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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.28 no.1 Florianópolis  2020  Epub 01-Feb-2020

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n168326 

Dossiê Mundos de Mulheres 2021: Pensamentos Feministas Afro-Moçambicanos

O campo dos estudos de gênero em Moçambique/África

The field of gender studies in Mozambique/Africa

Vera Fátima Gasparetto1 
http://orcid.org/0000-0002-3865-0549

1Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Florianópolis, SC, Brasil, 88040-900 - ppgich@contato.ufsc.br


Resumo

Neste artigo traçamos um quadro da organização do campo dos estudos de gênero em Moçambique, seu diálogo com os estudos de gênero em África e também em âmbito transnacional, assim como sua contribuição para as lutas dos movimentos sociais. O objetivo é perceber parte da trajetória das acadêmicas, sua constituição epistemológica e sua área de influência. Proporcionamos, assim, um panorama da sua história, dos temas que vêm sendo debatidos, das perspectivas, das controvérsias, das conexões, das tensões e como essas contribuem para a formação de um campo de estudos de gênero moçambicano.

Palavras-chave: Estudos de gênero; teorias feministas; academia-ativismo; Moçambique

Abstract

In this article we draw a picture of the organization of the field of gender studies in Mozambique, its dialogue with gender studies in Africa and also at the transnational level, as well as its contribution to the struggles of social movements. The objective is to perceive part of the trajectory of the academics, their epistemological constitution and their area of ​​influence. It thus provides an overview of its history, the topics being debated, the perspectives, controversies, connections, tensions and how they contribute to the formation of a Mozambican gender field.

Keywords: Gender studies; Feminist theories; Academy activism; Mozambique

Introdução

Este trabalho faz parte da pesquisa de doutorado (Vera GASPARETTO, 2019), que resultou na tese intitulada Corredor de Saberes: vavasati vatinhenha (mulheres heroínas) e redes de mulheres e feministas em Moçambique.1 Emergiu na primeira etapa do trabalho de campo, das entrevistas e do encontro com documentos históricos que me levaram ao compromisso de escrevê-lo. Ele surge do respeito que criei com o campo de pesquisa, com as intelectuais que concederam seu tempo e se soma aos esforços do “corredor de saberes”2 para proporcionar um panorama da sua história, dos temas que vêm sendo debatidos, das perspectivas, das controvérsias, das conexões e das tensões. Não tem a pretensão de ser exaustivo, mas de organizar as informações obtidas nesse período, que estão sendo aprofundadas na pesquisa de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da UFSC.

Ao constatar na pesquisa a existência de campo de estudos de gênero em Moçambique, ainda em construção, procuramos verificar a história de sua construção, as redes que articula, suas conexões e tensões. Para isso, discutimos3 algumas categorias fundamentais para aprofundar a análise, através das falas das atrizes políticas, de modo a colocar em relação e perceber suas pluralidades, a partir das seguintes questões: Como o campo dos estudos de gênero se configura em Moçambique? Qual a visão das intelectuais sobre os estudos de gênero e feministas em Moçambique? Como esses estudos se relacionam no âmbito da África Austral e com outros países africanos? É possível falar da constituição de um campo dos feminismoS africanos a partir de Moçambique? Qual a agenda política e epistemológica desse campo?

Interessada nessas questões, entrevistei - a partir da indicação de minha coorientadora de doutorado, Isabel Casimiro, colegas e ativistas - antropólogas, sociólogas, assistentes sociais, historiadoras e ativistas. As entrevistas semiestruturadas, realizadas em duas etapas do trabalho de campo em 2016 e 2017, foram feitas pessoalmente. Posteriormente foram transcritas e, para tratá-las, fizemos a análise do conteúdo, focando nas seguintes categorias: Gênero, Feminismos africanos; Relação academia e movimentos sociais; Temas controversos. Verificamos uma pluralidade de opiniões que revela várias tendências, incluindo consensos e dissensos em alguns pontos. Entendemos que os dissensos que existem são uma expressão de vitalidade, da existência de um pensamento crítico e não monolítico. Há diferentes pontos de vista sobre os temas, assim como compreensões e conceitos desenvolvidos ao longo do texto. Para o efeito, partiremos de uma contextualização geral do campo dos estudos de gênero em África a partir de uma breve revisão de literatura, e depois iremos delimitar a reflexão ao contexto moçambicano, em particular, priorizando a análise histórica da emergência dos estudos de gênero e o conteúdo das entrevistas.

Os estudos de gênero no contexto africano: um campo em constituição

Em reflexões publicadas nos anos 2002, 2011 e 2013, respectivamente, Amina Mama apresenta dados que nos ajudam a entender o contexto de emergência do campo dos estudos de gênero em África. A autora pontua que, na década de 1990, os governos africanos gastaram cerca de US$ 4 bilhões/ano na contratação de mais de 100.000 consultores técnicos expatriados. Segundo ela, a qualidade dessa orientação e conselho externos pode ser medida pelas altas taxas de falha no planejamento dos projetos de desenvolvimento mal-sucedidos no continente.

A teorização e o direcionamento do desenvolvimento continuam a ser em grande parte impulsionados externamente e cada vez mais tecnocráticos, enquanto as instituições públicas dos diversos países do continente permanecem incapacitadas, sendo muitas delas totalmente inaptas, deixando populações inteiras reféns de empreendedores militares e econômicos, inseguros e com pouco serviço público ou proteção (MAMA, 2002).

Em outro texto, Mama (apud Elaine SALO, 2013) argumenta que há necessidade de construir capacidade intelectual e institucional estratégica para a libertação das mulheres, buscando entendimentos localmente relevantes de relações de gênero, cada uma nos seus mundos distintos e especiais. Isso pode se tornar a base de conhecimento para as lutas e a criação de soluções caseiras que orientem as decisões sobre quais aspectos das ferramentas e receitas genéricas servem aos propósitos das mulheres africanas:

Precisamos trabalhar para um engajamento mais ativo [...] entre teoria/pesquisa e política/prática. Em nossos contextos carentes de recursos, isso requer formas particulares de trabalho em rede e de construção de comunidade. [...] para promover um envolvimento mais profundo entre a construção do conhecimento e a transformação social. Vamos trabalhar juntos para desencadear as capacidades críticas e criativas de tantas mulheres quanto possível [...] de avançar o desenvolvimento deste continente, usando o que Amílcar Cabral famosamente chamou de “a arma da teoria” para trazer a nossa libertação (MAMA, 2002, p. 6).

Nesse sentido, o feminismo oferece uma agenda “radicalmente subversiva” que vai na contramão de todos os interesses imperiais e das principais instituições regionais, nacionais e africanas. Isso coloca o desafio que consiste em empurrar os limites e reverter os valores mais profundos das pessoas, aproveitando rapidamente as oportunidades (MAMA, 2002) e buscando o diálogo crítico entre teoria e prática e uma atenção estratégica ao contexto internacional e nacional.

Há uma tendência contra o intelectualismo em alguns campos do ativismo pelo fato de que muitas vezes as mulheres intelectuais são privilegiadas, brancas ou negras, de classe média, que ainda dominam representações e análise das lutas de gênero. Entretanto, é preciso refletir sobre a importância de as mulheres disputarem o poder acadêmico e as ferramentas intelectuais que levam a obter a justiça de gênero, como o conhecimento e a informação, a pesquisa, a capacidade de comunicação e de escrever. Assim, Mama (2013) argumenta que:

Como mulheres, não devemos nos privar das ferramentas intelectuais que podem nos ajudar a obter justiça de gênero. O campo intelectual foi usado para nos reprimir. Não podemos ignorar a importância do trabalho intelectual, especialmente neste século XXI, onde conhecimento e informação definem poder mais do que nunca. É por isso que colocamos muita ênfase em nosso Instituto Africano de Gênero, onde as mulheres se comprometem com a teoria e a análise de uma perspectiva militante e desenvolvem estrategicamente ferramentas úteis com bom uso da tecnologia da informação, pesquisa e habilidades de comunicação, ensino, treino e escrita. Não creio que esse objetivo do conhecimento, ou de trabalhar na universidade, seja um signo não africano ou não feminista. Pelo contrário, são áreas que devemos incorporar às nossas preocupações, transformá-las em espaços que atendam aos nossos interesses coletivos, em vez de deixá-los continuar a perpetrar a violência teórica e prática contra as mulheres (MAMA, 2013, p. 20-21 [tradução livre]).

Em um texto de 2011, Amina Mama faz uma retrospectiva de quatro décadas, desde o estabelecimento do primeiro curso de ‘mulheres na sociedade’, em 1979, na Universidade Ahmadu Bello, na Nigéria, e de uma década e meia do programa continental para fortalecer o feminismo nos estudos africanos de gênero e mulheres. Neste, questiona, ainda, os resultados alcançados no período.

Esses avanços decorrem também da ação dos movimentos feministas, que se tornaram mais assertivos e influentes na África, levando a um aumento significativo de estudantes, acadêmicos/as, ativistas e escritores/as engajados/as em bolsas feministas em toda a região. Foram criados centros de estudos sobre gênero e mulheres, programas de ensino e projetos de pesquisa, incluindo as primeiras iniciativas na África francófona (Senegal e Burkina Faso). Muitas feministas acadêmicas trabalharam em disciplinas e perspectivas dentro e fora das instituições acadêmicas, às vezes, borrando as fronteiras nacionais para se apoiarem mutuamente, o que resultou numa percepção do valor de seu trabalho, tanto local como internacionalmente (MAMA, 2011).

Para a autora, a experiência da rede intelectual feminista na África ressalta a importância dos espaços e projetos intelectuais autônomos que permitam a articulação de agendas de pesquisa e o desenvolvimento de metodologias sintonizadas com contextos locais, lutas de gênero e desafios. “É claro que as feministas na África precisam ser globalmente informadas e localmente fundamentadas, e capazes de trabalhar em vários sites institucionais, se quiserem ser eficazes” (MAMA, 2011, p. 18 [tradução livre]).

Essas práticas moldam e são moldadas pelos compromissos críticos contínuos com a teoria e as ideias dos tempos atuais, informadas pelas lutas coletivas de ativistas e acadêmicas em toda a África e para além de suas fronteiras. Décadas após os processos das independências, conhecedora das políticas globais desiguais de produção de conhecimento, ela afirma o direito do continente africano atrair e contribuir para a cultura intelectual internacional e transformá-la para seus próprios fins: “se abraçamos passivamente e sem crítica à ‘globalização’ e à ‘mercantilização’, [...] se não conseguirmos interrogar os paradigmas e ferramentas e preenchê-los com nosso próprio significado e interesses, corremos o risco de comprometer ainda mais a nossa capacidade [...] (MAMA, 2002, p. 2).

A autora escreveu esse texto para a Conferência que proferiu no Congresso Mundos de Mulheres, em Uganda, em 2002, quando alertou para a necessidade de as mulheres intelectuais africanas estarem atentas às mudanças globais, regionais e locais:

A conversa que começamos hoje sugere que, ao procurar aprofundar e ativar as conexões entre o trabalho político, intelectual e prático, precisamos levar em conta constante a mudança do terreno global, regional e local. Precisamos estar atentos às implicações de, por exemplo, o predomínio sem precedentes dos EUA no mundo atual e as ramificações de gênero do militarismo global que estão sendo propostas sob a “guerra contra o terror” (MAMA, 2002, p. 3).

Ela propunha trabalhar em direção a uma série de mobilizações interconectadas e alianças, assim como em um alto nível de capacidade analítica e estratégica, que combine experiência e conhecimento adquiridos localmente com a perspicácia no plano internacional. Setores do feminismo acadêmico confiam em movimentos organizados para desafiar o poder e provocar mudanças, “conhecimento” sem poder não chega muito longe: “As feministas que gastam tempo fazendo trabalho intelectual, portanto, têm a responsabilidade de resistir ao isolamento acadêmico e permanecer conectadas aos movimentos de maneiras que permitem que as ideias desafiem o poder” (MAMA, 2002, p. 8). Esse é o desafio que se coloca para a academia e o ativismo em âmbito global e em África particularmente.

Molara Ogundipe (2013) ressalta que os estudos de gênero e o trabalho social decorrente dessa problemática se converteram em moda e em uma indústria em África. A partir da sua experiência na Nigéria, argumenta que, nos anos 1970, o feminismo era uma tendência recente e os movimentos atuavam nos marcos de uma sociedade patriarcal e uma reação adversa ao feminismo, sendo ignorado, criticado ou alijado pelo e no espaço acadêmico, inclusive por mulheres. A investigação acadêmica nesse campo não era respeitada e nem considerada legítima:

Los prejuicios se expresaban en cuestiones como: ¿Pueden hacerse estudios sobre la mujer dentro de la crítica literaria o de la sociología? ¿Los estudios feministas se pueden evaluar y premiar en términos académicos? ¿Se puede obtener más nivel académico asistiendo a conferencias o encuentros feministas? A su vez, estas cuestiones indicaban problemas mayores que podías tener con los jefes machistas de departamento. Ahora, todo el mundo se ha subido al carro: los hombres de hoy en día se lanzan sobre el campo del feminismo y de los estudios de género, por supuesto sin haber estudiado o valorado los trabajos precedentes de las mujeres intelectuales (OGUNDIPE, 2013, p. 41-42).

Em sintonia com o pensamento de Ogundipe (2013), a antropóloga moçambicana Esmeralda Mariano (2017) considera que a indústria do desenvolvimento influencia nas agendas e no resultado das pesquisas:

Não há dúvida de que há influência. Aqui na academia a pesquisa é a chave, informa as lógicas e as óticas de desenvolvimento e os estudos. As próprias relações a nível mundial, entre países, são definidas por agendas políticas que muitas vezes não são completamente compartilhadas e percebidas. São baseadas em lógicas de supremacias, onde as relações de poder são assimétricas e as definições das próprias pesquisas não são feitas de acordo com o interesse local.

Entretanto, Mariano (2017) aponta outras formas de construir um desenvolvimento a partir das realidades locais e na contramão das lógicas hegemônicas exógenas:

Qualquer desenvolvimento tem que combinar a percepção local sobre algum conhecimento e fenômeno, em articulação com outras formas que nós bebemos. Como contei da minha história: eu não sou um produto puro, eu sou um produto misturado, sou um produto híbrido, sou um produto que vai absorvendo. Na história de Moçambique temos tantos elementos que nós fomos incorporando e que depois chamamos nossos produtos. São redes, são relações que vão multiplicando, mas que vão sempre atando, sem desligar completamente. É como o nó do n’tehe.4 A lógica do desenvolvimento precisa ser de forma articulada, negociada, fluida, e não uma visão que seja imposta.

Uma das questões da pesquisa junto às acadêmicas diz respeito à existência de um “feminismo africano” ou de “feminismos africanos”. Esse tema dilui as controvérsias entre elas, pois são unânimes em afirmar que existem “feminismoS africanos”, ainda que cada uma tenha um modo diferente de pensar sobre essa categoria. A professora do Departamento de Sociologia da UEM, Rehana Carpuchande (2017), propõe que se use o termo no plural:

O que acontece, por exemplo, na Nigéria, no Quênia, não é a mesma coisa que acontece na África do Sul e em Moçambique, e uma vez que estamos a falar que dentro do próprio Sul há diferenças, mas dentro do africano também há. Olhando para a realidade de Moçambique, as instituições ligadas à pesquisa, temos a WLSA, que tem uma maneira específica de fazer a investigação, o quadro epistemológico que guia suas pesquisas é marcado pelo Ocidente, o gênero é categoria fundamental de desigualdade em todos os contextos e ofusca outras formas. [...] Temos investigadoras/es que se formaram no Ocidente (Inglaterra, Bélgica, Holanda, Estados Unidos) e que começam a produzir um conhecimento diferente daquele muito radical que a WLSA faz. Vamos falar de vários feminismos, porque as pessoas têm orientações diversas e depois de voltarem das suas formações são livres para sair daquela ideia de que África, o Sul de um modo geral, não produz teoria, apenas é matéria-prima, e que as teorias são produzidas no Ocidente.

A antropóloga moçambicana Carla Braga (2017) reflete se em África existe um campo do feminismo e se a categoria é útil ou que outra abordagem poderia explicar a luta e o poder das mulheres:

Eu já não sei qual seria o termo e não me preocupa muito. Mas há esforços de teóricas mulheres que têm trabalhado nessas áreas, em termos teóricos na Oyèrónke Oyèwùmí, nas velhas dinossauras, Amina Mama e Fatou Sow.5 Portanto, vamos pensar os direitos das mulheres, na equidade, olhar para a questão da desigualdade e da dominação, mas vamos olhar para a realidade de África e o que isso nos ensina e nos traz. E acho que as contribuições são importantes tanto para o movimento de mulheres em África, como para o movimento global, pois mostram de alguma forma as limitações do pensamento feminista pensado desde o Ocidente.

Carla Braga (2017) enfatiza como o olhar feminista influenciou suas pesquisas, o seu olhar, sua trajetória acadêmica e as abordagens das suas aulas:

A dimensão de gênero faz parte de mim, de quem eu sou, que vai comigo no que quer que eu faça. Como tu podes entender a realidade, entender o social deixando essa questão de fora, seja o tema que estiver em causa: o meio ambiente, a agricultura, a saúde, a educação. Não imagino ciências sociais que não leve em conta essa dimensão.

A socióloga moçambicana e pesquisadora da WLSA, Conceição Osório (2017), tem uma opinião diversa sobre o tema. Para ela:

Há coisas interessantes, mas não pode-se dizer que é um feminismo africano, temas que surgem, novos, com estudos recentes sobre as mulheres que combateram nas lutas pela independência nacional ao lado dos movimentos de libertação. O que nós encontramos são estudiosas que pesquisam o tema de como essas mulheres se comportam no período pós-colonial. É interessantíssimo que vários estudos mostram elas subordinando-se aos homens militantes. Elas na hierarquia eram subordinadas.

O contexto universitário e a emergência dos estudos de gênero em Moçambique: o caso da UEM/CEA

As relações históricas entre a academia e ativismo têm um marco no discurso de Samora Machel (1976) intitulado “A classe trabalhadora deve exercer o poder na frente da ciência e da cultura”, proferido em 1º de maio de 1976, quando da (re)fundação da Universidade Eduardo Mondlane (UEM).6 As ideias desse discurso estimularam a escrita deste artigo, em especial quando Machel justifica que a universidade com o nome de um dos líderes da luta Armada de Libertação Nacional (LALN), Eduardo Mondlane, marca uma nova fase da vida da instituição, pois se trata de um homem ligado à sua origem popular, que nunca ocultou sua identidade e fidelidade para com os pobres, os humilhados e os explorados de Moçambique e do mundo:

Através deste ato não é, pois, Eduardo Mondlane que vem à Universidade, é a Universidade que vem a Eduardo Mondlane, o que vale dizer, é a Universidade que vem ao povo, não para o servir como entidade exterior, mas para nele profunda e definitivamente se enraizar (Samora MACHEL, 1976).

Nesse discurso, Samora Machel lançou os desafios de uma “Universidade Nova”, para a conquista de um novo conteúdo, mergulhada nas raízes da realidade nacional, voltada para investigações sistemáticas que levassem ao conhecimento profundo do país através da reestruturação dos cursos, da organização do trabalho nas escolas e da orientação da pesquisa dentro de uma visão revolucionária. Para tal, a UEM deveria estar aberta aos filhos do povo moçambicano, operários, camponeses e ex-combatentes, formados por docentes comprometidos com a transformação. Como argumentou Machel (1976) nessa ocasião:

O professor militante deve, porém, executar a sua tarefa identificando-se com a classe operária e camponesa, com a sua ideologia, com a sua prática. Através do seu exemplo e da sua ação, deve criar as premissas para a formação de uma nova mentalidade. Compete-lhe libertar a iniciativa criadora do estudante, estimular o caráter coletivo da aprendizagem, aprendendo dos alunos e da natureza que o rodeia, para sintetizar a experiência e fornecer novas ideias.

Foi com essa visão que os quadros da UEM seguiram seus percursos e se envolveram no projeto acadêmico, influenciadas/os pelo método do brasileiro Paulo Freire, como revela a entrevistada quando questionamos se tinham a consciência de que usavam esse método:

Sim, porque a gente leu muito, era uma das leituras proibidas no tempo colonial. Paulo Freire escreve sobre a presença dele na Tanzânia e Guiné Bissau. Esses métodos eram seguidos, nós tínhamos muitos padres progressistas que tinham essa ligação (Isabel CASIMIRO, entrevista em 25 e 26/01/2018).

O Centro de Estudos Africanos (CEA) é fundado em 1976 e sua história se confunde com o período de Moçambique pós-independência, pautando a atuação em sintonia com os temas de interesse do país, da sociedade, de pesquisadores/as do mundo inteiro que enxergam no Centro um espaço de acolhimento para a realização de suas pesquisas sobre Moçambique. Eu mesma fui recebida como pesquisadora associada, o que me garantiu as credenciais e abriu portas para o trabalho de campo.7

Ao analisar as dinâmicas de pesquisa do CEA, Carlos Fernandes (2017) propõe abandonar as dicotomias e binarismos, a simples oposição entre autonomia da pesquisa social e a sua redução a uma função ideológica. Ele mostra que a exigência de uma visão eurocêntrica de uma pesquisa “pura”, “objetiva” e livre de valores não permitiria a compreensão do contexto social e político que determinou as prioridades de pesquisa do CEA.

Foi o “engajamento crítico” do CEA na produção de conhecimento científico-social que tornou seu trabalho relevante e importante para amplos setores dentro e fora da academia, fortalecendo o diálogo inclusive com os movimentos de mulheres e feministas, como pude verificar na pesquisa.

O discurso do primeiro Reitor da UEM, Fernando Ganhão (1976), sobre os “problemas e prioridades na formação em Ciências Sociais”, revela a opção por uma prática voltada para a mudança das condições sociais a partir do paradigma teórico e análise marxista da sociedade. Nesse caminho, para o CEA, a “pesquisa deveria ter um papel imediato e ativo no processo de transformação socialista”, sendo necessário “fazer da pesquisa social um instrumento prático para a revolução moçambicana”, sem, contudo, deixar de fazer a crítica e as relações necessárias com outros setores da sociedade, inclusive com ativistas das organizações de mulheres e feministas, como aponta Casimiro (2018):

A universidade teve um papel fundamental e se algumas ativistas não reconhecem isso hoje é porque não sabem como foi a história. Nós estivemos presentes em todos os momentos: na criação da OMM e da UNAM. Eu creio que fazer pontes foi sempre muito importante. Ainda outro dia falava sobre o papel do CEA, que eu não posso dizer que era um braço do Partido Frelimo, mas grandes pesquisas foram feitas que apoiaram suas medidas, porque a questão era estudar Moçambique no contexto da África Austral, contribuindo para a construção do socialismo em Moçambique, e nem sempre o Partido gostou dos estudos do CEA, haviam guerras ali.

Esse “engajamento crítico” do CEA é composto por características relacionadas com as inovações que realizou no campo da pesquisa no período pós-independência (FERNANDES, 2017) com um trabalho de pesquisa de caráter coletivo. Estas pesquisas enfatizavam a “unidade entre a teoria e a prática”, o que implicava um desenvolvimento socialista que fizesse a ruptura com a historiografia colonial e a escolha de uma nova “teoria para a mudança social”. Este binómio teoria-prática significava também uma ligação estreita entre ensino teórico e pesquisa empírica da realidade socioeconômica moçambicana. Era, por outro lado, uma pesquisa colectiva que estava preocupada com a libertação nacional dos países da África Austral sob domínio da África do Sul e do regime rodesiano. Daí então a grande divisa do CEA ser a de “analisar Moçambique no contexto da África Austral” (FERNANDES, 2017, p. 252).

Casimiro (2018) avalia que a ligação entre teoria e prática foi “uma criação fantástica” que é estudada por estrangeiros. Mas o que significa esta ligação entre teoria e prática?

É essa articulação entre academia, essas associações, as organizações do governo. Se a gente deixar algum legado é porque conseguimos fazer essa articulação. O Fórum Mulher surge muito por causa da necessidade de articular tudo, porque cada um estava no seu espaço e que em certa medida conseguimos articular.

O desafio do CEA foi conquistar um espaço em que pudesse exercer a dúvida e olhar criticamente as causas sociais e políticas que apoiava. O “engajamento crítico” significava não unicamente revelar as injustiças do imperialismo e, no caso moçambicano, evidenciar a desestabilização promovida pelo regime do apartheid, mas de formular questões de como este regime poderia ser aniquilado e como construir uma sociedade socialista em Moçambique. Isso implicava não somente apoiar o modelo de desenvolvimento proposto pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), mas sim mostrar os pontos fracos ou as incongruências do mesmo.

Foi assim que em Moçambique os estudos sobre as relações entre mulheres e homens se iniciaram na década de 1980 e se consolidaram na década de 1990, cabendo ao CEA, dentro deste novo campo acadêmico, visibilizar e realizar investigação sobre a mulher em uma ótica feminista e de gênero (CASIMIRO; Ximena ANDRADE, 2007). O Núcleo de Estudos da Mulher (NEM) surgiu em 1989, no CEA, para visibilizar a dimensão do conhecimento sobre as mulheres, que vinha sendo realizado ao longo dos anos, sobretudo na área de Ciências Sociais e Humanas.

Em 1991 foi criado o Departamento de Estudos da Mulher e do Gênero (DEMG), após uma reflexão sobre as relações sociais de gênero homem/mulher e a necessidade de ter um ponto de referência para pesquisadoras/es que estudavam as bases da discriminação da mulher e incorporavam o conceito de gênero, que nesse período se expandia devido ao contexto de alianças do Estado moçambicano.

O DEMG orientou sua atuação para a investigação-ação, incorporando a perspectiva de gênero nas disciplinas oferecidas e priorizando atividades como organização institucional, participação em projetos nacionais, regionais e internacionais de investigação, realização de consultorias, formação dentro e fora da UEM e seminários. Também focava no ativismo e na contribuição para a criação e participação de Associações de Mulheres, participação em conferências nacionais, regionais e internacionais, participação nos órgãos de poder do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) e em Grupos de Trabalho (CASIMIRO; ANDRADE, 2007).

Em 1990 surge no CEA o Projeto WLSA (Women and Law in Southern Africa Research Trust) que, na avaliação de Casimiro e Andrade (2007), contribuiu para o desenvolvimento dos estudos de gênero, permanecendo no Centro por mais de 10 anos. Esse projeto de investigação “desencadeou a criação de redes de investigadores de estabelecimentos de ensino superior, das instituições do Estado, da Justiça e das associações” (p. 11). Assim abriu duas frentes, estimulando o interesse de investigadores/as e estudantes sobre a problemática da mulher com enfoque de gênero e mobilizou setores da sociedade em defesa dos direitos humanos das mulheres.

Nesse processo foram igualmente surgindo associações de mulheres. Tal é o caso da MULEIDE (Mulher, Lei e Desenvolvimento), NUMMA (Núcleo Mulher e Meio Ambiente) e Fórum Mulher - Coordenação para a Mulher no Desenvolvimento. Um outro aspecto a considerar está relacionado com a integração da perspectiva de Gênero nos programas do Governo 1994 e 1999, à criação duma Comissão de Assuntos Sociais, Gênero e Meio Ambiente, na Assembleia da República, a partir do primeiro Parlamento multipartidário, e dum Ministério da Mulher e da Coordenação da Ação Social (CASIMIRO; ANDRADE, 2007, p. 10).

O projeto da WLSA Regional foi concebido num encontro realizado em 1988, em Nyanga, no Zimbabwe, com a participação de mulheres e homens acadêmicos, membros de ONGs e ativistas de diversas frentes, oriundos de países da África Austral. A partir de 1990, seis países8 aderiram ao projeto regional, que visava à comparação de dados sobre a Mulher e o Direito a Alimentos na África Austral, criando-se a primeira linha de investigação com enfoque de gênero sobre a Mulher e a Lei.

A equipe de Moçambique enfrentou dificuldades em aderir ao projeto porque as questões legais e de gênero não tinham entrado na pauta da luta pela conquista de espaço acadêmico, no ativismo e nas organizações do Estado, devido à ausência de investigação na área científica. A desestabilização, ocasionada pela guerra civil, dificultou a primeira fase das pesquisas da WLSA que se iniciaram em Moçambique entre 1990-92.

As autoras consideram que a equipe moçambicana da WLSA cumpriu com suas tarefas, especialmente em relação ao desafio epistemológico: “referimo-nos às concepções e metodologias duma investigação-ação, estudo e contribuição dentro duma perspectiva de gênero e feminista e no desenvolvimento duma investigação interdisciplinar real” (CASIMIRO; ANDRADE, 2007, p. 12), que buscam também a transdisciplinaridade dos estudos baseada nas seguintes concepções:

A perspectiva feminista de gênero que defendemos parte da análise das relações sociais entre mulheres e homens e entre mulheres e entre homens, permitindo estudar o modo como são construídas, social e relacionalmente [...] A construção da feminilidade e da masculinidade interrelaciona-se com as variáveis de cor da pele/etnia, classe, origem rural/urbana, formação, estatuto, como já mencionado, e a partilha entre poderes, saberes e competências nas diferentes dimensões da sociedade está em permanente renegociação, originando resistências e contestações, mas também a aceitação ou a penetração nos espaços da ordem estabelecida, em diferentes momentos e em contextos espaciais diversos (CASIMIRO; ANDRADE, 2007, p. 14).

As relações entre academia e ativismo: entre-lugares da WLSA

A WLSA surgiu em 1989 dentro da UEM/CEA, como referido. Suas fundadoras são as acadêmicas Ana Loforte, Ximena Andrade, Maria José Arthur, Conceição Osório, Isabel Casimiro, Irene Afonso e Terezinha da Silva. Algumas delas foram entrevistadas e suas falas são aqui resgatadas. A organização surgiu de um convite às mulheres que se dedicavam à investigação e à docência, abordando questões de gênero para, a nível destes países, integrarem as diferentes WLSAs. Ana Loforte (2017) fala da trajetória da organização e do significado da sua saída do âmbito da UEM no ano 2000:

Quando se constituiu a WLSA Moçambique como uma ONG e em termos um staff de acadêmicas, mantendo uma ligação entre a academia e o ativismo, que é uma das componentes principais em termos da investigação. Os resultados desta investigação alimentam as ações de formação que nós realizamos em diferentes grupos alvos, desde a questão da polícia, saúde, sobre o combate à violência doméstica e também na área dos direitos sexuais e reprodutivos, mulheres e participação política. Fazemos lobby e advocacia para influenciar as políticas públicas. Temos certa autonomia e independência quando nos constituímos como organização fora do espaço da universidade e estabelecemos muitas parcerias, trabalhamos em rede com outras organizações da sociedade civil que têm os mesmos objetivos de promoção dos direitos humanos das mulheres, e mais recentemente também em relação às crianças, sobretudo, à criança menina.

A trajetória da WLSA começou como um projeto de pesquisa-extensão e é considerada por Maria José Arthur (2017) como uma escola para o feminismo moçambicano. Sua saída da UEM ampliou a atuação para o campo do ativismo e na formulação de políticas públicas:

A WLSA foi um catalisador importantíssimo, porque criou um grupo de mulheres da academia que não encontravam espaços para fazer pesquisas sobre desigualdades, relações de poder entre homens e mulheres. No ano 2000 a WLSA9 sai da UEM pela sua própria lógica de desenvolvimento, pois era importante passar para uma segunda fase: o que fazer com essa informação que recolhemos? Essa informação tem que ser aplicada, tem que servir para mudar legislações injustas, para questionar políticas públicas discriminatórias. Tenho muita pena que este debate sobre o feminismo de alguma maneira se tenha perdido na universidade. Hoje há uma nova geração que diz que acredita em igualdade, mas não acredita no feminismo, porque há também uma diabolização da categoria como se fosse o contrário do machismo. Mas de alguma maneira isso se perdeu e às vezes me pergunto se saímos cedo demais da universidade ou se atrasamos o surgimento de um grupo forte de estudos de gênero. Mas a WLSA desenvolveu muito depois que saiu da UEM.

A entrevistada refere-se a um contexto dos anos 1990, em que Moçambique se volta para a economia de mercado, trazendo impactos para a Universidade, passa a focalizar mais no ensino, em detrimento de recursos para a pesquisa e a extensão, o que pode ser uma chave de compreensão para a desvinculação da WLSA da UEM. A narrativa aponta para o caráter patriarcal e hostil do espaço da Universidade, em que os homens é que dominam os cargos de maior relevância, como aponta Mama (2011).

Além disso, revela que a saída permitiu maior a autonomia, que auxiliou na captação de maiores recursos e na ampliação das redes de articulação, como analisa Terezinha da Silva (2017), atual coordenadora da WLSA, ao falar da capilaridade do trabalho da organização desde a sua fundação, ressaltando que, apesar do desligamento oficial da UEM, várias parcerias foram criadas ou tiveram continuidade na UEM e com outras instituições. As entrevistadas avaliam que a organização é considerada de oposição devido à sua postura crítica e por realizar pesquisas do ponto de vista de direitos humanos:

Nossa postura é denunciar atos de violação olhando para os direitos humanos das mulheres e criticar a postura que procura justificar determinado tipo de ações em nome da cultura, em nome da tradição. Realmente a nossa posição é muito crítica no sentido de afirmar que não há nenhuma cultura que pode estar acima dos direitos humanos, e muitas vezes essa nossa posição não é muito bem aceita. É isto que leva uma certa camada de profissionais contra as nossas posições e aquilo que nós escrevemos e denunciamos (LOFORTE, 2017).

Loforte (2017) fala sobre a importância de trazer evidências dos próprios depoimentos das pessoas, das sujeitas da pesquisa que a WLSA realiza de modo a legitimar seu trabalho:

Temos uma publicação que são depoimentos de mulheres sobreviventes de violência, onde, na primeira pessoa, elas relatam os casos de violência, as estratégias de sobrevivência que foram desenvolvendo e de superação. Esse é um material rico e que traz para cima situações vividas por estas mulheres sobreviventes. Em relação aos ritos de iniciação também é muito na base dos depoimentos de jovens meninas e rapazes que também foram submetidos a essas práticas: o seu sentimento, as formas que muitas vezes usaram para fugir a esses ritos, tudo na primeira pessoa, e isto é extremamente importante para trazer a dimensão do problema. O sofrimento que é vivido pelas pessoas que são objeto desses ritos de iniciação e como é possível demonstrar que há mudanças.

Esse conjunto de temas apresentados pelas pesquisadoras emerge de um cotidiano onde também se percebe a resistência das mulheres moçambicanas, batalhadoras, ocupando as ruas, comandando os mercados, na luta pela sobrevivência, provendo economicamente suas famílias.

As lutas protagonizadas pelos movimentos enfrentam contradições, pois, ao mesmo tempo em que transmitem às mulheres os conhecimentos sobre os direitos humanos, precisam lidar com subjetividades que foram construídas ao longo da sua constituição como mulheres, como meninas numa realidade impregnada por valores “tradicionais”, patriarcais, coloniais. Dentro desse contexto, cabe perguntar: qual é o papel desempenhado pelos feminismos e pelos estudos de gênero? Em que medida têm contribuído para desmistificar e desestabilizar os padrões e valores culturais tradicionais opressores.

Controvérsias e concordâncias em torno dos temas em debate

As controvérsias que permeiam o pensamento de diferentes pesquisadoras acadêmicas ou ativistas acadêmicas constroem a pluralidade dos feminismos moçambicanos e levam a nuançar e a fazer emergir outras análises, como veremos a seguir. Expressam-se, por exemplo, no tema dos ritos de iniciação, que tem diferentes perspectivas de análise.

Na pesquisa “Os ritos de iniciação10 no contexto atual: ajustamentos, rupturas e confrontos - Construindo identidades de gênero”, coordenada por Conceição Osório e Ernesto Macuácua (2013), da WLSA, questiona-se os ritos de iniciação, uma prática considerada da “tradição”, e que também tem sido questionada por setores dos movimentos de mulheres e jovens dentro de Moçambique. Esse trabalho foi apresentado às representações de embaixadas e aos Ministérios com o intuito de planejar medidas governamentais para regular essas práticas. Entretanto, a coordenadora da WLSA, Silva (2017), salienta que há estudos que indicam a manutenção dessas práticas:

O estudo “Perfil do gênero em Moçambique”,11 feito por uma consultoria, recomenda que deve se oficializar os ritos de iniciação. Ficamos estarrecidas porque está provado o que são os ritos de iniciação. Não temos que oficializá-los, mas fazer o trabalho com as matronas, aquelas senhoras que conduzem o rito. Então aqui andamos muito para atrás e para a frente, como vocês em relação à Lei Maria da Penha.

Mariano (2017) apresenta uma perspectiva diferente da WLSA em relação aos ritos de iniciação. Para ela, eles devem ser considerados como “escolas de iniciação/escolas de aprendizagem”:

Somos chamadas a prestar mais atenção às terminologias que usamos, porque se pensarmos no próprio conceito de rito, eu prefiro começar a usar “escolas de iniciação”, “escolas de aprendizagem”. Estão tão institucionalizadas que são escolas: nelas têm grupos de mulheres, há um processo de socialização. Temos várias instituições, até mesmo as igrejas. Como é que essas instituições trabalham? Cada vez estou mais cética em relação a essas definições, e a esses campos, pois temos muitos campos separados, que é preciso ver de forma interligada, pois não existem sempre fronteiras. A igreja tem uma função, depois temos a escola, a família. É preciso ver quais são as dinâmicas dentro desses espaços, é preciso olhar para esses vários aspectos de forma mais fluida, e não de forma fixa. Quando falamos de agência feminina temos que pensar nisso, para evitar alguma forma de exotização e também para reduzir essa tendência do nosso olhar sobre o ponto de vista das mulheres, refletir o nosso conhecimento sobre o ponto de vista das mulheres.

Segundo Mariano (2017), uma saída para essa controvérsia sobre a obrigatoriedade de certas práticas tradicionais (um dos pontos críticos dos direitos humanos) seria pensar numa perspectiva em que as atrizes envolvidas na escola de iniciação à sexualidade poderiam retardar, deixar um pouco mais espaço para as mulheres, a partir de uma certa idade, decidirem: “Acho que foi interessante porque até elas diziam que faz-se o alongamento dos lábios naquela idade entre os 8-12 anos porque os tecidos estão mais flexíveis e a dor é mais suportada. Portanto, é quase como uma imposição” (MARIANO, 2017).

Esse tema controverso nos levou a questionar a entrevistada sobre as críticas que vêm sendo feitas a um feminismo exógeno, que olha para Moçambique como um lugar onde as mulheres não têm agência e/ou são consideradas vítimas, exotizando suas práticas, que são diferentes das ocidentais. Mariano (2017) nos conduz a pensar criticamente na tendência que têm as homólogas ocidentais de avaliar e enquadrar em suas teorias as práticas que observam ou das quais tomam conhecimento, o que de alguma maneira é uma forma de colonizar os pensamentos dessas mulheres. Assim, Mariano propõe pensar e repensar essas categorias e não as tomar como um dado adquirido:

O repensamento dessas categorias é muito importante. Também para evitar estes mapeamentos teóricos que não refletem muitas vezes a realidade. Nas ideologias de emancipação depois da independência se propunha eliminar as práticas tradicionais. Essas práticas continuam, manifestas de formas diferentes, com formatos diferentes, mas estão até hoje. Com todo o esforço, com toda a força que depois da independência se tinha com a FRELIMO, inclusive de eliminar, erradicar todas as formas e todas as práticas tradicionais, tribais, étnicas.

Após a independência, mesmo dentro da FRELIMO, havia diferentes visões sobre a estratégia a ser utilizada para tratar desses temas junto à sociedade. Havia setores da Organização da Mulher Moçambicana (OMM) que não concordavam com a forma como alguns homens, inclusive o próprio Samora, conduziam a questão. Elas propunham uma negociação dessas transições, fazer diálogos. Diz Mariano (2017): “até hoje temos que pensar em termos de negociação, porque as práticas estão presentes, ainda que digam que foram ‘eliminadas’. Se o alongamento dos lábios era feito no período colonial, continua até hoje como uma intervenção sobre o corpo, essencial para a identidade da mulher”, logo, como uma forma de criar um pertencimento em uma determinada comunidade:

A ideia do pertencimento, exatamente. Pode não ser dita, e essa é uma das questões nas discussões que muitas vezes tivemos com médicos, com juristas, sempre falando da eliminação. Depois de passados 30 anos do discurso do Samora, de tudo, ainda hoje se discute essa questão. Estas práticas continuam acontecendo entre jovens do meio urbano e rural. Quando fizemos o estudo e falávamos de uma série de produtos que as mulheres utilizam nas suas vaginas para atrair o homem, para manter o homem, para uma melhor performance sexual, ainda hoje as pessoas usam e aquelas mulheres que nós falávamos sobre o assunto nas instituições: “ah isso é interessante”... Queriam! (Fala com ênfase). Tinham uma série de reservas, mas ao mesmo tempo queriam conhecer os produtos: “eu também quero o produto” (risos) (MARIANO, 2017).

Chamou-nos atenção que, ao investigar referências sobre a questão das mulheres e gênero em Moçambique, destacaram-se os nomes de Ana Loforte e Isabel Casimiro como duas referências pioneiras nos estudos de gênero. Perguntei para Ana Loforte de que modo, olhando para sua trajetória, ela avalia sua contribuição para esse campo desde o período pós-independência:

Se eu quiser fazer uma avaliação, eu poderei sem falsa modéstia (risos), que acabamos sendo as pioneiras. Eu, a Isabel e outras colegas que realizaram esses mesmos estudos. Conseguimos trazer aos de cima e dar visibilidade ao papel desempenhado pelas mulheres ao nível das famílias, porque havia a percepção de que elas deviam participar no desenvolvimento do país. Este era o slogan do dia a dia e transmitia a ideia de que a contribuição que a mulher dava não era considerada uma participação grande a nível do desenvolvimento do país, e os resultados desses estudos informaram que a mulher participa neste desenvolvimento de forma bastante ativa. O que falta é um reconhecimento desse trabalho e não há partilha dos benefícios do próprio processo com as mulheres. As entrevistas com as mulheres das cooperativas na periferia da cidade de Maputo nos forneceram muita informação sobre a participação na produção agrícola na periferia, que alimentava a capital do país e outras cidades. A presença delas nas cooperativas permitia os estudos dos filhos, porque havia creches, havia escolinhas para as crianças (LOFORTE, 2017).

Casimiro (2018) fala o que significa para ela (enquanto mulher, educadora e pesquisadora) ser uma referência para várias gerações de estudantes:

Tenho mais consciência disso nos últimos anos porque as pessoas me dizem isso, eu sei que fiz esse percurso, que parti pedra, como diz o Boaventura de Sousa Santos, que eu abri caminhos. E não que eu tivesse sido a primeira, mas não fechei portas, nem janelas. A gente teve a WLSA e, sobretudo, teve uma coisa que me ajudou muito: a ligação entre instituições governamentais, academia e associações. Eu estava sempre em todas, porque era do CEA, e eu era aquela referência. Outras pessoas fizeram isso, como a Ana Loforte, que formou gerações, a Conceição Osório e Luiz de Brito foram fundamentais no grupo da UFICS12 nos estudos de gênero. Eu fico muito grata, é bonito, mas é uma grande responsabilidade.

Na entrevista com Mariano (2017), perguntei se ela considera que os estudos e trabalhos que tem feito, junto com outras acadêmicas, e trabalhos da própria WLSA, configuram um campo dos estudos de gênero e a resposta dela foi a seguinte:

Eu penso que já se configuram nos estudos de gênero os vários trabalhos que têm sido feitos. Falo com base na discussão que tenho com colegas na academia: sinto que temos linhas, perspectivas. Por exemplo, algumas são consideradas ativistas e outras são mais acadêmicas. E parece-me que há uma barreira, há fronteiras que estão delimitadas. Quero me sentir entre as duas, o que é um problema, porque a academia sente-se na prerrogativa de ser só acadêmica, onde tem valor aquela pesquisa “pura”. Porque mesmo nas pesquisas por encomenda, ou pesquisas impostas, nós podemos dar a nossa contribuição, visão e podemos construir uma perspectiva que espelhe a realidade, sem distorções. Nós podemos pensar que estudos de gênero estão sendo construídos em Moçambique, se nós pensarmos desde a independência qual era a visão que as jovens tinham.

Embora haja um reconhecimento da existência de um campo de estudos de gênero, de acordo com Mariano (2017), há ainda desafios enormes a enfrentar, sendo um deles a falta de articulação para trabalhos conjuntos dentro desse grupo:

Existem vários grupos de homens e mulheres que se dedicam de forma ativa à investigação sobre questões que tocam homens e mulheres, para o empoderamento e emancipação de ambos. Existem também grupos de investigadores que fazem estudos baseando-se até em análises críticas das correntes dos primeiros estudos e influências, particularmente críticas e que propõem uma desconstrução das perspectivas teóricas ocidentais. Existe esse engajamento por parte de acadêmicos em Moçambique e existe um outro grupo engajado de forma ativa, fazendo intervenções que podem se enquadrar no ativismo: esses são os grupos de feminismos que vemos aqui no país. Infelizmente ainda não estão a trabalhar de forma articulada no que se refere a uma ligação entre o espaço acadêmico e o espaço de ativismo.

A socióloga Conceição Osório é uma intelectual que borra as fronteiras entre o espaço acadêmico e o ativismo, como demonstra no balanço da sua trajetória (enquanto mulher, pesquisadora, profissional e ativista pelos direitos das mulheres) e sua contribuição para a constituição de um campo de estudos de gênero e feminismos:

Minha contribuição é muito pequena e que nós temos estudos e pesquisas feitas por feministas, mas não há estudos feministas. Eu não sei se deveria de ter, porque temo que uma escola feminista faria um controle teórico, inclusive, para os estudos feministas. Quando o próprio feminismo é plural, é diverso, implica olhares múltiplos. Eu tenho medo porque nos outros países, como França, onde estudei também, há a tendência de haver um controle teórico de determinados grupos sobre os próprios estudos, validando ou não validando os que não estão dentro da mesma lógica. Isso, como ativista, eu acho que nós temos que ter... e temos. Foi muito difícil de construir, mas temos pontos comuns de acordo, de atuação pontual. Não temos ainda em Moçambique uma estratégia concertada de luta pelos direitos humanos. Não temos na pesquisa, não temos no ativismo. Tento levar o conhecimento de várias realidades no campo político, em que me sinto mais à vontade: analiso em termos do acesso e do exercício do poder por homens e mulheres, das lutas que há no seio dos partidos políticos para ter uma agenda feminina, como é que essa agenda feminina se constrói, como é que o espaço privado entra no espaço político e no espaço público, como que isso se resolve (OSÓRIO, 2017).

Pude observar no cotidiano a vida difícil que as mulheres moçambicanas enfrentam e, simultaneamente, algumas das estratégias que elas desenvolvem no dia a dia para superar tais dificuldades. Durante uma entrevista com Loforte, ela fala sobre a luta cotidiana das mulheres:

Essa questão de que o povo é resiliente é importante e isso dá a força para as mulheres aguentarem para sobreviver. Mas penso que há um pouco de conformismo em relação ao seu próprio destino e há uma ideologia que está muito presente nas nossas sociedades sobre o papel que a mulher deve ter em termos de nutrir a própria família. Portanto, há esta responsabilidade que recai sobre as mulheres de garantir a sobrevivência dos seus próprios filhos, um pouco aquilo que alguns autores chamam a “teoria do altruísmo materno”, que é a mulher que tem que ter esta capacidade, mesmo com todas as dificuldades que ela tenha que enfrentar no dia a dia, de garantir a sobrevivência e alimentação da família. Isso lhes move também no sentido de envidar todos os esforços para que pelo menos os filhos no dia a dia tenham um pouco de farinha, de xima, tenham uma papa, tenham caril das folhas etc. que ela vai buscar nos terrenos de cultivo para alimentação da sua família. Porque nas nossas sociedades uma mulher que não consegue garantir isto no dia a dia da sobrevivência da família a culpa não recai sobre os maridos, mas sobre ela que não está desenvolvendo formas de sobrevivência, não é uma verdadeira mulher no sentido que é atribuído o papel social para alimentar os filhos. Isso também contribui para a ideologia do papel social das mulheres, que as leva com todo o sacrifício, com todos os sofrimentos, a ter esta força que resiste, é resiliente (LOFORTE; SILVA, 2017).

A etnia é um marcador importante nas análises, pois auxilia a compreender as estruturas em Moçambique, segundo Osório (2017). Ela considera que a etnia explica questões relativas ao poder, estratégias de acesso aos recursos, mas são visões artificiais que não veem como determinantes na composição da identidade, como verificaram no estudo que resultou no livro Buscando Sentidos (OSÓRIO; CRUZ E SILVA, 2008).

Nós estudamos identidades nas escolas, de jovens e crianças entre os 12-18 anos, onde fizemos perguntas sobre o que elas pensavam e que elementos vinham da família, escola e grupos de amigos para compor a identidade. E comecei a ver que havia semelhanças enormes entre as várias etnias. O fato de ser Maconde ou Macua, aí são conflitos antigos, posicionamentos históricos, há algumas diferenças. Entretanto, quando se fala no concreto, não há diferenças, é exatamente o mesmo discurso. Esse estudo foi feito em cinco províncias do Sul, Centro e Norte, e com muita tristeza nossa, gostaríamos de trazer essa novidade étnica para o nosso estudo, mas não conseguimos (OSÓRIO, 2017).

Para Osório (2017), a questão da raça tem emergido como um componente importante, pois se configura no país um apartheid social:

A raça, que é um dos elementos, categorias ou variáveis importantes e diferenciadoras, mas aqui em Moçambique raça [...] Sendo que 99% da população é negra e a raça de fato precisa ser considerada. Se a gente fizer um estudo de como os negros representam os brancos vai haver diferenças, pois a maioria dos brancos hoje não se mistura. Nós estamos voltando à segregação, pois há espaços que são de brancos e relações só entre brancos. Há uma afinidade e é visível, há um apartheid social. No tempo colonial, no mato nós encontrávamos o analfabeto português, aquele cuja mulher veio junto com ele e tinha sido camponesa lá e aqui, ou casava com mulheres locais, os filhos casavam com mulheres negras. Esses brancos eram considerados de segunda, de terceira. Agora a distinção é acentuada por essa tal de cooperação econômica. Para a gente ser sinceros conosco, há uma questão racial colocada fortemente.

Para a investigadora, o marcador de classe em Moçambique continua sendo importante:

A questão de classe, de grupo, acesso a recursos é importante, mas não do ponto de vista clássico da classe de Marx, da apropriação dos meios de produção, da exploração direta da força de trabalho. Mas há no sentido da diferenciação, até de acesso a direitos, acesso à justiça. Não falando em classe estruturada, mas a classe em função do acesso diferenciado a bens, recursos e direitos básicos, à justiça. Agora, além dos recursos econômicos, há os simbólicos também. São todos os outros recursos que há grupos sociais que têm e há grupos que não tem. Não é do ponto de vista de que tenho domínio e controle das forças produtivas e dos meios de produção, e sim no sentido do poder, do controle das pessoas, do controle das mentes, de imposição de normativos que são discriminatórios (OSÓRIO, 2017).

Somando a essas reflexões, outros aspectos levantados por Carpuchande (2017) referem-se às questões epistemológicas e às diferentes legitimidades de pesquisadoras/es marcadas/os por território, língua, circulação e poder:

Essas abordagens mais africanas, e mesmo as ditas do Sul, usando para contextos como América Latina, Ásia, África, revelam vários quadros epistemológicos, mas a partir deles temos que levar em consideração as próprias e esses mesmos quadros encontram aquilo que é a sua legitimidade, por que quem é você para aparecer e confrontar, por exemplo, as ideias do Foucault? Ou por exemplo, quem trouxe essas ideias das teorias Queers, se foi mesmo a Judith Butler, mas que afinal no contexto brasileiro e mexicano outras investigadoras já haviam tratado sobre isso. E depois vem outra questão que até que ponto essas epistemologias do Sul vão ter esse mesmo espaço quando temos carência de um papel higiênico para usar no nosso banheiro. Nossas pesquisas são mais pesquisas-ação, rápidas. Quase não há financiamento para as pesquisas etnográficas e fenomenológicas. Outro problema é essa questão conceitual: a ideia é produzida no Ocidente e aplicada aqui sem o diálogo se realmente esses conceitos precisam ser redefinidos. Então é problemático.

Mariano (2017) complementa essa reflexão ao apontar como, metodologicamente, é possível a intersecção e a relação para construir outra academia, em diálogo com a sociedade e os movimentos sociais:

As pesquisas que realizamos geralmente têm a ver com questionamentos que temos sobre a realidade, sobre os fenômenos sociais que estão na base. Então nós temos que manter essa articulação com a base de forma permanente. Quando eu venho para a academia eu já estou transmitindo algo. Também deveria ser uma outra base, onde nós vamos discutir e depois podemos levar novamente. Então é essa dialética que estou a fazer, estabelecer esse diálogo, já faz parte da minha índole, da minha maneira de ser, gosto de estar na base, na comunidade e trazer o pensamento, esses sentimentos: eu quero criar pontes.

Na avaliação da ativista, secretária executiva do Fórum Mulher, Nzira de Deus (2017), a universidade nem sempre é favorável ao debate sobre o feminismo, ainda que sua percepção sobre o ser uma mulher feminista tenha despertado na academia, espaço onde viveu contradições profundas ao cursar Relações Internacionais e Diplomacia no Instituto Superior de Relações Internacionais e Diplomacia:

Vivi o feminismo na vida concreta mesmo e só na universidade consegui entender tudo e depois comecei a ler e a escrever. Foi quando eu “wow afinal existe feminismo, afinal tem isto, tem lá a teoria?”. E eu fiz meu tema de defesa sobre “Relações internacionais a teoria feminista” e foi recusado.

Eu - E por que foi recusado?

Nzira - Foi dito que “não estudamos a teoria feminista na universidade. De onde é que você aprendeu isso?”.

Eu - Você fez outro trabalho, com outro tema?

Nzira - Eu disse “não quero lutar”, não quis lutar. Mas agora voltei. Quando entrei no FM, acabava de sair da universidade. Depois encontrei a literatura que precisava - três livros sobre feminismo nas relações internacionais, e mostrei aos professores e perguntei “como é que vocês dizem que não faz parte do aprendizado, o fato de vocês como docentes não conhecerem não quer dizer que não existe, pode-se fazer muito bem leituras sobre isso”, calou-se, não se disse mais nada. Mas é claro, porque aquilo era uma coisa feminina, de afronta, porque é feminismo (DEUS, 2017).

A ativista do Movimento de Jovens Feministas de Moçambique (MovFemme), Shaista de Araújo (2017), conta da sua trajetória e do papel que a academia teve no despertar sobre o feminismo:

Eu fiz história na UEM e tive uma cadeira de Antropologia onde pela primeira vez ouvi o conceito de gênero e todo esse debate internacional. Não sabia que existia o FM, associações que trabalham em assuntos que me inquietavam, não sabia o nome dessa coisa que por dentro me agitava. Então, pela primeira vez ouvi a palavra feminismo, discutíamos na turma com a professora Isabel Casimiro. Vi que podia pesquisar e era científico falar sobre mulheres e redirecionei as minhas pesquisas da faculdade para áreas de gênero. O meu trabalho de licenciatura foi sobre o impacto do trabalho migratório no agregado familiar e sobre o poder da mulher na decisão do uso das remessas e o pouco acesso ao poder de decisão do uso daquele dinheiro. Fiz uma formação na WLSA e passei a ser assistente de projeto ao nível da ONU Mulheres, para debater a eficácia de ajuda e ver o espaço de debate de políticas, a transição do que é decidido internacionalmente até a adaptação a nível local. Isso definiu a minha carreira e possibilitou-me estar em contato com algumas companheiras jovens que trabalhavam nessas organizações e decidimos criar o MovFemme para interação e debate.

Outro desafio é fazer com que as pesquisas em geral e pesquisadores/as em particular adotem um olhar de gênero nos trabalhos que realizam. Um balanço realizado pelo historiador francês Michel Cahen (2017) durante a Conferência do Instituto de Estudos Sócios Econômicos (IESE), em Maputo, no 2017, identifica que há baixa expressão de investigações no IESE sobre questões de gênero:

Com certeza, há outros grupos em Moçambique que produzem excelentes pesquisas sobre questões de gênero (estou pensando na WSLA). Mas não se trata de fazer do gênero um tema à parte e menos ainda uma disciplina de estudo. É de integrar a problemática do gênero em todos os estudos do IESE. Outra fraqueza é a ausência completa do IESE - salvo erro da minha parte - nos grandes debates internacionais sobre a etnicidade, o pós-colonial, a colonialidade, o feminismo negro e a interseccionalidade, as mudanças do ambiente. Claro que o IESE define-se como centro de estudo sobre Moçambique e a África austral. Mas tudo o que acabei de citar não existiria em Moçambique e na África austral? (p. 20-21).

Nessa mesma direção, considero que as pesquisas feministas atuais, diante de sociedades cada vez mais complexas, demandam uma perspectiva de análise que leve em conta marcadores sociais de diferença e a questão da interseccionalidade, abrangendo as questões de gênero, sexo, sexualidade, geração, território, raça, etnia, classes e estratos sociais, entre outros que podem ser abrangidos à medida da necessidade.

Além disso, a historiadora moçambicana Teresa Cruz e Silva (2011) aponta que a redução de investimentos institucionais em pesquisa e a crescente entrada de recursos externos condicionam e moldam as agendas de pesquisa e a produção de conhecimento, levando as Instituições de Ensino Superior (IES) a um declínio gradual, que atinge na atualidade estados que ela considera de gravidade para o futuro do conhecimento em Moçambique e África, no geral. Ela analisa os fatores epistemológicos que podem impactar a produção, relação e circulação do conhecimento produzido em África em âmbito global:

Se começarmos a fazer as nossas análises há uma série de linhas que tentam impor o conhecimento hegemônico, isso é nítido como água. Mas eu sou a favor de teorias alternativas e volto ao Paulin Houtondji. Não basta apenas dizer que a culpa é da imposição do Norte sobre o Sul e acho que nesse momento existem acadêmicos africanos, latino-americanos e asiáticos que têm teorias que podem ser perfeitamente utilizadas para algumas análises. Mas há também um caminho que precisa ser feito. Temos que investir para que nós africanos/as façamos nossas análises e não sou a favor das pessoas que dizem que é preciso banir o conhecimento do ocidente. Aproveitemos aquilo que pode ser útil para nós e façamos a nossa produção, porque acho que casos extremos levam ao oposto do eurocentrismo. O mais importante é investir na produção do nosso conhecimento e encontrar alternativas (CRUZ E SILVA, 2017).

Essa situação afeta os objetivos para os quais as Instituições de Ensino Superior (IES) foram criadas, como a produção de conhecimento autônomo, crítico, construtivo, livre e comprometido socialmente, capaz de contribuir para um projeto de desenvolvimento endógeno, a partir das realidades e necessidades do país e do seu povo. “Para que a educação e a ciência possam realmente ocupar um lugar privilegiado como motores de mudança no processo de luta contra a ‘vulnerabilização’ cada vez mais patente dos países africanos aos impactos das mudanças globais” (CRUZ E SILVA, 2011, p. 275), disfarçados de projetos de desenvolvimento salvacionistas que também focam seus projetos na agenda de gênero.

Considerações finais

Os estudos de gênero se constituem concomitante à história recente do ensino superior no país, ligada à resistência ao regime colonial e à agenda das mulheres na luta de libertação que foi se consolidando na luta dos movimentos no decorrer das últimas décadas e, posteriormente, na construção do Estado no pós-independência. Revela, ainda, o compromisso de setores de mulheres acadêmicas com uma visão de intelectuais orgânicas, que voltam seu trabalho educativo, de pesquisa e extensão para contribuir no avanço dos direitos das mulheres.

As entrevistas e reflexões teóricas me levam à compreensão da emergência dos estudos de gênero na África, partindo de estímulos externos, mas que encontraram um vasto campo de necessidades concretas de refletir e propor ações para a construção da igualdade entre homens e mulheres. Dessas possibilidades que chegaram com as “ajudas” e financiamentos, as acadêmicas e ativistas tiveram a capacidade de construir uma agenda de pesquisa e de ação própria que atendesse às dinâmicas locais.

As falas das intelectuais nos revelam diferentes percepções e entendimentos analíticos sobre as questões. Percebo nessa ausência de consenso a grande riqueza da produção teórica, pois oferece diferentes pontos de vista que levam a múltiplas chaves de análise para as problemáticas, o que favorece o aprofundamento das reflexões.

Em diálogo com a noção de campo de Pierre Bourdieu (2012), percebemos, em parte, o processo de constituição e de tensões que está envolvido na emergência dos estudos acadêmicos de gênero em Moçambique, evidenciando que o campo de gênero não é isolado em si mesmo, mas se faz nas relações internas e externas, com diferentes espaços da academia, do Estado e do ativismo, marcado também por relações de poder, busca de reconhecimento e legitimidade e de luta por recursos.

Das falas e da literatura consultada, concluímos que o campo dos estudos de gênero está ainda em processo de construção, marcado pela interdisciplinaridade acadêmica e riqueza empírica, por tensões internas, por pressões externas e por perspectivas para uma agenda futura que possa atender aos desafios apontados no presente.

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LOFORTE, Ana. WLSA [06/12/2017]. Entrevistadora: Vera Gasparetto e Hélder Pires Amâncio. Maputo - Moçambique, 2017. 3 arquivos .m4a (00:03:53; 00:28:52; 00:29:00). Entrevista para a pesquisa de Doutorado. Transcrição: Hélder Pires Amâncio. [ Links ]

LOFORTE, Ana. WLSA [12/01/2017]. Entrevistadora: Vera Gasparetto. Maputo - Moçambique, 2017. 1 arquivo .m4a (01:44:27). Entrevista para a pesquisa de Doutorado. Transcrição: Lázaro Cossa. [ Links ]

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UNIVERSIDADE EDUARDO MONDLANE (UEM). Disponível em Disponível em http://www.uem.mz/ . Acesso em 27/08/2017. [ Links ]

1O trabalho de campo foi realizado em Moçambique em 2016/2017.

2Esse termo cunhei na primeira etapa da pesquisa de campo em Moçambique, em dezembro de 2016, pois na viagem aérea observei no mapa de voo que o percurso é em linha reta, remetendo à ideia de um corredor que pode proporcionar trocas e ser o lugar para a circulação de tecnologias epistemológicas, facilitando a circulação de teorias feministas do Sul-Sul.

3A emergência desse campo nas minhas observações foi profundamente discutida com a minha orientadora de Doutorado, Professora Luzinete Simões Minella (PPGICH/UFSC).

4O n’tehe é um pedaço de couro utilizado para várias funções do cotidiano, como agasalho, saia, amarrar às crianças junto ao corpo.

5Esta intelectual é senegalesa.

6Criada ainda durante o colonialismo, em 1962 foi fundada com o nome Estudos Gerais Universitários de Moçambique. Em 1968 passou a ser Universidade de Lourenço Marques.

7Não farei uma densa retrospectiva do CEA. Para quem tiver interesse, recomendo a tese de Doutorado de Carlos Fernandes (2017), orientada pelo Professor Valdemir Zamparoni, da UFBA.

8Os países são Botswana, Lesotho, Moçambique, Swazilândia, Zâmbia e Zimbabwe. A Africa do Sul e a Namibia, que haviam tomado parte no encontro preparatório, não puderam participar, devido às sanções internacionais contra o regime do apartheid. A partir de 1996 o Malawi passa a integrar a WLSA.

9A saída coincidiu com o fim da greve de docentes na UEM e uma parte das pessoas que dela participaram estava na WLSA. Estes dados parecem indicar, na minha avaliação, que não se trata de uma mera coincidência entre esta saída da WLSA e a greve, mas que esta última também motivou a primeira.

10Os ritos de iniciação são instituições culturais praticadas nas zonas centro e norte de Moçambique. As mulheres que protagonizam os ritos de iniciação estruturam o seu cosmo, definem papéis sociais, constroem noções sobre corpo e sexualidade, colocando-se numa posição onde se afirmam como sujeito sócio-histórico nas suas comunidades. No decorrer do texto aprofundo a discussão sobre o tema.

11Essa publicação foi realizada pelo Ministério de Gênero, Criança e Ação Social (MGCAS) em julho de 2016. A pesquisa foi financiada pela União Europeia e a impressão pelo PNUD. As consultoras são da Equipe da Altair Assessores e da Human Dynamics.

12Unidade de Formação e Investigação em Ciências Sociais.

14Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: GASPARETTO, Vera Fátima. “O campo dos estudos de gênero em Moçambique/África”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 1, e68326, 2020.

Financiamento: Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 e o presente dossiê foi realizado com apoio do Programa de Internacionalização PRINT/CAPES. /

17Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

18Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 31 de Outubro de 2019; Aceito: 21 de Novembro de 2019

gasparettovera@yahoo.com.br

Vera Fátima Gasparetto (gasparettovera@yahoo.com.br) é doutora no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas/UFSC, pós-doutoranda no PPGICH/Área de Estudos de Gênero (Bolsista PNPD/CAPES), Pesquisadora do IEG/UFSC, Pesquisadora Associada CEA/UEM. Integrante da Comissão Organizadora do 14º Congresso Mundos de Mulheres.

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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