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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.29 no.1 Florianópolis ene. 2021  Epub 01-Abr-2021

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n180189 

Editorial

Estudos Feministas na resistência

Feminist Studies in Resistance

Tânia Regina Oliveira Ramos1 
http://orcid.org/0000-0002-2477-0419

Luzinete Simões Minella1 
http://orcid.org/0000-0001-7953-7385

Cristina Scheibe Wolff1 
http://orcid.org/0000-0002-7315-1112

Mara Coelho de Souza Lago1 
http://orcid.org/0000-0001-5111-8699

1Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. 88040-900


Os textos que elaboramos a cada novo número da revista para apresentar os artigos e temas publicados estão sempre referidos aos contextos local e global, em que reverberam questões que afetam a todas e todos nós. Neste ano da pandemia, em circunstâncias que se agravam em muitos países e, em especial, no Brasil, não podemos deixar de mencionar nossas afecções coletivas, mesmo sendo penoso delas falar. Já ultrapassamos 200.000 mortes por Covid 19 e a situação calamitosa só se tem agravado. As esperanças com a vacinação estão permeadas de preocupações com a obtenção do produto na quantidade e tempo necessários para imunizar a população. O auxílio emergencial para as pessoas e famílias que dele necessitam cessa agora e deve retornar drasticamente reduzido. As UTIs e hospitais estão lotando; o quadro é desolador. O país se destaca no tratamento inadequado da doença, e se apresenta como perigoso para os demais, que já começam a fechar suas fronteiras para brasileiros.

Mas há que resistir! O Sistema Único de Saúde (SUS), modelo de organização pública de atendimento universal à saúde da população, que sofria o ataque das forças neoliberais tornadas dominantes desde os acontecimentos políticos em torno das eleições presidenciais de 2014 no Brasil, mostrou sua importância neste ano que se desdobra nas exigências de tratamento pelo contágio do vírus.

Na academia tem-se procurado continuar com as atividades, mesmo que de forma não presencial, com grande proliferação de encontros, aulas, pesquisas, bancas de defesas de teses, dissertações, monografias, de lives e eventos, com adaptações a novas formas de trabalho. E seguimos em frente, na organização de eventos como o Seminário Internacional Fazendo Gênero 12, adiado para se realizar em julho de 2021, em formato virtual. Os periódicos acadêmicos continuam sendo produzidos, mesmo enquanto minguam suas fontes de financiamento,1 neste desmonte da educação, da ciência e tecnologia que temos vivenciado no país.

Com respeito ainda à pandemia, dois aspectos têm nos chamado atenção: por um lado, os impressionantes avanços do conhecimento científico na produção de várias vacinas num contexto de crise mundial, em meio a uma estressante luta contra o tempo; por outro, a significativa participação das mulheres cientistas tanto nos bastidores dessa produção, quanto no compartilhamento de saberes e informações junto à população. Tal participação resulta de vários fatores, dentre os quais se destaca o aumento considerável da proporção de mulheres formadas no campo da medicina e da fisiologia no Brasil (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2020).2 No editorial publicado no volume 28, número 2 de 2020 da REF (Cristina S. WOLFF; Luzinete S. MINELLA; Mara C. de S. LAGO; Tânia Regina O. RAMOS), registramos nossas preocupações com os impactos da Covid 19 e, também, nossas esperanças nos avanços científicos, lembrando que muitas das descobertas cruciais para a saúde coletiva resultaram de pesquisas realizadas em circunstâncias bastante desfavoráveis.

Naquela oportunidade, ressaltamos que já eram inúmeros grupos de pesquisa dedicados ao tema no Brasil, apesar da falta de incentivo dos poderes públicos. Sobre a participação das cientistas brasileiras, destacamos dois nomes: Ester Cerdeira Sabino, médica imunologista, especialista em epidemias, com 30 anos de carreira, e Jaqueline Goés de Jesus, doutora em Patologia Humana e Experimental (WOLFF et al., 2020), responsáveis pelo sequenciamento genético da cepa encontrada no primeiro paciente identificado como portador do novo coronavírus no Brasil, num projeto que envolveu várias instituições, entre elas, o Instituto Adolfo Lutz (IAL), o Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP) e a Universidade de Oxford. Sem dúvida, tal descoberta contribuiu para o desenvolvimento de vacinas e de testes diagnósticos por epidemiologistas, virologistas e especialistas em saúde pública (Edison VEIGA, 2020).

Além das já mencionadas, no presente editorial relacionamos outras cientistas que têm se destacado no combate ao coronavírus. Por exemplo, Nísia Trindade Lima, doutora em Sociologia e atual Presidente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em segundo mandato, criadora da Rede de Ciências Sociais e Zika dessa instituição e primeira mulher a comandar esta Fundação, em 116 anos de história. Nísia tem participado ativamente dos acordos com a AstraZeneca, empresa biofarmacêutica, com vistas à produção da vacina contra o coronavírus, desenvolvida pela Universidade de Oxford (FIOCRUZ, 2020).

Natália Pasternak Taschner desenvolveu sua formação na área das Ciências Biológicas, atua no Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas (LDV) do Instituto de Ciências Biológicas da USP, exerce a docência na Fundação Getúlio Vargas (FGV), é diretora-presidente do Instituto Questão de Ciência (www.iqc.org.br), pioneiro na promoção e divulgação de políticas públicas baseadas em evidências científicas. Margareth Dalcolmo, pneumologista clínica, pesquisadora da Fiocruz, tal como as demais, tem integrado vários grupos de pesquisa nacionais e internacionais, no seu caso específico, sobre doenças respiratórias. Os debates sobre a pandemia, em particular, sobre as vacinas, têm ocupado boa parte do noticiário no Brasil e no mundo, seja nas redes de televisão, seja nas redes sociais de modo geral. Uma das novidades, no caso nacional, tem sido a presença constante dessas cientistas, compartilhando saberes e experiências em linguagem accessível ao grande público, nesses espaços, até tempos recentes, majoritariamente ocupados pelos homens.

O livro de Alessandra Barbosa et al. (2020), intitulado Mulheres Cientistas: Coronavírus,3 ressalta que outras cientistas brasileiras também têm se envolvido no combate à Covid 19, atuando em outros campos. Por exemplo, Daniela Barretto Barbosa Trivella, doutora em Ciências Físicas Biomoleculares, coordenadora científica do Laboratório Nacional de Biociências do Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais (CNPEM-Campinas), tem investigado o potencial antiviral de algumas drogas que já circulam no mercado, averiguando as possibilidades do seu reposicionamento em termos do tratamento para a Covid 19. Há, ainda, cientistas comprometidas com pesquisas comportamentais. É o caso de Marilisa Barros, Celia Landmann Szwarcwald e Deborah de Carvalho Malta, pesquisadoras da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, da Fiocruz e da Universidade Federal de Minas Gerais, respectivamente. O projeto que desenvolvem atualmente averigua as interferências da condição socioeconômica sobre o comportamento frente à pandemia, abordando as condições de trabalho, os níveis de renda e de escolaridade, atividades físicas, entre outras, com vistas a colaborar para a formulação de políticas públicas (BARBOSA et al., 2020).

Nestes tempos difíceis, em que se ouve com inusitada frequência o som das sirenes de ambulâncias nas cidades, como forma de resistência, muitas criações e apresentações artísticas e musicais têm sido disponibilizadas nas redes, assim como muitos lançamentos de livros acadêmicos e literários de variados gêneros. Este registro prova que os estudos culturais e literários, como tantos outros espaços sociais, são um campo de disputas éticas, estéticas, ideológicas, em que a história da REF tem permitido dar visibilidades textuais a um número significativo de textos, artigos, resenhas, ensaios, entrevistas. Dando continuidade à crescente expressividade das artes e literatura em suas páginas, este primeiro número do volume 29 da REF inicia com artigos que dão acesso a múltiplas vozes vindas das literaturas, linguística, mídia, música, análise do discurso, artes, cinema, teatro, revelando a possibilidade do diálogo interdisciplinar que os estudos de gênero e a crítica feminista dão à difusão de representações do mundo.

Os artigos que seguem, segundo as formações e trajetórias de suas autoras e autor, oferecem visões complementares e suplementares, maturadas pelas suas experiências de leituras e de pesquisas. Uma constelação de buscas resulta no avesso das evidências linguísticas; ilumina o cinema documental, dá visibilidade às séries televisivas e permite um duplo movimento das artes cênicas. Estas leituras configuram as encruzilhadas das questões de gênero com as manifestações culturais e a construção de um sempre renovado olhar para a mulher, para a linguagem, para as dissidências e suas representações. Assim, em “Cinco décadas de linguística feminista: índices de consolidação do campo”, as autoras sustentam sua leitura numa revisão histórica da relevância de gênero para a pesquisa em linguística feminista. Rumo ao ainda invisível cinema vietnamita para as espectadoras brasileiras, a autora de “La mirada femenina al cine etnográfico documental. Reassemblage (Trinh T. Minh-ha, 1982)” apresenta a modalidade reflexiva da cineasta para representar-se e para representar o papel das mulheres em suas obras. Entre mapas e tramas, o artigo “Mulheres em um mundo de homens: espaço feminino na ficção seriada em Narcos” traz a terceira temporada de Narcos, série altamente consumida, para comprovar como os episódios mantêm ainda a sub-representação feminina. Pelas frestas destas abordagens, o artigo “Rastros de 1968 nos artivismos das dissidências sexuais e de gênero” mostra, numa revisão histórica, como, a partir do Teat(r)o Oficina e das atuais produções, é possível enunciar uma desobediência das normas da dramaturgia, o que o autor denomina de “a(r)tivismos queer”.

Os artigos seguintes referem-se à outra temática fundamental nos estudos de gênero e sempre presente na REF, o tema das sexualidades. “Intensos encontros: Michel Foucault, Judith Butler, Paul B. Preciado e a Teoria Queer” apresenta uma qualificada revisão conceitual, tomando autores como Foucault, em suas concepções fundamentais para pensar sexualidade e gênero; Butler, cujas reflexões sobre a performatividade de gênero contribuíram, junto a outras autoras, para os desdobramentos das teorias queer, e Preciado, que expressa em suas análises a força e complexidade dos estudos queer.

A questão da nomeação e da visibilidade lésbica é levantada pelo artigo “Chica Bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba: Quando Sapatão é ‘Revolução’”. O cordel, uma literatura popular no Nordeste Brasileiro, mesmo que reforce estereótipos sobre as lésbicas, também as nomeia e visibiliza, em um contexto histórico em que essas identificações são negadas. A autora trabalha com essa relação entre nomeação, existência lésbica e representação.

Sob uma outra perspectiva, o texto “Narrativas de mulheres lésbicas sobre as vivências no cotidiano e período escolar” nos leva ao ambiente escolar a partir das experiências narradas por sete mulheres. Frente ao currículo e a normas escolares, bem como às práticas em escolas públicas e privadas, a pesquisa demonstrou que as violências, a lesbofobia e a heteronormatividade continuam sendo a tônica das escolas. A despeito das violências e preconceitos, também se evidenciam formas sutis e específicas na construção das subjetividades homoafetivas nas escolas.

O artigo “O gay afeminado nas organizações: esbarrando em padrões heteronormativos” estuda as questões ligadas às múltiplas masculinidades ligadas ao trabalho e os preconceitos enfrentados pelos gays considerados afeminados em comparação com outros homens gays. Por meio da análise crítica do discurso, são estudadas entrevistas orais com sujeitos/trabalhadores de organizações públicas e privadas. É importante destacar como, nas organizações estudadas, aparece uma equivalência da masculinidade com o trabalho, frente à ideia de feminilidade vista como menos eficiente.

O asco, ou nojo, é tematizado no artigo “¡Puaj! Las retóricas del asco en el movimiento abolicionista de la prostitución en Argentina” como uma emoção que joga um papel político na retórica abolicionista da prostituição, em setores dos movimentos feministas argentinos. O abolicionismo, e a polêmica sobre ele, está presente nas discussões feministas desde o século XIX, mas com argumentos que tratavam de questões como dignidade, direitos humanos e direitos sociais das mulheres. Os autores, entretanto, chamam a atenção desse aspecto emocional tão fortemente ligado à corporalidade, e como ele tem sido usado pelo movimento que tem alcançado destaque na conjuntura atual argentina.

Quando realizamos pesquisa documental em periódicos científicos, podemos acompanhar a entrada e a força de determinados paradigmas nas ciências que os produzem. Nas ciências humanas em que, à diferença das ciências hard (Thomas KUHN, 1975), os paradigmas convivem e não se sobrepõem aos anteriores (Roberto Cardoso de OLIVEIRA, 1997), essas pesquisas podem nos revelar os complexos caminhos de teorias e conceitos em disputas e/ou consensos, assim como a importância da produção que ensejam.

O rápido balanço referenciado no número anterior da REF (Mara LAGO et al., 2020) sobre a publicação continuada e crescente de artigos, debates, dossiê, acrescidos de entrevistas e resenhas, comprova a força do paradigma decolonial nos estudos feministas e de gênero em seu caráter eminentemente interdisciplinar. Revela também o debruçar de inúmeras pesquisadoras sobre o conceito de interseccionalidade, que fundamenta muitas das reflexões que se materializam na expressiva produção bibliográfica dos estudos feministas des e decoloniais (Luciana BALLESTRIN, 2013; 2020) no Brasil, na América Latina e também em países do Norte.

Dando continuidade à divulgação dessa produção decolonial interseccional, conceito que podemos rastrear desde as reivindicações de mulheres negras nos movimentos sufragistas do século XIV nos Estados Unidos (Sojourner TRUTH, 2014 [1851]; Angela DAVIS, 2016) e que adquire força nos feminismos de segunda onda daquele país nas reivindicações das mulheres negras, indígenas, “chicanas”, imigrantes de variadas nacionalidades (Cherríe MORAGA; Ana CASTILLO, 1988), este número da REF apresenta novos artigos sobre estas perspectivas conceituais.

A pesquisa “Diagnóstico interseccional de violencia hacia mujeres indígenas”, realizada em dois estados do México, buscou investigar os tipos de violência perpetrados contra as entrevistadas, relacionados a condições interseccionadas das mesmas. Referenciadas em teóricas feministas, as autoras concluíram pela necessidade de politização do espaço doméstico/familiar, bem como a importância da recuperação do tecido comunitário para o provimento de redes de apoio às mulheres vulnerabilizadas.

A pesquisa firmemente referenciada nos estudos decoloniais “¿Pensar el cuerpo femenino como dialogo de saberes?” foi realizada com integrantes do Círculo Hijas de la Luna Wall Mapu, colectivo feminista de mulheres chilenas e mulheres mapuche, empenhado em retomar elementos “ancestrales de la cultura indígena” para reinterpretar suas vivências menstruais. As autoras buscaram, com este estudo, contribuir para minorar lacunas da produção latino-americana sobre o processo de ressignificação corporal que resultaria de um genuíno encontro entre as lutas feministas e a recuperação de elementos culturais indígenas.

A autora de “Mujeres y movimiento negro afromexicano a través de la historia de vida” apresenta pesquisa etnográfica com militante intelectual de movimento negro na Costa Chica mexicana, em que analisa o processo de construção de subjetividade política negra-afro-mexicana, considerando as intersecções de raça, classe e gênero para questionar as formas históricas e políticas de representação das mulheres naquele contexto.

Elegendo como temas os movimentos feministas e a construção racial e subjetiva de mulheres brancas, as autoras do artigo “‘Mais branca que eu?’: uma análise interseccional da branquitude nos feminismos” apresentam pesquisa que se fundamenta na complexidade e amplitude da perspectiva interseccional, trazida aos estudos feministas por teóricas do feminismo negro, com importante ressonância nos estudos decoloniais, em sua crítica de base à desracialização colonial da categoria branco/a.

Em meio a vários outros temas atuais, novos enfoques sobre aborto, parto, fertilidade e maternidade também fazem parte deste número da REF. O artigo intitulado “O Conto da Aia e o aborto no Brasil: a ausência de liberdade da mulher sobre o próprio corpo” discute a criminalização do aborto no Brasil a partir de uma perspectiva penal e constitucional; os relatos de algumas doulas oriundas de diferentes regiões brasileiras são analisados no artigo “Da violência obstétrica ao empoderamento de pessoas gestantes no trabalho das doulas”, sondando-se os sentidos atribuídos às suas experiências; no artigo “Práticas de percepção da fertilidade entre mulheres jovens”, as autoras articulam tais práticas ao aparato de gênero e à biomedicalização; as desigualdades de gênero nos cursos de engenharia numa universidade pública são abordadas no artigo “Mulher, esposa e mãe na ciência e tecnologia”, na perspectiva de discentes de ambos os sexos e de pesquisadoras/docentes do sexo feminino; documentos oficiais são analisados no artigo “Maternidades em contextos educativos do PIM/RS”, com vistas a uma problematização da noção de maternidade.

As políticas públicas, as vulnerabilidades, as questões sobre os estudos e o trabalho feminino são temas recorrentes em revistas feministas e estão presentes também neste novo número da REF.

Numa perspectiva teórica, as autoras do artigo “Transversalidade de gênero em política pública” articulam esses conceitos, definindo transversalidade de gênero como um processo de incorporação de perspectivas feministas no enquadramento de políticas públicas; dados sobre o perfil sociológico de bolsistas são sistematizados em “Desigualdade de Acesso ao Programa Ciência sem Fronteiras: uma interlocução com a perspectiva dos estudos de gênero”, focalizando a divisão sexual nas áreas de conhecimento e a mobilidade acadêmica internacional.

As relações entre mercado de trabalho e a construção de estratégias de promoção social de mulheres em situações de vulnerabilidade social são abordadas no artigo “{reprograma}: gênero e tecnologia em um estudo de caso preliminar”. O {reprograma} é uma organização que promove para mulheres desempregadas de baixa renda cursos de capacitação profissional na área de programação (informática). A discussão passa não somente pela capacitação profissional, mas também pela formação de uma “consciência” feminista nessas mulheres, e pela própria transformação num mercado de trabalho marcado pela presença predominante de homens.

O artigo “Modos de trabalhar e modos de subjetivar na agricultura familiar no sul do Brasil” nos traz as narrativas de mulheres trabalhadoras rurais no Noroeste do Rio Grande do Sul, que são analisadas pelo prisma da construção das subjetividades com relação a esse trabalho. Reflexões associadas à compreensão do trabalho como manutenção da vida e possibilidade de transformação de si e do mundo e as relações entre trabalho e ação política aparecem ao longo dos relatos orais dessas mulheres, ao contarem os desafios e conquistas que fazem parte de suas vidas individuais e coletivas.

As mulheres em situação de rua são um grupo muito pouco estudado. O artigo “Mulheres em situação de rua: memórias, cotidiano e acesso às políticas públicas” parte da observação participante das pesquisadoras e de entrevistas com histórias de vida de mulheres de várias faixas etárias, na região do Vale do Rio dos Sinos, RS, para problematizar suas memórias, cotidiano e o precário acesso dessas pessoas a políticas públicas. O artigo tem importância por mostrar essa categoria de mulheres em situação de extrema vulnerabilidade, e chamar a atenção para a urgência da construção de novas políticas voltadas à sua inclusão social e ao atendimento de suas necessidades básicas.

E, em outra perspectiva, o próximo artigo trata da “Circulação e vivência da cidade: ser mulher, ser flâneuse”. Ancorando-se na produção sobre a circulação de mulheres em cidades do mundo e fundamentadas em estudos interseccionais, as autoras trazem suas reflexões sobre flâneuses ativistas de movimentos negros, artísticos, religiosos, culturais, em municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro.

O ensaio intitulado “Como me tornei #dotorainspiração e o brinco de Ewá” ganha espaço no Ponto de Vista e permite que, em primeira pessoa, a autora traga experiências vivenciadas nos últimos quatro anos, entre elas a criação do Grupo Intelectuais Negras UFRJ, e a sua própria trajetória como professora universitária, apresentando as interfaces entre intelectualidade acadêmica e pública em diálogo com feministas negras e decoloniais. Neste espaço que nos permite ouvir o que elas dizem, Sara de Athouguia Filipe entrevista Raquel Cardeira Varela, ativista de espaços públicos proporcionados pela mídia, professora, pesquisadora e historiadora, a qual apresenta, a partir de um elaborado pensamento crítico, importantes questões do cenário político contemporâneo, especialmente sua visão sobre o feminismo de hoje e suas implicações com o capitalismo.

Este número da revista oferece ainda às leitoras e aos leitores, além das resenhas que falam da abundante produção de obras provindas de diferentes campos disciplinares, voltadas a temáticas feministas, de gênero, sexualidades, uma Seção Temática em que muitas e reconhecidas autoras se debruçam sobre a obra pioneira de Heleieth Saffioti, “A Mulher na Sociedade de Classes: mito e realidade”, em densas análises.

Uma justa homenagem à Saffioti, decorridos 52 anos da publicação deste livro cuja autora, que já nos deixou há uma década, pode ser considerada, como ressaltam as organizadoras da Seção (Daniele MOTTA; Elaine BEZERRA; Renata GONÇALVES, 2021), como “cânone do pensamento feminista no país, tendo influenciado uma geração de mulheres militantes”.

Referências

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1Questão que se agudizou em relação aos periódicos da grande área das humanidades que não foram minimamente contemplados no último edital de apoio a revistas acadêmicas do CNPq.

2“A crescente presença feminina na carreira médica é nítida ainda na evolução da distribuição por sexo ao longo do último século. Em 1910, os homens eram 77,7% e as mulheres 22,3%. A presença masculina se amplia até 1960, quando chega a 87%, e as mulheres se limitam a 13%. A partir dos anos 1970, as mulheres ampliam sua participação e passam de 15,8% em 1970 para 46,6% em 2020” (CFM, 2020).

3Numa concepção inspirada nos passatempos, o livreto foi elaborado como parte do projeto de extensãoMeninas e Mulheres nas Ciências, promovido pela Universidade Federal do Paraná, visando estimular a vocação das meninas. Nele, as autoras sintetizam as descobertas principais de algumas cientistas nacionais e estrangeiras, recorrendo a palavras cruzadas e a desenhos para colorir.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: RAMOS, Tânia Regina Oliveira; MINELLA, Luzinete Simões; WOLFF, Cristina Scheibe; LAGO, Mara Coelho de Souza. “Estudos Feministas na resistência”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e80189, 2021.

Financiamento: Não se aplica.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 23 de Março de 2021; Aceito: 24 de Março de 2021

taniareginaoliveiraramos@gmail.com

simoesluzinete@gmail.com

cristiwolff@gmail.com

maralago07@gmail.com

Tânia Regina Oliveira Ramos (taniareginaoliveiraramos@gmail.com) é doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Possui Graduação em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina, Mestrado e Doutorado em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atualmente, é Professora Titular e coordena o núcleo Literatura e Memória da UFSC, núcleo com projetos aprovados pela FAPESC e CNPq. Faz parte da Coordenação Geral daRevista Estudos Feministase do Conselho Editorial das revistasUniLetras,Mafuá Ciências e Letras,Literatura Hoje,SignóticaeAnuário de Literatura. É professora de Literatura Brasileira e Estudos Literários nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Letras e Literatura na UFSC. Atua, pesquisa e publica nas linhas de pesquisa História e Memória, escritas de si e gênero.

Luzinete Simões Minella (simoesluzinete@gmail.com) é doutora em Sociologia pela Universidad Nacional Autónoma de Mexico (UNAM, 1989), graduada (1972) e mestre (1977) em Ciências Sociais pela UFBA. Realizou estágio de Pós-Doutorado no Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (NEPO/Unicamp, 1998). Atualmente, é Professora Adjunta IV aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), atuando como Professora Voluntária no PPG Interdisciplinar em Ciências Humanas, onde coordena a área de Estudos de Gênero. Integra a equipe do Instituto de Estudos de Gênero (IEG), participando de vários dos seus projetos (eventos, publicações, cursos etc.). Publicou vários artigos em periódicos de ampla circulação, livros, trabalhos completos em anais de eventos etc. Assumiu a coordenação editorial daRevista Estudos Feministasentre 2001 e 2004 e entre 2007 e 2008, quando passou a integrar a editoria de artigos. Voltou a fazer parte desta coordenação em dezembro de 2016. É membro da Rede Iberoamericana de Ciencia, Tecnología y Género. Tem realizado pesquisas principalmente nas seguintes áreas: participação das mulheres nas ciências (na interface com a crítica feminista à ciência, aos estudos sociais da ciência e à história da ciência), gênero e saúde reprodutiva, gênero e infância, saúde mental. Orientou trabalhos de conclusão de curso e tem orientado dissertações e teses, principalmente nessas áreas.

Cristina Scheibe Wolff (cristiwolff@gmail.com) é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (1998). Possui Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (1988), Mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1991). Em 2004/2005 realizou Pós-Doutorado na Université Rennes 2, na França, e entre 2010 e 2011, no Latin American Studies Center da University of Maryland, em College Park, Estados Unidos da América. Ocupou a Cátedra Fulbright de Estudos Brasileiros na University of Massachusetts em Amherst (set.-dez. 2017) e foi pesquisadora convidada no Laboratoire Arenes - Université Rennes 2 (jan.-jul. 2018). Atualmente, é Professora Titular do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina. É integrante do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH) e do Instituto de Estudos de Gênero da UFSC e uma das coordenadoras editoriais daRevista Estudos Feministas(2006-2009 e 2011-atual). Foi coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina. Atua ainda no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e no Mestrado Profissional de Ensino de História. Foi a coordenadora geral do Fazendo Gênero 11 e 13ºWomen’s Worlds Congress, realizado na UFSC em 2017. Tem experiência na área de História, com ênfase em História das Mulheres e do Gênero, atuando principalmente nos seguintes temas: gênero, memória, guerrilha, resistência às ditaduras no Cone Sul.

Mara Coelho de Souza Lago (maralago07@gmail.com) é doutora em Psicologia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas e Professora Emérita da Universidade Federal de Santa Catarina. Possui Graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina (1967) e Mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (1983). Atualmente, é Professora Titular aposentada da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC, atuando como docente voluntária no Programa de Pós-Graduação em Psicologia/PPGP e no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas/PPGICH. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Social, atuando principalmente nos temas gênero, gerações, subjetividades, modos de vida, com enfoque interdisciplinar. Participa do Instituto de Estudos de Gênero (IEG/UFSC) e da coordenação editorial daRevista Estudos Feministas.

Contribuição de autoria: Elaboração e redação coletiva.

Conflito de interesses: Não se aplica

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