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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.28 no.3 Florianópolis set./dez. 2020  Epub 01-Set-2020

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n367802 

Resenha

Quem são as “vítimas de verdade” nas delegacias da mulher?

Who are the “Real Victims” in the Women’s Police Stations?

Elizabete Pellegrini1 
http://orcid.org/0000-0003-3145-1317

Mariana Tordin Boen2 
http://orcid.org/0000-0001-9873-3824

1Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. 13083-896 - scpgcpol@unicamp.br

2Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília, SP, Brasil. 17525-900 - poscs@marilia.unesp.br

LINS, Beatriz Accioly. A lei nas entrelinhas: a Lei Maria da Penha e o trabalho policial. São Paulo: Editora Unifesp, 2018. 232pp.


Beatriz Accioly Lins é antropóloga, mestra e doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença (Numas/USP). A autora tem se destacado nos estudos sobre gênero, tanto por abordar temas clássicos como violência contra mulheres, como temas contemporâneos relacionados a gênero no ambiente escolar e pornografia de vingança. Nesse sentido, o livro A lei nas entrelinhas: a Lei Maria da Penha e o trabalho policial, publicado pela Editora Unifesp, é resultado da dissertação de mestrado defendida pela pesquisadora em 2014, sob orientação de Heloisa Buarque de Almeida. Dividido em três capítulos, a obra parte da criação da Lei n. 11.430/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, para investigar como a legislação impactou o funcionamento das Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs)1. A pesquisa investigou a lei nas “entrelinhas” do cotidiano das profissionais2 que manuseiam e aplicam a normativa, procurando explicar escolhas, dilemas e procedimentos que definem os laços entre norma e prática.

Lins acompanhou o expediente de duas DDMs localizadas no município de São Paulo, entre os anos de 2012 e 2013. Observando as especificidades do trabalho policial em duas realidades distintas (uma antiga e tradicional DDM situada no centro da cidade e outra localizada em uma região mais periférica), a autora identificou elementos que ajudam acessar múltiplas formas pelas quais a Lei Maria da Penha tem sido incorporada e compreendida pelos sujeitos que compõem esses espaços.

No capítulo inicial, “‘Não existe policial de DDM, existe policial’: reflexões sobre um campo minado”, Beatriz Accioly Lins trabalha a importância de investigar os sentidos do “ser polícia” (LINS, 2018, p. 71) em uma DDM. Pela perspectiva das próprias agentes, a pesquisadora vai desconstruindo uma visão romântica que pensa o trabalho nessas delegacias como uma atividade voltada ao tratamento de um crime específico (o da violência cometida contra mulheres em um ambiente familiar). Ao investigar por que “não existe policial de DDM, existe policial” (LINS, 2018, p. 49), a autora mostra como os sentidos desse “ser polícia” estão mais conectados aos dilemas da própria Polícia Civil do que com um possível modo de atuação das profissionais especializadas. Remontando o histórico político e social das polícias brasileiras, Lins mergulha na criação de uma instituição baseada em ideais autoritários, excludentes e punitivos, com características que, por vezes, se mostram incompatíveis com o Estado de Direito. Assim, vamos percebendo que a visão das policiais de que questões de “âmbito doméstico e familiar” não são um “crime de verdade” (LINS, 2018, p. 79) está, na verdade, muito conectada com noções do que é “fazer polícia” no Brasil.

A ambiguidade de se ter uma delegacia que atende somente situações que não são consideradas um “crime de verdade” aparece ainda quando a autora descreve as dificuldades de se atuar mediante pouco (ou nenhum) treinamento para lidar com as especificidades desses espaços. Pensando nos crimes “de verdade”, a academia de polícia ensina ter uma boa dose de malandragem, coragem, truculência e desconfiança. Porém, à “boa policial” de DDM (LINS, 2018, p. 80) são necessárias habilidades praticamente opostas e pouco valorizadas no meio policial. Paciência, escuta e necessidade de entender “dramas” são, assim, aprendidos “na prática” e por “tentativa e erro” (LINS, 2018, p. 79). Combinando trajetórias individuais e familiares, orientações políticas, religiosas e experiências profissionais é que cada profissional vai desenvolvendo suas próprias teorias para explicar o fenômeno da violência doméstica e o comportamento das mulheres atendidas. Sobre isso, o segundo capítulo do livro - “‘A lei ficou louca’: a Lei Maria da Penha e o trabalho policial nas DDMs” - avança na análise desses diferentes repertórios, que vão criando as possibilidades de tratamento e as formas de proceder em cada situação atendida.

Nesse sentido, Lins explora como essas escolhas práticas são também morais e políticas, uma vez que tais decisões definem quem pode se beneficiar das prerrogativas previstas na Lei Maria da Penha. Ao descrever como os boletins de ocorrência são elaborados, por exemplo, a pesquisadora expõe a tensão entre as escrivãs do atendimento e as mulheres que pretendem registrar ocorrências. Entre a vasta quantidade de informações e de emoções dos relatos, cabe à policial do atendimento traduzir a linguagem cotidiana para a gramática técnica do Direito. Como, então, reduzir a um único ocorrido uma situação tão relacional, complexa e contínua, como uma agressão pautada pela violência em contexto familiar e íntimo? Essa redução passa, necessariamente, por um filtro pessoal que vai estabelecer um “gradiente da violência doméstica” (LINS, 2018, p. 141), ou seja, uma escala de gravidade que vai classificar uma situação de acordo com os possíveis desfechos que as profissionais da DDM entendem serem possíveis para o caso.

No terceiro capítulo, “‘Vítima de verdade existe, mas eu nunca vi’: mulheres, vítimas e verdades”, Lins explora os conceitos de “saber local” e “sensibilidade jurídica”, originalmente trabalhados por Clifford Geertz (2014 [1983]) e também utilizados pelo antropólogo brasileiro Roberto Kant de Lima (1999, 2010), para discutir os “sensos de justiça particulares” (LINS, 2018, p. 157) das profissionais das duas DDMs, ou seja, a interpretação que a norma ganha a partir de princípios morais das policiais. É neste ponto que o livro traz sua maior contribuição: ao analisar a categoria êmica “vítimas de verdade” (LINS, 2018, p. 167-179), Lins mostra que, muito mais do que o que está escrito na lei, são as entrelinhas dessa busca por “verdadeiras vítimas” (LINS, 2018, p. 157) é que vão definir se uma mulher terá acesso a uma investigação policial e, no limite, a direitos garantidos pela lei brasileira.

O grupo restrito das “vítimas de verdade” é uma espécie de abstração que cria um sistema de hierarquização para organizar procedimentos, construir narrativas documentais e selecionar quais mulheres são, de fato, protegidas pela lei. Longe de ser apenas mais um termo do vernáculo policial, a expressão concentra uma gama de moralidades e sensos informais de justiça que orientam e moldam o trabalho nas DDMs, fazendo com que a aplicação da Lei Maria da Penha seja baseada em complexas e ambíguas percepções de gênero, família, conjugalidade e justiça.

De maneira geral, Lins segue uma linha de discussão interessante ao buscar “superar uma abordagem estritamente avaliativa do trabalho policial” (LINS, 2018, p. 24) e apresentar a perspectiva das próprias policiais. Ao pensar as leis como processos que envolvem uma gama de irregularidades e mudanças, Lins aponta para os sentidos sociais e políticos que delineiam a criação de sujeitos protegidos pelo Estado. Ao estender a discussão para o seguinte questionamento: “pode uma vilã ser vítima?” (LINS, 2018, p. 213), o epílogo do volume nos leva à compreensão de que, quando se fala em violência e gênero, não se fala apenas em direitos, mas também em disputas simbólicas sobre moral, corporalidade e comportamento das mulheres nas esferas pública e privada.

No ano em que Lins acompanhou as DDMs paulistanas, era transmitida a telenovela Avenida Brasil, da Rede Globo, que em uma de suas cenas finais exibiu a surra que a vilã Carminha levou do marido Tufão. De maneira perspicaz, a autora une percepções de campo com falas em meios de comunicação acerca do status de violência doméstica que o episódio do folhetim teria. Como a vilã de uma das novelas de maior audiência naquele ano, o comportamento de Carminha era muito conhecido: como esposa, traía o marido; como mãe, era perversa; e como mulher, era mentirosa e ambiciosa. Assim, os julgamentos morais sobre a personalidade e as atitudes da personagem revelaram uma lógica semelhante à da hierarquização das consideradas “vítimas de verdade”. Mediante um comportamento entendido como inadequado, a vítima Carminha foi excluída pelo debate público da categoria de protegida pela Lei Maria da Penha. Contudo, Lins faz um alerta. Na vida real, Carminha até poderia entrar em um rol de vítimas meramente formais, por não ser entendida como submissa e dependente ou como uma “vítima mesmo” (LINS, 2018, p. 157). Entretanto, a existência da Lei Maria da Penha garantiria a ela mais chances de conseguir registrar um boletim de ocorrência ou gerar um inquérito do que na vigência de leis anteriores. Assim, Lins recorda que o reconhecimento de direitos pela via legal tem sua importância na distribuição da justiça no país.

Pensar que os sentidos da aplicação da lei podem ser políticos fez com que duas inquietações emergissem após a leitura da obra. Primeiro, até que ponto as próprias profissionais da DDM não seriam também vítimas de uma burocracia pouco aberta às especificidades da violência doméstica? As frustrações acerca de uma realidade burocrática e pouco valorizada dentro da instituição policial parecem indicar que as vítimas também incluem esses funcionários públicos que estão à mercê das disputas institucionais e políticas do sistema de segurança pública brasileiro. A fala de uma interlocutora corrobora com esse ponto de vista:

Minha impressão é que a gente enxuga gelo. A gente trabalha sem parar, faz um monte de inquérito, e um monte de mulher continua apanhando, um monte continua morrendo e não chegamos a lugar nenhum, não resolve nada, só produz papel. Não entendo por que a gente trabalha (LINS, 2018, p. 107).

Em segundo lugar, será que não seríamos todas/os nós um pouco vítimas de uma polícia que não se renova e ainda considera atos de violência doméstica como sendo “de menor potencial ofensivo” (LINS, 2018, p. 29)? Rememorando parte da epígrafe do livro, ficamos com a impressão de que, no Brasil, “a violência é uma repetição que não parecemos capaz de romper” (Nadine GORDIMER, 2000, p. 352 apud LINS, 2018, p. 7). Parece-nos que esses incômodos são resultado da excelência da obra, que nos insere com precisão em uma realidade densa, de acesso complexo e de difícil digestão.

Referências

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2014 [1983]. [ Links ]

LIMA, Roberto Kant de. “Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos do direito brasileiro em uma perspectiva comparada”. Anuário Antropológico, n. 2, p. 25-51, 2010. [ Links ]

LIMA, Roberto Kant de. “Polícia, justiça e sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público”. Revista de Sociologia e Política, n. 13, p. 23-38, 1999. [ Links ]

LINS, Beatriz Accioly. A lei nas entrelinhas: a Lei Maria da Penha e o trabalho policial. São Paulo: Editora Unifesp, 2018. [ Links ]

1Optamos por utilizar esta nomenclatura para ser fiel ao termo utilizado no livro de Lins. Contudo, ressaltamos que esses espaços podem ser denominados de diferentes maneiras, tais como Delegacia da Mulher (DM), Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) ou Delegacia de Defesa da Mulher (DDM).

2Adotamos a mesma redação utilizada por Lins (2018, p. 51), que opta pela utilização do plural feminino para referir-se às funcionárias das DDMs, já que em sua maioria são mulheres, e pelo plural masculino para a categoria de investigadores, já que, nesse caso, os funcionários são majoritariamente homens.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: PELLEGRINI, Elizabete; BOEN, Mariana Tordin. “Quem são as ‘vítimas de verdade’ nas delegacias da mulher?”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 28, n. 3, e67802, 2020.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 28 de Setembro de 2019; Revisado: 13 de Janeiro de 2020; Aceito: 23 de Fevereiro de 2020

marianatboen@gmail.com

elizapellegrini4@gmail.com

Elizabete Pellegrini (elizapellegrini4@gmail.com) é doutoranda e mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas, com bolsa Capes. Bacharela em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisadora vinculada ao Laboratório de Estudos de Política e Criminologia (PolCrim/Unicamp). Autora de livro premiado em chamada temática de monografias organizada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), em 2018.

Mariana Tordin Boen (marianatboen@gmail.com) é mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Bacharela em Psicologia pela Universidade São Francisco (USF). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Centro Universitário Uninter. Realizou intercâmbio acadêmico em Psicologia e Ciências Comportamentais pela Universidade do Minho, em Portugal.

Contribuição de autoria: As autoras contribuíram igualmente na concepção, coleta e análise de dados, elaboração do manuscrito, redação e revisão da versão final do trabalho

Conflito de interesses: Não se aplica

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