governamentais. A Meta 3 do PNE, que se refere ao ensino médio brasileiro, tem a redação a seguir: “universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 (quinze) a 17 (dezessete) anos e elevar, até o final do período de vigência deste PNE, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85%” (Lei n. 13.005, 2014).
É no ensino médio que ocorre a maior evasão escolar no país. A incapacidade de a escola de ensino médio reter nos bancos escolares a maior parte da juventude brasileira de 15 a 17 anos, nesses três anos de grande importância na formação cidadã, é uma ferida sempre presente. A evasão no ensino médio é, ao mesmo tempo, efeito e causa de um conjunto de desafios econômicos e sociais da sociedade brasileira, que retornam para a escola gerando diversos problemas de natureza pedagógica, num círculo vicioso altamente desafiador.
Como etapa final da educação básica brasileira, pública e obrigatória, sempre pairou sobre o ensino médio brasileiro uma certa tensão, pois trata de uma etapa que faz passagem da juventude do mundo escolar para o mercado de trabalho, ou para o ensino superior, ou para a educação profissional, e também pela possibilidade de ser realizada integrada à formação profissional. Essa tensão é histórica. O debate sempre girou em torno do fato de essa etapa ser ou não uma preparação para o mundo do trabalho, ter ou não essa finalidade; ao mesmo tempo, é um período com muita densidade de conteúdo para estudo e aprendizagem por parte dos jovens e que já sofreu diversas alterações curriculares no Brasil de geração para geração.
A síntese de Bueno (2000, p. 55), em estudo realizado sobre as políticas do ensino médio no Brasil, apontava, no começo deste século, que, em âmbito nacional, os diversos momentos e espaços de debate sobre a questão do ensino médio e da educação profissional, bem como de suas possibilidades de articulação/desarticulação, não pareciam ter sido ainda eficientes e suficientes para superar incoerências, divergências e contradições no campo conceitual e oferecer às escolas um referencial abrangente, objetivo e seguro que orientasse suas decisões.
A Meta do PNE para o ensino médio está na Lei n. 13.005 (2014) com um conjunto de 14 estratégias para serem implementadas. O monitoramento das Metas do PNE, realizado pelo Inep, gera relatórios públicos que podem ser consultados no Painel de Monitoramento do PNE (Inep, 2020) que integra o InepData.3 O Relatório do 5º ciclo de monitoramento das metas do PNE - 2024 (Inep, 2024) informa dois objetivos que compõem a Meta 3, apresentados na Tabela 1, sendo que há para cada objetivo um indicador correspondente utilizado pelo Inep para monitoramento da Meta.
TABELA 1 Meta 3 do PNE: Objetivos e indicadores
META 3 - OBJETIVO 1 | META 3 - OBJETIVO 2 |
---|---|
Garantir que, até 2016, seja universalizado o acesso da população de 15 a 17 anos à escola. | Garantir que a taxa líquida de matrículas dos jovens de 15 a 17 anos atinja 85%, até o ano de 2024. |
Indicador Inep para monitoramento da Meta | Indicador Inep para monitoramento da Meta |
A - Percentual da população de 15 a 17 anos que frequenta a escola ou já concluiu a educação básica. | B - Percentual da população de 15 a 17 anos que frequenta o ensino médio ou possui a educação básica completa. |
Fonte: Elaboração dos autores a partir do Relatório do 5º ciclo de monitoramento de metas do PNE - 2024 (Inep, 2024).
Quanto ao indicador A, a Figura 1 demonstra que a universalização do atendimento, que deveria ser atingida com dois anos de vigência do PNE, em 2016, ainda não aconteceu. Portanto, passados oito anos do prazo, como evidenciado a seguir, a Meta 3 não foi alcançada quanto a esse objetivo, conforme o Relatório do 5º ciclo de monitoramento de metas do PNE - 2024 divulgado pelo Inep.

Fonte: Inep (2024, p. 84).
Nota: O Relatório informa que os resultados de 2020-2021 foram suprimidos por recomendação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) devido à dificuldade na coleta de dados durante a pandemia da covid-19.
FIGURA 1 Percentual da população de 15 a 17 anos que frequentava a escola ou havia concluído a educação básica. Brasil, 2012-2024
Como pode ser observado na Figura 1, na última medição para fins de monitoramento, realizada em 2023, ainda faltavam 6% para o alcance dos 100% de atendimento que estavam previstos para 2016.
No que se refere ao indicador B, a Figura 2 demonstra que a Meta 3 do PNE está distante 10,5% da taxa aferida em 2021. O Brasil avançou 11% nesse indicador em onze anos; portanto, a série histórica possibilita estimarmos que essa taxa não será atingida.

Fonte: Inep (2024, p. 91).
FIGURA 2 Percentual da população de 15 a 17 anos de idade que frequentava o ensino médio ou havia concluído a educação básica. Brasil, 2012-2024
De acordo com a Figura 2, em 2013, apenas 64,8% da população de 15 a 17 anos estava matriculada no ensino médio ou com a educação básica concluída, portanto 35,2% dos jovens brasileiros nessa faixa de idade não frequentavam a escola, nem tinham concluído seus estudos, o que significa uma taxa muito alta. O PNE 2014-2024 inicia com esse desafio de partida; as matrículas aumentaram em média um ponto percentual ao ano e o maior crescimento ocorreu entre 2019 e 2022 (4% no período). O indicador atingiu 76,9% em 2023, ficando 8,1 pontos percentuais abaixo da Meta para dez anos, completados em 2024.
Pimenta (2023), em matéria jornalística, afirmou que a Meta 3, que se refere aos estudantes na faixa dos 15 a 17 anos, não será alcançada e informou o não cumprimento da maioria das Metas do PNE. O cenário é desolador, pois mesmo as que foram alcançadas apontam para uma realidade de estagnação ou retrocesso, sendo que a nova proposta terá de repetir boa parte das Metas não executadas na primeira e segunda versões do plano (Pimenta, 2023).
O monitoramento da Meta é fundamental, mas o seu alcance requer um trabalho de governança do PNE como política pública de educação para um decênio.
Governança é o conjunto de todas as práticas mobilizadas pelos governos para entregar para a sociedade serviços e políticas públicos de qualidade que sejam capazes de impactar positivamente a sociedade em seu bem-estar, realizando um conjunto complexo de atividades de maneira íntegra, as quais sejam eficientes e efetivas no manuseio dos recursos públicos e legítimas para alcançar os valores sociais (Callou & Gaetani, 2022, p. 7).
Portanto a governança da Meta 3 do PNE, conforme apresentamos nesta seção, não garantiu o alcance dos resultados definidos em lei. Assim, governança de políticas públicas é o tema da próxima seção, visto que avaliar as ações, projetos e políticas educacionais referentes ao ensino médio, que começaram a ser implementadas desde 2014, é uma atividade necessária e inerente ao ciclo de políticas. De acordo com Bauer e Fernandes (2022), essa avaliação se constitui numa ferramenta essencial à apreciação dos resultados obtidos, ao fomento e à retroalimentação do planejamento, à redefinição de rumos e ao aprimoramento das ações, estratégias e recursos utilizados.
A GOVERNANÇA DE POLÍTICAS PÚBLICAS NA ÁREA DA EDUCAÇÃO
A coordenação do PNE 2014-2024, com suas vinte Metas a serem alcançadas, é um obstáculo de governança de políticas públicas de alta complexidade. O PNE integra vinte desafios que implicam vinte empreitadas de governança a serem enfrentados e superados. A materialização do PNE requer ações e políticas que se efetivem a partir de vários embates e conjunturas, contribuindo para a concretização do plano ou para sua secundarização (Dourado, 2017, p. 12). Vejamos a seguir algumas perspectivas teóricas sobre governança que irão auxiliar no estudo das políticas federais referentes à Meta do ensino médio.
O conceito de governança, no modelo teórico desenvolvido por Jon Pierre e Guy Peters (2016), é explicado a partir de cinco “funções de governança” em políticas públicas: tomada de decisão, seleção de objetivos, mobilização de recursos, implementação e avaliação-feedback-aprendizagem.
Para Pierre e Peters (2016), a tomada de decisão é a etapa que dispara o processo de governança, mas é também uma função presente em todas as fases que a sucedem. A tomada de decisão é uma tarefa inerentemente política, trata-se de uma atividade central de governo. Como característica essencial da governança, a tomada de decisão é uma prática tanto formal quanto social para os autores. A dimensão formal da tomada de decisão pressupõe um alto grau de programação, enquanto a dimensão social destaca as muitas contingências na tomada de decisão pública que se originam, teoricamente, de uma ampla consulta à sociedade. Nesse sentido, a governança envolve a ligação de vários atores engajados em uma variedade de funções de governança que precisam se encaixar bem para produzir uma direção eficaz. Um elemento central de uma análise comparativa de governança, portanto, passa a ser a forma como as decisões são tomadas e a mistura de elementos formais e sociais de tomada de decisão.
Numa segunda abordagem teórica sobre a categoria que estamos focalizando, Klijn e Koppenjan (2016) conceituam a governança como “governança de redes” e consideram que três complexidades permeiam os processos de produção e implementação de políticas públicas. A primeira complexidade é denominada substantiva e acontece quando os atores envolvidos na definição e implementação de políticas públicas, ou na entrega de serviços públicos, têm diferentes percepções e opiniões a respeito da natureza do problema e da efetividade das soluções aventadas. Os autores consideram que informações, evidências, conhecimentos científicos não são suficientes para solucionar problemas complexos quando estamos tratando de “problemas perversos/capciosos”, que eles denominam de wicked problems.4 A natureza perversa/capciosa desses problemas não é causada apenas pela falta de informação, conhecimento ou natureza tecnologicamente avançada do problema, mas, provavelmente e ainda mais, pela presença de vários atores com interesses e percepções divergentes ou mesmo conflitantes.
Assim, Klijn e Koppenjan (2016) argumentam que, para lidar com situações que envolvem complexidade substantiva, é preciso promover o esclarecimento e comunicação acerca das várias percepções dos atores, no intuito de alcançar uma compreensão conjunta sobre a natureza do problema e, por conseguinte, construir uma solução coletivamente pactuada.
Uma segunda complexidade é a estratégica, que enfatiza os processos de interação erráticos que evoluem de forma imprevisível, em formato zigue-zague e irregular. Além dos atores terem percepções e preferências divergentes e conflitantes, essas posições mudam ao longo da interação e pautam os movimentos estratégicos das contrapartes envolvidas no jogo. Para lidar com a complexidade estratégica, é necessário que os atores se engajem na interação para obter informações e compreender as posições e os pontos de vista das partes envolvidas, insumos imprescindíveis para o surgimento de um cenário de negociação e das condições para a pactuação de resultados conjuntos.
A terceira complexidade é a institucional e refere-se ao cenário de regras pouco claras, ambíguas e conflitantes, decorrentes da ausência de confiança entre os atores, sendo a confiança caracterizada pela expectativa dos atores de que suas contrapartes no jogo não adotem comportamentos oportunistas. À medida que ocorre o gradual incremento da confiança entre os atores nas diversas rodadas de interação, há a redução dos custos de transação e o estabelecimento de aprendizagem, inovação e troca de experiências.
Os autores realizam um apanhado histórico das diferentes abordagens de redes nas pesquisas empíricas realizadas entre 1960 e 2000 e ressaltam três tradições teórico-conceituais distintas: redes de políticas públicas, redes de implementação e prestação de serviços e a governança colaborativa.
A Constituição Federal de 1988 concede autonomia aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios; portanto, cada ente federativo é autônomo em poderes e atribuições, cada ente é um universo único. Ao mesmo tempo a Constituição define que todos os entes têm obrigações constitucionais comuns e devem operar em regime de colaboração.
Nesse sentido, as relações entre as partes constitutivas da Federação, chamadas de relações intergovernamentais, referem-se a uma forma particular de Estado que envolve extensiva e contínua relação entre o governo federal e os governos subnacionais. Essa ligação supõe negociação e barganha na formulação e implementação de políticas públicas. As relações intergovernamentais são, portanto, o modo como se concretiza a cooperação em países federativos (Segatto & Abrucio, 2016, p. 414).
Segatto e Abrucio (2016), sobre a cooperação na nossa Federação heterogênea, propuseram-se a verificar como acontece o regime de colaboração na educação em seis estados brasileiros. Os resultados do estudo apontam, primeiramente, que na educação é impossível considerar um padrão único de atuação dos estados quanto às suas funções e ao contexto intergovernamental, pois as diferenças entre eles - institucionais, socioeconômicas e escolhas políticas - modificam a experiência da coordenação federativa.
Um segundo aspecto é que acontece uma sobreposição de competências entre estados federativos e seus municípios que concorrem para a realização da política federal proposta. No caso do ensino médio, a política federal é executada pela secretaria de educação do estado, que tem suas próprias políticas para esse nível de ensino, impactando a população de um território que está sob a jurisdição de um município. Vale lembrar que há políticas federais para o ensino fundamental executadas pelos municípios em suas escolas. A conclusão é que não bastam ações coordenadoras do governo federal, os estados precisam assumir uma coordenação competente. O terceiro aspecto é que nas políticas educacionais são raros os programas federais que exigem que a coordenação regional seja dos estados. Em alguns casos, o estado faz uma mediação por iniciativa própria. Portanto a articulação entre governo federal e estados precisa aumentar significativamente no que se refere à dinâmica política e gerencial da educação.
Por fim, os autores argumentam que os estados podem desempenhar um papel de coordenação na educação, mas não significa que esse processo tenha de ser homogêneo na Federação brasileira.
A desigualdade de atuação dos estados deve-se não só a diferenças socioeconômicas, mas a critérios político-institucionais. . . . O estado mais rico da Federação, São Paulo, não tem uma política tão ativa de coordenação, como o Ceará, ou de cooperação, como Mato Grosso do Sul, Acre e Minas Gerais. É provável que o tamanho da rede paulista e sua enorme complexidade expliquem parte dessa diferença, mas a trajetória e as escolhas referentes à política não podem ser negligenciadas. . . . Conclui-se, portanto, que as diferenças entre os estados precisam entrar no arcabouço analítico daqueles que estudam a relação entre federalismo e políticas públicas no Brasil. Em alguns lugares, o governo estadual será mais central, em outros, em menor medida, mas em todos o seu papel é chave para entender o processo de coordenação nos municípios. (Segatto & Abrucio, 2016, p. 427).
O conceito de governança multinível é uma chave teórica que auxilia a compreensão das relações de governança nas políticas públicas. Os níveis intermediários de governo foram importantes há décadas e séculos, com poderes variados, mas nas últimas décadas os governos locais se tornaram importantes atores. A cidade continua a ser o principal prestador de serviços no seu nível da sociedade, entretanto assistimos a cidades e regiões explorarem inclusive arenas internacionais e se apresentarem como atores internacionais (Pierre & Peters, 2016). Têm surgido novos arranjos e mudanças nas relações entre instituições do Estado, dos governos regionais e locais.
Para Pierre e Peters (2016), o federalismo é uma forma particular de governança multinível, visto que a soberania é compartilhada e, dentro de seus domínios, os governos podem agir de forma autônoma. A divisão de poderes é especificada por algum documento constitucional e a formulação e a natureza de uma política irão complementar ou distorcer as relações entre os poderes. Geralmente ocorre mudança de poder na direção dos governos centrais. Exceto quando já está definida uma distribuição de recursos, o que acontece é que os governos centrais usam o dinheiro para que os subnacionais se engajem nas políticas que desejam. O governo central também impõe normas aos governos locais e regionais, que podem se contrapor ao poder central com respaldo legal. De acordo com a LDB, em conformidade com a Constituição Federal, quem produz as normas é o governo federal; entretanto algumas políticas, programas e ações podem não ser adotadas pelos governos estaduais e municipais. No caso do Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD)5 do Ministério da Educação, por exemplo, os estados podem aderir ou não6 aos materiais do Programa.
Carvalho (2023) sistematizou um referencial teórico para compreender a coordenação nacional da implementação de políticas educacionais no contexto brasileiro de educação e conceitua como implementação de primeira ordem as ações de atores do governo federal, de segunda ordem as ações de secretarias estaduais de educação e de executivos estaduais e de terceira ordem o conjunto de ações para a implementação da política nas escolas. Nosso foco neste trabalho são as ações de primeira ordem, aquelas do governo federal.
POLÍTICAS FEDERAIS PARA O ENSINO MÉDIO NA VIGÊNCIA DO PNE 2014-2024
Pesquisamos políticas e programas federais específicos para o ensino médio que já estavam em operação ou foram institucionalizados após 2014, o primeiro ano do PNE vigente.
O ensino médio é uma etapa que surgiu na história da educação brasileira como preparação para o ensino superior. Com a industrialização do país, passou a ser atrelada à profissionalização e até hoje convivem essas duas finalidades. Em torno delas temos as políticas do Estado brasileiro, as demandas do mercado de trabalho, os debates acadêmicos e a juventude brasileira.
O processo de definição de uma identidade para o ensino médio teve um avanço com as primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, aprovadas por meio do Parecer CEB/CNE n. 15 do Conselho Nacional de Educação (CNE), em 1998. Foi um marco na história dessa etapa de ensino, trazendo a interdisciplinaridade e a contextualização para o currículo, a organização em áreas, a noção de projeto de vida e outras dimensões que permanecem até hoje. Com a Emenda Constitucional n. 59, de 2009, que definiu a educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade, as discussões sobre a finalidade do ensino médio brasileiro se aprofundaram, resultando em inúmeros debates sobre sua função, identidade, formato e estrutura curricular.
Em 2014, quando o PNE em vigência foi aprovado, já estava em operação desde 2009 o Programa Ensino Médio Inovador (Proemi), que visava à melhoria do ensino médio por meio dos seguintes impactos e transformações desejáveis:
superação das desigualdades de oportunidades educacionais;
universalização do acesso e permanência dos adolescentes de 15 a 17 anos no ensino médio;
consolidação da identidade desta etapa educacional, considerando as especificidades dessa etapa da educação e a diversidade de interesses dos sujeitos;
oferta de aprendizagem significativa para adolescentes e jovens, priorizando a interlocução com as culturas juvenis (MEC, 2009).
Figueiredo (2015) explica que em 2011 o Proemi foi assumido como política de indução à reformulação curricular, tendo por fundamento as novas Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio (Parecer CNE/CEB n. 5, 2011) homologadas pelo ministro da educação, Fernando Haddad, em fevereiro de 2012, pouco antes de deixar o ministério.
Em 2013, teve início na Câmara dos Deputados a discussão sobre uma reforma do ensino médio, com o Projeto de Lei n. 6.840, de 2013, de propositura do deputado federal Reginaldo Lopes, do Partido dos Trabalhadores pelo estado de Minas Gerais. Cardozo e Lima (2018, p. 131) enfatizam a criação de uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados para “promover estudos e proposições para a reformulação do ensino médio, com o objetivo de instituir a jornada em tempo integral e dispor sobre a organização do currículo em áreas do conhecimento”.
Em 2014 as políticas federais para o ensino médio consistiam no Proemi em operação e nas novas Diretrizes Curriculares Nacionais aprovadas em 2012. Além disso, tramitava na Câmara dos Deputados um projeto de lei para reforma do ensino médio.
Consideramos políticas federais para o ensino médio implementadas no âmbito do PNE aquelas com recursos executados, informados nas bases de dados do FNDE ou que constam no Painel de Monitoramento do Novo Ensino Médio, na página do MEC. Com esse critério, identificamos cinco políticas federais que organizamos na Tabela 2: Programa Ensino Médio Inovador (Proemi); Ensino Médio de Tempo Integral (EMTI); Programa de Apoio à Implementação da Base Nacional Comum Curricular (ProBNCC); Programa Novo Ensino Médio (Pronem); Programa de Itinerários Formativos (Proif).
TABELA 2 PNE 2014-2024 e programas executados com recursos federais
PROGRAMAS | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | 2020 | 2021 | 2022 | 2023 | 2024 |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Proemi | |||||||||||
EMTI | |||||||||||
ProBNCC | |||||||||||
Pronem | |||||||||||
Proif |
Antes da Reforma do Ensino Médio
Após a Reforma do Ensino Médio
Fonte: Elaboração dos autores.
Com exceção do Proemi, quatro programas foram instituídos com a reforma do ensino médio, a partir de setembro de 2016, quando o presidente da República, Michel Temer, assinou a Medida Provisória n. 746. No mês seguinte, em outubro de 2016, o FNDE publicou uma resolução ampliando o escopo do Proemi para atender à nova política e, assim, foi inaugurado o programa EMTI, em decorrência da medida provisória.
O Proemi seguiu repassando recursos aos estados até 2018 (Tabela 3), mas os repasses em 2017 e 2018 constam na base de dados do FNDE como parcelas referentes a 2016, quando aconteceu a adesão ao EMTI. A partir de 2019, não constam mais repasses de recursos.
TABELA 3 Recursos repassados pelo Proemi durante a vigência do PNE 2014-2024
ANO | VALORES NOMINAIS (R$) |
---|---|
20147 | 288.506.300,42 |
20158 | 132.438.292,56 |
20169 | 265.370.112,00 |
201710 | 98.864.808,00 |
201811 | 164.400,00 |
Fonte: Elaboração dos autores com dados extraídos de Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (n.d.).
A Medida Provisória n. 746/2016 criou a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Assim, foi instituído um segundo programa com recursos federais no âmbito do PNE 2014-2024, o EMTI (Portaria n. 1.145, 2016). São consideradas matrículas em tempo integral aquelas em que o estudante permanece na escola ou em atividades escolares por tempo igual ou superior a 7 horas diárias ou a 35 horas semanais em dois turnos, sem sobreposição entre eles.
O Ministério da Educação (2022a) informa que ocorreram quatro períodos de adesão ao EMTI, conforme mostra a Tabela 4.
TABELA 4 Adesão ao Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral EMTI - 2016, 2017, 2018 e 2019
1ª Portaria | n. 1.145, de 10 de outubro de 2016 | 490 escolas | 27 UF |
---|---|---|---|
2ª Portaria | n. 727, de 13 de junho de 2017 | 358 escolas | 24 UF |
3ª Portaria | n. 1.023, de 4 de outubro de 2018 | 179 escolas | 14 UF |
4ª Portaria | n. 2.116, de 6 de dezembro de 2019 | 412 escolas | 26 UF |
Fonte: Painel de Monitoramento do Ensino Médio (Ministério da Educação [MEC], 2022a).
Somando as adesões ao programa referentes às quatro portarias do MEC, encontramos 1.429 escolas, mas de acordo com o Painel de Monitoramento do Ensino Médio, atualizado em 22 de dezembro de 2022, 1.416 escolas fazem parte do programa, atendendo a 359.734 alunos. As escolas participantes estão distribuídas em 876 municípios. No painel do Novo Ensino Médio na página do MEC (2022a) constam os totais repassados ano a ano pelo EMTI de 2016 a 2022. Vale lembrar que a última atualização do painel foi em dezembro de 2022 e que os dados de 2023 não estavam disponíveis até agosto de 2023.
Em abril de 2018 o MEC instituiu o ProBNCC (Portaria n. 331, 2018), com o objetivo de apoiar os estados e o Distrito Federal, por meio de suas secretarias de educação, no processo de revisão ou elaboração e implementação de seus currículos alinhados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do ensino médio, na formação de equipes técnicas de currículo e de gestão e no processo de implementação da BNCC junto às secretarias de educação.
O Painel do Novo Ensino Médio (MEC, 2022a) informa que, no período de três anos, de 2019 a 2021, o ProBNCC pagou 12.577 bolsas para revisão, elaboração e implementação dos currículos, num total de R$ 13.834.800,00. Essa linha do Programa é denominada de ProBNCC - Bolsas.
As atividades de formação configuram uma outra linha denominada ProBNCC - Formação. O Painel de Monitoramento do Ensino Médio informa que o total de recursos empenhados é de R$ 59.108.019,48. No Painel, o Nordeste é a região com a maior destinação de recursos para formação, com R$ 18.946.062,62, seguido por Norte, Sudeste, Centro-Oeste e Sul com R$ 8.243.837,62.
O Pronem (Portaria n. 649, 2018), instituído em julho de 2018 para apoiar as secretarias de educação estaduais e do Distrito Federal na elaboração e execução do plano de implementação do novo currículo do ensino médio, contemplando a BNCC, os diferentes itinerários formativos e a ampliação de carga horária para mil horas anuais, possibilitou a implantação de escolas-piloto nas 27 unidades da Federação (UF). A implementação das escolas-pilotos foi iniciada em 2019 com apoio financeiro por meio do já existente Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE).
Com o Pronem, as UF executaram propostas de flexibilização curricular (PFC), com novas matrizes, e realizaram a revisão de suas propostas pedagógicas, em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.
Em setembro de 2021, o Ministério da Educação lançou o Programa de Itinerários Formativos (Portaria n. 733, 2021) com quatro eixos temáticos: apoio técnico e financeiro às escolas; apoio à implementação das escolas-modelo; integração das redes para ampliar as possibilidades de oferta de diferentes itinerários e unidades curriculares; e monitoramento e avaliação, que realizará estudos e avaliações junto às redes de ensino.
Mediante o lançamento do Proif, o FNDE passou a destinar recursos financeiros (Resolução n. 22, 2021) do PDDE para as escolas públicas estaduais e distritais para sua implementação. No Painel de Monitoramento do Ensino Médio consta que foram elegíveis 12.730 escolas, e o valor total repassado foi de R$ 104.546.285,00.
RESULTADOS DA IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA
A Meta do PNE referente ao ensino médio brasileiro, de universalizar até 2016 o atendimento escolar para toda a população de 15 a 17 anos, não foi atingida e para elevarmos até o final de 2024 a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85%, como consta na Meta, seria necessário um crescimento de 8,1% nas matrículas.
A análise das vinte estratégias do Plano para Meta do ensino médio evidencia que três delas implicariam políticas curriculares: (1) institucionalizar programa nacional de renovação do ensino médio; (2) encaminhar ao CNE até 2016 uma proposta de direitos e objetivos de aprendizagem para garantir a formação básica comum para os(as) alunos(as) de ensino médio; e (3) pactuar entre União, estados, Distrito Federal e municípios a implantação dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, a Base Nacional Comum Curricular do ensino médio (Lei n. 13.005, 2014).
As cinco políticas públicas federais que foram implementadas, com evidências de execução de recursos, têm aderência à estratégia de “renovação do ensino médio”, sendo que quatro delas integram o processo de implementação do Novo Ensino Médio (NEM).
Quanto às demais estratégias, a BNCC do ensino médio, que deveria ser proposta até 2016 e ter sua implementação pactuada, obteve a homologação pelo MEC somente em dezembro de 2018. A BNCC da educação básica, que foi aprovada em 2017, referiu-se apenas à educação infantil e ao ensino fundamental. Como vimos anteriormente, a reforma do ensino médio teve início em 2016, mas a BNCC do ensino médio ainda não estava disponível.
Queiroz et al. (2022, p. 44) destacam que a BNCC do ensino médio era um normativo fundamental para a elaboração dos currículos estaduais, pois os documentos normativos são fundamentais na implementação de uma política pública de educação em âmbito nacional, sendo que a ausência deles compromete a implementação e gera atrasos que impactam os processos educativos e a aprendizagem dos alunos.
Em maio de 2018, o Brasil firmou um acordo de empréstimo com o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) no valor de U$ 250 milhões (Bird, 2022, p. 27), para o Projeto de Apoio à Implementação do Novo Ensino Médio, abrangendo as 27 unidades federativas e o Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Básica, com apoio da Subsecretaria de Planejamento e Orçamento (SPO), Subsecretaria de Assuntos Administrativos (SAA) e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O projeto tem dois componentes e o acordo definiu a criação de uma unidade de gerenciamento de projetos (UGP) no MEC para apoiar a Coordenação do Ensino Médio da Secretaria de Educação Básica (SEB). O componente 1, no valor de US$ 221 milhões, é composto de programas orçamentários e ações do Plano Plurianual (PPA), e o componente 2, n. 8813-BR no valor de U$$ 29 milhões, “consiste em apoiar a implementação da Reforma do Ensino Médio, por meio de um conjunto de assistências técnicas, fortalecendo a capacidade institucional do MEC e SEE’s para assegurar a correta implementação da Reforma do Ensino Médio” (MEC, 2021).
O Relatório da implementação do ensino médio, referente ao citado acordo de empréstimo, elaborado pela Coordenação-Geral de Ensino Médio/DPDI/SEB/MEC (MEC, 2022b), informa que a etapa de aprovação e homologação dos referenciais curriculares estaduais pelos Conselhos Estaduais foi cumprida por todos os estados e o Distrito Federal. Com referência à implementação nos estados, o relatório apresenta apenas dados quantitativos.
Como mostra a Tabela 5, a implementação está mais avançada nas regiões Centro-Oeste e Sul, que já têm, respectivamente, 75% e 67% das escolas ofertando o novo currículo para o 3º ano. O Sudeste detém a menor taxa de implementação, com 25% das escolas ofertando o currículo do 3º ano.
TABELA 5 Percentual de escolas ofertando o 2º e 3º anos do NEM por regiões brasileiras
REGIÕES | ESCOLAS OFERTANDO O NOVO CURRÍCULO PARA TURMAS DO 2º ANO (TODAS AS MODALIDADES DE OFERTA) | ESCOLAS OFERTANDO O NOVO CURRÍCULO PARA TURMAS DO 3º ANO (TODAS AS MODALIDADES DE OFERTA) |
---|---|---|
Centro-Oeste | 100% | 75% |
Nordeste | 44% | 22% |
Norte | 43% | 43% |
Sudeste | 25% | 25% |
Sul | 67% | 67% |
Fonte: Elaboração dos autores a partir do Relatório da implementação do ensino médio, da Coordenação-Geral de Ensino Médio/DPDI/SEB/MEC (MEC, 2022b).
O relatório apresenta o panorama geral da implementação em 2022, classificando o processo de implementação em status e definindo-o como muito satisfatório em 11% do universo e como satisfatório em 15% desse universo.
Os resultados demonstram que segue avançando um programa nacional de renovação do ensino médio, como vimos anteriormente, com um investimento significativo em formação e bolsas, sendo que os cinco programas somam um alto investimento do governo federal, fomentando financeiramente a implementação das propostas curriculares. Vale destacar que, em março de 2023, teve início um movimento nacional pela revogação do Novo Ensino Médio que ensejou a abertura de uma consulta pública pelo MEC. Como resultado, foi elaborada uma proposta pelo Ministério da Educação e, por conseguinte, um projeto de lei que foi aprovado pela Câmara, modificado pelo Senado e aprovado definitivamente pela Câmara Federal, em julho de 2024, que retomou o texto original aprovado. Sendo assim, desde a medida provisória do ensino médio em setembro de 2016, contam-se quase oito anos.
Numa perspectiva de governança de política pública, o não alcance da Meta do ensino médio dentro do período do PNE 2014-2024, mesmo considerando sua prorrogação por 12 meses a partir da Lei n. 14.934, de 2024, nos permite problematizar algumas questões, considerando as cinco funções de governança do modelo teórico de Guy Peters e Jon Pierre (2016).
Numa análise da governança da Meta 3 como política pública para o ensino médio, não identificamos uma “tomada de decisão” com o objetivo de alavancar decisivamente o desempenho nacional dessa Meta com o aumento das matrículas da população de 15 a 17 anos e a redução da evasão no ensino médio. A tomada de decisão foi quanto a uma política curricular, e essa não teria impacto garantido na Meta em questão. O pagamento de uma bolsa permanência para os estudantes do ensino médio, aprovado por lei em 2024 (Souto, 2023), denominado “Programa Pé de Meia”, é um exemplo de uma tomada de decisão com foco na redução da evasão. As pesquisas mostram que o jovem de baixa renda tem necessidade de trabalhar e que esse fator compromete as taxas de matrícula e provoca evasão na faixa dos 15 aos 17 anos.
A tomada de decisão teve sua dimensão formal por meio da medida provisória e foi referente a uma estratégia da Meta, a renovação do ensino médio. A dimensão social da tomada de decisão compreende as muitas contingências que se originam, teoricamente, de uma consulta à sociedade. Essa dimensão social não foi considerada, prevalecendo apenas a dimensão formal. Focalizando a “seleção de objetivos” na governança da “renovação do ensino médio”, identificamos que, com o acordo de empréstimo para o projeto de implementação do Novo Ensino Médio, foram traçados e perseguidos objetivos que vêm sendo alcançados e monitorados pela Unidade de Gestão do Projeto no MEC.
Quanto à mobilização de recursos, a governança da Meta 3 buscou assegurar a continuidade da implementação da política, firmando um acordo de empréstimo que reembolsa a União mediante o alcance de indicadores do projeto. No que diz respeito à função de “implementação”, essa governança enfrentou desafios institucionais com mudanças no executivo federal e, por consequência, no MEC. Por sua vez, a coordenação nacional dessa implementação sofreu descontinuidades. A pandemia da covid-19 provocou uma parada no processo de implementação que estava em curso. Logo depois da retomada da implementação, após a pandemia, ocorreu uma alternância no governo federal com a eleição de novo presidente.
Quanto à função de governança avaliação-feedback-aprendizagem, que integra o modelo teórico de Guy Peters e John Pierre (2016), não temos como inferir sobre ela na renovação do ensino médio, porque nossa pesquisa sobre as políticas federais não se aprofundou a esse ponto.
Sobre o conjunto das políticas para a implementação do Novo Ensino Médio, a pesquisa nos permite destacar um aspecto referente à implementação e operação das cinco políticas estudadas: trata-se de uma governança complexa, pois são programas derivados de políticas federais, executados com “dinheiro direto na escola”,12 repassado pelo FNDE por meio de uma engrenagem que envolve as secretarias de educação e outras instâncias, a depender do caso. No caso do componente 2 do acordo com o Bird para a implementação do ensino médio, as assistências técnicas são contratadas pelo MEC para as Unidades de Federação.
Evidencia-se que o PDDE é o principal mecanismo de execução das políticas no âmbito da Meta 3. De acordo com Medeiros (2023), a descentralização de recursos financeiros tem a vantagem de responder às necessidades específicas de cada unidade escolar, de forma mais ágil e menos burocrática, mas é um desafio assegurar a efetividade do que está proposto na política pública educacional.
O disposto na política federal em portarias, parâmetros, documentos se concretiza numa pulverização de recursos em milhares de escolas, as quais o governo federal não tem ingerência, nem conhecimento se estão devidamente capacitadas para aplicar os recursos recebidos para o alcance dos resultados. Ao mesmo tempo, os desafios de escola para escola podem ser distintos e o recurso que chega precisa ser utilizado para uma finalidade comum definida pelo governo federal.
A governança de uma política pública para a Meta 3 tem uma “complexidade substantiva” (Klijn & Koppenjan, 2016), pois estamos diante de “problemas perversos” (wicked problems) a serem resolvidos: a evasão escolar no ensino médio, assim como o aumento da taxa de matrícula de jovens de 15 a 17 anos no ensino médio, e num contexto em que as desigualdades sociais não oferecem as mesmas condições de permanência para todos os jovens. Os atores envolvidos na definição e implementação de políticas públicas para o enfrentamento desses problemas ou na entrega dos serviços educacionais têm diferentes percepções e opiniões a respeito da natureza dessas questões e da efetividade das políticas e dos programas - aí reside a complexidade substantiva. A reforma do ensino médio, em curso, é um exemplo: ela se propõe a enfrentar problemas perversos e ela mesma parece se converter em um pela presença de vários atores envolvidos, com interesses e percepções divergentes ou mesmo conflitantes.
Um estudo sobre o Proemi realizado numa escola de ensino médio em Manaus (Nogueira et al., 2018) concluiu que uma política governamental que deseja promover a melhoria da qualidade da educação, com ações restritas de reestruturação curricular e readequação de práticas pedagógicas, em nada inova na solução de problemas sócio-históricos relacionados ao ensino médio, como a distorção idade/série, a evasão dos alunos e os baixos índices alcançados nas avaliações nacionais.
Andrade e Duarte (2023) analisaram a implementação do Programa de Fomento às Escolas de Tempo Integral (EMTI) no estado de Minas Gerais a partir da documentação elaborada pela Secretaria Estadual de Educação no período de 2017 a 2020 e da análise de dados empíricos produzidos a partir de entrevistas com sujeitos envolvidos nesse processo. Estudaram a efetivação desse programa em três escolas estaduais de ensino médio e evidenciaram que há sempre uma leitura e interpretação local das normas e das regras que são postas também pela necessidade de improvisação, adaptando o que estava previsto no currículo para o EMTI, conforme as condições de trabalho e infraestrutura existentes nas escolas. Em todas as entrevistas apareceu a falta de infraestrutura física das escolas para receber o programa, pois não dispunham de espaços adequados para que os alunos permanecessem mais tempo em suas dependências; a falta de quadra de esportes foi um dos exemplos citados. Nos três anos de implantação em Minas Gerais, que foram cobertos pelo estudo, o estado teve três propostas pedagógicas distintas elaboradas pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais para implementação do EMTI.
As autoras advertem que um regime de ensino em tempo integral pode contribuir para agravar ainda mais a evasão escolar e a exclusão da escola daqueles jovens que estão em idade escolar, mas que se encontram no mercado de trabalho, forçados pelas precárias condições socioeconômicas familiares.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Novo Ensino Médio é uma política de natureza curricular que está em implantação em todo o território nacional, na vigência do PNE 2014-2024, que, por sua vez, integra cinco políticas de fomento à sua implementação.
Como resultado de nossa investigação, evidenciamos a necessidade de o PNE receber o tratamento de uma política de Estado, com um modelo de governança que assegure uma mínima estabilidade para os programas implementados. Os programas sofreriam alterações, mas em função de aprendizados e melhorias na operação, e não devido a mudanças no jogo político no executivo federal. As mudanças nos programas implicam custo de adaptação nos processos de trabalho e um esforço para alinhar todas as instâncias, comprometendo o alcance da Meta.
O Projeto de Lei n. 88/2023, que tramita no Senado Federal, prevê que o não cumprimento das Metas do PNE poderá ser considerado improbidade administrativa e resultar em punições - inclusive como crime de responsabilidade no caso de prefeitos e governadores. A intenção do projeto é positiva ao colocar em discussão regras de responsabilidade educacional para nortear a atuação dos gestores públicos na área da educação, à semelhança da Lei de Responsabilidade Fiscal. Na argumentação do autor, senador Flávio Arns, o objetivo é que as pessoas deixem de olhar o plano como uma simples carta programática ou um plano de intenções e o vejam como uma lei com metas impositivas a todos, sob pena de consequências jurídicas aos responsáveis pela sua execução (Pimenta, 2023).
Uma questão de governança é a proposição de políticas pelo governo federal, com fomento financeiro, necessariamente direcionadas para as metas definidas. De acordo com Comparato (1987, p. 106), o Plano Nacional de Educação que foi previsto inicialmente na Constituição de 1934 padecia, como ainda padece, de um vício fundamental: não é vinculante. Nem mesmo a sua elaboração constitui um dever, cujo descumprimento acarreta uma sanção. O Poder Executivo é encarregado de elaborar o plano de educação, mas, se não o fizer, não acontece nada: o governo não é sancionado.
Nossa análise constatou que a Meta 3 não está presente e claramente relacionada com o conjunto das iniciativas para o ensino médio nas bases de dados do FNDE, nas páginas do MEC e do Inep. Isso evidencia a ausência de uma governança específica para a Meta 3, pois não há uma abordagem transversal reunindo todos os dados e as iniciativas referentes à Meta em um mesmo local, em articulação com as políticas e os recursos investidos.
O Painel de Monitoramento do Ensino Médio traz dados sobre os programas, mas os repasses do PDDE para eles adotam denominações que não permitem ao pesquisador identificar a qual programa os repasses se referem. Buscamos um relatório da Controladoria Geral da União (CGU) e lá também não fica clara a relação dos programas com o que consta como repasse no painel do MEC.
Identificamos que as informações para análise estão organizadas por cada instituição com sua própria perspectiva operacional e comunicacional com o seu público interno e externo que usa a informação específica do órgão. Portanto não há como identificar o conjunto do esforço e do investimento referente à Meta 3, com os indicadores correspondentes a esse esforço, em um único painel.
Nosso trabalho pretendeu dar uma contribuição para a avaliação do PNE, testando uma metodologia que se baseou no levantamento de políticas com execução financeira e relacionadas à Meta 3. Consideramos fundamental analisar as lições aprendidas com a governança do PNE 2014-2024, em cada uma de suas vinte Metas, aprofundando nos mecanismos de coordenação dos planos subnacionais.
Partir para um novo PNE sem aprender com os problemas e as falhas que resultaram no baixo desempenho do plano atual é um risco. Recomendamos que a elaboração do novo PNE defina sua governança, meta por meta.
Quanto ao ensino médio, os alertas que os estudos sobre o Proemi já faziam permanecem, pois, passados nove anos da vigência do PNE, a Meta 3 não foi alcançada. Um novo PNE precisará definir estratégias para uma nova Meta para o ensino médio, considerando que as juventudes brasileiras enfrentam inúmeros desafios que dificultam sua matrícula e permanência na escola de ensino médio. Portanto as desigualdades sociais precisam ser incluídas na proposição de políticas para o ensino médio, e uma escola de tempo integral requer infraestrutura para estar com os jovens por mais tempo.