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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.31 no.1 Florianópolis  2023  Epub 01-Jan-2023

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2023v31n183211 

Artigos

O risco da ira feminista: neoliberalismo e ressentimento

The risk of feminist rage: neoliberalism and resentment

El riesgo de la ira feminista: neoliberalismo y resentimiento

1Unicamp, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Campinas, SP, Brasil. 13083-896 - atu-ifch@unicamp.br


Resumo:

A racionalidade neoliberal, articulada à sociedade do controle, favoreceu um modo de subjetivação calcado na moral. De um lado, o neoliberalismo promoveu um alargamento da incerteza na vida dos ‘humanos feito capitais’, os convocando a uma responsabilidade individual e familiar opressora. De outro lado, a sociedade do controle codifica e captura as percepções e os afetos a fim de apropriar-se do futuro, conformando sujeitos cada vez mais responsivos, porém impotentes. Neste contexto, os afetos que circulam nos feminismos, como a ira e a raiva, correm alto risco de serem colonizados pelo ressentimento moral. Este texto trabalha para evitá-lo, ao trazer a distinção entre moralidade e ética, presentes na obra de Michel Foucault e Gilles Deleuze, e revistar o debate de Wendy Brown e Sara Ahmed, a fim de jogar luz sobre as práticas políticas dos feminismos contemporâneos.

Palavras-chave: feminismo; neoliberalismo; emoções; risco; ressentimento

Abstract:

Neoliberal reason articulated with control Society has favored the constitution of individual and collective subjects through morality. On the one hand, neoliberalism has promoted the expansion of uncertainty in the lives of the ‘humans-made-capital’, inciting an oppressing individual and familial responsibility. On the other hand, control society codifies and captures perceptions and affects to take ownership of the future, conforming subjects ever more responsive but impotent. In this context, the affects which circulate in feminisms, such as rage and anger, run a high risk of being colonized by moral resentment. This text works to avoid it by bringing the distinction between morality and ethics in the work of Michel Foucault and Gilles Deleuze, and by revisiting Wendy Brown and Sara Ahmed’s debate to shed light over the political practices of contemporary feminisms.

Keywords: Feminism; Neoliberalism; Emotions; Risk; Resentment

Resumen:

La racionalidad neoliberal articulada a la sociedad de control favoreció un modo de subjetivación basado en la moral. De una parte, el neoliberalismo propició una amplificación de la incerteza en la vida de los ‘humanos hecho capitales’, clamando a una responsabilidad individual y familiar opresora. De otra parte, la sociedad de control codifica y captura las percepciones y afectos para apropiar-se del futuro, conformando sujetos cada vez más responsivos, aunque impotentes. En este contexto, los afectos que circulan en los feminismos, como la ira, tienen alto riesgo de quedaren colonizados por el resentimiento moral. Este texto trabaja para prevenir-lo al convocar la distinción entre moralidad y ética, presentes en la obra de Michel Foucault y Gilles Deleuze, y revisitar el debate de Wendy Brown y Sara Ahmed, con la intención de poner luz sobre las prácticas políticas de los feminismos contemporáneos.

Palabras clave: feminismo; neoliberalismo; emociones; riesgo; resentimiento

Introdução

Percebo-me irada. Feminista irada. Feminista on-line irada. Nos grupos do zoom, do whatsapp, do meet. Ao aumento do risco externo, do contágio pandêmico, corresponde uma redução do risco interno de soltar a ira feminista. Venha, Medusa!

Entra, Medusa (Figura 1).

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Perseus_and_the_Gorgon#/media/File:Camille_Claudel.-_Pers%C3%A9e_et_la_Gorgonne..jpg. Acesso em 25/08/2020. Imagem livre de copyright: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/. #PraTodoMundoVer A escultura de Camille Claudel em mármore representa Perseu de pé e Medusa caída no chão, a seus pés, decepada, cuja cabeça, nas mãos de Perseu, é examinada por ele no reflexo de seu escudo

Figura 1 “Persée et la Gorgonne”, de Camille Claudel (1905) 

No espelho onde Perseu e Medusa se veem em simultâneo, tornam-se possíveis suas semelhanças, sobretudo diante do corpo longilíneo e sem sexo de Perseu (Ada MORGENSTERN, 2006). Assim, abre-se um “terceiro espaço” (Homi BHABHA, 2013) entre o sujeito fálico, guerreiro e dominante, e o objeto monstruosamente fixo da raiva feminina, a cabeça de Medusa, sobre a qual uma maldição fora lançada por Minerva como punição por ter sido violada por Poseidon em seu templo. Depois da violação, Medusa é banida para o fim do mundo e transformada em górgona de características animalescas, dentes de javali e escamas, cabelos de serpente e um olhar que petrifica. Assim, Medusa também fixa eternamente todos aqueles que a querem matar, aprisionando-os no fim do mundo, na escuridão. Um outro encontro, um outro olhar, uma outra imagem só foi possível no espelho e, em particular, no espelho de Camille Claudel. De Medusa estilhaçada surge o mágico e belo cavalo alado Pégasus, mas também outras vidas, tanto monstruosas quanto belas.

Amigos e colegas aos quais outrora eu assentia deslizes provenientes da arrogância universalista de seus-meus pontos de vista de ‘homem-branco-de-esquerda’ agora provam o gosto de um outro encontro. A presença física dos encontros pré-pandêmicos, nos espaços acadêmicos e nos grupos de estudo informais, carregava demasiado risco para a expressão deste sujeito feminista que produzo agora. Com muito cuidado, muita lisonja, muita retórica, muito apelo ao regime de verdade iluminista constituído pela ciência e pelo humanismo, falava das questões de gênero quase pedindo desculpas. A verdade no encontro, habitando a diferença, como nos desafia Ailton Krenak (2020), é difícil porque arriscada. Muito mais arriscada para uns do que para outros.

O silêncio ou a ausência, mesmo que desconfortável, é uma técnica astuta de preservação de graus de complexidade, de densidade, frente a um poder demasiado massacrante (bell hooks, 2019). Mas quando o risco de aniquilamento pelo outro se reduz, é possível experimentar outras estratégias que não só resistam ao poder, mas também transformem a relação de poder (Patricia COLLINS, 1990). Seria necessário indagar, no entanto, que efeitos a ira feminista está a produzir, em mim e nos outros corpos que ela toca, convoca e conforma, para apreciarmos o poder mais ou menos transformador desse afeto.

Petrificada pela leitura de Wendy Brown (2019; 2015; 1995) acerca do ressentimento que se apossou de diversos setores da sociedade norte-americana desde a vitória do neoliberalismo conservador nos anos de 1970, me perguntei se minha ira estaria a beber da mesma fonte e a produzir os mesmos efeitos. Frente aos avanços democráticos calcados em lutas e leituras sobre a discriminação das populações racializadas, mulheres e LGBTQIA+, ao tempo em que a governamentalidade neoliberal reduziu as políticas estatais, precarizou as relações de trabalho e responsabilizou indivíduos, famílias e comunidades pela afirmação de suas vidas (Melinda COOPER, 2017), o ressentimento é um afeto que mobilizou a política neoconservadora, tanto nos EUA como em outros países. Em que medida o ressentimento neoliberal e neoconservador se aproxima dos afetos que circulam nos feminismos, como a dor e a raiva, expressos, em particular, nas mobilizações que fetichizam o dano sexista e fixam homens predadores e mulheres vítimas (Camille PAGLIA, 2020)?1

Essa pergunta também estava a rondar o debate que Sara Ahmed (2004) travou com Wendy Brown (1995) acerca dos problemas de situar o fundamento da mobilização feminista no ressentimento ou no fetiche da ferida. Ahmed escreve em atenção a Brown:

Eu concordo que a transformação da ferida em uma identidade é problemática. Uma das razões de ser problemática é precisamente por causa de seu fetichismo: a transformação da ferida em uma identidade corta a ferida para fora de uma história de ‘tornar-se machucado’ ou lesado. Transforma a ferida em algo que simplesmente ‘é’ ao invés de algo que aconteceu no tempo e no espaço... o problema do fetiche da ferida é a equivalência que diferentes formas de lesão assumem. A produção de equivalência permite à lesão virar um direito, que está então igualmente disponível a todos. Assim, não é um acidente que o sujeito normativo é frequentemente protegido pelas narrativas do dano: o sujeito homem branco, por exemplo, se tornou a parte lesada no discurso nacionalista (AHMED, 2004, p. 30-31, tradução nossa).

Assim, a fetichização e as políticas de compensação operam uma “comodificação da vitimização”, tornando seus valores comparáveis e transacionáveis. Ademais, “dado que os sujeitos têm relações desiguais com o direito, os sujeitos mais privilegiados terão maior acesso às narrativas de dano” (AHMED, 2004, p. 31). Como a política feminista pode fugir à fetichização sem perder de vista a ferida e o dano sexista como elemento mobilizador?

Para além das respostas de Ahmed, arroladas mais abaixo, no que se segue, adicionarei uma perspectiva sobre a diferença entre ética e moral, a fim de esclarecer as possíveis distinções entre uma ético-política feminista e mobilizações calcadas na moral, como a política neoconservadora e certas tendências fetichizantes do feminismo. Também aprofundarei o contexto neoliberal mais geral que nos convoca, a todos, ao ressentimento, e propicia uma resposta moral à imensa incerteza em que vivemos. Por fim, retorno ao debate de Ahmed e Brown para elucidar, de forma situada, algumas das armadilhas e fugas que vêm ocorrendo dentro dos feminismos brasileiros, cujas disputas animam nossas medusas.

Ética e Moral

Michel Foucault também nos convidou a pensar as práticas do dizer verdadeiro, da fala franca, como parte das técnicas-práticas-procedimentos de constituição de um sujeito ético-político na Grécia antiga. Nesse percurso, Foucault nos apresenta uma outra possibilidade de subjetivação, a constituição de um si por meio da experimentação ética-existencial, que pretende responder à pergunta “como devo viver a vida?”, por meio da fricção constante com este mundo, recriando-se a cada rodada, enganando, superando e reencontrando as linhas de força que fazem o mundo. Uma das práticas de cuidado de si na antiguidade identificada por Foucault é o dizer-verdadeiro, a fala franca. Em oposição a outras falas como a lisonja, a retórica, ou a fala de um professor, pesquisador, cujo domínio é a técnica, a fala-franca é um modo de veridicção cujo domínio é a ética e implica grande risco de vida (Michel FOUCAULT, 2014, p. 24-25; FOUCAULT, 2004).

Mas o que traz Foucault para esta história de ira? É a questão do risco envolvido no encontro ético, ou melhor, as intensidades de risco envolvidas em diferentes encontros. Além disso, parece interessante abordar as diferenças entre experimentação ética e regra moral para que possamos avaliar seus riscos e, finalmente, enganar a morte, a morte do feminismo.

O dizer-verdadeiro envolve riscos variados. A verdade encarnada, seja na fala/movimento, seja no silêncio/imobilidade, às vezes da simples presença/ausência num dado espaço-tempo, opera um salto do ético ao político que envolve grande risco. Este dizer verdadeiro pode não achar condições de escuta, sendo ignorado ou deslegitimado, o que implica sua morte política. Mas pode também levar à morte do corpo que aparece e fala. À morte do corpo político.2

Nesse sentido, toda ética que é experimentação,3 fricção imanente com o mundo, abertura para a interpenetração mútua entre as diversas potências singulares, é também da ordem do político, e convoca riscos. Mas em que medida a feminista-on-line-irada está fazendo ética? Será que a feminista-on-line-irada fala como quem quer emitir um mandamento moral, uma norma externa, como “Adão, não coma o fruto!”, como uma interdição (Gilles DELEUZE, 2002, p. 28)? Se sim, qual será o efeito desta fala naquele que enuncia e naquele que ouve? Teria ela o efeito de perguntar “quem é você?”, “quem, afinal, é você?”, introduzindo no outro a desconfiança de uma descontinuidade entre um suposto eu verdadeiro e o estado atual de sua consciência sobre si, plantando um segredo moral (Frédéric GROS, 2006, p. 137): “estás corrompido pelo machismo, mas serás bom e puro se seguires a minha Lei” (Figura 2).

Fonte: Elaboração própria. #PraTodoMundoVer Emoji de rosto de espanto com rímel verde e bandana roxa feminista

Figura 2 Máscara de emoji “O Espanto desta Feminista” (2020) 

Para desemaranhar moral e ética, Deleuze (2002, p. 24), em sua leitura de Espinosa, esclarece que a moral, tida “como empreendimento de dominação das paixões pela consciência”, opõe corpo e alma. Já na ética, estas dimensões sentem e agem em paralelo e manifestam o que está muito além da consciência, expressam o “desconhecido do corpo” e o “inconsciente do pensamento”, propiciando um acontecimento que escapa à consciência. Essa experimentação, para além das ilusões da consciência, é onde encontramos uma existência ética. A experimentação ética configura-se como um esforço, um processo contínuo de combinações com outros seres e com os elementos do mundo, a fim de multiplicar a potência de vida, a sua, a do outro e da resultante do encontro.

Eis, pois, o que é a Ética, isto é, uma tipologia dos modos de existência imanentes, substitui a Moral, a qual relaciona sempre a existência a valores transcendentais. A moral é o julgamento de Deus, o sistema de Julgamento. Mas a Ética desarticula o sistema de julgamento. A oposição dos valores (Bem/Mal) é substituída pela diferença qualitativa dos modos de existência (bom/mau) (DELEUZE, 2002, p. 29).

Assim, a lei moral estabeleceria um Bem em si e um Mal em si, valores previamente constituídos por uma Verdade moral ou religiosa transcendente. Já a experimentação ética ocorreria como prática relacional, contingente e imanente, que permitiria estabelecer julgamentos (bom/ruim). É, portanto, uma ética relacional dos encontros, cujos afetos teriam o efeito de gerar maior ou menor potência de agir, ligando a prática ética a uma política.4

O filósofo nos adverte de que o catálogo de experimentações éticas contabiliza variados modos de existência, resultantes de maior ou menor potência. Afetos e encontros que geram paixões tristes, ressentidas, enraivecidas, medrosas, dentre outras, podem resultar em tal perda de potência que se transmuta, faz uma passagem, uma conversão para uma renúncia de si, uma renúncia da potência de vida em prol de uma lei moral. Ocorre uma entrega, uma terceirização da potência para uma ordem transcendente àquela relação contingente, parcial e friccional do sujeito com o mundo. Já as paixões alegres tenderiam a multiplicar-se na direção de maior potência de agir dos sujeitos, deslocando as leis morais, dentre outras linhas de força. Assim, na experimentação ética, ficamos inseparados de uma potência de agir. Ao contrário, na renúncia moral, ficamos separados da potência de agir.

No caso da prática política feminista, trata-se, portanto, de evitar que os afetos dos encontros, seja o sofrimento, a ira ou a raiva,5 resvalem para a lei moral. Que estes afetos possam transfigurar-se em experimento ético, pois este possibilita brechas de criação de novas relações, novos futuros para aqueles que se encontram no embate feminista.

Mas meu feminismo on-line está atravessado pelo dispositivo digital, mediações simbólicas e materiais que têm diversos efeitos morais. Dispositivo que

deja pasar la luz, pero la “luz que quema”: la mirada del inquisidor. En lugar de darnos confianza, construyendo situaciones y contextos de igualdad, nos volvemos vigilantes y jueces unos de otros, en una especie de panóptico distribuido, participativo (Amador FERNANDEZ-SAVATER, 2015).

Minha hipótese é de que o modo moral reduz a radical incerteza do ambiente e nos alivia da infinita responsabilidade a que estamos sujeitos no neoliberalismo. Em concomitante, a sociedade de controle que opera por dispositivos digitais promove a captura de futuros, gerando impotência justamente quando estamos cada vez mais responsabilizados pelo futuro. Resultado: medo, obediência, renúncia do sujeito ético em prol do sujeito moral. Como os feminismos podem escapar?

Em tempos de sociedade do controle-cum-neoliberalismo, de grande trânsito e porosidade entre espaços privado e público (Leonor ARFUCH, 2005; 2016),6 ou, ainda, de colapso do político ao pessoal, fica autorizada e legitimada a expressão da ira, que vem ocorrendo também por meio de práticas generalizadas de denúncia e linchamentos sociais, práticas das quais os feminismos não estão isentos. Mas o problema é: como afastar o potencial de morte implicado nesta troca? Esta ira, mesmo sendo uma paixão triste, pode escapar da moral e constituir-se como elemento de uma conduta ético-política que efetivamente transforme as relações? O que meu dizer irado produz? Será a prática de ira feminista comparável àquela do sujeito neoliberal-conservador-autoritário nas redes sociais, o ‘politicamente incorreto’ (Camila ROCHA; Jonas MEDEIROS, 2020),7 a expressar seus impropérios racistas-sexistas-colonialistas em nome da liberdade? Talvez.

Sociedade do controle-cum-neoliberalismo

O novo regime de enunciação e visibilidades propiciado pelas tecnologias de comunicação e informação reduz a teia de conectores das relações a códigos que, a um só tempo, protegem, expõem e capturam aquele que fala e que ouve, aquele que aparece e que vê, os esconde atrás dos emojis, da senha, do username, do VPN, do endereço, do like, da meia dúzia de palavras do twitter. Mas também os torna translúcidos, capturando sua vida privada, suas horas de sono e suas expressões incorpóreas (Maurizio LAZZARATO, 2006).

O mecanismo de codificar para capturar não é novo. Mas sua manifestação atual é uma criação que corresponde à necessidade de controle em espaço aberto, de não encerramento, agindo sobre o ambiente, sobre os incentivos, sobre as regras do jogo e não somente sobre os indivíduos e seus comportamentos (FOUCAULT, 2008, p. 354-356). Além disso, a captura é autodeformante (DELEUZE, 1992). Trata-se de um alvo móvel, cujo espaço de mobilidade foi aberto por, ao menos, duas engrenagens. Sugiro que estas engrenagens agenciam corpos e pensamentos, inundando-os de afetos tristes, de fluxos de desejo moralizantes, destruidores de potência de agir. Não obstante, como espero apontar mais abaixo, os feminismos estão vivos e continuam sua dança de reiteração e fuga das investidas do poder na sociedade de controle-cum-neoliberalismo.

A primeira engrenagem é aquela que minou o território do experimento ético, a esfera do social (Wendy BROWN, 2019, p. 53). Desde a efetuação da governamentalidade neoliberal, a partir dos anos 70, e de sua profícua associação ao conservadorismo, o social será progressivamente inundado, enquanto imaginação aglutinadora e experiência comum, pelas molduras da família, da comunidade e, logicamente, do mercado.

Nesse sentido, o terreno do experimento ético está mais ardiloso. A esfera do social está enxuta em prol de um alargamento das esferas de responsabilização dos indivíduos, das famílias e das comunidades próximas. Estes ganharam contornos cada vez mais ativos. Empreender, investir, agir, ajudar, sacrificar, moldar, organizar. Esses quadros, essas dobras, o indivíduo, a família e a comunidade estão, mais do que nunca, sujeitados e subjetivados pelas leis do mercado e da moral (BROWN, 2019), inclusive religiosa. Quais os contornos desse novo regime moral é algo que está em plena disputa, evidenciada na discussão das ‘guerras culturais’.

A reivindicação neoliberal do Rule of Law (o império da lei), em oposição direta à racionalidade governamental planificadora, biopolítica e disciplinar dos governos liberais reformistas do pós-guerra, tem governado a redução do social. A reivindicação pretende aniquilar aqueles heterogêneos estados de bem-estar social, gestores do crescimento, que positivam, material e normativamente, pela disputa política, os ideais de justiça social. O ‘Império da Lei’ intenta petrificar as leis enquanto instâncias negativas, imutáveis, em nível de generalidade grande, formais, de teor de não intervenção estatal (FOUCAULT, 2008, p. 221-246), limitando o estado às funções de moeda, segurança e ‘vigia noturno’ de contratos.

Todo o resto do governo, da condução de condutas, deverá ser realizado pelos mercados, pelas comunidades mais próximas, pelas famílias e pelos indivíduos. Este governo de si deve ser assumido como responsabilidade desses sujeitos, cada vez mais agentes (BROWN, 2015, p. 210-220). Os benefícios estatais são minimizados para que a esfera de responsabilização individual se alargue, dando incentivos para manterem ‘ativos’ os ‘agentes’. Todo e qualquer programa governamental pede contrapartida da sociedade civil, do indivíduo ou do mercado, a fim de que estes se corresponsabilizem por seu sucesso ou fracasso.

A governamentalidade neoliberal, enquanto racionalidade política de governo das condutas, teve a tarefa de, diante das guerras do início do século XX e das ameaças totalitárias representadas pelo nazismo, fascismo e stalinismo, salvar uma imaginação de liberdade individual, mas num quadro em que a crença num homem Racional e em seu progresso inexorável se tornou bastante duvidável. Assim, as grandes discussões das linhagens de neoliberais, anarcocapitalistas e libertarians nos anos 70 é de qual a medida necessária de intervenção estatal para que uma comunidade de indivíduos livres sobreviva.

O pensador neoliberal mais sofisticado foi Friedrich Von Hayek, que apostou que o desmantelamento do estado social e da própria arena do social implicaria a sua ocupação espontânea por ordens superiores, como a moral, a linguagem, o mercado, a família, as leis consuetudinárias, enfim, tudo aquilo que ninguém intencionalmente inventou, mas que, por uma evolução histórica, e às vezes casual, foi edificado. Tais ordens espontâneas têm mecânica de ‘mão invisível’, têm “invisible-hand-explanations”, nas palavras de Robert Nozick, um importante pensador do campo neoliberal americano. Ou seja, têm dinâmica concorrencial e adaptativa.

E aqui chegamos à segunda engrenagem que movimenta as sociedades de controle-cum-neoliberalismo: a falta de telos, de utopia, de direção, de promessas. Seja na visão de Friedrich Hayek, na rica discussão sobre utopias em Nozick (1999), ou, ainda, na feroz crítica de Ludwig Von Mises (2014) à suposição de regularidade na ação humana, para a grande maioria dos neoliberais, não há necessidade formal de leis de evolução, ou de etapas do processo de desenvolvimento. “Uma explicação para um processo de ajuste contínuo a condições desconhecidas e imprevisivelmente aleatórias pode somente levar à conclusão de que os resultados são também imprevisíveis” (HAYEK, 2013, p. 246, tradução nossa).

A descrença na Razão, a limitação da planificação humana apenas ao escopo de decisões e escolhas técnicas frente a problemas contingentes e limitados, acompanhada da multiplicidade infindável dos propósitos da ação humana (VON MISES, 2014, p. 24-25), levam o pensamento neoliberal a abrir mão de promessas fortes de maiores benefícios ao conjunto, à sociedade.8 Por meio de suas análises históricas, reivindicam que o mecanismo da concorrência foi um feliz acaso que deve ser mantido a todo custo. E é aqui que a falta de teleologia no pensamento neoliberal deixa de ser uma abertura para a criação histórica, para tornar-se normativo e, para seu profundo desgosto, político.

O pensamento neoliberal fez duras críticas aos liberais utilitaristas dos séculos XVIII e XVX que subsumiam a liberdade a um meio para alcançar um certo fim: uma maior utilidade, uma maior felicidade geral, um maior bem-estar. A liberdade não significará liberdade política para dividir e participar da vida política. Portanto, uma sociedade livre não é necessariamente democrática. Liberdade não significará autonomia econômica para fazer escolhas livres das amarras materiais. A liberdade não dependerá da justiça social9 ou de qualquer ideal de igualdade (BROWN, 2019, p. 53-59). A liberdade é apenas não coerção.

Mas, para que o capital humano se coloque em movimento perpétuo, não basta estar livre, é preciso que haja um risco na forma de uma disjuntiva clara entre perder ou ganhar. Apenas um risco alargado para o indivíduo reforça a sua responsabilização e incentiva mudanças no comportamento.

Para garantir o risco do ambiente e incentivar o indivíduo a agir, a empreender, a expressar, a incerteza não pode ser contida pelos mecanismos estatais de socialização de riscos de saúde, trabalho, previdenciários, pela coordenação interestatal de contenção dos estragos climáticos, ou, ainda, pela ação contracíclica do Estado nacional frente a distúrbios advindos da economia internacional, ao contrário. A incerteza é alargada pela ação pró-cíclica dos estados sob as regras de austeridade e abandono das iniciativas de coordenação internacionais em prol de uma concorrência interestatal ainda mais feroz. Assim, o complemento necessário à responsabilização individual e comunitária é a desresponsabilização estatal e empresarial, criando maiores incertezas para o indivíduo e suas famílias (Joan TRONTO, 2013).

O estado também é convidado a se retirar da criminalização de condutas morais a fim de incentivar o indivíduo a colocar em movimento sua moralidade na esfera pública, em nome de sua liberdade de expressão (BROWN, 2019, p. 151-197). Assim, seria possível colocar em disputa diferentes ‘pontos de vista’ sobre assuntos como a sexualidade, a religião, entre outros, para que concorram, conduzindo a uma ordem moral mais espontânea à frente. Foi assim que o dogma neoliberal abriu espaço para uma cruzada moral instrumentalizada e politizada por meio de regimes plutocráticos e autoritários de poder estatal (BROWN, 2019).

Sob o neoliberalismo, as duas engrenagens acima abriram espaço para a multiplicação das superfícies de concorrência, de transação econômica (casar, ter filhos, cometer ou não um crime etc.) e, logicamente, de contenciosos (FOUCAULT, 2008, p. 204). Na sociedade de controle, a multiplicação de superfícies está a serviço de uma intensificação das trocas expressivas, comunicacionais, de consumo, emotivas, dentre outros, que, se devidamente codificadas como informação, tornam-se passíveis de apropriação, captura e controle (Eduardo MARIUTTI, 2020).

O privado-feito-público dos dispositivos cibernéticos digitais promove a transparência, liberdade de expressão, participação, opinião, aparição, fala, a fim de adensar a produção de conhecimento e informação passível de apropriação, previsão, indução, reprogramação, direcionando o consumo, conduzindo condutas e percepções futuras. Nesse sentido, a incerteza quanto ao futuro é reiteradamente recolonizada, capturada, num presente sem fim (MARIUTTI, 2018; 2019). Este presentismo traz maiores certezas aos capitais oligopolizados, mas, no nível dos sujeitos individuais e coletivos, o sentimento é de maior impotência, de falta de futuros.

A incerteza que vivemos sob a sociedade de controle-cum-neoliberalismo não é aquela que deixa em aberto o futuro; é, antes, uma falta de futuros, ou seja, a produção de uma visão de antiprogresso (BROWN, 1995, p. 26), de fechamento de possibilidades. Sugiro que um dos exteriores constitutivos dessa incerteza é a certeza da escassez.10 A certeza de que nem todo mundo será bem-sucedido. Isto porque o regime de verdades que dá suporte ao neoliberalismo é baseado, entre outros, na lei da escassez estendida para toda ação humana (Lionel ROBBINS, 1932).11

Nas sociedades de controle-cum-neoliberalismo, a incerteza é produzida pela alienação da potência humana de criação de futuros às verdades supostamente imprevisíveis do mercado concorrencial: incerteza infinita para os indivíduos e suas famílias, certezas cada vez maiores para aqueles que controlarem e direcionarem os mercados, inclusive o ‘mercado moral’. O alargamento da incerteza, aliada à captura do futuro, justamente quando se é responsabilizado por ele, causa sentimentos de profunda impotência, medo e ressentimento. Esse é o insumo básico para a renúncia moral e entrega política, cuja magnitude não foi antevista pelos neoliberais.

Risco externo infinito: as crises financeiras, o cataclisma climático, a pandemia, o juízo final, provocam a obediência, numa tentativa desesperada de sobrevivência, de não dissolução. A obediência é operada pela renúncia do governo de si (FOUCAULT, 2008, p. 253-303). É possível, finalmente, se desresponsabilizar, se ‘libertar’ da relação ética consigo e política com o outro, no exato momento em que se submete ao poder, obedecendo à lei moral. Nesse sentido, a renúncia de si, em prol da transcendência Moral (Bem/Mal), é também um ato de autopreservação. Para o sujeito, ao risco externo absoluto do Mercado corresponde uma redução do risco pela Moral. Ao potencial de morte no Mercado contrapõe-se a vida eterna da Moral.

De volta à ira feminista: ressentimento ou política emocionada contra a injustiça?

Sigamos a trilha de Wendy Brown numa disputa acirrada em torno das ‘políticas identitárias’ que se anunciaram com força partir da década de 1990. Ela pergunta, já no contexto do neoliberalismo: “Poderá a efetivação de uma democracia substantiva continuar a requerer o desejo por liberdade política, um anseio por dividir o poder ao invés de ser protegido de seus excessos, de gerar futuros juntos ao invés de navegar e sobreviver a eles?”12 (BROWN, 1995, p. 4).

A autora argumenta que o neoliberalismo operou uma limitação da imaginação de liberdade, reduzindo a liberdade à proteção individual dos efeitos do poder, seja o poder estatal, empresarial, patriarcal, entre outros. Liberdade, apenas como resistência ao poder, instauraria um externo político em oposição a uma interioridade não política, cuja Verdade de sofrimento e opressão deve ser revelada para que se constitua como objeto de proteção do Estado. Liberdade como mera resistência ao poder, destituída de desejos de autogoverno e responsabilidade política, ou seja, da potência de disputar o governo das condutas, não forjaria futuros, mas apenas navegaria e faria sobreviver aos futuros já capturados por outros.

Este déficit de imaginação de liberdade também contribuiria para a produção e domesticação das políticas identitárias, cujos pleitos pela proteção estatal terminaram por judicializar as disputas, promovendo uma economia do agressor-vítima. Esta economia reduz e converte fenômenos generalizados e constitutivos do sujeito moderno liberal, como as opressões de gênero, raça, classe, dentre outras, que são da ordem do social, em comportamentos individuais e intencionais. As críticas de Brown são duras, mas valiosas na discussão dos limites de fundarmos disputas políticas em apelos de Verdades supostamente apolíticas, como as Verdades morais e científicas, bem como em sentimentos de dor, raiva e ressentimento, caso estes sejam capturados pela lei moral e pelo fetiche.

Seja no caso das políticas identitárias, seja no caso do conservadorismo que constitui a base de apoio de governos como Trump e Bolsonaro (BROWN, 2019), a imaginação de liberdade teria sido inteira ou parcialmente colonizada pelo ressentimento. Apoiando-se em Nietzsche, a autora nos ensina que o ressentimento é a vingança moralizante dos desempoderados13 (BROWN, 1995, p. 66). Em princípio, estamos todos vulneráveis ao ressentimento, uma vez que, como vimos, sob o neoliberalismo, as promessas de que o sujeito tem o poder de fazer-se ascender àquele sujeito ideal universal do progresso foram quebradas. “Totalmente responsabilizado, ainda que dramaticamente impotente, o sujeito da modernidade tardia liberal literalmente ferve de ressentimento”14 (BROWN, 1995, p. 69, tradução nossa).

A política moralizante ressentida é uma (re)ação que fica estagnada nos desejos de vingança. Ela se faria presente nas ‘políticas identitárias’ na medida em que estas dão corpo a seu coletivo político, fazendo circular a dor e a raiva na sua superfície, instituindo uma interioridade e exterioridade a partir, justamente, da partilha, dramatização e reconhecimento de dores históricas. Essa operação das ‘políticas identitárias’ “reverte, mas não subverte” (BROWN, 1995, p. 70, tradução nossa) o modo de produção do sujeito liberal, ainda calcado numa interioridade transparente, soberana e não política. Isto ocorreria mesmo tendo trazido a novidade da contingência, da história e da perspectiva para a cena deste sujeito já não tido como universal, mas particular. Nós, feministas, estaríamos apenas a contrapor o universalismo masculinista com o perspectivismo feminista, sem subverter o âmago do sujeito liberal.

Nesta dramatização do passado no presente, as identidades coletivas se constituem pelo discurso de uma verdade da exclusão, da injustiça (BROWN, 1995, p. 64-65). A verdade da injustiça seria evidenciada pela circulação da dor e da raiva, emoções cuja transparência enganosa serviriam para dar legitimidade à verdade da opressão.

Assim, para Brown, o problema de fundamentar a ação política na dor e na raiva estaria no fato de que estas emoções legitimariam uma verdade do sujeito oprimido, que brota da experiência de opressão, supostamente refletindo a realidade sob o ponto de vista de uma interioridade apolítica. O sujeito feminista estaria a fundamentar suas disputas e reivindicações por meio de um esteio de verdade, do qual emanariam seus julgamentos ou acordos do que é bom e justo. Um esteio de verdade calcado não na ciência, mas na moral, convocando reações como a compaixão, o remorso, o perdão, a reconciliação e a restauração dos laços (AHMED, 2004, p. 193-199).

Os feminismos estariam correndo o risco de reinstituir uma interioridade moral do sujeito liberal ao se fundarem nas emoções e experiências como fontes da verdade pura frente a um mundo político sujo e imoral. Wendy Brown nos relembra da máxima foucaultiana segundo a qual a verdade é a voz do poder e de que o sujeito feminista seria mais subversivo assumindo-se essencialmente político e dinâmico, com menor apego à dor, ou à identidade que se conformou em torno dela.

E aqui nos reencontramos com a minha ira. Até agora pode parecer que concluí pelo ressentimento moral de minha ira feminista, e de que este ressentimento contribui para a morte política do feminismo. Mas não. Não necessariamente. A elaboração de Sara Ahmed (2004) é um contraponto certeiro às críticas de Wendy Brown, cuja principal indagação é: o que as emoções mobilizadas na política fazem? Quais são seus efeitos?

Para a autora, as emoções não estão no sujeito, não brotam de uma interioridade dada a priori e anterior ao encontro com o mundo, nem são causadas pelos objetos externos ao sujeito; antes, as emoções ocorrem no encontro, fazendo-se na superfície. As emoções efetivamente moldam, diferenciam ou amalgamam, dão forma ao sujeito, individual ou coletivo, e o contrapõem a seu exterior. “É por meio das sensações (afetos) e dos sentimentos que diferentes superfícies são estabelecidas, a partir de sua leitura como dor e prazer” (AHMED, 2004, p. 24). Sensações e sentimentos fazem e desfazem fronteiras e, assim, nos conectam e nos separam, como a pele.

A autora se diferencia de modelos psicológicos das emoções (inside-out), em que haveria um mundo interno (inside) que cria as emoções direcionadas aos objetos externos (out), mas também de modelos sociológicos das emoções (outside-in) nos quais as emoções são criadas nas relações sociais (outside) e implantadas no sujeito (in), seja de forma consciente ou inconsciente. A sutileza trazida por Ahmed é de que as emoções seriam um dos elementos que propriamente constituem a fronteira do dentro e do fora. Nesse sentido, as emoções são tão políticas quanto a razão: “as emoções não estão ‘no’ indivíduo nem ‘no’ social, mas produzem as próprias superfícies e fronteiras que permitem ao indivíduo e ao social serem delineados como se fossem objetos” (AHMED, 2004, p. 10, tradução nossa).

Como outros afetos, as emoções realizam operações de aproximação (towardness) e distanciamento (awayness) na medida em que as experiências com o mundo são lidas, são nomeadas, são representadas e, ao mesmo tempo, estão sempre abertas a novas representações. Assim como a experiência, as emoções nunca estão paradas no sujeito ou no objeto que criam, mas estão circulando, movendo, (e)movere, (e)mocionando. Nesse sentido, ao mesmo tempo que as emoções têm efeitos mais ou menos duradouros, porque também são corporificadas, deixando feridas, memórias, (im)pressões, as emoções transbordam o corpo e contagiam pela linguagem, pelas imagens, pelas ideias, reposicionando corpos. Desta feita, emoções atuam como ‘pensamentos corporificados’ que saturam corpos, palavras e imagens, mas sua ação também gera movimento, transformação.

No caso dos feminismos, Ahmed também se posiciona no sentido de superar o ‘fetichismo da ferida’, mas argumenta que lograremos fazê-lo, não apagando as histórias, as marcas, as memórias, mas, sim, reiterando essas feridas, (re)lendo suas marcas, na medida em que novas leituras das injustiças, sempre de forma contingente, se (re)colocarem. Movimentando a dor e a raiva para o domínio público, os feminismos têm o potencial de realizar um trabalho de tradução destas emoções em indignação (‘againstness’) a partir de leituras dos objetos e sujeitos conformados nas relações de opressão. Nos feminismos, a raiva se transforma em recusa de um suposto vínculo social harmônico, numa prática de insubmissão coletiva que também traz prazer e alegria, ambas necessárias, ainda que não suficientes, à criação do novo (‘forness’)15 e à afirmação da vida.

O compartilhamento e a circulação da dor relativas às feridas podem, em princípio, seguir ao menos dois rumos, com resultados políticos bastante distintos. O primeiro seria aquele da identificação, da empatia com a dor alheia, do colocar-se no lugar do outro, no sentido impresso pelos discursos sacrificiais ou de compaixão caritativa. Para Ahmed, esses discursos mobilizam o desejo de se restituir a desigualdade entre aquele que ‘sentiria’ a dor, caso estivesse na posição do outro, e aquele objeto da dor, que supostamente ‘tem’ a dor, é a ‘dor’. Aqui a diferença é desrespeitada, na imaginação de sentir a dor do outro, ao tempo em que a desigualdade é recolocada, ao subjetivar o salvador potente e objetivar a vítima impotente. Nesse sentido, uma ética que responderia melhor à dor, o segundo caminho, precisaria ser entendida de forma radicalmente contingencial, em que nunca seria possível sentir nem conhecer exatamente a ‘sua’ ou a dor ‘do’ outro (AHMED, 2004, p. 20-31).

A dor é sempre uma sensação mediada e refeita nos encontros. Fazendo-se no deslizamento entre as sensações (ou afetos) a-significantes, que fogem ao que é possível narrar e representar, e as emoções, estas já conformadas por leituras e conhecimentos prévios de dor e prazer, a experiência da dor se constitui numa conexão radicalmente contingente dos corpos do mundo. Nesse sentido, a dor é uma socialidade entre superfícies, e os feminismos participam desta socialidade ao “trazer à superfície” as dores e suas possíveis leituras, mais ou menos raivosas.

Expor-se de forma incessante às histórias, narrativas, testemunhos, memórias das feridas, é um modo de (re)instancia-las, atualizá-las e compartilhá-las, “aprendendo a ouvir o que é impossível”, mobilizando o assombro ou o espanto para ouvir sobre uma dor que não é nossa, não nos torna um. Uma política calcada na diferença, de corpos circunstancialmente conectados pela ação emocionada de uma política contra a injustiça. Essa seria uma política feminista que, ao invés de cometer o erro de esquecer as feridas, ou, o que daria no mesmo, fetichizá-las como fixas, atemporais, comparáveis e totalizáveis, permitiria recriar o passado no presente, numa operação de ir soltando a história, refazendo-a: “a dor não é simplesmente um efeito de uma história de danos; é a vida corpórea daquela história” (AHMED, 2004, p. 33-35). É preciso contá-la de diferentes formas, a fim de atualizar o que do passado ainda se faz presente.

Parece-me que a saída de Ahmed é astuta na medida em que não essencializa uma dada emoção, a dor, a ira, a esperança, como um afeto triste ou impotente, como querem as leituras calcadas em Espinosa e Nietsche, como a própria leitura de Brown. Sua teorização não passa pelo que a ira ‘é’, mas, antes, pela problematização de como a emoção agencia outros corpos, enquanto prática corpórea e narrativa. A depender das práticas, se mais ou menos fetichizantes, se mais ou menos calcadas no apagamento da história e na essencialização do outro-vítima, tais emoções estarão fazendo uma certa coisa.

Quanto mais as emoções estiverem a serviço de fetiches, essencializações e “fim da história”,16 mais estarão operando políticas morais, distanciando-se do experimento ético-político. Nesse sentido, a afirmação da vida, da potência dos corpos emocionados, no e pelo feminismo, dependeria dessa revisão constante de suas premissas, de suas dores, do compartilhamento de testemunhos e novas narrativas, dos deslocamentos de perspectivas, fazendo as emoções circularem e conformarem novos corpos, contando velhas-novas histórias.

Com efeito, pudemos assistir, ao longo da(s) história(s) dos feminismos, a uma vitalidade espetacular. Esta vitalidade se expressa no dinamismo com que os feminismos fizeram circular suas (re)leituras das injustiças, de forma ampla e transversal, bem como promoveram a desestabilização do próprio sujeito do feminismo, transformando a categoria mulher e o gênero em fundamentos instáveis, contingentes e polissêmicos (Joan SCOTT, 2012).

Sonia Alvarez (2014) faz um belo apanhado da organização feminista no Brasil, no que tange ao seu maior ou menor grau de institucionalização, bem como sua maior ou menor abertura para a pluralização do sujeito do feminismo. A fase anterior à eclosão política do bolsonarismo se caracterizou por uma transversalidade horizontal (sidestreaming) da luta feminista, presente em diversas organizações e coletivos da sociedade civil (sindicatos, partidos, movimentos estudantis, por terra, por moradia etc.), bem como por uma multiplicação de feminismos populares e ligados a movimentos culturais. Ademais, a multiplicação de centros, núcleos e grupos de estudos de gênero nas universidades brasileiras e sua maior porosidade na relação com a militância feminista também participaram da recente expansão do “campo discursivo de ação” do feminismo (ALVAREZ, 2014, p. 40-45).

A paisagem feminista no Brasil e na América Latina também se atualizou no encontro profícuo entre feminismos jovens, o ativismo em plataformas digitais e uma renovada política de corpos e/nas ruas (Regina FACCHINI; Isadora FRANÇA, 2011; ALVAREZ, 2014; Fabiana MARTINEZ, 2019; Graciela NATANSHON; Florencia ROVETTO, 2019). De um lado, as ‘feministas jovens’ tinham um certo desencanto com a progressiva institucionalização das organizações da sociedade civil e movimentos feministas, e suas múltiplas conexões com o estado e as políticas públicas que haviam florescido desde a década de 1990. Buscavam, assim, maior ‘autonomia’, alargar o controle social, bem como intervir sobre o debate público de forma mais direta e incisiva. De outro lado, a própria crítica feminista e dos estudos de gênero convocava a multiplicar as perspectivas de gênero e a ‘democratizar’ as vozes e aparições feministas. Assim, o ativismo digital, em articulação com uma renovação da cultura de protestos on-line e off-line, possibilitou aos feminismos jovens abrirem fendas nos regimes de enunciação e visibilidades da esfera pública mais institucionalizada, representada pela mídia tradicional, pelo conhecimento acadêmico e pelos movimentos sociais organizados.

Sem, com isso, incorrer na apologética dos meios digitais como democráticos ou livres em si, os novos ativismos digitais têm disputado de forma aguerrida as narrativas e ações relativas às opressões de gênero, em especial sobre a violência de gênero e a sexualidade, temas que sempre foram caros aos feminismos. Há, no entanto, atualizações na medida em que estes temas têm maior fertilidade no neoliberalismo, que convoca o corpo como locus privilegiado de sujeição-subjetivação, a fim de codificar, capturar e capitalizar o deslocamento das fronteiras entre privado e público, entre pessoal e político. Nesse sentido, os feminismos têm “exposto o corpo feminino como o local da precariedade de sua sujeição e resistência” (Hester BAER, 2016, p. 29, tradução nossa), renegociando a política feminista na era neoliberal.

Os novos ativismos utilizam compilações hashtag, viralizações de vídeos, imagens, memes, crowd (funding e sourcing), multiplicando denúncias, apoios e leituras. Esses dispositivos realizam o trabalho de traduzir o pessoal em político, contestando a redução que o neoliberalismo promove do político, transmutando experiências pessoais, corpóreas e locais em leituras estruturais, incorpóreas e globais das opressões de gênero. Estes embates propiciaram a atualização das diversas vertentes do feminismo (MARTINEZ, 2019; BAER, 2016) e do próprio gênero, (des/re)fazendo “espaços de aparecimento” (Judith BUTLER, 2018, p. 75-109), cujas fronteiras entre local e global, off-line e on-line, corpóreo e incorpóreo, bem como acadêmico e militante, estão mais porosas e têm articulações dinâmicas, intensas e em rede (MARTINEZ, 2019).

Nesse sentido, os feminismos também têm trabalhado com outras emoções, que não só a dor e a raiva, e que conformam movimentos criativos e dinâmicos em prol de outros futuros (forness). Isso fica expresso na busca por novos paradigmas de ativismo político, novas linguagens e símbolos para seu trabalho de tradução do pessoal ao político, bem como a alegria e excitação dos movimentos culturais e de rua do último decênio (ROVETTO, 2019).

Um belo exemplo, que me tomou de assombro, ocorreu de forma situada e contingente nas manifestações de feminismos negros, jovens e/ou periféricos no Brasil ao longo da década de 2010. O ponto de articulação da ‘diferença’ é justamente o lugar do corpo na política feminista.

De um lado, movimentos como a Marcha das Vadias no Brasil, de forma plural, conectaram feminismos radicalmente diferentes, como de “mulheres trans, travestis, prostitutas... corpos não brancos, gordos, diversos, que fogem ‘às medidas’ e à noção de feminilidade” (Morgani GUZZO; Cristina Scheibe WOLFF, 2020, p. 5), numa manifestação do tipo ‘liberação sexual’ que tratou de denunciar o duro tema das “múltiplas formas de violência relacionadas ao preconceito de gênero e de raça vivenciadas pelas mulheres, cis ou trans, em diferentes espaços e camadas sociais” (GUZZO; WOLFF, 2020, p. 2). Esta Marcha foi “irreverente, humorada, ‘energia alta’” (GUZZO; WOLFF, 2020, p. 7), subversão que causou espanto nas participantes e na audiência, mas que, na alegria e acolhimento de “estar junto”, propiciou a experiência emocionada de ocupar e performar “formas de expressão até então interditas para seus corpos presos historicamente pelo sistema heterocispatriarcal” (GUZZO; WOLFF, 2020, p. 10).

De outro lado, me percebo uma participante irada de grupos feministas mais brancos e marxistas, de tradição sindical, preocupados com a apropriação injusta do trabalho nada ou mal remunerado das mulheres. Nestes grupos, por vezes ouço o pleito de que feminismos que “objetificam” os corpos das mulheres e trabalham por dentro das grandes indústrias de massa, do entretenimento, como das funkeiras, não são nada mais que feminismos liberais, que almejam “participar da festa” masculinista e capitalista.

Minha medusa explode! Essas críticas me lembram do conservadorismo e essencialismo de Catharine MacKinnon, que desqualificou a agência sexual das mulheres ao totalizar sua subjetividade, mesmo da mulher trabalhadora, na posição de vítima, de objeto de dominação, isso quando não tentou criminalizar sua sexualidade, tida como desde sempre e para sempre já produzida pela dominação masculina (BROWN, 1995, p. 88-95). Eu penso comigo: pânico moral de mulher branca se mantendo casta atrás da tão gloriosa “distribuição” em detrimento do supostamente menos importante “reconhecimento”! Ahhhh, que raiva!

Este embate é justamente o contrário daquele em que outros feminismos negros alertaram sobre o privilégio da exibição de corpos normativos brancos em manifestações, como nas Marchas das Vadias de países do norte (BAER, 2016). Argumentaram sobre a impossibilidade de exposição desimplicada de seus corpos nus, frente à reiterada hiperssensualização e violência de que são alvo preferencial. Apenas o privilégio branco e a norma da castidade branca permitiriam tal exposição como ‘irreverência’.

Diante dessa multiplicidade de feminismos, posições e coalizões, contingentes e situadas, sinto espanto, e me pego profundamente alegre com a sugestão de Ivana Bentes (2017) ao analisar a contenda da “objetificação” da bunda da artista Anitta em videoclipe que viralizou (Vai Malandra). O videoclipe exalta a cultura da favela, do funk e da sexualidade jovem, desinibida e, sim, comodificada das funkeiras, justamente quando estavam sob ataque da moralidade legalista. Bentes contra-ataca:

Um corpo que o funk, o samba, o biquíni de fita isolante, toda a cultura solar carioca já vem dizendo, tem tempo, que não precisa ser apenas objeto e signo de assujeitamento, toda vez que quiser se exibir.

A bunda (e o corpo das mulheres) pode se deslocar da objetificação para a subjetivação! A bunda viva de Anitta com sua celulite sem photoshop é um sujeito e não objeto. Se as mulheres fazem o que quiserem com os seus corpos (a Marcha das Vadias explicou isso para a classe média), elas podem inclusive se “autoexplorarem”, ensina o funk. A bunda ostentação de Anitta no início do clipe já aponta para esse outro feminismo (de mulheres brancas, apenas? Acho que não!) (Ivana BENTES, 2017, grifos nossos).

Concluo, assim, que os feminismos seguem realizando um trabalho político que conforma contracondutas, práticas de liberdade à la Foucault, ainda que em relação ambígua e problemática, com e contra a sociedade de controle-cum-neoliberalismo. Tais práticas, ou, como quer Baer (2016, p. 30), tais ações políticas baseadas em processo (process-based political actions) traçam linhas de fuga para diferentes mulheres e feminismos. Linhas de fuga que articulam desejos e praticam ações políticas por meio de alianças instáveis (BUTLER, 2018), refazendo o gênero e os feminismos, sem incorrer numa imaginação de liberdade que se pretenda totalmente e eternamente emancipatória, que reivindicaria um suposto ‘fora’ do poder.

A prática processual dos feminismos atuais constitui e destitui instrumentos, estratégias, categorias e sujeitos, possibilitando escapar à tentação totalizante de instituir ‘de uma vez por todas’ o que deve ‘ser’ uma ‘mulher’ ‘livre’. Tal reivindicação terminaria por massacrar diferenças ao reinstituir uma norma, mesmo que revolucionária, da mulher. O sujeito libertatório do feminismo ocidental vem debelando sua herança liberal que, ao identificar agência a um ideal de Liberdade, desavisadamente ou não, sustenta dispositivos de poder que permitem a este ideal sobrepujar outras formas e reivindicações de ‘ser mulher’ (Saba MAHMOOD, 2006; BROWN, 1995, p. 25).

Sempre relacional, contingente e situada, a agência, enquanto capacidade de efetivar mudanças a fim de afirmar a vida, no e em relação ao poder - deve ser entendida de forma ampla como a consecução de projetos, discursos e desejos que vão além da estrutura binária resistir-subordinar (MAHMOOD, 2006, p. 42-44). A arte de perceber (Anna TSING, 2015; 2019), de estar atento aos diferentes modos de subjetivação, de conhecimento, de experiência e de fazer-mundos das diferentes mulheres, ou seja, de diferentes agências, tem sido fomentada pelos diversos feminismos e estudos de gênero, provocando mais uma emoção criativa, o espanto, o assombro (AHMED, 2004, p. 168-191). Espanto este que motivou este artigo.

Portanto, seja por meio da atualização das disputas dos feminismos on-line e off-line, seja na manutenção de certa tensão criativa entre política feminista e teorias de gênero (MAHMOOD, 2006, p. 59-60), os feminismos, e esta feminista, mudaram suas leituras com frequência, propiciando perdas e reencontros de objetos e sujeitos, do bem e do mal, conformando uma prática ético-política experimental.

Posiciono-me com Sara Ahmed no entendimento de que os apegos feministas têm se movimentado com o movimento, e as emoções, assim como a razão, realizam um trabalho político, uma transformação do mundo, por meio de uma “disputa emocionada contra a injustiça”17 (AHMED, 2004, p. 201). Mas atenta à crítica de Wendy Brown, essa disputa será tanto mais criativa quanto mais se abster de prerrogativas morais e reencenações do corpo feminino hegemônico e normativo, domínios privilegiados pelo poder nas sociedades de controle-cum-neoliberalismo.

Mas não é preciso renunciar às emoções, nem ao corpo, como forma legítima e política de enunciação e aparição, ao contrário. Exercê-las de forma política é contestar o confinamento das emoções e do corpo a um suposto nível pessoal, inferior ou apelativo de expressão (feminina!), em contraposição à razão supostamente universal e não emotiva (masculina!).

As emoções que buscam justiça “podem ser aquelas que trabalham com e nas feridas... que estão na superfície como marcas de danos passados no presente” (AHMED, 2004, p. 202). Assim como Medusa, as feridas da injustiça não morrem, mas se transformam. Nossa ira petrifica novos guerreiros, mas também dá vida a cavalos alados.

Sai, Medusa.

Referências

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1Predadores masculinos e vítimas femininas são os termos utilizados por Camille Paglia para se opor aos movimentos de denúncia digital como o #MeToo, mobilizando o que ela também chamou de ressentimento contra os homens. Tenho inúmeras discordâncias de sua leitura, mas concordo que haja problemas em fundar tribunais populares com base em essencialismos infusionados de certo pânico moral em relação à sexualidade.

2Foucault nos apresenta o exemplo do julgamento, últimas palavras e morte de Sócrates (FOUCAULT, 2014, p. 83-101). Temos o exemplo recente e próximo de Marielle Franco.

3A este propósito, Deleuze (1992, p. 1-2) nos lembra que “o que a história capta do acontecimento é sua efetuação em estados de coisa, mas o acontecimento em seu devir escapa à história. A história não é a experimentação, ela é apenas o conjunto das condições quase negativas que possibilitam a experimentação de algo que escapa...”.

4Este ponto foi esclarecido em conversa com o professor Carlos José Martins.

5Enquanto seria possível precisar os sentimentos e emoções como tipos específicos de afetos, havendo outros, também seria possível distinguir fúria, ira, raiva e outros afetos que engendram mais ou menos agressão ou violência. Aqui, farei uso mais ou menos livre e intercambiável dessas expressões, adaptando-as aos argumentos e estilo do texto.

6Nos anos 90, Leonor Arfuch (2005) cunhou de espaço biográfico, depois atualizado e teorizado como “giro afetivo“, ou a “intimidade pública”, para dar conta de mudanças importantes nas fronteiras entre a esfera pública e privada, como exemplificado por: “talk shows, realities, auge do auto/biográfico, o íntimo e o subjetivo, afã confessional nas redes sociais, voyeurismo e emoções vicárias na TV, justiça restaurativa, “branding”, inteligência emocional, carisma e liderança como valores prioritários” (ARFUCH, 2016).

7Camila Rocha e Jonas Medeiros (2020) alertam para o caráter ambivalente e paradoxal dos “contrapúblicos” que confrontam os públicos participantes da esfera pública por meio de choques disruptivos (como a Marcha das Vadias, os palavrões de Olavo de Carvalho, os elogios a torturadores pelo presidente da república ou a prática de trollagem). Com linguagem performática e agressiva, os contrapúblicos abrem brechas democratizantes no regime de verdade (científico, racional, humanista, pluralista etc.) a que estão sujeitos os públicos hegemônicos e subordinados, desnaturalizando consensos. No entanto, ao atuarem com estratégias altamente conflitivas, também recusam o debate, essencializam e desqualificam o oponente, dificultando a construção de novos compromissos-consensos.

8Nos discursos políticos sob o neoliberalismo concatena-se maior concorrência, a maior produtividade e maior ganho geral. Mas não há garantias, apenas a recompensa distribuída ao bel prazer da dinâmica automática da concorrência interpessoal, entre capitais e interestatal, que dará o veredicto, não cabendo questionar sua justiça em termos do tamanho dos esforços empreendidos (qualificação, mérito ou valor-trabalho).

9Para Hayek, a promoção de uma mecânica intertemporal de concorrência nas ordens econômicas e morais leva ao que de mais justo se pode prometer. Afinal, não há apenas uma moral, ou uma religião, ou um interesse no mercado. Só é possível garantir que a concorrência leve a uma coordenação espontânea de agentes de conhecimento limitado e livres da coerção estatal. O resultado dessa coordenação no tempo será justo, seja ele qual for.

10O dogma da escassez contrapõe (e produz) um sujeito múltiplo, de desejos infinitos, diversos e não disciplináveis, a uma exterioridade finita: a meios, natureza, bens e tempos finitos, para alcançar esses infinitos desejos. Assim produzidos, o sujeito e seu exterior, o efeito será de fato o da escassez, da falta. O local de veridicção, onde a Verdade será revelada e onde será realizada de forma justa a distribuição entre aqueles que escolheram os melhores (winner) e os piores (looser) meios para se alcançar seus variados interesses, será o Mercado (FOUCAULT, 2008, p. 39-69; BROWN, 2015, p. 67).

11Esta expansão de uma dimensão econômica calcada na escassez, para toda ação humana, foi teorizada pelo inglês Lionel Robbins (1932) e depois popularizada e calculada desde os anos de 1970 para diversas decisões humanas (casamento, filhos, crime, educação) pelo americano da escola de Chicago Gary Becker.

12Might the realization of substantive democracy continue to require a desire for political freedom, a longing to share in power rather than be protected from its excesses, to generate futures together rather than navigate or survive them?”

13“the moralizing revenge of the powerless.”

14“Starkly accountable yet dramatically impotent, the late modern liberal subject quite literally seethes with resentment.”

15Veja a astuta e ambígua transformação da dor/raiva em alegria e mobilização no caso dos movimentos #NiUnaMenos, na Argentina, e #VivaNosQueremos, no México, em Florencia Rovetto (2019).

16Termo de Wendy Brown (1995, p. 77-95), ao analisar a produção, o estilo e a retórica de Catharine MacKinnon, onde demonstra seu alinhamento à essencialização sexual dos corpos e do gênero, sua falta de historicidade, sua heteronormatividade e sua adequação ao pânico moral e conservadorismo dos anos de 1970-80 nos EUA.

17emotional struggle against injustice.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MOSTAFA, Joana. “O risco da ira feminista: neoliberalismo e ressentimento”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 1, e83211, 2023

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 05 de Agosto de 2021; Revisado: 10 de Maio de 2022; Aceito: 06 de Junho de 2022

j941717@dac.unicamp.br; joana.mostafa@gmail.com

Joana Mostafa (j941717@dac.unicamp.br; joana.mostafa@gmail.com) é servidora federal do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), especialista em seguridade social e gênero. Possui Graduação e Mestrado em Economia e atualmente é doutoranda do programa de Sociologia, todos pela Unicamp. Foi diretora do Cadastro Único para Programas Sociais e teve intensa participação no debate público sobre as propostas recentes de reforma da previdência, em especial sobre os impactos na vida das mulheres

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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