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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.25 no.2 Florianópolis maio/ago 2017

https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n2p593 

Artigos

“Percorrendo caminhos da angústia”: itinerários abortivos em uma capital nordestina

“Treading Pathways of Anguish”: Abortion Itineraries in a Brazilian Northeastern Capital

Rozeli Maria Porto1 

Cassia Helena Dantas Sousa12 

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil

2Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil


Resumo:

Trata-se de uma discussão sobre as relações estabelecidas entre mulheres usuárias de serviços de saúde pública e de agentes mediadores na cidade de Natal, para a obtenção e uso de medicações abortivas (Misoprostol/Cytotec®). A análise recai sobre os itinerários abortivos percorridos pelas mulheres na tentativa de obterem a medicação necessária à realização do aborto clandestino. O artigo aborda, também, os tipos de relações estabelecidas com os outros agentes envolvidos nesta rede, levando em consideração fatores como risco, ilegalidade e poucos recursos materiais. Os resultados seguem os seguintes apontamentos: 1. Procura por agentes específicos, com itinerários condicionados ao conhecimento de pessoas que possam chegar ao produto desejado; 2. Finalização combinada ao atendimento posterior em hospitais públicos para a limpeza uterina; 3. Participação dos homens no processo abortivo; 4. Paradoxos de percepção sobre a prática do aborto com um claro recorte geracional entre as profissionais de saúde; 5. Ultrassom e redes sociais como partes integrantes dos itinerários abortivos.

Palavras-chave: Itinerários abortivos; Cytotec®; Mulheres; Agentes mediadores; Serviços de saúde

Abstract:

This paper debates the relations established among women that use public health services and mediating agents in the city of Natal for obtaining and taking abortive medicines (Misoprostol/ Cytotec®). The analysis lies on abortion itineraries treaded by women in an attempt to obtain the medication necessary for carrying out clandestine abortion, as well as the sorts of relations they establish with other agents involved in that network, by considering factors like risk, illegality and little material resources. The results present the following points: 1. Search for specific agents, with itineraries being conditioned by the acquaintance with people who can reach the desired product; 2. Final procedures combined with posterior attendance in public hospitals to cleanse the uterus; 3. Men’s participation in the abortion process; 4. Paradoxes of perception about the practice of abortion, with a clear perception of a generational group among health professionals; 5. Ultrasound and social network sites as integrated parts of abortion itineraries.

Key words: Abortion itineraries; Cytotec; Women; Mediating agents; Health services

Introdução

O aborto é uma experiência vivenciada por uma em cada cinco mulheres até os 40 anos no Brasil. Este dado provém da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2010, em áreas urbanas de todo o país (Débora DINIZ e Marcelo MEDEIROS, 2010). Tal constatação trouxe, obviamente, movimentações políticas relevantes para os estudos sobre o tema do aborto clandestino no contexto brasileiro. A primeira delas é um relativo aumento do lugar ocupado pelo tema do aborto e dos direitos reprodutivos nas agendas de políticas públicas de equidade de gênero, algo fundamental para a garantia de direitos das mulheres em relação ao acesso à saúde pública.

Sobre isso, em que pese a presença cada dia mais marcante das alas conservadoras nas instâncias de poder do Estado (em especial, a bancada evangélica no Congresso Nacional e alguns setores conservadores do cenário social e político brasileiro), tal preocupação vem sendo materializada e engendrada em forma dos mais variados estudos acadêmicos envolvendo a vivência das mulheres enquanto sujeitas1 portadoras de diversos direitos concernentes à sua vivência e bem-estar reprodutivos. Nesse contexto, há, atualmente, no campo das Ciências Sociais, uma preocupação cada dia mais latente com os itinerários abortivos2 das mulheres que fazem a interrupção da gestação clandestinamente numa tentativa de expandir o conhecimento sobre a prática em diferentes localidades da realidade urbana brasileira.

O objetivo deste texto é realizar um exercício analítico de experiências vividas por mulheres que abortam clandestinamente em uma capital de médio porte do nordeste brasileiro, a cidade de Natal/RN, levando em consideração fatores como gênero, raça, escolaridade e recursos econômicos/materiais. Analisando os caminhos percorridos nesse contexto através de algumas narrativas obtidas em trabalho de campo com mulheres que já fizeram aborto, pretende-se realizar uma reflexão sobre as diferenças que este processo guarda de acordo com questões envolvendo gênero/poder econômico/classe ocupados por estas enquanto “sujeitas de agencialidade”3 no bojo desse drama social.4 Procuramos fazer uma discussão sobre os meios e itinerários eleitos pelas mulheres com as quais tivemos contato durante o trabalho de campo, colocando nosso olhar sobre as maneiras com que têm acesso a medicações abortivas, dando ênfase ao medicamento conhecido como Cytotec®. Ademais, a finalidade deste trabalho é encontrar, nos caminhos percorridos por estas mulheres, elementos que possibilitem uma visão mais rica e detalhada sobre como o aborto clandestino é feito na cidade onde a pesquisa se deu, oferecendo, desta forma, sentido às relações estabelecidas com os agentes mediadores e as mulheres que procuram por formas de proceder com um aborto.

Sinalizamos de antemão que o aborto clandestino não era o foco central de nossas pesquisas, pois nossos estudos concentravam-se, especialmente, nos casos de abortamentos5 previstos em lei no Brasil (CPB 1940, art. 127 e 128) somente nos casos de estupro, risco de vida da mulher, e, desde 2012, nos casos de anencefalia. Contudo, lembramos que, ao entrar em contato com diferentes alteridades em nosso trabalho de campo, outras paisagens, personagens e falas passaram a fazer parte desses encontros etnográficos. Assim, discursos, práticas e representações advindas desse terreno extrapolaram recortes teórico/metodológicos e passaram a fazer parte dos “segredos de gênero” (Rozeli PORTO, 2009) relatados por essas mulheres no universo de análise. Como lembra Flávia de Mattos MOTTA (2012, p. 124), é incomum “uma mulher falar abertamente sobre um aborto por ela provocado”, uma vez que é praticado sob o “signo do segredo” por ser considerado imoral, criminoso ou pecado. Desta forma, embora não fizesse parte do foco principal de nossos estudos, a questão do aborto provocado surgiu com força o bastante para nos chamar atenção, sobretudo no que diz respeito aos itinerários terapêuticos,6 ou, conforme preferimos chamar, itinerários abortivos (Carmen Susana TORNQUIST, Silvana Maria PEREIRA e Fernando José BENETTI, 2012), noção que utilizamos para pensar nos processos vivenciados por diferentes mulheres diante do atraso da menstruação e desconfiança de uma gravidez. Tal itinerário se inicia com a ingestão de chás e bebidas/alimentos que possam provocar a vinda do sangue, e, somente depois de outros recursos - incluindo o Cytotec® -, podem efetivar a “decisão”, fato que exploraremos a partir da experiência de abortamento de duas mulheres que nos confiaram em segredo os seus “caminhos da angústia” através da adesão de diferentes itinerários abortivos estabelecidos por meio de suas redes sociais.7.

O artigo está dividido em cinco partes: na primeira, identificamos as nossas interlocutoras de pesquisa, discorrendo sobre a descoberta da gravidez por essas mulheres e a tomada da decisão - acompanhada de uma verdadeira corrida contra o tempo - para a realização do aborto. Na segunda, realizamos um breve histórico sobre a propagação e os usos do Cytotec®, relacionando o fenômeno de sua popularização ao contexto de nossa pesquisa através dos casos escolhidos para análise neste trabalho. Por fim, na terceira e quarta partes, analisamos os casos de duas das mulheres com as quais tivemos contato, narrando o desespero de nossas interlocutoras na busca pela solução aos seus dramas e as formas através das quais obtiveram Cytotec®, assim como os caminhos percorridos até a realização de seus abortos. Na conclusão do texto, colocaremos breves apontamentos sobre o panorama geral desses dois casos, articulando com o contexto geral da cidade no que tange à obtenção do medicamento para fins abortivos.

Metodologia e as sujeitas da pesquisa

A pesquisa8 foi realizada em hospitais/maternidades da rede pública de saúde, sendo que todas as etapas e procedimentos relativos e necessários ao trabalho do/a antropólogo/a foram levados a cabo (Roberto CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000). Foram observadas as normas estabelecidas no Código de Ética da Associação Brasileira de Antropologia, como também as exigências do Comitê de Ética em Pesquisa.9 O caminho é de caráter qualitativo através de observação participante e de entrevistas semiestruturadas nos ambientes hospitalares escolhidos como lócus de pesquisa (Bronislaw MALINOWSKI, 1978; Marisa Gomes e Souza PEIRANO, 1995).

Particularmente para este artigo, elencamos algumas entrevistas que foram realizadas com duas mulheres que passaram pela experiência do abortamento com medicamentos, em especial o Cytotec®, além de misturas deste com outras substâncias biomédicas ou constituintes de outros sistemas de conhecimento/cura, como veremos adiante. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, sendo que conversamos com nossas interlocutoras diversas vezes. As perguntas feitas tinham por objetivo conhecer o itinerário dessas mulheres após sua decisão pelo abortamento, tentando não explorar questões ligadas à moral, tampouco induzi-las em suas respostas.

Às duas mulheres que participaram de nossas pesquisas e narraram suas histórias, daremos os nomes de Maria Flor e Glória.10 Ambas são jovens e engravidaram no início de suas vidas reprodutivas, como já verificado em outros estudos (HEILBORN et al., 2012; DINIZ, 2012), e abortaram aos 20 anos de idade. As duas eram estudantes universitárias, sendo Maria Flor bolsista na universidade em que estudava e Glória trabalhava como recepcionista em um restaurante. Diziam-se solteiras e sem filhos. A primeira considera-se parda e é nascida em uma cidade interiorana do Rio Grande do Norte, pertencente às classes populares. A segunda diz-se branca, de classe média, e nasceu no interior do Mato Grosso. Dividiam, à época, despesas de moradia com outras pessoas. Maria Flor dividia aluguel com o namorado e com um amigo. Segundo ela nos conta,

na real eu morava num cortiço horroroso desses que moram famílias inteiras e alguns estudantes da universidade sem condições de pagar coisa melhor... (Maria Flor).

Glória, por sua vez, dividia as despesas com a mãe em um apartamento “razoavelmente confortável situado em bairro popular”. Engravidaram de seus companheiros, sendo que estes já não fazem mais parte de suas vidas. Estão hoje com outros namorados.

Na trajetória dessas duas mulheres, percebemos diferenças bastante acentuadas em seus itinerários abortivos. Entretanto, o desfecho de suas histórias se repete tal qual ilustra a literatura sobre o tema, principalmente no processo de substituição, expansão e utilização do Cytotec® e na finalização do abortamento em hospitais através de curetagem ou de aspiração manual intrauterina, fato que comprova os apontamentos feitos por Diniz e Medeiros (2012) ao observarem que houve uma significativa variação na.

epidemiologia do aborto com a entrada do Cytotec® em cena nos anos 1990: uma queda na mortalidade materna e um aumento no número de internações hospitalares para a finalização do aborto. A realidade conhecida é que as mulheres iniciam o aborto com uso do Cytotec® e o finalizam nos hospitais públicos com a curetagem (p. 1672).

Assim, prosseguiremos no texto enfatizando os acontecimentos ocorridos nos itinerários abortivos descritos por nossas entrevistadas, de modo que possamos compreender como, de fato, a obtenção e uso do Cytotec® se deram para essas mulheres.

Iniciando os caminhos da angústia: a descoberta da gravidez e as redes de contato para a compra clandestina de Cytotec®

Dos relatos e narrativas sobre aborto ouvidas em campo, a descoberta da gravidez de maneira precoce ou tardia é, amiúde, o marco inicial, o preâmbulo, ou o primeiro capítulo do que está por vir. As mulheres, de maneira geral, descrevem esse momento como o ponto de partida para a procura de uma forma de “resolver” a situação da gravidez não planejada e indesejada, ensejando, já neste momento, se irão prosseguir neste ardiloso caminho sozinhas ou com a ajuda dos parceiros ou familiares. De fato, aparece de maneira muito clara que é nesse momento que lançam mão dos primeiros contatos e dos primeiros planos que envolvem, via de regra, uma sensação de intensa aflição e a necessidade imediata de procurar formas de encontrar os meios necessários para a realização do aborto. No caso das entrevistadas em nossa pesquisa, ambas já sabiam previamente da existência da medicação misoprostol, amplamente conhecida pelas próprias como Cytotec®, sendo este o caminho eleito prioritariamente para a interrupção da gestação.

Antes de tudo, é necessário dizer que o contexto de expansão do misoprostol nos últimos 20 anos alcançou as mais variadas camadas sociais, que obtêm o medicamento de diversas formas, de acordo com suas redes de relações. Vale lembrar que, no final dos anos 80, os métodos habituais utilizados pelas mulheres para realizarem um aborto começaram a ser gradativamente substituídos (mas, também, incorporados) por essa substância (Regina BARBOSA e ARILHA, 1993; Lucila SCAVONE, 1999; DINIZ e Ana Cristina Gonzalez VELEZ, 2008; BRASIL, 2009). Esse medicamento é utilizado como prevenção de úlceras gástricas, e foi comercializado normalmente entre os anos de 1986 e 1991. Com a publicação de uma pesquisa informando que o misoprostol era capaz de estimular as contrações uterinas (Coríntio MARIANI NETO et al., 1987), sua circulação foi proibida pela ANVISA em 1991. Contudo, o medicamento continuou a ser utilizado institucionalmente - para os casos de aborto legal, por exemplo - e sua proibição só fez aumentar o mercado clandestino, continuando a ser utilizado por mulheres/casais com a finalidade de interrupção da gravidez não prevista em lei, como observamos abundantemente em pesquisas que tratam sobre a circulação secreta desse remédio (TORNQUIST, PEREIRA e BENETTI, 2012).

Assim, a popularização do medicamento para induzir abortos demonstrou, mesmo em situações de clandestinidade, ser um método muito mais seguro do que aqueles feitos através de procedimentos que envolvem inserção de objetos como agulhas de tricô, pedaços de cabides, gravetos e ingestão de outras drogas e/ou plantas (MOTTA, 2012; TORNQUIST, PEREIRA e BENETTI, 2012). No entanto, por mais que esse medicamento auxilie na diminuição da morbimortalidade decorrente de abortos, sua reconhecida eficácia muitas vezes se desestabiliza por conta de diferentes equívocos cometidos devido à sua situação de substância ilícita no país. Assim, o fato é que, por ser proibido no Brasil, o Cytotec® é comercializado na total clandestinidade, fazendo com que muitas mulheres acabem ministrando-o das mais diversas maneiras (corretas ou não) e decidam por terminar seu abortamento em hospitais, sobretudo devido as mais variadas complicações que um aborto retido pode gerar caso os resíduos uterinos não sejam removidos em um curto período de tempo. Conforme destacam Tornquist, Pereira e Benetti (2012),.

...explicações para este tipo de itinerário [iniciar o abortamento em domicílio e terminar no hospital] são frequentes em nosso universo de pesquisa... podem estar relacionados com, pelo menos, dois motivos. Um deles relacionado ao mau uso do remédio, em função de sua bula conter informações referentes ao uso legal (ou seja, para os casos de úlcera) e não ao abortamento. O outro, em função dos prováveis processos de adulteração (p. 176-177).

Porém, é necessário salientar que “quando o aborto se aproxima do tráfico” (DINIZ e Alberto MADEIRO, 2012, p. 1797-1798), as mulheres se tornam reféns não somente de produtos adulterados, sendo obrigadas, também, a conviverem com o receio da denúncia caso procurem o auxílio médico em decorrência disso, o que aumenta o risco de infecções e outras complicações no procedimento abortivo, levando-as, inclusive, à morte. Não obstante, além dessas razões, que já não são poucas, Diniz (2012) observa que os intermediários - podendo ser o balconista da farmácia, um sujeito que vive na comunidade e que é conhecido popularmente como o “vendedor de remédio11 - são figuras de grande pressão psicológica sobre as mulheres, que, muitas vezes, agem de maneira a desestimulá-las a procurar os serviços de saúde em situações de emergência. Destarte, a busca pela medicação junto a informações sobre a forma correta de proceder com o aborto passa a ser a agenda diária principal das mulheres, o que, no entanto, não elimina os riscos de que acabem cometendo equívocos.

No caso de nossa pesquisa, os meios para a obtenção do Cytotec® nos caminhos descritos pelas mulheres que ouvimos levam a certos lugares comuns: o primeiro, muito recorrente nas narrativas feitas, envolve atendentes de farmácias. O segundo aponta os motoboys de farmácias (como também de outros estabelecimentos) e pessoas envolvidas com outras transações clandestinas de medicamentos, a saber, proprietários de academias que também vendem esteroides anabolizantes e substâncias proibidas no país - referidas por Diniz e Rosana CASTRO (2011) como medicamentos “de gênero” - além de policiais, que, aparentemente, chegam a lotes de misoprostol através de apreensões ou pelo próprio conhecimento, em virtude da natureza da profissão, de locais de comercialização de narcóticos e outras substâncias proibidas no país que, além do comércio habitual, também vendem o medicamento.

Conversas corriqueiras com pessoas que fazem parte de nosso dia a dia nos colocaram, não sem surpresas, frente a narrativas de como se chegar ao Cytotec®. Segundo um dos relatos feitos por um rapaz de 29 anos - “nosso amigo e informante” (Clifford GEERTZ, 2001) - que já comprou várias vezes a medicação misoprostol com motoboys (comprou uma vez para sua namorada, diversas vezes para as suas amigas, como, também, diversas vezes para as namoradas de seus amigos, conforme ele nos conta), a facilidade em encontrá-la com esses profissionais é advinda dos muitos contatos que os entregadores de farmácias têm com outros colegas, fazendo com que, mesmo não tendo acesso direto ao misoprostol, possam saber, ou, ao menos, ter uma ideia de “onde a barra é limpa”, para que, assim, possam conseguir um “extra” através de uma comissão sobre a venda ilegal do produto. Tal qual o participante da pesquisa descreve, se um motoboy contatado não conseguir “os comprimidos”, certamente conhecerá outro que o conseguirá, o que faz a prática eficaz por acionar o que parece ser uma rede de venda paralela da medicação, que se aproxima, sem dúvidas, do tráfico de drogas.

Sobre as outras maneiras descritas de se chegar ao Cytotec®, a compra através de pessoas que trabalham diretamente em balcões de farmácias foi apontada como a mais complicada e com alguns obstáculos. Atendentes de farmácia que têm acesso à medicação - segundo nos conta Violeta12 - são de dificílimo alcance, caso já não conheçam previamente quem os procure desejando adquirir o misoprostol. A busca direta por meio deste tipo de profissional torna-se complicada por este fator, o que pode ocasionar até episódios desconfortáveis, como a expulsão do estabelecimento farmacêutico sob dizeres não muito amigáveis, como “aqui não vende esse tipo de coisa, não sei onde te falaram isso”, tal qual narrado por Maria Flor.

No caso de policiais e vendedores de esteroides anabolizantes, existem algumas questões peculiares a serem observadas: sobre os primeiros, vários dados foram passados pelas sujeitas entrevistadas durante a pesquisa, sendo que a venda de misoprostol parece ser sazonal, ou seja, só se vende quando se tem a medicação, o que, por motivos não conhecidos, não é uma constante - ao menos nos casos descritos para as pesquisadoras. Já sobre os vendedores de esteroides anabolizantes, alguns problemas relacionados à autenticidade da medicação foram suscitados, o que, segundo um entrevistado (que comprou a medicação para a esposa que não obteve sucesso na tentativa de abortamento), ocorre devido ao fato de esse tipo de vendedor conseguir seus produtos através de contrabandos internacionais nos quais o Cytotec® vem como um produto secundário, sendo os riscos de sua inautenticidade já curiosamente informados no ato da compra.

Sobre isso, Tornquist, Pereira e Benetti (2012) observam que, para se obter o medicamento no comércio local da capital catarinense - de forma clandestina -, primeiramente, é necessário ter dinheiro vivo e, em segundo lugar, deve-se saber manejar os “códigos corretos para acessar o medicamento” (p. 192). Argumentam, também, que algumas das pesquisadoras foram ao comércio local, e, em meio a aparelhos eletrônicos, bolsas, bijuterias, tapetes, roupas, brinquedos, perfumes, óculos, calçados etc., encontraram facilmente o remédio, porém, não sem antes passarem por uma mulher (intermediária) que, sem demora, compreendeu suas investidas propositais acerca do que queriam no local: “comprimido? Vão na banca de número 36. E digam que fui eu quem indiquei...”.13 O fato é que, naquele momento, não chegaram a adquirir o medicamento, mas outras pessoas da equipe estiveram no mesmo lugar posteriormente, fizeram a encomenda, e, minutos depois, já estavam de posse do produto.

Nestas duas últimas pesquisas citadas, observou-se que os comprimidos vêm embrulhados em um pequeno pedaço de papel branco, em embalagens prateadas - ou em um tubo de filme transparente (conforme observa Glória, uma de nossas entrevistadas) -, e estão bastante avariados e sem letra. Também não aparece o nome do laboratório, o que sugere, certamente, adulteração. Tornquist e sua equipe (2012) ainda comentam que, junto ao medicamento, vem uma espécie de bula manuscrita, constando o nome e o número do telefone celular da pessoa que realizou a venda (uma mulher). A intermediária da pesquisa feita em Santa Catarina mostrou-se, segundo as pesquisadoras, “gentil”, e, “carinhosamente”, explicou a maneira de se utilizar o medicamento “de forma correta”, insistindo para que entrassem em contato, mesmo que fosse de madrugada: “desta forma, se isso acontecesse (entrar em desespero ou coisa semelhante), era melhor não hesitarmos em manter contato com ela, para que pudesse nos acalmar e tomar alguma atitude, se necessário” (p. 193)

Em nossa pesquisa, não constam relatos da ocorrência de manuscritos, mas, sim, de orientações verbais de um vendedor que, conforme confere Glória, provavelmente já estava muito habituado a orientar mulheres em vias de realizar um aborto. Tal vendedor, segundo nossa interlocutora, orientou a jovem em minúcias, inclusive dando garantias de autenticidade da medicação ao demonstrar alguns sinais de que o que havia ali era, de fato, Cytotec®: apontou o formato hexagonal das cápsulas dentro do tubo, sinalizando que este era o aspecto correto do medicamento. Falou também sobre medicações falsas, alertando sobre a venda por certo proprietário de academia de classe média da cidade, pontuando que este, muito embora recebesse Cytotec® paralelamente aos outros produtos que vendia clandestinamente, não sabia “lidar com ele”, por não “entender” da medicação e acabar, por vezes, revendendo comprimidos falsos. O homem também fez indicações sobre a colocação do comprimido a ser introduzido na vagina, dando, ainda, as instruções sobre a medicação pós-abortamento, sublinhando “a extrema necessidade de procurar o hospital para procedimentos de limpeza uterina”, o que indica, mais uma vez, que as etapas da prática abortiva através do Cytotec® são amplamente conhecidas por aqueles que vendem a medicação na cidade, sendo repassadas cuidadosamente às mulheres que buscam a medicação através do acionamento das redes de contato às quais têm acesso.

Em nosso universo de pesquisa, diferentemente do que relata Diniz sobre as ameaças sofridas pelas mulheres que adquirem o misoprostol na clandestinidade, os intermediários acima citados mostraram-se preocupados, cuidadosos e compreensivos para com as mulheres que buscaram, na ilegalidade, aparato para seus infortúnios. Todavia, é de se pensar que a demonstração de carinho e a exacerbada preocupação da intermediária citada por Tornquist, Pereira e Benetti estivesse ligada à preocupação em ser denunciada, uma vez que se dispunha a atender as pesquisadoras, “mesmo que fosse de madrugada”, tomando alguma espécie “de atitude caso fosse necessário”. Do mesmo modo, é de se pensar nas redes que foram acionadas no caso de Glória para minimizar os seus “caminhos da angústia”, uma vez que logrou obter a medicação através de um colega do restaurante em que trabalhava, que lhe forneceu o contato de um policial militar que fazia “rondas14 diárias na rua do local, havendo, ao que parece, maior estreitamento por parte dessas relações pessoais. No entanto, Maria Flor, de quem falaremos a seguir, teve imensas dificuldades para conseguir o misoprostol, passando por um doloroso itinerário abortivo. A começar, ao contrário de Glória, Maria Flor foi vítima do seu próprio despreparo diante de sua vida sexual e reprodutiva, como também foi uma vítima de classe, por não obter, à época, recursos financeiros para adquirir o medicamento, tal como descreveremos a seguir.

Maria Flor: inexperiência e técnicas alternativas de contracepção

Foram os piores dias da minha vida. Não conseguia comer, não conseguia trabalhar, nem conseguia dormir! Mulher, era dia e noite pensando naquilo, em como conseguir, com quem conseguir. Conhecia muita gente que vendia coisas ilegais e pensava que poderiam facilmente conseguir o Cytotec®, mas, mulher, nada dava certo. Pensar que a gravidez estava se desenvolvendo e que eu não tinha como interromper me deixou quase maluca, a cada enjoo e a cada sensação que eu ligava àquela situação de gravidez eu sentia o desespero tomando conta” (Trecho de entrevista cedida por Maria Flor).

Rememorando alguns dados de Maria Flor, ela nos conta que engravidou aos 20 anos de idade. Jovem, inexperiente, estudante universitária, tinha uma vida difícil em termos financeiros, assim como outras garotas de sua idade e classe que se aventuram em estudar na capital. Revela-nos que ficou grávida porque se deixou levar por sua ingenuidade, “por ser muito boba” e por sempre ceder às vontades de seus namorados. O rapaz de quem engravidou - tal qual ela própria assume - a convenceu a adotar algumas práticas “alternativas” de contracepção, a saber, técnicas “tântricas” que forjavam em “segurar em determinado ponto dos testículos, no momento da ejaculação” (sic). Maria Flor dizia-se assim muito ingênua em relação aos homens e era, diante dos fatos, facilmente levada pela “malandragem dos namorados”, os quais não se preocupavam em apoiá-la quando necessário, especialmente nesses momentos de prevenção. Explica que iniciou sua vida sexual (exatamente antes desse namorado “tântrico”) com um homem de meia idade que tinha sérias restrições ao uso de preservativos masculinos (camisinha), e, desta forma, sempre a convencia a adotar métodos contraceptivos inseguros, e teve, inclusive, em determinado momento, passado por um grande susto ao pensar que estava grávida, tratando-se, porém, apenas de um alarme falso. No entanto, o que fora apenas um susto no despertar de sua vida reprodutiva, acabou por se tornar realidade, quando, posteriormente, entrou em outra relação amorosa e, efetivamente, engravidou de seu companheiro, que não agiu muito diferentemente de seu parceiro anterior (afinal, a técnica “tântrica” era nada mais que, no final das contas, coito interrompido15).

A pessoa com quem Maria Flor se iniciou sexualmente parece ter se aproveitado de sua pouca experiência ou, mesmo, a despido de qualquer tipo de agencialidade no que se refere ao seu poder de decisão em termos de escolhas contraceptivas, o que faz refletir, da mesma maneira, em sua próxima experiência afetiva. Juízos de valor se alternariam em culpar Maria Flor por sua falta de iniciativa ou, mesmo, pelo seu “desconhecimento” quanto aos mais variados métodos contraceptivos. Entretanto, o que está em voga no caso de nossa interlocutora não é o poder de alcance da informação, pensamento inevitável entre o senso comum, que não admite qualquer tipo de descuido feminino no que se refere aos cuidados e prevenção. Está, todavia, no poder de decisão unilateral que advém de seus companheiros, fato que se evidencia no Brasil em diversos relacionamentos conjugais, especialmente naqueles em que a violência doméstica, de uma forma ou de outra, se faz presente.

Pesquisas recentes confirmam que as mulheres, em alguns casos, não têm chances de escolher seus próprios métodos contraceptivos, ou o fazem de maneira velada. Reflexo da imposição de seus companheiros quando não de outras figuras masculinas - a exemplo do pai, tio, ou, até mesmo, do padrasto (PORTO, 2014; TORNQUIST, PEREIRA e BENETTI, 2012) - que acabam por decidir suas vidas reprodutivas. Assim, por mais que a contracepção seja considerada comumente de responsabilidade das mulheres e que a maioria dos homens não tenha maiores preocupações com os cuidados preventivos - seja em relação a doenças sexualmente transmissíveis, seja em relação à gravidez -, as mulheres, muitas vezes, precisam “driblar” seus maridos, especialmente quando estes desejam aumentar sua prole. Algumas mulheres, já considerando terem filhos “suficientes”, recorrem a métodos contraceptivos que consideram mais eficazes - a exemplo da injeção de três meses - numa tentativa de esconder do companheiro que estejam se protegendo de uma gravidez que, por uma série de razões, já não faz mais parte de seus planos.

O drama de Maria Flor, tal qual descrito por ela própria, começou em fevereiro de 2007, quando descobriu a gravidez com seis semanas. Observa que uma amiga já havia alertado sobre o que poderia lhe acontecer caso continuasse “a ceder” ao namorado “tântrico” que, na realidade, lograva em forjar métodos alternativos por se negar ao uso do preservativo. Uma vez descoberta a gestação, ainda que o namorado tivesse sugerido a sua continuidade, Maria Flor decidiu por interrompê-la, retomando, embora que tardiamente, sua agencialidade. Tal atitude foi respeitada por seu companheiro, que afirmou que iria ajudá-la a providenciar o aborto.16 Com a decisão tomada, compartilharam a informação com outros amigos e iniciaram a jornada em busca de meios de realizar o procedimento. Como nos disse, passou dias muito nervosa, abatida e em busca do medicamento para interromper sua gravidez, todavia, agindo com desespero, conforme ela mesma confere, e, assim, não conseguindo raciocinar friamente sobre a situação. Nesse ínterim, um fato inquietante no episódio de Maria Flor, que via de regra persiste no itinerário abortivo de muitas mulheres, foi a ingestão de uma variedade extensa de preparados caseiros e substâncias compradas em farmácias por sugestão de outras mulheres e advindas de pesquisas na internet. Tal atitude, em virtude do tempo tomado com buscas sem sucesso pela medicação, aliada ao desespero vivido com o avanço da gravidez (descoberta com seis semanas e interrompida dolorosamente apenas com doze), levou a nossa interlocutora a passar por situações extremas de mal-estar e complicações descritas minuciosamente por ela como “desesperadoras”. Nem ela e nem seus amigos conseguiam encontrar o medicamento:

Saí tomando tudo que era porcaria que indicavam porque não achava com quem comprar o Cytotec, entende? Tentei em farmácias de bairros pobres e levei um ‘não’, sendo expulsa quando perguntei pelo Cytotec. Tentei em boca de fumo e ninguém sabia... tentei outros contatos que me davam, mas ligava e diziam que não vendiam mais. Daí nesse meio tempo eu fui tomando coisas. Tomei chá, tomei cápsulas de uma substância que nem eu me lembro o nome, tomei garrafada por dias, passei mal demais por essas coisas, inclusive. E mais, todas essas coisas eram baratas, eu tinha a grana pra isso. O problema de dinheiro veio quando consegui o Cytotec. Percebi que era além das minhas possibilidades naquele momento entende? 150 contos. Eu ganhava 250, dá pra ti imaginar uma tragédia dessa? Até que um amigo meu (que tinha sido namoradinho uns tempos antes) ficou sabendo e pum, o danado conseguiu, foi atrás de um atendente de farmácia que sabe-se lá como ele soube e conseguiu. Só que aí, tinha a questão do dinheiro. Eu tava lisa. Até que o próprio menino se propôs a emprestar a grana e aí finalmente eu fiz o aborto...” (Trecho de entrevista cedida por Maria Flor).

Como sua fala sugere, Maria Flor passou por um processo de intensa dramaticidade que não deixa de ser exemplar no que diz respeito aos itinerários abortivos realizados por outras mulheres. O percurso que ela e os amigos realizaram para conseguir o medicamento tornava-se dia a dia mais dramático, pois ela estava numa corrida contra o tempo. Na realidade, Maria Flor foi vítima de inúmeras situações, tanto por falta de serenidade para procurar uma solução de maneira mais eficaz, quanto pela falta de dinheiro. Tanto que, em desespero, como ela mesma nos conta, procurou a medicina popular, chegando a tomar garrafadas e a utilizar receitas pesquisadas na internet, como a ingestão de cápsulas de uma substância duvidosa em drágeas, sendo que ambas a levaram a vômitos e dores acentuadas, sem, no entanto, fazer efeito abortivo algum. No caso da medicina popular em forma de combinados de ervas - as garrafadas -, algumas pesquisas17 apontam a recorrência deste tipo de recurso pela via da indicação de aborteiras, não sendo, todavia, garantida a eficácia das misturas, o que torna necessárias outras tentativas que podem estreitar e intensificar (e adensar em sentido de aumentar a tensão, justamente pelo caráter de segredo deste momento) a relação entre os dois sujeitos envolvidos no drama - a mulher, e o/a vendedor/a das misturas de medicina popular.

Porém, no caso das mulheres que nos serviram de interlocutoras, nota-se que, quando o “alívio” chega, com a obtenção de quatro cápsulas compradas por um amigo próximo a um vendedor de uma grande rede de farmácias - e não de pequenas farmácias em bairros populares como ela havia tentado18 -, falta-lhe o dinheiro para adquiri-los. Percebe-se, então, mais uma vez a participação dos homens em seu itinerário abortivo - dois amigos e o namorado já estavam em sua retaguarda -, tendo um deles (o amigo) se oferecido a emprestar o dinheiro para pagar pelo medicamento.

Todavia, dentre todos os meios que foram procurados por Maria Flor para a interrupção da gestação, surge um dado importante sobre a capital na qual a pesquisa se deu: aparentemente, na cidade, não existem clínicas de aborto clandestino, o que, segundo a entrevistada, foi descoberto através de uma ligação para um amigo que já havia facilitado via fornecimento de recursos um aborto para uma ex-namorada. Ele informou que, se assim quisesse fazer, teria que se deslocar para a capital de outro estado, situada a 300 quilômetros - o que inviabilizou imediatamente a opção, devido à ausência de recursos, que terminariam, ao final do processo, em torno de três mil reais. Enfim, após conseguir o medicamento a duras penas, Maria Flor nos relata que foi absolutamente doloroso o efeito, que começou duas horas depois de tê-lo utilizado:

Eu senti muita, muita dor!! Dois amigos estavam comigo e me auxiliaram quando precisei ir ao banheiro e lá expeli o material que estava no útero... tomei meia noite e fez efeito 2 da manhã. Senti algo ‘ficar pendurado’. Peguei a ‘coisa’ com um papel e quando olhei tive um choque: era um pequeno embrião ‘com olhinho e tudo’. E quando fui jogar no vaso o Renato (namorado) fez o favor de pegar e guardar pra enterrar depois, o que de fato ele fez. Depois ligamos pro Evandro, um amigo que tinha carro e que também estava a par de minha situação, e ele me levou à maternidade para fazer a curetagem” (Trecho de entrevista cedida por Maria Flor).

Chegando à maternidade, ainda era madrugada e a recepção se encontrava totalmente vazia. Explica Maria Flor que desceu do carro chorando muito, pois sentia fortes dores, e foi direcionada diretamente ao pequeno consultório que fica por detrás da divisória vestibular na lateral da recepção. Ela nos contou que disse imediatamente à médica o que havia ocorrido, ficando muito surpresa quando a ouviu dizer que “isso não era nenhum bicho de sete cabeças... isso acontece muito mais do que se imagina”. A médica já estava acostumada a lidar com isso, além de mencionar que, sob sua ótica, “...o atendimento a casos de aborto provocado tem mais é que ser tranquilo mesmo, sem mais delongas”. Assim, a médica solicitou um “ultrassom de urgência” para ver se a jovem tinha abortado completamente (ou seja, sem espera) e não necessitou passar pela triagem da recepção nem por ambulatório.19 Logo depois, ela vestiu a roupa hospitalar e foi encaminhada em situação de emergência à sala de curetagem onde recebeu anestesia local e foi feito o procedimento, tendo Maria Flor sentido muitas dores alguns dias depois. Este é um dos aspectos mais sofridos de todo o drama vivido pela jovem, que, comparado a outro caso relatado adiante, denota alguns problemas comuns que outras mulheres vivenciam em decorrência das mesmas limitações - financeira e de conhecimentos - que poderiam não ocorrer caso algumas condições de vida fossem diferentes.

Glória: prudência, vigilância e maus-tratos

Dos casos de obtenção de Cytotec® observados na pesquisa, há o peculiar itinerário abortivo percorrido por uma mulher que chamamos de Glória, já citada neste texto. Glória nos contou espontaneamente que estava em uma relação instável com o namorado, se equivocou no anticoncepcional, deixando de tomá-lo por uns dias, e, então, engravidou. Disse que o namorado prestava atenção se ela tomava todos os dias, comprava para ela todos os meses, e o acidente ocorreu quando brigaram e nossa interlocutora ficou desorientada, não tomando muito cuidado em suas relações sexuais. A jovem - à época com 20 anos e tendo descoberto a gestação com cinco semanas - teve êxito em obter o medicamento e já proceder com a interrupção da gravidez rapidamente, com intervalo de apenas sete dias desde o exame positivo até o procedimento de AMIU20 feito em um hospital maternidade público. Como já apontado, Glória conseguiu obter a medicação por meio de um colega do restaurante em que trabalhava, através do contato com um policial militar.

No dia seguinte à obtenção do Cytotec®, Glória fez o que lhe foi recomendado - tanto pelo vendedor, quanto pelo que havia pesquisado em sites da internet - e procurou o hospital para fazer o procedimento de limpeza. Mas o itinerário da jovem, é necessário dizer, começou muito antes. Assim que descobriu a gravidez através de um exame caseiro de farmácia, Glória saiu imediatamente do apartamento em que morava com a mãe, decidida à procura de meios para realizar a interrupção da recente gravidez. Disse-nos que não teve dúvidas: de um orelhão ligou para o melhor amigo, informando da necessidade de encontrar um vendedor que lhe fornecesse misoprostol (e os homens, mais uma vez, aparecem no itinerário abortivo; homens esses não sendo os próprios namorados, mas amigos, parentes ou colegas de trabalho). Desta forma, antes mesmo de ter a ideia de recorrer ao colega de trabalho que lhe indicou o policial militar cerca de seis dias depois, passaram a fazer, juntos, incursões à rua do hospital/maternidade público mais conhecido da cidade para, como nos conta em longa entrevista, “analisar o movimento”.

E assim se passaram alguns dias, todos ocupados antes e depois do trabalho da jovem por idas à rua do hospital única e exclusivamente para compreender o fluxo de entrada e saída de pacientes do local. A ideia, segundo nossa interlocutora, era simplesmente descobrir o horário adequado para procurar a unidade de atendimento após o aborto a ser feito em casa, tendo sido assim decidido pela parte da noite, após as 22 horas, como já era de se esperar. No dia seguinte ao aborto provocado em casa (aproveitando uma ida providencial de sua mãe a uma cidade próxima para visitar o outro filho) e contando com todo o material apontado como necessário para a jovem através de pesquisas pela internet (a saber, fraldas, aplicadores intravaginais, analgésicos e a medicação indicada pelo vendedor para o pós-abortamento) o hospital foi procurado.

Na recepção “calma” e “fria”, Glória observa que a espera por atendimento durou pouco, tal qual previsto. Porém, a reação da jovem médica residente que lhe atendeu - ao contrário da recepção obtida por Maria Flor - não foi das mais favoráveis: assim que ouviu sobre o uso de misoprostol, não hesitou em disparar à paciente frases assertivas como “aborto é crime, nós não fazemos aborto, por isso temos que ver se foi completo” e lhe dizendo coisas como “tudo que este hospital puder fazer para salvar a sua gravidez, nós vamos fazer”. Além do mais, para completar o quadro de pressão psicológica, disse-lhe, também, que os procedimentos de limpeza só seriam feitos com a apresentação de um laudo comprovando, através de ultrassom intravaginal, o abortamento completo, como relata Glória:

Cheguei ao hospital bem arrumada, com uma cara de quem estava bem, muito embora eu estivesse sentindo cólicas horríveis por conta do Cytotec. Quando a médica me atendeu, vi que era uma residente, e levei um safanão dela que me falou um monte de coisas, assim, como se eu fosse uma ‘sem vergonha que faz aborto e depois vem aqui na maior cara de pau limpar’, sabe como é? Claro que ela não disse isso, mas a cara dela entregava o que estava pensando” (Trecho de entrevista cedida por Glória).

No entanto, a tensão do momento se dissipou com a chegada de uma médica mais experiente, que apenas explicou que o hospital não tinha condições de realizar muitas ultrassonografias por dia, e, assim, recomendou calmamente que a jovem poderia procurar uma clínica particular (indicou uma próxima ao hospital maternidade, apenas duas quadras adiante) e comparecesse o mais rápido possível com o laudo.

...Minha sorte foi o atendimento da outra médica que me disse para fazer o ultrassom fora do hospital para que eu não ficasse exposta a pessoas que circulam pelo local, já que iria demorar bastante. E acho que isso foi sugerido justamente pela minha situação de estar bem arrumada (ou seja, mostrava que tinha dinheiro para fazer particular) e de não estar mal fisicamente, aparentando estar bem. Daí, depois que consegui o tal ultrassom, procurei novamente o local, fui internada e esperei por horas e horas, até que passei por uma AMIU e saí de lá andando no mesmo dia” (Trecho de entrevista cedida por Glória).

O curioso na situação ocorrida com as médicas, entretanto, não foi apenas a diferença temperamental frente ao caso de aborto provocado, mas, sim, as recomendações dadas pela mais velha em detrimento da mais jovem, que pareceu não se importar muito com a integridade emocional da paciente ao desferir as frases aqui já mencionadas. Nesse aspecto, tal atitude da médica residente nos remete a pensar sobre os casos de violência de gênero em âmbito hospitalar21 - seja para realizar um parto, seja para realizar uma curetagem, dentre outros procedimentos que envolvem a saúde das mulheres - como uma das variações sobre violência institucional em saúde reprodutiva.22

O fato é que as recomendações feitas pela médica mais experiente à Glória incluíam o conselho de realizar o ultrassom na clínica particular para que, segundo ela, a paciente não ficasse no hospital aguardando por várias horas, sendo, desta forma, vista pelos muitos estudantes de medicina que passam diariamente pelo local, além de todos os tipos de funcionários dali. Glória também acredita que a médica sugeriu para que ela realizasse o ultrassom numa clínica particular, justamente por ter percebido que nossa interlocutora teria condições de fazê-lo, diferentemente de outras mulheres que necessitam do exame, contudo, não possuem condições financeiras para tanto. O “estar bem arrumada” também nos sugere que Glória não gostaria de ser humilhada por quaisquer razões em seu atendimento, ao que parece ter surtido efeito por um lado (o conselho da médica para fazer o ultrassom numa clínica particular e não ficar exposta aos olhares de terceiros na maternidade), mas não por outro, no que diz respeito aos comentários da médica residente (“aborto é crime, nós não fazemos aborto aqui”).

Além disto, embora tenha aguardado por mais de seis horas para a realização do procedimento, Glória não precisou ficar hospitalizada. Observa que recebeu o traje hospitalar assim que compareceu ao hospital no outro dia de manhã de posse do laudo solicitado, pegou seus pertences e foi levada em uma cadeira de rodas a uma ala, onde ficou aguardando perto de outras pacientes em situações diversas. Nesse quarto havia outras cinco mulheres, além de suas acompanhantes que se revezavam no local em virtude do pouco espaço disponível. Segundo Glória,.

...fiquei ali encolhida em um canto do quarto, ouvindo conversas de todos os tipos, choros de bebês e diálogos tensos entre as técnicas de enfermagem que circulavam pelo local... esperei apreensiva por questionamentos de profissionais de saúde sobre o meu quadro. Mas, no tempo em que estive ali respondi apenas uma pergunta de um médico que apareceu procurando saber quantas pacientes para curetagens e AMIU havia naquele quarto, no que eu fui apontada por uma técnica de enfermagem presente. Sabendo que o procedimento era menos agressivo que a curetagem, dali em diante apenas aguardei, procurando não dar muita atenção às conversas das pacientes em volta, que envolviam muitos abortos supostamente espontâneos, além de assuntos desagradáveis sobre a provável dor do procedimento” (Trecho de entrevista cedida por Glória).

Assim, realizado o procedimento, Glória foi novamente encaminhada ao quarto, e tal qual foi informada pela técnica de enfermagem que executou o procedimento de aspiração uterina, estava “de alta”, mas deveria sair somente quando estivesse se sentindo bem e sem tontura, o que aconteceu rapidamente. Relata que tomou o ônibus em companhia do amigo, sentindo, segundo palavras de nossa interlocutora, “uma profunda sensação de alegria e alívio”. Nesse caso, vale um paralelo com os dados observados por Motta, Tornquist, Denise MIGUEL e Gláucia de Oliveira ASSIS (2010) em pesquisa sobre aborto e contracepção em grupos populares urbanos onde são expostas diversas variações de posicionamento das mulheres em relação à própria experiência de interrupção de gestação. Sobre isso, no caso de nossa interlocutora, nota-se que a experiência abortiva não carrega em si traços de autoculpabilização. Para Glória, o fato de ter feito um aborto não trouxe “culpa”, sendo posta em sua narrativa como a “solução” de um problema que a afligia “por noites a fio”. Deste modo, nota-se que, muito embora a condenação social à prática seja forte, a forma pela qual Glória se refere à própria experiência de aborto não remete à autorreprovação ou, mesmo, medo de julgamentos ao afirmar que não se arrepende e que “sabe que fez o que tinha que ser feito naquele momento”. Assim, a reflexão sobre a posição das mulheres em relação às suas percepções acerca de terem feito um aborto ganha mais uma nuance, não obstante o fato latente de esta experiência ser dotada de muitos aspectos a serem considerados, como já foi exposto neste texto nos dois casos dissertados.

Conclusões

Percebe-se claramente que o itinerário abortivo de Glória se inicia com significativas diferenças em comparação ao itinerário percorrido por Maria Flor. Glória, ao descobrir sua gravidez, planejou o aborto e conseguiu o Cytotec® rapidamente, indo aos contatos certos. Planejou todos os detalhes antes de dar entrada no hospital, trazendo, inclusive, um dado novo para a pesquisa: junto ao seu amigo, passaram a fazer incursões ao hospital para analisar o horário de menos movimento, tentando descobrir o momento adequado para dar entrada na instituição - calhando ser após as dez da noite. Outro dado interessante relatado por Glória é a exigência do ultrassom para verificação da ocorrência ou não do abortamento, o qual passa a configurar como um elemento instigante ao fazer parte, junto ao Cytotec® (quando não de outros medicamentos), desses itinerários abortivos.

Já, no caso de Maria Flor, as dificuldades são perceptivelmente maiores, o que demonstra o quão problemática é a experiência do aborto clandestino para as mulheres que não dispõem de condições econômicas confortáveis. No episódio de nossa interlocutora, observa-se, ainda, no percurso feito até que a interrupção da gestação fosse finalmente realizada, muitos transtornos e mal-estares relacionados a tentativas frustradas de outras substâncias além do misoprostol, levando a sérios riscos à sua integridade física e a experiências com um nível de dramaticidade acentuado em suas narrativas, registradas pelas pesquisadoras nas entrevistas.

Fazendo uma junção dos dados obtidos nesta pesquisa e uma análise sobre os mesmos, nota-se que, na cidade onde o trabalho de campo foi realizado, as etapas para a obtenção de medicamentos com ação abortiva recaem sobre caminhos comuns: a procura por agentes específicos, com itinerários condicionados ao conhecimento de pessoas que possam chegar ao produto desejado através de maneiras simplificadas ou não pela familiaridade do sujeito que vende com o que procura comprá-los, sendo os recursos financeiros outro problema, uma vez que, em nenhum dos casos relatados, a medicação foi obtida por menos de cento e cinquenta reais.

Outro dado absolutamente recorrente no caso das mulheres com as quais entramos em contato é o fato de que a combinação da aplicação/ingestão da medicação combinada ao atendimento posterior e em hospitais para a limpeza uterina é a maneira mais conhecida e tida como segura, a ponto de ser assim sugerida repetidamente pelos agentes que vendem o Cytotec®. Entretanto, parece ser de amplo conhecimento que uma providência ainda em ambiente doméstico na fase pós-aborto para expulsão de restos que podem ocasionar problemas é necessária para que não haja riscos, sendo, também, previamente sugerida. Nesse caso, trata-se do uso da medicação Methergin® (indicada tal como informa a bula, para situações de pós-abortamento) e de métodos caseiros envolvendo infusões de ervas, ingestão de substâncias para regulação estomacal entre outras, seguido da procura de atendimento hospitalar, o que, de fato, foi feito pelas mulheres que fizeram aborto e que colaboraram com a nossa pesquisa. Não obstante, em nenhum dos outros relatos ouvido pelas pesquisadoras clínicas foram mencionadas, o que sugere que, na cidade pesquisada, a existência desse tipo de serviço profissionalizado não existe - como em outros campos estudados, a exemplo da pesquisa de Diniz (2012) sobre itinerários abortivos no Rio de Janeiro, sendo obviamente necessário mais tempo de pesquisa para que esta constatação seja feita com maior segurança.

Deste modo, salienta-se o fato de que, dentre as mulheres com as quais tivemos contato - além de Glória e de Maria Flor -, há uma variedade de escolaridade e situação econômica que se estende desde classes populares a camadas médias e altas. Desse modo, pode-se concluir com alguma segurança que, de fato, o aborto feito em casa via medicação misoprostol combinada com posterior atendimento hospitalar parece ser o meio mais utilizado na cidade onde a pesquisa se deu. Contudo, tal fato certamente não extingue a possibilidade de que outras formas sejam descobertas, sobretudo em áreas do campo que ainda não foram exploradas - por se tratar de uma capital, existem zonas que ainda não foram contempladas com um trabalho de campo, o que exigiria uma nova pesquisa.

Outro dado importante a ser destacado neste trabalho é a participação e presença dos homens nos episódios de aborto - seja na tomada da decisão pela interrupção de gravidez, ou como agentes de mediação (ao comprarem e venderem) no processo. Nesse caso, deve-se observar também, nos relatos das duas mulheres citadas neste texto, que namorados, amigos e conhecidos - “até amigos de amigos, o que aparecesse e pudesse ajudar”, como dito por Maria Flor com angústia ao relembrar quantas pessoas ao todo se envolveram no processo de obtenção do misoprostol - foram personagens constantes nos episódios narrados. Tais fatos trazem à tona que as tentativas de interrupção de uma gestação indesejada podem ser, a depender do caso, vivenciadas por mais pessoas do que comumente se desejaria por parte da mulher, a “sujeita” central do drama. Sobre isso, mais uma vez a questão recai sobre as condições financeiras e o lugar social ocupado: se Glória teve sua experiência com riscos muito menores de “quebra” de seu anonimato por ter um poder maior de manejo de riscos (condições imediatas de adquirir medicação e demais artefatos necessários e contatos corretos), Maria Flor teve sua experiência exposta a níveis muito mais comprometedores, a começar pelo envolvimento de um número maior de pessoas que não eram, necessariamente, “próximas” à jovem e “ficavam sabendo da situação” (a exemplo do próprio ex-namorado, que, no final das contas, conseguiu a medicação e emprestou o dinheiro), tal qual relatado pela própria.

Sobre o atendimento hospitalar às mulheres em abortamento, as duas experiências mostradas neste texto denotam paradoxos de percepção sobre a prática da interrupção de gestação com um claro recorte geracional: em um caso, uma profissional de saúde residente (na casa dos vinte anos, como descrita por Glória) colocou percalços à paciente com claras afirmações de teor moral sobre a situação que estava a atender. Já o outro o atendimento foi dado de maneira a contornar o estigma em torno da paciente e em tons de “redução de danos”, denotando a frequência com que os casos de aborto provocado chegam ao pronto atendimento da instituição hospitalar buscada para os procedimentos de limpeza uterina pós-aborto.

Ainda nesse contexto, é interessante observar que a procura pelas redes sociais foi constantemente citada nos discursos de nossas interlocutoras. A internet, como forma de acesso e apropriação dos conteúdos de saúde disponíveis nessas redes, sugere respostas rápidas para possíveis “sofrimentos” e “aflições”. No caso específico, o “Dr. Google” - chamado assim por Glória - pareceu conferir “agência” e “empoderamento” às mulheres, pois tal ferramenta acabou, amiúde, por fornecer algumas respostas - confiáveis ou não -, constituindo-se como parte integrante dos itinerários abortivos percorridos por essas sujeitas.

Por fim, o intento deste texto foi destacar detalhes sobre as angústias do drama do aborto clandestino, inserindo-os no bojo dos estudos sobre o tema, uma vez que sua importância consiste justamente no auxílio que fatos narrados, personagens citados e dramas relatados podem nos prover na tentativa de construir uma reflexão que problematize a situação de única “sujeita” na situação do aborto, tal qual aparece no imaginário popular e no senso comum. Assim, fazendo com que os outros agentes envolvidos no drama sejam visibilizados, pode-se ampliar os olhares sobre o problema de modo a tirar a mulher da posição estigmatizada em que frequentemente se encontra quando o tema do aborto entra em pauta nas mais diversas esferas sociais.

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1Sujeitas aqui compreendidas cf. Fernanda CARDOZO (2007).

2Ver Silvia Maria Fávero AREND; Gláucia de Oliveira ASSIS e Flávia de Mattos MOTTA (2012); Diniz e Medeiros (2012); Maria Luiza HEILBORN et al. (2012).

3Marilyn STRATHERN (1988) observa que a noção de agencialidade vai além do binômio resistência versus subordinação, termos que, segundo a antropóloga, não podem ser confundidos. Identificamos nossas sujeitas a partir desse conceito de agencialidade, compreendendo suas escolhas como livres e autônomas.

4Conforme Victor TURNER (1974), que concebe os eventos conflitivos – no caso, aqui representados pelos itinerários abortivos pelos quais passam as mulheres – enquanto “dramas sociais”.

5O termo “aborto” refere-se mais precisamente ao produto da concepção eliminado da cavidade uterina ou abortado, enquanto o termo “abortamento”, mais aceito pelos médicos, diz respeito ao processo que ameaça a gravidez e pode culminar ou não na perda gestacional (concepto pesando menos que 500 gramas – OMS, http://www.anvisa.gov.br/auxilio/sites/inter.htm).

6Itinerário terapêutico se caracteriza por ser o percurso de uma pessoa em busca de alívio e cura de suas aflições. Inicia-se com o diagnóstico da enfermidade, seguido pela procura de solução que se realiza em várias etapas. Nessa trajetória, participam vários sujeitos – parentes, amigos, conhecidos, vizinhos, especialistas diversos – os quais oferecem diferentes interpretações, possibilidades e/ou soluções de cura para o sofrimento (Esther Jean LANGDON, 1994).

7Interessante observar a análise das redes sociais no acesso aos cuidados da saúde, conforme destacam Silvia PORTUGAL e Paulo Henrique MARTINS (2011). Ambos observam o antagonismo entre a força das relações informais e as fragilidades da relação formal entre estado e cidadãos. Segundo Margareth ARILHA (2012), pode-se pensar, a partir da análise dos autores, nos esforços que as mulheres estão fazendo para conseguir alcançar seus objetivos na arena dos direitos reprodutivos.

8Este artigo integra o projeto de pesquisa “Práticas e representações de Profissionais de Saúde relativas ao aborto legal e suas relações com mulheres usuárias do SUS em hospitais/maternidades no Rio Grande do Norte” – Edital MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA n.º 32/2012.

9Aprovado sob CAAE n.º 36085913.4.0000.5537.

10Preferimos mencioná-las neste texto através de nomes fictícios para a preservação de suas integridades seguindo os apontamentos de Claudia FONSECA (2010), que nos alerta sobre o dilema envolvendo o uso ou não do anonimato no texto etnográfico.

11Expressões êmicas serão indicadas em itálico e aspas.

12Violeta também é nossa interlocutora de pesquisa, e nos relatou alguns casos de compra de Cytotec®, inclusive pontuando que o ex-marido já foi motoboy de farmácia e, frequentemente, vendia pílulas do medicamento clandestinamente.

13Como dito anteriormente, nomes, endereços, números e, mesmo, alguns locais estão aqui expostos de maneira fictícia para preservar as identidades dessas pessoas.

14“Rondas” é o nome dado às já habituais coberturas policiais feitas de maneira paralela para comerciantes e proprietários de imóveis em locais comerciais da cidade.

15Coito interrompido é um método de contracepção no qual, durante a relação sexual, o pênis é removido da vagina logo antes da ejaculação, impedindo a deposição de sêmen no interior da vagina.

16Vale salientar que o rapaz já tinha uma filha pequena de uma ex-namorada, cuja pensão era paga pela mãe.

17Neste sentido, ver Fernanda Pivato TUSSI (2010); Soraya Resende FLEISCHER (2012).

18O que demonstra preconceito de classe, pois, no imaginário das pessoas, só quem aborta são mulheres pobres, negras e prostitutas. Ver Diniz e Medeiros (2012).

19 Sobre o tema, ver Cassia Helena DANTAS SOUSA e Rozeli Porto (2013).

20 Sigla para Aspiração Manual Intrauterina, procedimento de sucção de resíduos do colo uterino através de um tubo de coleta introduzido no canal vaginal, que vem substituindo a tradicional curetagem. Por ser menos agressivo à cavidade do útero e por não necessitar de anestesia, é recomendado largamente em casos de abortos em tempo inferior a 12 semanas.

22Para Sonia HOTIMSKY (2014), a reprodução relativa aos maus-tratos, à negligência e ao preconceito por parte dos residentes no primeiro ano dos programas de residência e dos diferentes profissionais não se justifica pelo que consideram uma afronta à autoridade médica diante da agência empreendida pelas mulheres ao interromperem uma gravidez não desejada. Noutras palavras, seus atos e ações se traduzem, muitas vezes, no que Hotimsky (2014) chama de violência institucional, por estes mesmos profissionais não admitirem que as mulheres acabem por assumir o controle em relação aos seus próprios corpos.

Recebido: 23 de Fevereiro de 2015; Revisado: 25 de Maio de 2016; Aceito: 23 de Junho de 2016

rozeliporto@gmail.com

cassiamaiden@hotmail.com

Rozeli Maria Porto (rozeliporto@gmail.com) é doutora em Antropologia Social pela UFSC. Possui graduação em Ciências Sociais e mestrado em Antropologia Social pela mesma universidade. Professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da UFRN. Faz parte do Grupo Gênero, Corpo e Sexualidades (GCS) do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS) e do Grupo de Estudos sobre Aborto (GEA). Realiza pesquisas sobre Antropologia do corpo e da saúde, relações de gênero, violências, saúde e direitos reprodutivos, religiões/religiosidades e sexualidades

Cassia Helena Dantas Sousa (cassiamaiden@hotmail.com) é mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGAS/UFRN). Possui graduação em Ciências Sociais pela mesma instituição. Tem interesse na área de Antropologia do corpo e da saúde, estudos de gênero, direitos reprodutivos e contracepção. Estudante membro do Grupo de Pesquisa Gênero, Corpo e Sexualidade (UFRN)

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