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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.28 no.3 Florianópolis set./dic. 2020  Epub 01-Sep-2020

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n372525 

Dossiê Inflexões feministas e agenda de lutas no Brasil contemporâneo

Quem mandou matar Marielle? - uma conversa com Luyara Franco

Who ordered Marielle’s killing? - a conversation with Luyara Franco

Leonardo Ferreira Peixoto1 
http://orcid.org/0000-0002-4817-1701

1Universidade do Estado do Amazonas, Tabatinga, AM, Brasil. 69640-000 - cstb@uea.edu.br


O presente texto apresenta uma conversa que tive com Luyara Franco, filha de Marielle Franco, 550 dias após o assassinato da vereadora da cidade do Rio de Janeiro. Dois anos e oito meses após o crime e mais de um ano após a conversa com Luyara, o caso continua sem resposta. O assassinato de Marielle Franco não pode ser entendido como um evento datado e localizado apenas em 14 de março de 2018 (dia do crime) na cidade do Rio de Janeiro, porque ele mobilizou e deu novos rumos e sentidos para as lutas das mulheres negras no Brasil e impactou também as lutas das mulheres negras no mundo. Marielle Franco é hoje um símbolo de resistência às violências e opressões cotidianas que sofrem as populações que ela representava em seu mandato e na sua trajetória política: as mulheres, as faveladas, as cidadãs LGBTQIA+,1 as pretas e outras mais.

Tive o prazer de estar na luta com Marielle Franco. Durante muitos anos e em muitos atos, sua filha Luyara Franco se fazia presente, desde a infância. Quando começamos a organizar a proposta deste dossiê, pensei na possibilidade de dialogar com alguém da família de Marielle. Inicialmente, pensei em Mônica Benício, a viúva de Marielle, mas depois comecei a atentar para o fato de que Luyara era uma voz ainda pouco ouvida. São poucas as matérias e os momentos em que vemos a filha de Marielle falar sobre sua mãe. Lembrei-me então daquela menina que eu via sempre nos atos com sua mãe, alguém que certamente aprendia muito com ela e uma das pessoas a quem Marielle mais faz falta. Digo uma das pessoas, porque pude perceber, na conversa com Luyara, a importância que a família tem na sua formação e na formação de sua mãe. A sensação que temos ao ler a conversa é de que hoje a voz de Luyara é também a voz de sua tia Anielle Franco e seus avós, Marinete Silva e Antônio Francisco Silva Neto, que pretendem manter vivas as lutas e a voz de Marielle Franco.

Luyara, uma jovem mulher preta de 21 anos,2 estudante de Educação Física da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, é hoje uma mulher que mantém o legado de sua mãe e que acredita que seu papel nas lutas é de base, dentro dos movimentos sociais. Ela não se vê e não pretende concorrer a nenhum cargo de representação política, mas também não vislumbra a possiblidade de se distanciar das lutas e das bandeiras defendidas por sua mãe.

Luyara e eu marcamos de nos encontrarmos na 12ª Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, no dia 15 de setembro de 2019, na praia de Copacabana. Ela estava com sua avó e seu avô. Após a Caminhada, eu, Luyara e meu namorado fomos a um restaurante almoçar e tivemos a conversa que apresento neste texto. Uma conversa que nunca havíamos tido. Conversamos não somente sobre as dores da perda, mas também sobre: as dúvidas e as incertezas quanto à ausência de respostas na investigação; sobre a importância da influência que mãe e filha tinham uma na vida da outra; sobre a necessidade do seu reconhecimento enquanto mulher negra nas lutas cotidianas; e sobre as sementes de Marielle Franco.

Antes de apresentar a conversa, gostaria de falar um pouco sobre a minha relação com Marielle: “na lutaé que agente se encontra”. Era bem assim que a gente sempre se encontrava, como poetizou o samba da Mangueira de 2019. Na luta. Comecei a militar nos movimentos sociais do Rio de Janeiro em 2004, quando me tornei estudante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Desde então, foram muitos encontros ao longo da vida de luta e não consigo lembrar bem ao certo quando eu e Marielle nos encontramos pela primeira vez. Tenho quase certeza de que nosso primeiro encontro ocorreu por intermédio de um grande amigo em comum, Paulo Victor, e provavelmente iniciado em alguma manifestação e terminado em alguma mesa de bar. Lembro de Luyara ainda criança acompanhando Marielle em algumas atividades. Lembro o quanto a gente se gostava e ríamos quando nos encontrávamos. Marielle era solar. Em 2009, depois que comecei a militar mais próximo do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), os encontros passaram a ser bem mais frequentes, até minha mudança em 2012 para o Amazonas.

Mesmo distantes, ainda mantínhamos contato pelo Facebook. Marielle era uma liderança importante e eu sempre estava atento aos seus posicionamentos diante das questões sociais. No final de 2014, começo de 2015, Marielle Franco foi uma importante interlocutora na luta pela liberdade de Miriam França, uma amiga negra que havia sido presa injustamente em Fortaleza (CE), acusada de um assassinato que não cometeu. Em 2016, voltei para o Rio de Janeiro para iniciar o doutorado e tive o prazer de acompanhar a candidatura de Marielle à Câmara Municipal. Não participei tão ativamente da campanha como gostaria, mas estive presente com Marielle em alguns momentos e no mais importante deles: no dia de sua vitória, em 02 de outubro de 2016. Não foi uma simples vitória: Marielle foi a 5ª vereadora mais votada para a Câmara Municipal do Rio de Janeiro nestas eleições: 46.502 votos. A Lapa (RJ) foi o local do encontro, assim como sempre foi o local de muitos encontros de luta. Este não era apenas mais um encontro, o gosto era maravilhoso e inacreditável.

Aos dezessete anos, lembro que eu, meu pai, minha tia e minha prima fomos para a rua em Nova Iguaçu comemorar a vitória do Lula. Foi a primeira vez na vida que eu me sentia representado politicamente e eu tive o prazer de votar na eleição em 2002. Mas a vitória da Marielle, para mim, estava em outro nível. Era como se eu mesmo estivesse entrando pela porta da frente da Câmara dos Vereadores. Eu, uma bicha preta, de Belford Roxo, uma das cidades mais violentas do Estado do Rio de Janeiro, que havia sido professor dos anos iniciais do ensino fundamental na Rede Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro, oriundo de uma universidade pública estadual e militante em tantas lutas em comum com Marielle. Como eu já disse, era na luta que a gente se encontrava e nada disso era por acaso. A mesma Câmara Municipal que, por muitas vezes, havia sido o local onde eu e tantas outras companheiras professoras da rede pública éramos agredidas pela polícia militar quando fazíamos manifestações e lutávamos por nosso direito. Era naquele lugar branco, opressor, misógeno, homofóbico que se elegia mais uma parlamentar negra e favelada. O parlamento agora era nosso! No meu coração só tinha espaço para alegria e para o sentimento de que havíamos conquistado mais um degrau na luta pelos nossos direitos e em defesa da Democracia. É importante lembrar que 2016 é o ano do Golpe (Tiago Bernardon de OLIVEIRA, 2016) contra a presidenta Dilma Roussef, quando vemos um tsunami conservador (Inês Barbosa de OLIVEIRA; Maria Luiza SÜSSEKIND, 2019) emergir no país, o que fazia a vitória de Marielle ser ainda mais significativa e importante. Nem tudo estava perdido.

Continuei a morar no Rio em 2017 e, em novembro, na luta contra o governo de Marcelo Crivella e pelos direitos de viver da população LGBT+, eu e Marielle nos encontramos pessoalmente e pela última vez, na luta e na vida. Eu estava sozinho e vi que do outro lado da rua havia uma aglomeração de pessoas. Alguns veículos de comunicação cercavam o Deputado Federal Jean Wyllys. Ao lado dele estavam Marielle Franco e, se não me engano, Talíria Petrone. Enquanto alguns jornalistas se aglomeravam em volta de Jean, eu cheguei por trás de Marielle e disse: “Oi, meu amor, vim aqui para falar com Jean não! Quero falar com quem importa”. Rimos, nos abraçamos e demos nosso selinho de sempre. Não demoramos muito, porque elas tinham que subir no carro principal para fazerem seus discursos. Na despedida, agarrei em sua mão e disse: “Muita força, sua linda!”. Ela respondeu: “Obrigada, meu amor! Estou precisando mesmo. Está f*da”. Esta foi a última vez que eu e Marielle nos encontramos pessoalmente. E desde o dia 14 de março de 2018 são raros os dias e os momentos em que não penso nela. É impossível para mim estar em qualquer manifestação, em qualquer luta que seja, sem pensar em Marielle.

Com essas memórias e envolvido por muita emoção, que me reencontrei com Luyara para conversarmos. Selecionei parte da conversa e encaminhei para que ela lesse e desse sua autorização para a publicação. Apresento a vocês uma conversa afetuosa e carinhosa entre duas pessoas que compartilham a dor da perda de Marielle Franco, obviamente em contextos e níveis completamente diferentes, mas ambos com o desejo de fazer ecoar as lutas e o legado de Marielle Franco, que se tornou uma das principais figuras políticas nas lutas das mulheres pretas no Brasil e no mundo. Marielle, Presente! Hoje e sempre!

Leo: Ontem completou um ano e meio da morte da Marielle; já são 550 dias sem resposta e a pergunta que nós, da sociedade, mais fazemos é: “Quem mandou matar Marielle?”. E você? Qual é a pergunta que você mais se faz ao longo de todo esse tempo?

Luyara Franco: Eu acho que é um misto de várias perguntas, algumas que eu acho que sei a resposta, mas que mesmo assim a cada dia eu fico me perguntando: “Por que ela?”. E aí eu lembro o significado que ela tinha como pessoa, como personalidade, como uma das principais figuras políticas da esquerda do momento. Claro que tem o Marcelo Freixo, tem outras pessoas, mas naquele momento quem estava indo pro embate era ela. Então essa é uma pergunta que eu me faço, mas que eu meio que sei a resposta. “Quem mandou matar?” Também é uma coisa que eu imagino. São pessoas que sabiam do potencial dela, pessoas “do poder” e influentes e que sabiam aonde ela iria chegar. Em uma das primeiras entrevistas que eu dei, eu falei: “Cara, eu ‘super’ via a minha mãe como presidente da república”. Ela não ia parar como vereadora. Ela fez um longo percurso para chegar aonde chegou. Eu lembro dela no primeiro mandato do Freixo, no primeiro debate em que ela participou, ela ainda estava muito crua, ela chegou muito crua, mas ao longo dos anos ela se preparou para aquilo. A vida dela era na militância política. Ela estava preparada e ela sabia que era o momento dela. E outra coisa que eu me pergunto é: “Por que daquele jeito?” “Por que de uma forma tão cruel?”. Ceifar a vida de uma pessoa sem sequer dar chance de nada. Foi de uma maneira muito covarde e colocando em risco a vida de outras pessoas. Nós perdemos o Anderson também, que tinha um filho com problemas fisiológicos. Foi muito covarde. E acho que as pessoas que fizeram não imaginaram que ia repercutir tanto. Eles não sabiam quão grande ela era. Eles não sabiam do tamanho dela.

Leo: Acho que muita gente não sabia também da trajetória política da Marielle. É uma trajetória construída na luta e de muito tempo. Com certeza, tinha no mínimo 10 anos que a gente se conheceu na luta e nela a gente se encontrava sempre. E com você desde pequena. Como foi para você crescer nesse cenário? Como era essa relação entre você e sua mãe com a política?

Luyara Franco: Eu nasci praticamente na luta, né? Quando minha mãe entra pro gabinete do Freixo, em 2006, eu tinha 8 anos e eu acompanhava, ia aprendendo, mas eu só tive noção do quanto ela representava e do quanto ela me influenciou em me identificar como mulher, como mulher negra, foi nas eleições. Foi quando eu vi e disse: “Caralho! Minha mãe é foda!”. Porque na realidade eu nunca gostei da política partidária. Eu sempre gostei mais dos trabalhos de base. Quando eu estudava, eu criei o movimento feminista negro dentro da escola. Eu sempre admirei o trabalho de base. Já minha mãe, leonina, né? Nasceu para aquilo. Eu acho que a nossa relação sempre foi de troca. Eu ensinava muito a ela e ela me ensinava muito. Porque cada uma de nós tínhamos as nossas vivências, as nossas experiências. Eu aconselhava muito ela. E falava: “Mãe, vai por aqui. Olha isso que está acontecendo”. E ela sempre pedia para eu ir passando as coisas para ela. Eu sempre mandava para ela textos, músicas de feministas, coisas da atualidade para ela ficar bem engajada. Era uma relação muito boa e eu percebi a força dela na campanha eleitoral de 2016. Foi quando eu vi a dimensão daquela mulher. Enfim, eu sou suspeita para falar porque eu sou filha, né? Mas você estar em um lugar e as pessoas me reconhecerem e dizerem “Nossa! Você é filha da Marielle, né? Eu votei nela”. E ninguém esperava aquela quantidade toda de votos.

Leo: Ela foi a quinta vereadora mais votada, né?

Luyara: A quinta mais votada e a segunda mulher mais votada na cidade Rio de Janeiro. A gente imaginava seis mil, sete mil votos. Que se entrasse, seria como suplente. E eu me lembro muito bem, a gente estava em casa, a gente nem ia para Lapa. Na verdade, a gente ia só no final. Foi quando a gente foi vendo: 10 mil, 15 mil, 20 mil... Minha mãe falou: “Vamos embora agora”. E a gente no carro, estava eu, minha avó e a Mônica acompanhando: “30 mil, 35 mil,...”. E aquela emoção, aquela emoção. Quando a gente chegou lá e viu aquelas pessoas chorando. Eu via que ela estava simbolizando a esperança daquele povo. Eu pensei: “Que mulher! Que mulher!”.

Leo: Eu estava no Rio nesse dia, em Belford Roxo, e eu lembro que fui para Lapa também e a cena que ficou marcada na minha memória foi ver sua mãe, você, sua avó, sua tia e sua prima juntas. Foi bem ali em frente ao Circo Voador. Não teve como não perceber a força e a importância das mulheres na família de vocês.

Luyara: Sim, nossa família é matriarcal e já vem de longa data. Minha bisavó, minhas tataravós, a gente tem uns antepassados com uma parte de ascendência indígena. Tem uma tia minha, que é prima, mas pela idade a gente chama de tia, a Tia Solange, que ela ensinou muito para gente. Ela foi fonte principal para pegar minha mãe pela mão e cobrar que ela entendesse a própria história e a história da nossa família: “Entenda que aqui tem herança, nós temos pessoas que construíram essa família”. Minha avó, na verdade, minha bisavó Filomena, eu falo direto dela, ela teve onze filhos e a maioria mulheres, se eu não me engano. E lá em casa também é uma família só de mulher. É uma família que acolhe muito, uma família que cuida um do outro. E aí minha mãe chega para fazer política desse jeito. Na verdade, a gente faz e vive a política toda hora, né? O jeito como você trata um trabalhador que te atende numa padaria, por exemplo, já diz muito da sua maneira de viver a política. E minha mãe decidiu viver sua política e isso se expressou na campanha, com muito afeto. Essa forma como ela se portava, o fato de estar na rua, foi bem forte e trouxe de alguma forma para essa campanha algumas marcas da nossa família.

Leo: Como foi para você quando a sua mãe decidiu que iria se candidatar à vereadora? Você achou que seria legal, que deveria ser esse o caminho ou o quê?

Luyara: Eu não vou mentir, eu fiquei com medo por conta da conjuntura política que a gente vive no nosso país. Um país que já vinha avançando no conservadorismo. Um país conservador, que não consegue identificar suas heranças. Que não consegue nem entender a pluralidade do seu povo. E eu pensei assim: “Vai dar merda! Ou ela não vai entrar ou se ela entrar vai ser perseguida”. Mas aí ela chegou, conversou comigo, e eu disse: “Sou sua filha e você é leonina... (risos). Por mais que eu fale não, eu sei que é o que você quer. E é o seu momento. Você gosta de agregar. Se você acha que é o seu momento, eu não vou te colocar para trás, porque eu sou sua filha. Qualquer coisa que você decidir eu vou estar com você”. A gente se falou uns dois meses antes e quando eu vi que ela já estava construindo a campanha eu disse: “É isso! Vamos para luta!”. Eu não consegui estar tão atuante como eu queria, porque era meu ano de pré-vestibular, tive um processo depressivo na época. Foi um ano muito pesado para mim. Foi o ano do golpe, estava muito difícil para todo mundo e eu não consegui estar da maneira que eu gostaria de estar. Mas sempre que eu podia eu ia com ela para rua panfletar, com a minha prima Mariah pequena no colo, ela não tinha nem um ano. Minha avó foi o melhor cabo eleitoral desse país. A quantidade de votos que minha avó conseguiu para minha mãe foi algo bizarro. Foi importante, e quando ela decidiu, eu falei: “Se você quer isso, vamos!”.

Leo: E agora, com 14 de março de 2018, eu acho que aconteceu um fenômeno que eu nem ninguém imaginava que seria tão grande, né? A Marielle virou um ícone da luta das mulheres, do movimento negro, das pessoas faveladas e também das pessoas das diferentes sexualidades. Eu estive presente agora no Prêmio Dandara que ela recebeu na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, a sua tia Anielle falou um pouco sobre essa questão da sexualidade da Marielle reivindicando que não taxassem, que não enquadrassem a Marielle em um perfil. E aí eu fiquei pensando, como seria essa questão da sexualidade da Marielle para a família. Como era isso para você?

Luyara: Para mim era supertranquilo. Eu descobri assim, porque quando ela começou a namorar com a Mônica eu deveria ter uns sete anos e aí eu escrevi no espelho uma pergunta para ela: “Você está namorando com a Mônica?”. Aí ela sentou comigo, conversou, desde aquela época eu pensava assim: “Você está feliz? Então está tudo bem”. A partir de 2016, quando ela foi eleita, a gente entrou em outra vida, né? Em 2017 e 2018, se eu falar para você que eu vi a minha mãe... era só no final de semana e olhe lá! De manhã eu acordava e ela já tinha ido trabalhar e quando ela chegava de noite eu já estava dormindo. No dia a dia era muito difícil a gente ficar junto. Mas para mim e para ela isso sempre foi muito tranquilo. Acho que mais recentemente ela estava se identificando mais como lésbica, até em algumas falas dela, mas tem muita gente que esquece o passado, né? Minha mãe foi casada sete anos com o meu ex-padrasto. Foi casada com meu pai, já namorou outros caras. Eu acho que o problema principal é que tentam sempre enquadrar ela numa coisa só, e esquecem que ela era muito mais aberta. Eu, particularmente, não gosto de ficar classificando as pessoas. E, bom, depois do dia 14 você vê, começam a surgir diversos adjetivos: mãe, negra, mulher, lésbica, bissexual, enfim, ela era tudo isso. Ela era a defensora das minorias e dos direitos humanos e se reconhecia como sendo parte disto. Eu não gosto muito quando taxam ela de uma coisa só. Não dá para apagar muitas histórias da vida dela. Mas lá em casa sempre foi muito tranquilo.

Leo: A última vez que eu encontrei a sua mãe foi em novembro de 2017, ela já estava no mandato dela, foi na Parada LGBT do Rio e eu lembro que ela chegou junto com o Jean Wyllys e a Talíria Petrone. A imprensa correu toda para cima do Jean e eu aproveitei e cheguei por trás dela e disse “Vou falar aqui com a única pessoa que me importa”. E a gente começou a rir. Conversamos bem rápido e eu lembro que terminei falando com ela assim: “Estamos juntos. Muita força!”. E ela me respondeu: “Estou precisando! Está foda!”. Eu fiquei pensando muito depois: “O que está foda?”. O que você acha que poderia ser? Claro que pode ser muita coisa, poderia estar foda de trabalho, do dia a dia...

Luyara: Cara, no início, por mais que ela conhecesse o sistema, por ela ter trabalhado no gabinete do Freixo, eu acho que você ser a figura pública muda muita coisa. E ela estava com uma carga horária muito pesada. E quando virou o ano, em 2018, já começou a se pensar nas eleições e acho também que ela sentiu muito essa pressão. Uma das minhas últimas conversas que eu tive com ela, umas duas semanas antes do dia 14, foi mais ou menos sobre isso. Eu lembro que eu estava fazendo a janta e ela sentou na cozinha comigo e começou a dizer: “Lu, esse ano eu vou precisar da sua ajuda. Você sabe como é a política e vão ter muitas pessoas que vão querer passar a perna em mim”. Foi assim, uma conversa bem pesada e eu comecei a ter noção e ver a proporção de onde ela estava. Se ela for se candidatar a alguma coisa esse ano, vamos ter uma campanha muito mais pesada, porque as pessoas estão vendo a importância dela e podem querer fazer alguma coisa com isso. Eu digo desqualificar e tal... E no dia 14, eu lembro que eu estava na minha avó, porque eu estava com conjuntivite. Na segunda-feira, antes do dia 14, eu fui para casa e quando eu descobri ela não me deu nem um abraço. Ela disse: “Eu não posso pegar conjuntivite. Essa semana eu tenho muita coisa para fazer”. E eu respondi: “Puta que pariu, hein, Marielle”. Fiquei puta em casa. Peguei minha mochila e meti o pé, nem falei com ela direito. Aí na quarta-feira eu pensei assim: “Caralho! Conseguiram!”. Viram a importância dela e passaram a perna nela. E a coisa que eu mais martelava era: “Conseguiram! Que merda! Ela podia ter feito muito mais coisa”. Mas apesar de tudo, a cada dia que passa eu vejo mais e mais a importância dela. Semana que vem eu estou indo para Paris, lá já tem uma rua, uma estação de metrô e agora vão lançar um jardim com o nome da minha mãe: “Jardim Marielle Franco”. E eu estou indo com meus avós. Eu acho que o mais bizarro e uma pergunta que eu me faço também é “Por que as pessoas do Brasil, mesmo sabendo de todo histórico do nosso país - mas eu fico me perguntando - por que as pessoas do Brasil ficaram tão desumanas? Por que lá fora ela tem tanta representatividade e as pessoas estão fazendo tudo para manter viva a memória dela e aqui nem tanto?”. Paris tem rua, metrô e jardim e no Rio de Janeiro tem uns caras que quebram uma placa simbólica em homenagem a ela. Eu fico me perguntando: “Como a gente deixou chegar a esse ponto?”. Ao ponto de que as pessoas são desumanas. Eu lembro de um post que eu vi, quando o cachorro morreu no Carrefour. O cara falando: “Qual cachorra deveria ter ficado viva?”. Com a foto da minha mãe e as pessoas votavam no cachorro. Como você faz isso com a vida de uma pessoa que tem família, que teve uma base, que tem formação, que teve uma história que não foi fácil? E é uma pergunta que eu sempre me fiz também.

Leo: Lu, eu queria falar um pouco das sementes de Marielle. Apesar de, na sua maioria, o Legislativo e o Executivo, principalmente no Estado do Rio de Janeiro, não estar nada favorável, mas no mesmo ano, após a morte de Marielle, nós elegemos três deputadas estaduais negras: a Dani Monteiro, a Mônica Francisco e a Renata Souza; e a Talíria como deputada federal. Como você vê isso? Para mim são, de fato, sementes de Marielle Franco, sementes da luta. Como você vê isso?

Luyara: O termo semente eu curto. Não é algo que mexe comigo. No início falavam muito em herdeiras, “herdeiras de Marielle”. Cara, tá ligado! Não! Herdeira não. Minha mãe falava muito em “Uma sobe e puxa a outra”, infelizmente não foi da forma que a gente queria. Se o cenário fosse outro, como será que elas iriam entrar? Será que iriam entrar? Não sei. Mas eu acho que elas estão tendo um papel fundamental na política estadual e nacional. A Renata Souza tem batido de frente com o Witzel. Denunciou ele à ONU e ele quis pedir a cassação do mandato dela. E a Renata era uma grande parceira da minha mãe, desde o primeiro mandato do Freixo. Elas estavam sempre juntas e, antes mesmo, no pré-vestibular comunitário. Elas cresceram juntas politicamente. E eu acho que esse é um movimento que não pode parar. A gente precisa sempre ter representatividade lá dentro. E eu espero que a gente continue a ter representatividade lá dentro. Até porque a gente incomoda eles, né? Nesta semana os deputados estaduais estavam reclamando da cor da vestimenta das mulheres. E, cara, eles vão ter que engolir a gente. Com nossa alegria, com nossas cores.

Leo: E como você se vê nessa luta agora?

Luyara: Para mim é um peso e eu acho que depois da morte da minha mãe as pessoas passaram a me identificar só com isso. Sou “A filha da Marielle”. Já estigmatizou. Meu primeiro dia de aula, um mês depois do dia 14, eu não sei nem de onde eu tirei forças para ir. Acho que ela me ajudou muito espiritualmente. Enfim, na faculdade, as pessoas falavam “Não vou falar com ela, porque ela está se achando por ser a filha da Marielle”. Como assim? Você acha mesmo que eu vou me vangloriar porque a minha mãe morreu? Tipo, uma coisa muito bizarra. E eu sei que a minha presença em alguns lugares incomoda muito. Até pela minha essência, por eu ser mais espontânea e falar mesmo, de acolher, de ser simpática, de falar “estamos juntos”, isso incomoda muita gente. E tem esse peso, que eu acho que a cada dia que passa eu tenho tentado pegar para mim o mínimo possível. Eu tenho certeza de uma coisa, não quero seguir carreira política. Não a partidária, não pretendo me candidatar a nada. Estou dentro da política, sou uma pessoa com uma atuação política, já tinha antes com a minha mãe, mas ser a representante e me candidatar, eu não quero. Eu acho uma parada muito suja. Não quero ser a próxima a morrer. E nem quero ter que me corromper. Eu não vou fazer isso. A gente vive um momento difícil, de pessoas que precisam ter essa coragem, mas eu não tenho. Minha mãe teve muita garra, puxou para ela a responsabilidade e estava dando conta, mas hoje em dia o que a gente tem é o Instituto Marielle Franco, estamos trabalhando todos juntos da família: eu, meus avós e minha tia. E nós temos alguns pilares importantes: 1) lutar por justiça; 2) defender a memória; 3) multiplicar o legado; e 4) regar as sementes. São os quatro pilares do instituto e eu tenho trazido para mim muito o “multiplicar o legado”, mas dentro da minha área. Eu faço faculdade de Educação Física, estou no 4º período de licenciatura e recentemente eu escrevi um artigo sobre como a Educação Física pode contribuir para tornar os cidadãos pensantes e críticos. Porque a gente vive numa sociedade muito alienada. As pessoas são ignorantes, acreditam facilmente nas fake news e não buscam algo a mais. Então, hoje em dia, eu me coloco mais nesse papel de trazer o que ela me ensinou, de trazer minhas raízes e ancestralidade comigo, mas dentro da minha área profissional. E focando também dentro da favela, dentro da Maré. Levar projetos esportivos. Eu espero fazer com que, por meio do esporte, as pessoas também possam refletir e questionar sobre a realidade em que a gente vive. E trabalhando no cotidiano mesmo, nas escolas, por exemplo. Uma questão mais de base mesmo, que é o que eu gosto. O meu papel, eu vejo nesse sentido. E tentando também tirar um pouco do peso. Ela era única, eu não vou chegar aos pés dela. Posso fazer o mesmo de outra forma e ao longo dos anos eu vou trabalhando isso para conseguir fazer com que o legado dela se multiplique. E continuar na luta.

Leo: Para finalizar, tem algum recado ou mensagem que você gostaria de falar para as pessoas e até hoje não teve chance de falar? Pode ser um desabafo,um pedido...

Luyara: Eu gostaria que as pessoas lembrassem que ela era humana. Na conjuntura que a gente vive hoje, eu acho que falta as pessoas aprenderem a conviver com o outro, a conviver com a diferença. A gente precisa cuidar mais um do outro. Acolher mais. A saúde mental das pessoas não está nada bem. Eu estudo num local que é um dos locais onde as pessoas mais se matam. Minha mãe me ensinou muito a me preocupar com o outro, a cuidar do outro. Acho que é isso!

Referências

OLIVEIRA, Inês Barbosa de; SÜSSEKIND, Maria Luiza. “Tsunami Conservador e Resistência: a CONAPE em defesa da educação pública”. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 44, n. 3, p. 01-21, set. 2019. Disponível em Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2175-62362019000300400&script=sci_arttext . Acesso em 27/07/2020. [ Links ]

OLIVEIRA, Tiago Bernardon de. “O golpe de 2016: breve ensaio de história imediata sobre democracia e autoritarismo”. Historiæ, Rio Grande, v. 7, n. 2, p. 191-231, 2016. Disponível em Disponível em https://periodicos.furg.br/hist/article/view/6726/4414 . Acesso em 27/07/2020 [ Links ]

1LGBTQIA+: lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, queers, intersex, assexuais, entre outras identidades sexuais e/ou de gênero.

220 anos no dia da conversa. Luyara Franco nasceu em 24/12/1998.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: PEIXOTO, Leonardo. “‘Quem mandou matar Marielle?’ - uma conversa com Luyara Franco”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 3, e72525, 2020.

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 27 de Março de 2020; Revisado: 28 de Julho de 2020; Aceito: 17 de Agosto de 2020

lpeixoto@uea.edu.br

Leonardo Ferreira Peixoto (lpeixoto@uea.edu.br) é doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Adjunto do Centro de Estudos Superiores de Tabatinga (CESTB) da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Líder do Grupo de Pesquisa Redes Indígenas: povos indígenas e redes educativas.

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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