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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.28 no.1 Florianópolis  2020  Epub 01-Ene-2020

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n156007 

Artigos

Imigração e resistência

Immigration and Resistance

1Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil. 97105-900 - ppgletras@ufsm.br


Resumo:

Neste artigo pretende-se analisar a representação de personagens femininas no contexto da literatura de imigração de expressão alemã. Com foco na resistência, o artigo discute a intersecção de gênero e imigração no conto “Schatten und Schritte”, de Aysel Özakin, e no romance Der Russeisteiner, der Birkenliebt, de Olga Grjasnowa. O primeiro texto, publicado em 1985, apresenta uma voz da primeira fase da história de fluxos migratórios para a Alemanha; o segundo, de 2012, apresenta uma discussão sobre percepções femininas e práticas de resistência depois da virada do milênio. Resistência é entendida aqui como processo que consiste em reconhecer, nomear e refrear ações que produzem desigualdades. O primeiro texto conecta a resistência com uma sensação de culpa; o segundo foca, sobretudo, na autonomia obtida por meio de atos de resistência.

Palavras-chave: Resistência; Schatten und Schritte; Aysel Özakin; Der Russe ist einer, der Birken liebt; Olga Grjasnowa

Abstract:

This article aims to analyse the representation of female characters in the context of German language immigration literature. With focus on resistance, this article discusses the intersection of gender and immigration in the short story “Schatten und Schritte” written by Aysel Özakin and the novel All Russians Love Birch Trees by Olga Grjasnowa. The first text, published in 1985, presents a voice of the first wave of the history of migratory flows to Germany, the second one, published in 2012, develops a discussion about female perceptions and resistance practices after the turn of the millennium. Resistance is understood in this context as a process of recognizing, naming and repressing acts which produce inequalities. The first text connects resistance to a feeling of guilt, the second focusses, above all, on the autonomy obtained through acts of resistance.

Keywords: Resistance; Schatten und Schritte; Aysel Özakin; Der Russe ist einer, der Birken liebt; Olga Grjasnowa

Introdução

O cânone nacional da literatura de expressão alemã conta com importantes vozes da escrita feminina, dentre elas escritoras como Ingeborg Bachmann, Christa Wolf ou Elfriede Jelinek. Embora o projeto político e a estética de cada uma delas se diferenciem substancialmente, todas elas têm um objetivo em comum: refletir sobre a voz da mulher e sua representação no espaço sociocultural. Assim, Christa Wolf revisa os mitos da Antiguidade, inserindo a perspectiva da mulher. Ingeborg Bachmann procura, em sua poesia, uma forma de dizer a experiência feminina, a partir da instauração de uma palavra primordial. Elfriede Jelinek, por fim, pensa sobre o processo de coisificação da existência feminina. O exemplo das três escritoras ilustra uma história de vozes que conseguiram se impor e se estabelecer na máquina discursiva.

Trata-se de vozes da segunda metade do século XX e de intelectuais que, de alguma forma, se envolveram nos movimentos de resistência, pautando sua escrita com base na agenda política da experiência feminina. Como em muitas outras literaturas nacionais, a presença da voz feminina no contexto da historiografia literária, no período muito maior que precede a segunda metade do século XX, é escassa, precisando ser recuperada por meio de estudos literários, cujo objetivo é refletir sobre a representação da mulher no campo literário. Esse esforço recuperou textos importantes com os de Catharina Regina von Greiffenberg, Annette von Droste-Hülshoff ou Marie von Ebner-Eschenbach, num processo de revisão cuja finalidade, entre muitos outros pontos, reside em rever o cânone nacional e reescrever a história da literatura, neste caso, de expressão alemã.

Se a literatura de expressão feminina já precisa empreender um grande esforço, a fim de garantir sua representação e sua voz própria, esse processo se complica ainda mais quando se trata da escrita feminina de autoras imigrantes, as quais se encontram duplamente marginalizadas no campo literário. Dentre os muitos imigrantes que chegaram a partir da década de 60 aos países de língua alemã, encontravam-se muitas mulheres. Oriundas dos mais diversos contextos culturais, essas mulheres trouxeram em suas bagagens não somente as esperanças da construção de uma existência mais digna e feliz, mas também uma herança sociocultural que, muitas vezes, ajudava a definir o grau de sucesso no novo espaço social. Assim, o grau de instrução, a cor da pele, a crença ou também o estágio no processo de reflexão sobre a condição feminina contribuíram substancialmente para o estabelecimento dessas mulheres ou no marco da submissão ou no princípio do questionamento e da afirmação de autonomia.

Essas diversas interseções também têm um papel fundamental para a ideia de nação e cidadania que caracteriza esse espaço geográfico, no qual essas novas vozes vão se inserir e tentar encontrar um lugar de fala. Em sua análise comparativa sobre a gênese dos conceitos de nação e cidadania na França e na Alemanha, Rogers Brubaker (1994) escreve:

Se o entendimento francês de nação (nationhood) foi centrado no estado e assimilacionista, o entendimento alemão foi centrado no Volk e diferencialista. Desde que o sentimento nacional se desenvolveu antes do estado nacional, a ideia alemã de nação não era originalmente política, nem estava ligada à ideia abstrata de cidadania. Essa nação alemã pré-política, essa nação à procura de um estado, não foi concebida como portadora de valores políticos, mas sim como uma comunidade orgânica, cultural, linguística ou racial - como uma irredutivelmente particular Volksgemeinschaft (p. 1).1

Nesse entendimento da nação pautado pelo imperativo étnico, o não pertencimento ao grupo majoritário intensifica ainda mais a dificuldade de engendrar uma voz própria que articule problemas e desafios daquele espaço geográfico. Nesse sentido, junta-se à voz especificamente feminina também um movimento implícito de revisão da ideia de nação, o qual tenta imaginá-la não a partir de um passado étnico comum, mas sim a partir de um futuro centrado num projeto caracterizado pela igualdade de direitos e pelo acolhimento da diversidade. Esse outro projeto de nação, contudo, não implica a subordinação ao “conjunto de medidas com o fim explícito de disciplinar as preferências culturais dos imigrantes, fortalecendo a identificação desses com a ‘cultura alemã’ e os supostos ‘valores políticos nacionais’” (Sérgio COSTA, 2008, p. 114), como previsto pelo grupo majoritário. O projeto de nação que essas novas vozes articulam contém um movimento de inovação da cultura alemã e de reposicionamento dos atores sociais que compõem esse espaço geográfico. Nesse sentido, a literatura ficcional que surge no contexto de fluxos migratórios faz parte de esforço maior de revisão do imaginário nacional.

Embora esse campo literário já conte com nomes de escritoras renomadas que se impuseram tanto nacional como internacionalmente, como é o caso de Emine Sevgi Özdamar (detentora do Prêmio Ingeborg Bachmann, de 1991, e do Prêmio Kleist, de 2004) ou o caso de Herta Müller (Prêmio Kleist, de 1994, e o Prêmio Nobel de Literatura de 2009), ele enfrenta dificuldades ainda mais amplas no processo de estabelecimento de uma voz, por conta da língua - que para muitas dessas escritoras é estrangeira e precisa ser dominada - da máquina de publicação e distribuição, mas também do processo de recepção, incluindo aqui sua discussão no contexto científico dos Estudos Literários. Apesar dos prêmios concedidos a mulheres com uma história de imigração, seu lugar no cânone nacional ainda precisa ser conquistado. Talvez seja possível afirmar que, para a escrita feminina de imigração na literatura alemã, a discussão ainda não chegou ao problema da revisão do cânone nacional, permanecendo ainda na dificuldade de estabelecer uma voz nessa nova configuração discursiva.

Com efeito, o estabelecimento da voz própria passa por dois eixos: o primeiro dentro da esfera diegética, na qual personagens femininas negociam sua posição e sua representação na produção de sentidos; o segundo eixo se refere à esfera extraficcional das autoras que precisam dominar as regras discursivas, a fim de garantir que sua voz seja decodificada e recebida no contexto da produção literária. Nos dois eixos, as vozes femininas estão marcadas por interseções que, de certo modo, vão definir o grau de solidariedade com o qual suas reflexões vão impactar sobre as concepções que marcam o processo de apropriação de realidade.

Em analogia ao texto fundador da teoria interseccional escrito por Kimberlé Crenshaw (1989), que introduziu o termo-chave da interseccionalidade para discutir a “marginalização de mulheres negras não somente no contexto de leis antidiscriminatórias, mas também na teoria e na política feministas e antirracistas” (Devon CARBADO et al., 2013, p. 303), pode-se afirmar que a situação da mulher branca alemã não é a mesma da mulher imigrante no contexto nacional alemão. A marginalização e a prática discursiva que configuram a situação da mulher imigrante acabam sendo outra, por conta da intersecção de diferentes práticas de desigualdade. Assim, Stephanie Shields (2008) escreve:

A perspectiva da interseccionalidade, além disso, revela que as identidades sociais do indivíduo influenciam profundamente nossas crenças sobre e a experiência de gênero. Como resultado, pesquisadoras(es) feministas chegaram à conclusão de que o lugar social do indivíduo como refletido nas identidades que se interseccionam deve estar no centro de qualquer investigação de gênero. Em particular, gênero deve ser entendido no contexto de relações de poder inseridas em identidades sociais (p. 301).2

As identidades sociais que geralmente se discutem neste contexto são a “tríade da opressão”, isto é, raça, classe e gênero, mas também incluem religião, sexualidade, idade, nacionalidade, status de imigração, grau de habilidade física ou localização geográfica no eixo centro-interior (Nira YUVAL-DAVIS, 2006, p. 195). Cada uma dessas identidades sociais representa uma formatação discursiva pautada pelo princípio da desigualdade e da discriminação, silenciando os indivíduos cuja narrativa pessoal está ligada a um desses eixos.

Ao mesmo tempo que cada eixo por si só representa uma forma de enfatizar a diferença para legitimar uma relação de poder, essa situação fica mais complexa na mescla dessas diferentes categorias que definem o indivíduo e prescrevem, até certo ponto, o modo como cada ator social pode participar do processo de tomada de decisões e se ver representado nos discursos que regem a vida em sociedade. Assim, uma mulher imigrante negra tem outros desafios que uma mulher imigrante muçulmana. Se alguma delas trouxer de seu país de origem um pertencimento a uma classe social sem muita instrução ou viver uma sexualidade fora dos padrões da heteronormatividade, as dificuldades de inserção no novo contexto social vão aumentar e suas chances de articular sua própria voz diminuir proporcionalmente, dependendo dos discursos que predominam no contexto em que circula.

Isto é, além das intersecções do país de origem também as intersecções dos membros do grupo dominante com os quais circulam no país de destino vão impactar sobre a formação da voz. Assim, há diferenças entre nativos pertencentes a grupos hegemônicos e nativos que também pertencem a esferas de exclusão. A interação com essas diferentes configurações de identidades sociais vão definir o grau de solidariedade; por vezes, também, o grau de esclarecimento sobre as diversas culturas dos imigrantes. A necessidade de identificação do lugar da fala social, a qual Shields menciona, portanto, vale tanto para nativos como para imigrantes, pois as diferentes coordenadas podem definir o modo de interação.

Isso vale para o grupo hegemônico, mas é necessário lembrar especialmente para o grupo minoritário de imigrantes que não é possível falar de uma categoria homogênea, como nos alertam Sylvia Walby et al. (2012, p. 231). Isto é, não é possível falar da mulher como uma essência imutável, igual para todos os membros do sexo feminino, tampouco é adequado imaginar os diferentes eixos como um bloco sem diferenças como se não fosse um grupo extremamente heterogêneo. Da mesma forma que cada mulher traz suas identidades sociais específicas e sua história de socialização pessoal, o grupo dos imigrantes apresenta um “conjunto de relações sociais desiguais” (WALBY et al., 2012, p. 231), com peculiaridades e uma grande diversidade de experiências de exclusão. Mulheres imigrantes do Leste europeu apresentam outras dificuldades que mulheres imigrantes de países com uma tradição muçulmana. O mesmo vale para mulheres negras com um alto nível de instrução se comparadas a mulheres brancas com um grau menor de habilidade física.

O que as une, além da identidade social feminina, é, por vezes, a experiência de desigualdade e exclusão, com sua lógica binária de construção de limites e hierarquias (Floya ANTHIAS, 2013, p. 7), mas também o princípio da resistência às diversas tentativas de negação ao direito de participação no processo de tomada de decisão. Com isso, um dos objetivos da crítica voltada às questões femininas é a identificação de mecanismos de produção de “invisibilidade e silenciamento” e a análise das diversas concretizações de resistência (Karlene FAITH, 1995 p. 39), uma vez que esse conhecimento pode desconstruir práticas de desigualdade. Faith (1995) escreve:

Isto é, resistência enfraquece processos de vitimização e produz empoderamento pessoal e político, nomeando violações e recusando a colaboração com opressores. Resistência feminista, em particular, começa com o corpo rejeitando ser subordinado, um afastamento instintivo das forças patriarcais, às quais muitas vezes está violentamente sujeitado (p. 39).3

Um elemento importante nessa passagem é a indicação do papel do corpo no processo que concretiza a resistência, a qual não se limita à militância política pela aprovação de direitos que garantam a igualdade. A identificação das práticas de opressão e a posterior negação de se sujeitar às expectativas inerentes à visão de mundo que produz a desigualdade podem conduzir à construção de interações sociais que consigam ver as necessidades dos outros e contribuir para uma distribuição equilibrada de chances. Especialmente no microcosmo familiar, o corpo desobediente pode ter um impacto substancial na negociação de novas relações de poder.

Nesse sentido, o objetivo deste artigo reside em discutir práticas de resistência do corpo em relações pessoais, representadas em dois textos escritos por mulheres imigrantes que se estabeleceram na Alemanha. O primeiro texto é um conto da escritora de origem turca, Aysel Özakin, intitulado “Schatten und Schritte” (‘Sombras e passos’), da coletânea Das Lächeln des Bewußtseins (‘O sorriso da consciência’). A coletânea foi escrita em turco e publicada em 1985 na tradução alemã. O segundo texto é um romance escrito por Olga Grjasnowa, do Azerbaijão, com o título de Der Russe ist einer, der Birken liebt (‘O russo é alguém que ama bétulas’), de 2012, escrito e publicado em língua alemã.

O primeiro texto representa um documento literário da primeira geração de imigrantes que chegaram no pós-guerra; o segundo é fruto de uma constelação de imigração completamente diferente, pois a família de Grjasnowa foge dos conflitos bélicos em seu país e consegue a autorização de permanência na Alemanha por conta de sua afiliação judaica. Em ambos os textos, as protagonistas são mulheres imigrantes que negociam práticas de poder e culturas de interação em seus relacionamentos pessoais. Nos dois casos, há tentativas de resistência e de reconfiguração dos sentidos que norteiam as ações no espaço diegético. Nisso, transparece que as dificuldades são diversas e as formas de administrar o desconforto da resistência também.

1 Resistência e culpa

Aysel Özakin deixou a Turquia em 1980, após o golpe militar, indo para Berlin, onde participou de um colóquio literário. Ao contrário de muitos de seus conterrâneos que também emigraram para a Alemanha, muitas vezes, de uma classe social com pouca instrução, Özakin concluiu estudos superiores na Turquia e trabalhou numa universidade turca antes de emigrar. A história dos “trabalhadores convidados” (Gastarbeiter), portanto, de muitos de seus compatriotas, não corresponde à sua trajetória biográfica, embora Özakin tematize a situação deles no novo país em muitos textos ficcionais. Com efeito, Özakin pertence a uma classe social mais abastada e instruída, consciente dos embates e das representações de gênero, colocando-a numa intersecção diferente daquela, por meio da qual o grupo hegemônico percebe a minoria turca na Alemanha.

Quando Özakin chega na Alemanha, o país já tem uma história de intensificação de fluxos migratórios de mais de duas décadas. Com o crescimento da economia no pós-guerra, o mercado de trabalho alemão passa por um período de escassez de mão de obra, o que, a partir de 1955, leva a Alemanha Ocidental a assinar diversos acordos com países como a Itália, Espanha, Grécia, Turquia, Marrocos, Portugal, Tunísia e Iugoslávia, a fim de atrair trabalhadores temporários e suprir a demanda. Nessas mais de duas décadas que precedem a chegada da autora, estabeleceu-se uma prática discursiva e um modo de percepção desses grupos minoritários.

Em seu artigo da década de oitenta, Dietrich Thränhardt (1984, p. 115) retraça a trajetória de classificação utilizada para nomear esses novos estrangeiros. O autor indica que termo predominantemente utilizado na década de cinquenta foi “Fremdarbeiter” (trabalhadores de fora), abandonado rapidamente por suas conotações fascistas. Na década de sessenta, passou-se a falar de “Gastarbeiter” (literalmente, trabalhador-hóspede), provavelmente o termo que mais profundamente se arraigou na percepção majoritária, mas que não tardou em ser problematizado por juntar dois termos que se excluem. Em seu lugar, estabeleceram-se, na década de setenta, os termos “ausländische Arbeitnehmer” (trabalhadores estrangeiros) e, mais tarde, “ausländische Mitbürger” (concidadãos estrangeiros). Nessa evolução da prática de classificação predomina o valor atribuído à construção de sólidos muros de pertencimento. Para Dietrich Thränhardt (1984), “provavelmente em nenhum outro lugar haja uma história terminológica tão densa de exclusão” (p. 116).4

Essas linhas divisórias despontam no horizonte ficcional do conto, embora a realidade diegética não esteja ambientada especificamente na realidade extraficcional dos “trabalhadores convidados”. A protagonista do conto, de certo modo, se apropria do mundo a partir da intersecção que marca a identidade social da autora. Trata-se de uma mulher imigrante oriunda de uma classe social instruída. Após o divórcio do marido Parvis (o texto não especifica a nacionalidade), Talya deixa o país e se assenta num país de língua alemã, onde casa com outro homem, Uwe. No presente diegético, a voz narrativa heterodiegética narra a dificuldade da protagonista frente à visita do filho Simos, do primeiro casamento, e que vai visitar a mãe no outro país. O princípio de resistência se desenrola em dois níveis: em relação aos modos de comunicação dos dois maridos, com suas peculiaridades culturais, e em relação às expectativas do filho, cuja socialização prevê determinados modelos de comportamento. De certo modo, os três personagens masculinos a confrontam com visões de mundo que preveem não somente determinados modos de comportamento, mas também formas de administração do corpo. A protagonista identifica essas expectativas e acaba oferecendo resistência.

Nessas diferentes negociações, contudo, especialmente naquelas que dizem respeito ao filho, a protagonista se vê confrontada com uma sensação de culpa. Por um lado, sua consciência de mulher a impele a resistir e criar um espaço de vida em consonância com suas necessidades pessoais. Por outro lado, a separação do filho a coloca numa situação de desestabilização emocional que dificulta, por momentos, o processo de resistência. Nisso, o papel materno se sobrepõe, parece, ao papel de mulher, exigindo dela a administração simultânea de duas formas diversas de encenação do corpo e de identidade social. O processo de negociação procura um equilíbrio entre essas duas exigências, de modo a diminuir a sensação de culpa relacionada às expectativas do papel materno, sem renunciar ao projeto pessoal de identidade social.

De noitinha, depois de horas, nas quais eles de tempo em tempo brincaram um pouco, fizeram pequenas confissões ou ficaram calados, Talya pela primeira vez tentou explicar os motivos de sua fuga para Simos. Ela lhe contou como era penoso o constante trabalho de casa, como era cansativa a atenção aos convidados que nunca faltavam e como era insuportável a sensação de que cada um de seus atos como mulher era controlado minuciosamente (ÖZAKIN, 1992, p. 122).5

O conto, na verdade, começa com a indicação da incerteza experimentada pela protagonista, ao sentir medo de não reconhecer o filho no aeroporto. A aproximação ao filho após anos de separação é paulatina e marcada por receios. Na passagem citada, Simos já está há alguns dias com sua mãe e esta se esforça em criar uma atmosfera de confiança que lhe permita expor ao filho suas razões e seus desejos que orientaram o curso da própria vida.

O passado que ela rememora e que desencadeou a imigração está relacionado a uma identidade social feminina que ela definitivamente rechaça. Esta está atrelada ao cumprimento de trabalhos domésticos, ao desempenho de uma imagem social voltada para submissão aos desejos de convidados e, sobretudo, a um controle de todas suas ações por mecanismos externos. O que os três elementos têm em comum é o disciplinamento do corpo, cujas forças estão voltadas para a satisfação de desejos alheios. Para garantir a renúncia à realização pessoal das necessidades corporais, há um aparato de controle que monitora os passos da protagonista, acompanhando suas ações, de modo a assegurar que não ocorra nenhuma ruptura na prática de submissão.

Ao optar pelo divórcio e pela imigração, a protagonista resiste aos pacotes identitários previstos para ela no contexto de sua socialização, buscando coordenadas que lhe devolvam a autonomia e, sobretudo, o direito de administrar seu corpo de acordo com suas decisões. O que a deixa insegura, no momento de expor essa visão de mundo ao filho, é a insegurança sobre como este enxerga não somente suas decisões pessoais, mas também como ele vê o papel da mulher na sociedade. No curto período em que convivem durante a visita do filho, há indícios que seu posicionamento esteja marcado por uma visão patriarcal:

Mas desde que Simos estava aí ela novamente se sentia como na antiga casa. À noite, quando Simos ouvia Uwe abrir a porta, ele chamava para Talya: “Uwe está chegando!” Como se estivesse mandando Talya: “Vai recebê-lo, cumpre teu dever!” Como se quisesse colocá-la de volta no seu antigo papel. Dependente dentro de casa do fazer e deixar de fazer do marido. Isso Simos esperava de Talya. Como se Simos quisesse fazer agora as provas para o seu futuro. Ele já pensava agora no que o homem podia esperar de uma mulher (ÖZAKIN, 1992, p. 107).6

As memórias do passado de submissão voltam ao presente por meio de sensações corporais. Isto é, o corpo indica um desconforto indesejado, alertando o sujeito a oferecer resistência às tentativas de reinstalar o aparato de disciplinamento. Isso ocorre no momento em que o filho adota formas de comportamento que sugerem um determinado conjunto de expectativas no que concerne ao papel da mulher. Com efeito, o que ele articula é o desejo de que o corpo da mãe volte toda sua atenção para os movimentos da figura masculina que adentra o espaço do círculo familiar, reforçando um pensamento pautado pela construção de hierarquias nas quais o homem assume o posto mais alto e dotado de maior poder.

Importante nesse contexto é o modo como a protagonista reage diante dessas expectativas. Apesar de se encontrar emocionalmente fragilizada por conta de seu desejo de aproximação ao filho, ela consegue - num primeiro passo - nomear o que se esconde por trás das palavras do filho, mostrando uma consciência apurada para as práticas de posicionamento de gêneros. Num segundo passo, ela consegue enxergar no comportamento do filho uma tentativa de exercitar papéis sociais. O que ele está fazendo, na verdade, é verificar se sua visão de mundo encontra apoio externo. Ele atribui funções e expectativas a cada um dos gêneros e testa até que ponto encontra aquiescência ou movimentos de resistência. Ele claramente testa nas coordenadas protegidas da família aquilo que vai procurar praticar no espaço mais complexo de círculos sociais maiores. Ao contrário do que talvez tenha aprendido no contexto de sua socialização cultural junto à família do pai, o espaço definido pela mãe não permite essa interpretação de realidade, pois ela resiste ao princípio de disciplinamento imposto, forçando o filho a rever sua visão de mundo.

Esse mesmo comportamento a protagonista também adota em relação a seus dois parceiros. Também neste contexto, o corpo tem uma função central, pois a partir dele a protagonista estabelece regras de interação. No relacionamento com Parvis, o primeiro marido, a protagonista se vê confrontada com um grau de exigência e imposição, de modo que ela praticamente não tem espaço para atentar ao ritmo do próprio corpo. Nesse cenário, ela não tem um lugar ao qual pudesse se retrair em momentos em que deseja simplesmente se afastar das exigências sociais para permanecer sozinha. A essa ocupação completa de espaço e energia ela oferece resistência por meio da imigração. Para isso, contudo, se vê obrigada a pagar o preço da exclusão do espaço social do vilarejo e do afastamento do filho.

Ao contrário do primeiro marido, Uwe respeita o espaço e o tempo próprios de Talya. Ele, contudo, também cria várias configurações de relacionamentos, às quais a protagonista não tem acesso. Com isso, o parceiro respeita sua autonomia, mas ao mesmo tempo cria espaços que não a incluem, o que produz uma sensação de contingência. Aqui o corpo possivelmente não está disciplinado ou submisso a uma vontade alheia, mas o grau de diálogo está proporcionalmente prejudicado, produzindo uma situação insatisfatória. Diante da contingência, seus corpos não encontram espaços de confluência, em que ambos de fato negociam posicionamentos sem desigualdades. Isso desencadeia um processo de reflexão em Talya que a faz rever se esse relacionamento, de fato, está em consonância com aquilo que deseja para si.

Diante do filho, a protagonista se sente culpada por causa de duas configurações. No primeiro caso, a sensação de culpa surge por conta da imigração e do subsequente abandono do filho. No segundo caso, a culpa resulta do medo de desencadear no filho uma sensação de desconfiança e descrença, caso tenha que testemunhar um novo fracasso no relacionamento materno. Apesar da onipresença da culpa em todo o conto, a protagonista não deixa de guiar o olhar do filho para outras formas de ver o corpo da mulher e da própria mãe, mas também para outros modos de interagir e adotar comportamentos no encontro de gêneros. Com isso, ela se encontra duplamente forçada a contestar papéis: como mãe e mulher, juntando a isso a intersecção da imigração.

2 Resistência e autonomia

O segundo texto a ser discutido aqui é o romance Der Russeisteiner, der Birkenliebt (‘O russo é alguém que ama bétulas’), publicado em 2012. Ainda jovem, Olga Grjasnowa deixa o Azerbaijão com seus pais, por conta de conflitos bélicos na região. Os pais ocupam postos de prestígio no seu país natal. Após emigrarem para a Alemanha a mãe trabalha como professora de piano, enquanto o pai encontra dificuldades de inserção no mercado de trabalho do novo país. Grjasnowa rapidamente aprende alemão e conclui estudos superiores em instituições do país, incluindo diversas estadas no exterior. Como no caso de Özakin, também Grjasnowa apresenta intersecções complexas: mulher, judia, classe média instruída e imigrante. Ao contrário de Özakin, seu romance foi escrito em língua alemã, assumindo, portanto, uma outra atitude frente à língua do país de acolhimento.

Publicado em 2012, o romance apresenta um horizonte diferente no que toca à situação extraficcional de estrangeiros em terras alemãs. Ao retraçar a história da imigração na Europa, ao final do século XX, Klaus Bade (2003) indica três importantes vetores que surgem a partir da década de noventa: 1) a dissolução da União Soviética, com a emigração de um número substancial de descendentes de judeus e de alemães em direção à Alemanha (BADE, 2003, p. 300), 2) os conflitos bélicos nos Bálcãs, que desencadeiam fluxos migratórios em direção ao norte (BADE, 2003, p. 315) e, por fim, 3) as levas de refugiados do assim chamado “terceiro mundo”, especialmente do continente africano, mas também do Oriente Médio (BADE, 2003, p. 323). Grjasnowa pertence ao primeiro grupo, mas seu trabalho de representação ficcional não se restringe a ele, incluindo toda a paleta de experiências de fluxos migratórios que caracterizam a realidade extraficcional alemã a partir da década de noventa.

O romance retrata, de certo modo, as intersecções que formam a identidade da autora, com foco especial nas dificuldades que a protagonista encontra ao interagir com o grupo cultural majoritário. Além da negociação cultural entre maioria e minorias, o romance também problematiza a condição da mulher. Assim, a protagonista Mascha Kogan discute, por um lado, seus relacionamentos íntimos com Elias, pertencente ao grupo majoritário alemão, com Sami, um imigrante de origem libanesa, e com Tal, uma mulher politicamente militante que conhece em Israel. Por outro lado, também volta seu olhar para a situação de outras mulheres imigrantes - muçulmanas e dos Bálcãs - no contexto alemão.

Ao contrário do primeiro texto, a protagonista apresenta um grau de liberdade maior no que diz respeito a chances de concretização de projetos pessoais e identidades sociais, já que não se vê confrontada com uma sensação de culpa, em decorrência da ligação com o filho no país de origem. Enquanto a primeira protagonista apresenta um forte elo com o país que deixou para trás, o único elemento que volta constantemente no caso de Mascha são as imagens traumáticas da violência decorrentes dos conflitos armados em sua terra natal. Na Alemanha, ela parece ter chances maiores de negociar novas configurações sociais, mas não sem levar em conta as práticas de desigualdades existentes naquele país, que se encontram agravadas por conta do pertencimento a um grupo minoritário. Esse pertencimento também acaba sendo um tópico de discussão entre ela e seu parceiro Elias. Já nas primeiras cenas ela se opõe veementemente a ser etiquetada com termos voltados para a migração, forçando o namorado a tomar maior cuidado com o uso de palavras.

Como Talya, a protagonista do primeiro texto, também Mascha atribui grande importância à autonomia para tomar decisões sobre o tempo e o ritmo, com os quais deseja permitir que seu parceiro tenha acesso a seus espaços pessoais. Elias percebe que Mascha oculta informações sobre seu passado. Com efeito, o texto sugere que se trata da experiência traumática sofrida durante os conflitos armados em seu país. Enquanto ele procura essa aproximação incluindo a revelação de informações dolorosas sobre seu próprio passado, ela categoricamente rechaça essa abertura, o que parece impedir um relacionamento de confiança. Importante nesse contexto é o modo como a protagonista se posiciona nessa situação. Na verdade, os dois estão no meio de uma discussão sobre o relacionamento e sobre o que significa amor, quando ela afirma que “cada um ama dentro de suas possibilidades” (GRJASNOVA, 2012, p. 95).7

Em parte, o que está em jogo aqui é o acesso privilegiado a informações muito íntimas sobre experiências passadas, mas ao mesmo tempo há tentativas de imposição de modelos de administração do corpo, neste caso, do modo como cada um dá conta da sensação de desconforto diante de memórias dolorosas e da forma como esses focos de dor são verbalizados. Sabidamente essas experiências traumáticas precisam ser processadas corporalmente antes de serem simbolizadas e transmitidas. Enquanto Elias parece ter alcançado um estado emocional que lhe permite transformar esses resquícios penosos da memória numa narrativa biográfica, Mascha ainda não alcançou esse estágio. Com isso, ela se encontra num redemoinho de sensações e expectativas. Por um lado, o relacionamento de amor parece exigir confiança plena; por outro lado, ela, como sujeito dotado de autonomia, deseja manter tempo e ritmo próprios. Mascha opta pelo segundo caminho, evitando a submissão do próprio corpo a um desejo que não é seu. Com isso, ela fragiliza a rede de confiança entre ela e Elias, mas garante a autonomia de suas decisões. Esse caminho de reconhecimento, nomeação e resistência não é alcançável sem um grande investimento de energia emocional, a fim de suportar o desconforto da criação de limites.

Essa opção pela liberdade também se estende à sua sexualidade. Ao viajar para Israel após a morte de Elias, Mascha se envolve com outras pessoas, incluindo Tal. Ao contrário da primeira protagonista, que ainda expressa o receio de seu filho poder ser homossexual, o que o condenaria à solidão, Mascha não apresenta qualquer desconforto. Pelo contrário, ela vive sua sexualidade de forma completamente natural, intercalando relacionamentos hetero e homossexuais. A diferença central reside no fato de que Mascha não tematiza essa sexualidade, pois na sua visão de mundo ela simplesmente não representa qualquer problema. Isso lhe permite derivar um prazer existencial, como o exemplifica uma cena na praia de Israel (GRJASNOWA, 2012, p. 244), sem se ver atribulada por sensações de culpa. Essa forma de administrar o próprio corpo resiste aos modelos de obtenção de prazer e às práticas de sexualidade pautadas pela heteronormatividade.

No lugar de focar no modo de obter prazer, sexualizando o corpo como comumente acontece em movimentos de discriminação, ela centra sua atenção na forma como ela e Tal interagem em seu relacionamento. De certo modo, o paradigma de relacionamentos da primeira protagonista volta a ocorrer aqui. Elias se destaca por ocupar ou desejar ocupar uma parcela de espaço demasiado grande na existência da parceira. Tal, por sua vez, confere maior valor a seus interesses políticos, concedendo à Mascha uma parte minúscula do seu tempo e criando uma série de espaços independentes. Desse modo, ela acaba optando por se separar de Tal, uma vez que esta não se encontra disposta a inseri-lo realmente em seu universo pessoal, além de se sentir instrumentalizada para seus fins políticos (GRJASNOWA, 2012, p. 252).

Ao terminar seu relacionamento com Tal, Mascha também opta por voltar à Alemanha, não sem a esperança de reatar com seu ex-namorado libanês. De todos os relacionamentos sobre os quais a protagonista relata, este provavelmente foi o que mais teve significado para ela. Interessantemente, esse relacionamento acaba despertando críticas por parte de representantes da cultura hegemônica na Alemanha, por conta de sua origem libanesa. Por pertencer ao círculo de cultura árabe, atribui-se a ele um comportamento hostil em relação a mulheres, incluindo submissão do corpo feminino e violência. Dentre os muitos estereótipos que a autora tenta desconstruir nesse enredo, também se encontra aquele do árabe machista. Mascha reage a essa ilação com violência, socando aquele que deseja salvá-la das garras do patriarcado. Mais importante que a defesa da imagem de Sami, que por causa de seu envolvimento emocional obviamente lhe significa muito, ela refreia as tentativas alheias de criar laços de subordinação, neste caso por meio da suposta defesa de seus interesses. Também nesse contexto, ela não permite que sua autonomia no que diz respeito à tomada de decisões seja comprometida, respondendo ela mesma por seu corpo.

Em todos os seus relacionamentos com personagens masculinos, incluindo seu próprio pai, a protagonista consegue refrear as tentativas de subordinar seu corpo e suas ações a desejos que não são seus. Apesar de seu arraigamento num conjunto de intersecções caracterizado por práticas de desigualdade e exclusão, Mascha estabelece uma voz própria. Nisso, ela não restringe o uso de sua voz somente para a construção da própria identidade social; ela também enxerga a situação de outras mulheres, menos favorecidas entre as imigrantes, e lhes concede um espaço em sua reflexão. Esse movimento me parece especialmente importante, pois nisso ela cria laços de solidariedade com mulheres em situações muito diferentes daquela que a caracteriza. Ao identificar interesses comuns com imigrantes sérvias ou muçulmanas, predomina uma identidade social voltada para o gênero feminino. Com isso, a voz que surge não é somente pessoal, ela também assume dimensões políticas cujo foco está voltado para uma prática de autonomia mais ampla.

Assim, ela relata as experiências da amiga Sibel, uma amiga com contexto de imigração da Sérvia. Ao contrário da protagonista, cuja família a apoia em seus exercícios de autonomia, a jovem se vê confrontada com expectativas completamente diferentes. Com efeito, ela acaba transformada em moeda de troca para a família por conta de sua cidadania alemã (GRJASNOWA, 2012, p. 80). O passaporte representa um objeto de valor que pode ser utilizado como dote para o casamento. Diante disso, a família planeja um matrimônio, antecipando os ganhos a serem obtidos. Nesse contexto, seu corpo representa um objeto à disposição dos desejos e da decisão dos membros masculinos de sua família.

A coisificação do corpo feminino também é um fenômeno que transpira da pergunta feita por uma mulher de origem muçulmana que a protagonista encontra no hospital durante o tratamento de Elias. Ao questionar Mascha com que frequência o homem a batia, ela percebe que a condição de mulher entre imigrantes pode ser completamente diferente da experiência que ela apresenta. Para a mulher que a questiona, o normal parece ser que o corpo da mulher esteja a serviço do processamento da frustração e do desequilíbrio emocional masculinos. Mascha não se transforma em militante política, mas essas outras vozes têm um espaço em sua fala, o que produz um determinado grau de resistência no processo de representação da mulher e sua situação no contexto de imigração.

Considerações finais

Como escritoras, Aysel Özakin e Olga Grjasnowa contribuem, por meio de seus textos, para a construção de um imaginário nacional no qual não somente a experiência da mulher nativa, mas também a trajetória da mulher imigrante está representada. Como imigrantes, as duas autoras se destacam diante de suas histórias de grande sucesso. Ambas conseguiram encontrar meios para participar da produção discursiva no país e aprenderam a dominar as regras que definem a concretização da voz.

Na esfera ficcional, seus textos representam mulheres que, em suas interações, procuram realizar sua condição feminina no marco da autonomia e liberdade. Para isso, precisam negociar as diversas limitações impostas para a construção de hierarquias. Nisso, a primeira protagonista vivencia essa negociação como um processo perpassado pela sensação de culpa, precisando legitimar a si mesma todas suas decisões. Dividida entre os papéis de mãe e mulher, ela sente culpa, mas não renuncia à sua liberdade pessoal, reconhecendo, nomeando e resistindo a estratégias de submissão. A segunda protagonista pertence a outra geração. Ela é igualmente interessada em viver uma vida no princípio da autonomia, não aceitando as diversas tentativas, por vezes sutis, de subordinação ou imposição de desejos.

Para ambas, o corpo tem um lugar de destaque. É a partir do corpo, com sua circulação em diversos espaços sociais, que se constrói a identidade social e se pratica a resistência. Para as duas, vale garantir o direito do corpo à visibilidade e à voz própria, de acordo com as próprias decisões. Ao resistir à subordinação e ao disciplinamento, esses corpos deslocam as coordenadas que definem hierarquias e suas visões de mundo, chamando atenção para seu tempo e ritmo. Com isso, a desobediência do corpo contribui, no microcosmo de relacionamentos pessoais, a rever expectativas e mudar comportamentos. Ao discutirem as inquietações das mulheres imigrantes, Özakin e Grjasnowa desempenham um papel fundamental no processo de reflexão e mudança dessa intersecção específica.

Referências

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1“If the French understanding of nationhood has been state-centered and assimilationist, the German understanding has been Volk-centered and differentialist. Since national feeling developed before the nation state, the German idea of the nation was not originally political, nor was it linked to the abstract idea of citizenship. This prepolitical German nation, this nation in search of a state, was conceived not as the bearer of universal political values, but as an organic cultural, linguistic, or racial community - as an irreducibly particular Volksgemeinschaft” (BRUBAKER, 1994, p. 1).

2“The intersectionality perspective further reveals that the individual’s social identities profoundly influence one’s belief about and experience of gender. As a result, feminist researchers have come to understand that the individual’s social location as reflected in intersecting identities must be at the forefront in any investigation of gender. In particular, gender must be understood in the context of power relations embedded in social identities” (SHIELDS, 2008, p. 301).

3“That is, resistance weakens processes of victimization, and generates personal and political empowerment through the acts of naming violations and refusing to collaborate with oppressors. Feminist resistance, in particular, begins with the body’s refusal to be subordinated, an instinctual withdrawal from the patriarchal forces to which it is often violently subjected” (FAITH, 1995, p. 39).

4“Es dürfte kaum irgendwo eine derart dichte Begriffsgeschichte der Ausgrenzung geben” (THRÄNHARDT, 1984, p. 116).

5“Gegen Abend, nach Stunden, in denen sie von Zeit zu Zeit etwas gescherzt, einander kleine Geständnisse gemacht oder geschwiegen hatten, versuchte Talya zum erstenmal, Simos die Gründe für ihre Flucht zu erklären. Sie erzählte ihm davon, wie qualvoll die ständige Hausarbeit, wie belastend die Bewirtung der nie fehlenden Gäste, und wie unerträglich das Gefühl war, daß jede einzelne ihrer Handlungen als Frau genau kontrolliert wurden” (ÖZAKIN, 1992, p. 122).

6“Aber seit Simos da war, fühlte sie sich wieder wie in dem alten Haus. Wenn Simos abends hörte, daß Uwe die Tür aufsperrte, rief er Talyas zu: “Uwe kommt!“ Als würde er Talya auffordern: “Geh ihn begrüßen, tu deine Pflicht!“ Als wollte er Talya in ihre alte Rolle zurückversetzen. Abhängig im Haus vom Tun und Lassen des Mannes. Das erwartete Simos von Talya. Als wollte Simos die Proben für seine Zukunft jetzt machen. Er überlegte schon jetzt, was ein Mann von einer Frau erwarten konnte” (ÖZAKIN, 1992, p. 107).

7“Jeder liebt nach seinen Möglichkeiten” (2012, p. 95).

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MATHIAS, Dionei. “Imigração e resistência”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n.1, e56007, 2020.

Financiamento: Não se aplica.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 26 de Março de 2018; Revisado: 28 de Maio de 2019; Aceito: 28 de Junho de 2019

Dionei Mathias (dioneimathias@gmail.com) é doutor em Letras pela Universidade de Hamburgo, na Alemanha, e pela Universidade Federal do Paraná. Professor do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de Santa Maria.

Contribuição de autoria:

Não se aplica.

Conflito de interesses:

Não se aplica.

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