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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.29 no.1 Florianópolis jan. 2021  Epub 01-Jan-2021

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n165840 

Artigos

O gay afeminado nas organizações: uma tensão permanente com padrões heteronormativos

The Gay Effeminate in Organizations: A Permanent Tension with Heteronormative Standards

Renan Gomes de Moura1 
http://orcid.org/0000-0002-6605-1631

Rejane Prevot Nascimento2 
http://orcid.org/0000-0002-5242-9509

1Universidade do Grande Rio, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20021-180 - posadm@unigranrio.com.br

2Universidade do Grande Rio, Programa de Pós-Graduação em Administração, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 20021-180 - posadm@unigranrio.com.br


Resumo:

No contexto organizacional, o sujeito gay é alvo de preconceito e de situações que o colocam em posição de constrangimento e vulnerabilidade. A partir dessa constatação, este artigo busca desvelar como os gays afeminados são percebidos por outros gays no ambiente de trabalho. Em termos metodológicos, o presente artigo possui caráter qualitativo e o corpus da pesquisa foi produzido a partir de entrevistas com nove indivíduos gays inseridos em organizações públicas e privadas. No que tange à análise do corpus, optou-se pela análise crítica do discurso. Concluiu-se, a partir das entrevistas, que o sujeito carregando traços considerados afeminados é compreendido como alguém menos capaz para o trabalho. Ademais, a masculinidade é vista como um atributo necessário para a inserção do indivíduo no ambiente organizacional.

Palavras-chave: gay afeminado; heteronormatividade; organizações

Abstract:

In the organizational context, the gay subject is the target of prejudice and situations that put him in a position of embarrassment and vulnerability. In this sense, this article seeks to unveil how effeminate gays are perceived by other gays in an organizational context. In methodological terms, this article has a qualitative character and to produce the corpus of the research nine gay subjects inserted in public and private organizations were interviewed. Regarding the analysis of the corpus, we opted for the critical analysis of the discourse. It was concluded, from the interviews, that the subject who carries traits considered effeminate is understood as someone less capable for work, as well as masculinity is seen as a necessary attribute for the insertion of the individual in the organizational environment.

Keywords: Effeminate Gay; Heteronormativity; Organizations

Introdução

Este artigo busca analisar como os gays afeminados são percebidos por outros indivíduos gays no contexto organizacional, uma vez que, para a alguns autores, as relações de gênero são tratadas como uma questão central na organização da vida dos indivíduos, bem como das diferentes instituições (Pedro Paulo de OLIVEIRA, 1998).

Neste trabalho, parte-se da noção de que a feminilidade é compreendida como um conjunto de características e comportamentos cultural e socialmente construídos, associado ao gênero e à sexualidade feminina (Márcia Regina Medeiros VEIGA, 2012). Segundo Veiga (2012), a própria identidade de gênero acaba por associar-se ao “ter feminilidade”. É importante ressaltar, nesse sentido, que o conceito de gênero é um artefato linguístico que abrange de forma conjunta as questões referentes ao corpo, ao sexo, ao desejo, à política e ao conhecimento (Attila Bruni GHERARDI, 2004; Judith BUTLER, 2015).

Joan Scott (1990) relata que as questões de gênero pautam a percepção das diferenças entre os sexos, sendo uma construção mental significativa para a demarcação de relações de poder. Assim, faz sentido entender a virilidade não apenas como uma característica compulsória a todo homem, mas também como uma face da dominação masculina, pois a virilidade torna-se uma expressão coletiva e ao mesmo tempo individualizada de dominação (Pascale MOLINIER; Daniel WELZER-LANG, 2009).

Os meninos são educados, desde a infância, para ser ‘homenzinhos’ não podendo ser coquetes, sedutores ou vaidosos. São incentivados a serem independentes dos adultos. Em certos casos, tal incentivo chega a ser tão intenso que alguns meninos escolhem a feminilidade para si, pois nela encontram os comportamentos que desejam. Outros meninos já a adotam por ser essa uma forma de orientação à homossexualidade (Simone de BEAUVOIR, 1980).

Diante desse contexto foi declarada uma guerra contra o menino afeminado (Giancarlo CORNEJO, 2011), pois, como afirma Eve Sedgwick (2007, p. 72, tradução nossa), “a temporada de caça às crianças gays está sempre aberta”. Contudo, o próprio movimento gay nunca foi eficaz para tratar das questões relativas aos meninos efeminados.1 Há um desmerecimento vinculado à estigmatização, à qual até mesmo os homens adultos afeminados são frequentemente relegados (SEDGWICK, 2007).

O gay afeminado é aquele oposto ao ser discreto, ou seja, que ostenta traços femininos, o que lhe permite experimentar um “decréscimo de gênero, uma inferiorização, uma perda, uma depreciação do valor de sua masculinidade em relação aos demais” (Luiz Felipe ZAGO; Fernando SEFFNER, 2008, p. 2). De modo geral, os traços associados ao gay afeminado são: falar fino, mexer nos cabelos de forma enérgica, utilizar roupas e acessórios ‘femininos’, cruzar as pernas e andar rebolando (Alberto VILLAS, 2012). João David Antunes (2011), por sua vez, observa que

para o homem se sentir confortável com a sua efeminização, deverá aspirar a posições (sociais ou não) que sejam tradicionais à mulher, isto não se traduz somente na roupa, mas à ideia de que os seus simbolismos demonstram a personalidade do homem feminino e a sua colocação na sociedade (ANTUNES, 2011, p. 52).

E tal fato é reforçado se eles apresentarem empatia, ‘vulnerabilidade’ e colaboração, pois esses traços são socialmente atribuídos às mulheres e aos indivíduos entendidos como femininos (Joyce FLETCHER, 2004).

Quando os traços socialmente relacionados ao ser feminino são inseridos ou adquiridos por seres masculinos, estes passam a sofrer diversos preconceitos, dentre os quais a “sissyphobia”. Em outras palavras, esse termo é utilizado para designar o pavor que a sociedade heteronormativa sente em relação a um menino ou a um homem que não apresenta comportamentos enquadrados no padrão masculino, ou seja, aqueles sujeitos que são homens (heterossexuais ou não), mas que possuem traços associados à feminilidade. Alguns desses comportamentos implicariam, na visão heteronormativa, em falta de coragem, de força, de capacidade atlética, virilidade etc. (Tim BERGLING, 2001). A presença das características femininas em meninos e em homens os fazem ser conhecidos também como ‘maricas’, ou ainda como gays afeminados os homens que possuem interesses em passatempos e profissões tidas como femininas e todos aqueles que “quebram a mão” (BERGLING, 2001).

No contexto organizacional o indivíduo gay é foco de diversas injustiças e situações que o tornam alvo de constrangimento e o colocam em situação de vulnerabilidade. Ainda que as organizações estejam abertas para os indivíduos homossexuais, estas exigem que eles não sejam afeminados nem saiam dos padrões de comportamento social impostos pela sociedade heteronormativa. Nesse sentido, os gays afeminados não possuem as mesmas oportunidades quando comparados aos gays com comportamentos heteronormativos (Marcus SIQUEIRA et al., 2009; Renan Gomes de MOURA; Rejane Prevot NASCIMENTO; Denise Franca BARROS, 2017). A partir dessas considerações, indaga-se: Como sujeitos gays compreendem o gay afeminado no ambiente organizacional? Para responder à pergunta proposta, este artigo busca desvelar como os gays afeminados são percebidos por outros gays em um contexto organizacional.

Masculinidades e virilidade

Masculinidade é um conceito vago, mas pode ser definido como valores, experiências e significados que culturalmente são interpretados como masculinos e normalmente são atribuídos mais aos homens do que às mulheres em um contexto cultural específico. Para Mats Alvesson e Yvone Billing (2009), o termo masculinidade deve ser usado no plural, masculinidades, pois existe uma variedade de construções sociais e culturais sobre o que é masculinidade. Compartilhando esse pensamento, Raewyn Connell (2003, p. 71, tradução nossa) conceitua masculinidade como sendo “ao mesmo tempo uma posição nas relações de gênero, quer dizer, as práticas através das quais homens e mulheres se apoderam dessa posição no gênero e os efeitos dessas práticas na experiência corporal, na personalidade e na cultura”.

Posto isso, não existe uma entidade única de masculinidade comum a todas as sociedades. Sendo assim, esse termo designa coisas incomensuravelmente distintas. Logo, a masculinidade pode ser atribuída a qualquer comportamento desde que parta de homens que possuam um pênis e testosterona em níveis suficientes (CONNELL, 2003). Pode-se dizer que “as masculinidades são configurações de práticas que são realizadas na ação social e, dessa forma, podem se diferenciar de acordo com as relações de gênero em um cenário social particular” (Robert CONNELL; James MESSERSCHMIDT, 2013, p. 250). O termo “masculinidade hegemônica” (CONNEL, 2003) é usado pela academia para descrever igualmente os principais componentes da sexualidade masculina e os atributos do papel de gênero masculino. Ressalta-se que os traços estereotipados associados à masculinidade são: racionalidade, assertividade, competitividade, dentre outros (Yiannis GABRIEL, 2008).

As características descritas anteriormente estão atreladas ao conceito de masculinidade hegemônica, sendo esta uma forma de continuidade da dominação masculina, pois a masculinidade hegemônica se refere “ao engajamento dos homens a práticas tóxicas - incluindo a violência física - que estabilizam a dominação de gênero em um contexto particular” (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 255). Nesse contexto, a masculinidade adulta constrói-se em oposição e com reações exageradas contra as feminilidades e na relação entre masculinidade e subordinação do feminino (CONNELL, 2003).

A masculinidade hegemônica “incorpora a forma mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens.” (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p. 245). Um dos problemas da masculinidade hegemônica é ser ‘naturalmente’ associada com os ‘machos’, e a feminilidade associada às fêmeas, ou seja, definições baseadas em critérios biológicos.

Os homens que rejeitam os comportamentos hegemônicos de masculinidade são definidos como outros sujeitos, tais como ‘um novo homem’, o ‘macho feminista’ ou enquadrados nas mais variadas formas de identidade homossexual masculina (ALVESSON; BILLING, 2009). Algumas características associadas às masculinidades que não são consideradas hegemônicas podem passar a sê-las, desde que se estabeleçam e criem correspondências com ideais culturais e poderes institucionais. Porém, são desestabilizadas a partir do momento que intervêm nos modos de legitimação da dominação masculina (Christopher FORTH, 2013).

Associada à ideia de masculinidade encontra-se a ideia de virilidade, sendo esta última revestida de duplo sentido: o primeiro está relacionado às características associadas aos homens e à masculinidade, tais como força, coragem, violência e todos os privilégios associados à dominação daqueles que não são viris (mulheres e crianças, por exemplo). O segundo sentido é relacionado ao poder sexual do homem e à capacidade de penetrar (MOLINIER; WELZER-LANG, 2009; Jean-Jacques COURTINE, 2013), pois o pênis tornou-se símbolo de uma virilidade socialmente valorizada (BEAUVOIR, 1980). Por ser mais uma face da dominação masculina, a virilidade torna-se uma expressão coletiva e ao mesmo tempo individualizada de dominação (MOLINIER; WELZER-LANG, 2009). Nesse ponto, é importante observar que as crianças nascidas com o sexo masculino são socializadas para desempenhar papéis sociais propagados pela heteronormatividade.

Assim, salienta-se que todo indivíduo adulto passa obrigatoriamente pela infância, fase em que os meninos são educados para serem homens e as meninas de acordo com os padrões socialmente vigentes. Nessa fase, o menino é ensinado que ser homem é diferente de ser mulher, e que ele deve desejá-la, porém deve negar e se desvincular de qualquer modelo feminino. Logo, deve rejeitar a feminilidade em seu corpo, para que seja distinguido das ‘mulherezinhas’ e dos ‘veados’, ou seja, daqueles que socialmente são considerados ‘não homens’ (Paulo Reis dos SANTOS, 2008). No entanto, essa não é a realidade da infância de todos os meninos. Existem aqueles que adotam comportamentos ‘femininos’, sendo denominados meninos afeminados (MOURA; NASCIMENTO; BARROS, 2017).

Ainda no que tange à socialização secundária, Helma de Melo Cardoso, Anselmo Lima de Oliveira e Alfrancio Ferreira Dias (2015) observam que a heteronormatividade é uma questão presente no processo civilizatório das crianças. Traços e características de feminilidade ou masculinidade são impostos para educar o corpo, seja por meio da família, seja pelas práticas escolares e/ou de todos os outros processos de socialização. Assim, os discursos de ‘normatização’ acontecem nessas instituições e espaços onde são praticados objetivando ‘padronizar’ meninos e meninas de acordo com a heteronormatividade.

Ainda nessa perspectiva, é importante observar que o jovem ‘macho’ só se torna viril frente à sociedade dos homens adultos quando tiver passado por diversas etapas e sido validado por diferentes ritos (Aurnad BAUBÉROT, 2013), como a prova de sua potência sexual através da perda da virgindade com uma mulher (Pierre BOURDIEU, 2014). Envolvidas na construção da virilidade no jovem ‘macho’ encontram-se diversas instituições, como a família, os ‘bandos’, a escola e o trabalho, que se encarregam de transmitir diversos atributos físicos e psíquicos que possibilitarão ao menino criar hábitos viris e assim exercer seu papel de homem (BAUBÉROT, 2013).

Bourdieu (2014) afirma que a virilidade é um aspecto ético como virtude da masculinidade, da qual é indissociável, sendo a base da conservação da honra, tomando como exemplo a capacidade sexual do homem e a progenitura masculina abundante. Por fim, para Beauvoir (1970), o homem, figurativamente, é um falo e não um cérebro, um indivíduo que participa da virilidade e assim conserva os seus privilégios.

Existem, portanto, feminilidades e masculinidades, e essas características estão presentes em todos os indivíduos, ou seja, assim como as mulheres podem apresentar características relacionadas à masculinidade, homens também podem possuir características tidas como pertencentes à feminilidade. No entanto, existe ainda a predominância de comportamentos associados à masculinidade hegemônica, que em um contexto social é mais uma das faces da dominação masculina. A feminilidade nos homens é normalmente considerada negativa por ser contrária aos papéis tradicionais do que é ser homem (Julia SERANO, 2016).

Acredita-se que a

rejeição ao feminino seja uma forma de manter o homem heterossexual e macho dominante em sua posição privilegiada dentro da sociedade. Por essa perspectiva faz sentido a rejeição do feminino no homem, pois tanto os gays afeminados como as crianças afeminadas são uma ameaça à heteronormatividade (MOURA; NASCIMENTO, BARROS, 2017, p. 1516).

O gay afeminado nas organizações

Primeiramente abordamos aqui o conceito de organização adotado neste artigo. Partimos do pensamento proposto por Michel Thiollent (2014) e Martin Parker (2016) que afirmam que o conceito de organização não deve ser aplicado somente para designar empresas, mas também para entidades ou instituições públicas, políticas ou sociais, podendo ainda ser estendido a qualquer outro tipo de vida social organizada. Ampliando o conceito de organização amplia-se também os fenômenos a serem estudados, tais como os “conjuntos de ações, aplicações de princípios, exercício de poder e demais aspectos como controle, regulação, descriminações, identidade e diferenciação cultural. Além de evolução, inovações, transformações e até destruição” (THIOLLENT, 2014, p. 18). Considerando a definição proposta, apresentamos neste trabalho uma análise da inserção do gay afeminado em diferentes tipos de organizações e setores econômicos, entendendo a organização como um ambiente de exercício do controle e do poder na sociedade.

Em termos sociais, o afeminamento de um homem não é aceitável, tornando-o desprestigiado, pois tal característica denota passividade e fragilidade e o coloca em um patamar inferior ao feminino da mulher. Butler (2015) indaga se existe uma forma política de ser mulher e questiona o que é ser mulher:

o que circunscreve esse lugar como “o corpo feminino”? É “o corpo” ou “o corpo sexuado”, a base sólida sobre a qual operam o gênero e o sistema da sexualidade compulsória? Ou será que “o corpo” em si é modelado por forças políticas com interesses estratégicos em mantê-lo limitado e construído pelos marcadores sexuais (BUTLER, 2015, p. 185).

Paul Beatriz Preciado (2011) observa que os critérios utilizados por indivíduos LGBTQIA+ para autorreferência (‘sou homossexual’, ‘sou trans’ e ‘sou travesti’) são questões somatopolíticas produzidas por um conjunto de técnicas que possibilitam a dominação dos corpos, as quais levam à criação de um saber dos indivíduos gays sobre eles mesmos, tomando as ações, formas de desejo, crenças e identidades. Nesse sentido a “noção de identidade sexual demarca uma posição específica em relação às normas sociais” (Juliana Vieira SAMPAIO; Idilva Maria Pires GERMANO, 2014, p. 298). Avançando na discussão, Moura, Nascimento e Barros (2017) observam que existem gays que constroem seu gênero tomando como referência a heteronormatividade masculina, bem como há aqueles que constroem sua identidade de gênero baseados no que se entende socialmente por feminilidade.

Contudo, os homens femininos servem para reforçar os padrões de masculinidade hegemônica, considerando que são exemplos de como um homem másculo não deve se portar, não deve ser e de qual modelo de referência não pode se afastar (SEFFNER, 2003). Renata de Almeida Bicalho e Ana Paula Rodrigues Diniz (2009) afirmam que os cargos mais valorizados dentro das organizações exigem ‘perfis’ de homens viris, másculos e dominadores, e se um gay afeminado conseguir ocupar uma dessas posições nas organizações vira alvo de deboche, servindo de exemplo para mostrar aos demais que esses cargos foram feitos para homens ‘machos’.

Ainda que algumas organizações admitam sujeitos gays em seu quadro de funcionários há uma resistência àqueles tidos como afeminados (SIQUEIRA et al., 2009; MOURA; NASCIMENTO; BARROS, 2017). No entanto, quando as organizações contratam homossexuais utilizam-se de seu poder para influenciar o comportamento desses sujeitos, buscando modificar as normas e valores sociais desses indivíduos (Alessandra Ramos Demito FLEURY; Ana Raquel Rosas TORRES, 2011). Ainda nesse contexto, nota-se que a política de gestão da diversidade serve como uma ferramenta capaz de transformar os conflitos políticos e incontroláveis em situações favoráveis e controláveis, pois a contratação de minorias tornou-se um fator inevitável para as organizações (Mario Aquino ALVES; Luiz Guilherme GALEÃO-SILVA, 2004).

Os gays assumidos e os afeminados encontram dificuldades em ocupar cargos mais elevados na hierarquia da empresa. Nessa perspectiva, o crescimento profissional desses indivíduos depende do tipo de comportamento que eles terão dentro da organização (Henrique Luiz CAPRONI-NETO; Luiz Alex SARAIVA; BICALHO, 2014). Tal preconceito nas organizações pode ter raízes em sua estrutura hierárquica que supervaloriza a tríade homem/masculinidade/heterossexualidade em detrimento de mulher/feminilidade/homossexualidade (Alexandre de Pádua CARRIERI; Eloísio Moulin SOUZA; Ana Rosa Camilo AGUIAR, 2013). De acordo com essa perspectiva, os homossexuais estariam no mesmo estrato que as mulheres.

Contudo, nas organizações, muitos homens gays procuram ter comportamentos ditos ‘discretos’, ou seja, se travestem de heterossexuais a fim de ocultar qualquer traço de feminilidade, atendendo às expectativas das organizações (BICALHO; DINIZ, 2009). Marcia Pereira Santos (2015) relata que os sujeitos homossexuais que almejam ser aceitos, respeitados e sentir-se seguros no ambiente organizacional devem assumir posturas baseadas no comportamento masculino heterossexual, evitando usar acessórios que sejam relacionados à feminilidade, para não serem considerados afeminados.

Os gays afeminados são alvos de preconceito múltiplo, primeiro pelo fato de serem gays, e segundo por serem afeminados. Além de serem discriminados por heterossexuais (dentro e fora das organizações) são alvos também de discriminação por parte de gays que possuem comportamentos heteronormativos (que consideram os afeminados como os homossexuais que ‘não se dão ao respeito’). Além disso, o comportamento afeminado determina o tempo em que esses sujeitos permanecerão nas organizações. Esses sujeitos são tidos pelas organizações como funcionários temporários, pois o gay afeminado não é visto como um profissional que possui o comportamento desejado para permanecer nas organizações, por um longo prazo (SIQUEIRA et al., 2009). Nesse contexto observa-se que o preconceito pode estar para além da homossexualidade, direcionado àquilo que é tido como pertencente ao universo feminino (MOURA; NASCIMENTO; BARROS, 2017).

Diante desse contexto, a dominação masculina também abrange os sujeitos gays e é expressa através do estigma imposto pelos atos coletivos que tratam as diferenças como algo negativo, tornando esses indivíduos como pertencentes a grupos e categorias sociais estigmatizadas (BOURDIEU, 2014). Nesse sentido, ressalta-se que os gays que fazem ‘culto ao corpo’ e adotam o padrão de masculinidade hegemônica rejeitam a figura do gay afeminado “por isso ser uma marca extremamente evidente da condição homossexual, ou seja, um estigma mais evidente que um corpo hipermasculinizado” (Severino Joaquin Nunes PEREIRA; Eduardo André Teixeira AYROSA, 2010, p. 10). Diante do exposto, compreende-se que o gay afeminado é alvo de preconceito dentro do ambiente organizacional não pelo fato de ser homossexual, mas sim por possuir comportamentos associados à feminilidade. Tal escolha consiste, além de uma desaprovação social, em um fator estigmatizador.

Percurso metodológico

A pesquisa proposta neste artigo é de caráter qualitativo, pois esse tipo de metodologia incorpora uma visão da realidade social como uma propriedade emergente em constante mudança na criação dos indivíduos (Alan BRYMAN; Emma BELL, 2015). Evidencia-se ainda que a pesquisa qualitativa “proporciona uma lente geral de orientação para questões sobre os estudos de gênero, classe e etnia (ou outras questões de grupos marginalizados)” (John CRESWELL, 2010, p. 91). O corpus da pesquisa, foi composto pelas transcrições das entrevistas realizadas com indivíduos gays que estavam inseridos no ambiente organizacional, de modo a explorar como o gay afeminado é visto dentro desse contexto.

Para a produção do corpus da pesquisa foi utilizado o método da realização de entrevistas individuais em profundidade. Esse método permite a reformulação de perguntas em busca de maiores entendimentos sobre o corpus produzido, os quais não são encontrados em fontes bibliográficas (Aline DRESCH; Daniel Pacheco LACERDA; José Antonio Valle ANTUNES JR., 2015). A entrevista em profundidade permite abordar temas de maior complexidade, que dificilmente fornecem dados satisfatórios quando o instrumento é composto por questionários (Christiane GODOI; Pedro MATTOS, 2010). E Grant McCraken (1988) relata que as entrevistas em profundidade permitem ao pesquisador entrar no universo psicológico do sujeito de pesquisa e perceber as nuances sobre seu cotidiano.

Foram realizadas nove entrevistas, todas foram gravadas, com o consentimento formal dos entrevistados, e transcritas. Para a seleção dos participantes das entrevistas não foi utilizado como critério o fato de serem afeminados. Contudo, durante as entrevistas, todos foram questionados a respeito de sua autopercepção (como se viam). Dos nove sujeitos, apenas três afirmaram que se viam como afeminados, sendo eles os indivíduos dois, três e oito. Já os entrevistados um, quatro, sete e nove relataram possuir comportamentos heteromasculinos, e os sujeitos cinco e seis afirmaram ora serem afeminados e ora apresentarem comportamentos heteromasculinos. Foi utilizada a técnica snowball para recrutamento dos voluntários, também conhecida como snowball sampling (Patric BIERNACKI; Dan WALDORF, 1981), conhecida no Brasil como ‘amostragem em bola de neve’, ou ‘bola de neve’ ou, ainda, como ‘cadeia de informantes’ (ou seja, um participante indica o outro).

O método utilizado para analisar o corpus de pesquisa foi a Análise Crítica do Discurso (ACD). A escolha desse método deve-se ao fato de que a ACD tem sido utilizada de modo recorrente em “pesquisas que se voltam especificamente para os discursos institucional, político, de gênero social, e da mídia (no sentido mais amplo), que materializam relações mais ou menos explícitas de luta e conflito” (Ruth WODAK, 2004, p. 224). Além disso, a ACD é embasada no pressuposto de que a análise do discurso, independentemente de qual tradição teórica é oriunda, parte de uma perspectiva que rejeita a noção realista de que a linguagem é um mero meio neutro para se descrever o mundo. Ao contrário, ela acredita que o discurso faça parte da construção da vida social do indivíduo (Rosalind GILL, 2015). As categorias apriorísticas de análise foram: masculinidade e gay afeminado. No decorrer da pesquisa surgiram as categorias emergentes, sendo elas: organizações, masculinidade hegemônica e afeminofobia.

As organizações nas quais os entrevistados trabalhavam estavam localizadas no estado do Rio de Janeiro (no município de Barra do Piraí e na cidade do Rio de Janeiro). Em sua maioria, as empresas se enquadravam na categoria de empresas privadas, e apenas um dos entrevistados trabalhava em empresa pública. As organizações privadas eram empresas de call center, banco financeiro, rádio e cinema. Dessas empresas, a única de médio porte era a rádio, e as demais de grande porte. Já a empresa pública era a secretaria de saúde do município. As organizações localizadas na cidade do Rio de Janeiro eram duas instituições privadas e duas públicas. As privadas encaixavam-se na classificação de grande porte: uma empresa de telecomunicações e a outra uma universidade. As instituições públicas eram uma câmara de vereadores e um tribunal de justiça.

Apresentação do corpus da pesquisa

O corpus da pesquisa é apresentado a partir dos temas considerados na análise: as masculinidades e a virilidade, o gay afeminado e as organizações reprodutoras da masculinidade hegemônica. Vale salientar que o corpus da pesquisa também é composto pelas anotações do diário de campo, o qual se mostrou de extrema relevância uma vez que muitos comportamentos não foram ditos, apenas observados.

As masculinidades e a virilidade

Neste tema são apresentados os relatos associados ao que os sujeitos pesquisados entendem como masculinidade e virilidade. O entrevistado E1 relata que: “No conceito geral é: primeiro a falta de cuidado pessoal, né. A aparência séria, um andar empinado, com peito estufado. Isso é o conceito geral, não o meu conceito, mas é um conceito geral” (E1). O discurso do entrevistado E2 concentra-se na mesma linha de pensamento da fala anterior: “Homem viril para mim é aquele que entende de futebol, que cospe no chão, fala muitas gírias, mil maneiras” (E2).

É aquela coisa assim de estereótipo, o macho alfa, mulher, cerveja e futebol. Eu passo completamente longe disso, eu abomino os três, pra mim isso nunca foi algo muito presente na minha vida, é porque assim, falar o que representa a masculinidade… eu não sei ao certo, por essas características, estereótipos, eu nunca parei muito pra pensar no que representa a masculinidade. (E6).

Quando questionado sobre o que era masculinidade, o entrevistado E3 cita seu irmão de 15 anos como exemplo, o qual, a seu ver, possui características que ilustram o que é ser homem: “Mas, pra mim, por exemplo, eu comparo muito com meu irmão. Tenho um irmão de 15 anos, meu irmão é totalmente diferente de mim. Gostos… meu irmão gosta de luta, meu irmão faz MMA, meu irmão joga vídeo game, entendeu…” (E3). “ É que na verdade a gente quer ser homem, é o cara que vai jogar bola todo dia, que xinga palavrão, que coça o saco, que toma cerveja, tudo isso a gente faz, só que a gente faz num universo diferente do deles, com mais sensibilidade do que no universo masculino ” (E9, grifo nosso).

Por meio do relato do entrevistado E9, percebe-se que alguns gays buscam construir-se como homens heterossexuais e possuem práticas comportamentais vinculadas à masculinidade hegemônica, contudo reproduzem essas práticas de outra maneira, o que os leva à compreensão da existência de múltiplas masculinidades. Percebe-se ainda que, para alguns gays, a masculinidade no homem heterossexual opera de uma forma mais ‘bruta’, e no gay de outra, com um pouco mais de ‘sensibilidade’. Esses comportamentos, não poderiam ser associados à feminilidade, mas sim à uma masculinidade vivenciada de outra forma.

Outros relatos sobre a masculinidade mostram o que é ser ‘homem de verdade’, de acordo com a heteronormatividade:

Então esse “ser homem de verdade” foi no sentido heteronormativo, cheio de estereótipos onde o macho alfa é aquela pessoa que se impõe caso parem seu caminho, vai querer arrumar briga, vai ser um tanto quanto rude, e talvez um certo número de características negativas. Aquele tipo de pessoa que acha que ler um livro é coisa de viado. (E6).

É porque eu não trabalho muito com parâmetro do que é masculino e feminino. Então, na minha cabeça, essa ideia do macho alfa que a sociedade trabalha, que é mais bruto, que é mais rústico, não é o meu padrão de masculinidade. O meu padrão de masculinidade não tem nada a ver com isso. Isso eu já acho que é uma caricatura do masculino, porque isso é negar que o masculino possa ser sensível, que o masculino possa ser criativo. (E7).

No que se refere à virilidade, um dos entrevistados relata que na visão da sociedade “ser homem é pegar várias mulheres…” (E2). Para o entrevistado E4:

A minha visão, é na verdade de jogar futebol, voleibol todo mundo brinca, mas futebol é só homem […] Então, eu ficava me aproximando muito do que era masculino, futebol, pique esconde, via muito telejornal para me aproximar daquela figura, olhava o braço do meu pai, com desejo, querendo que fosse igual que todas as mulheres gostassem, aquele peito cheio de pelos, não acho bonito raspado, não em mim, mas no outro sim. Você raspa? A figura paterna com ar de ditador mesmo, aquilo me encantava, eu sou uma pessoa muito mandona, acho que a virilidade é isso. Na família somos em cinco, gritamos, falamos muito alto, mas quem manda sou eu. (E4).

O entrevistado oito exemplifica sua opinião do que é ser homem como, ‘pegar’ várias mulheres e não assumir compromisso: “Eles acham que a moda é pegar, pega aqui e amanhã não pega mais […] Homem gosta de ficar por cima para mostrar que ele é homem, não cede e dita a regra da população.” (E8).

Verifica-se que, para os gays entrevistados, é possível a existência de várias ‘masculinidades’: aquela que corresponde aos comportamentos dos homens homossexuais (associados à sensibilidade e à criatividade); e aquela apresentada pelos homens heterossexuais (associada à violência, à assertividade, à autoridade, ao gosto pelo futebol e pela luta, e ainda conforme relatado por vários entrevistados, à busca de múltiplas parceiras sexuais). Os próprios entrevistados atribuem sua visão à constituição de um estereótipo sobre a heteronormatividade, o que pode ser entendido como um contraponto aos estereótipos construídos socialmente em relação ao comportamento homossexual.

Outro ponto a ser destacado dos relatos, diz respeito à associação do exercício da autoridade à heteronormatividade (associação feita pelos próprios entrevistados). Destaca-se a compreensão de práticas sexuais dos homens héteros como uma representação (ou um reforço?) da dominação masculina exercida sobre toda a sociedade.

Quem é o gay afeminado?

Nesta seção são expostos os discursos que evidenciam quem é o gay afeminado. De acordo com o entrevistado E2: “O gay afeminado é se vestir de mulher, ‘dar pinta’ […] Desmunhecar na frente das pessoas, falar com voz mais fina, quer ser mulher… Mas nunca vai ser” (E2). Já o entrevistado E4 relata que o gay afeminado é aquele que possui “cabelo bem penteado, uma escova bem-feita, uma unha bem-feita, a unha eu até faço, mas o cabelo não porque nem tenho; mas poderia pôr uma peruca”. Para o entrevistado E1:

Geralmente cabelos. A maioria é cabelo grande, sobrancelhas finas. Um andar sempre fatal, o jeito de andar, o jeito de sentar-se, o jeito de falar, a educação. Geralmente eles são muito educados, ou não, mas na grande maioria são… É creio que isso. O jeito mais delicado (E1).

Outros relatos mostram que o gay afeminado segue padrões que a sociedade estereotipa, ou espera de um gay para ser considerado afeminado.

Começa pela voz, né. A voz é mais fina, é… mais doce, mais puxada para o feminino, as mãos não são presas digamos como as mãos do hétero, né… Vamos botar assim, a sociedade estipulou isso padrão. É… mais livre, a fala, abre os braços, aquela coisa gesticulando, mas o que mais entrega mesmo é a voz, a voz é diferente, o jeito de caminhar, na maioria das vezes é diferente. Não estou falando dessas bichas malucas que tem por aí, que saem rebolando, não estou nem dizendo isso não, tá. Estou dizendo assim gente, esse negócio de bicha maluca não é preconceito, isso eu posso falar, por que… É… Mas é difícil falar, só por não seguir o padrão já dá diferença, entendeu? (E3).

Então eu acho que acaba que o gay feminino tem uma tendência a reproduzir esse estereótipo, ele tem uma tendência a querer falar em si no feminino - “tô bonita hoje, olha” - que é uma tendência. Sem querer diminuir ninguém por isso, mas acaba que tem muita gente que reproduz isso. E que acaba de certa forma, assumindo até uma fisionomia, um look, a forma de vestir, penteado e tal, reproduz o que vê como parâmetro feminino na sociedade. (E7).

As características? Talvez o corpo, os trejeitos, a voz, a sensibilidade de falar, acho que é mais o trejeito mesmo. E a pessoa também querer se expor como ser feminino você vê que anda rebolando, não tem aquela necessidade de… não sei se é esconder, mas eu não tenho necessidade de sair rebolando, as pessoas sabem que eu sou gay, quem é gay sabe que eu sou gay e até mesmo quem não é gay hoje sabe eu sou gay. Mas não tenho essa necessidade de mostrar essa feminilidade. Tem homens que você vê poxa, ele tem um trejeito todo feminino, ele tem um corpo feminino, o rosto é feminino, a voz, então você consegue identificar a feminilidade na pessoa, então… (E9).

Percebe-se, pelos relatos dos entrevistados, que o gay afeminado pode ser descrito como aquele que acrescenta ou ressalta no seu corpo características associadas geralmente às mulheres: o jeito de andar, os movimentos das mãos, o cuidado com os cabelos e o tom de voz mais agudo. Observa-se, ainda, que alguns entrevistados rejeitam essas características em outros homossexuais, e buscam de alguma forma minimizar a feminilidade em seu comportamento (‘eu não tenho necessidade de mostrar minha feminilidade’). Nesses relatos identifica-se que mesmo entre os homossexuais as características femininas são negadas ou objetos de preconceito quando identificadas em outros gays.

As organizações reprodutoras da masculinidade hegemônica

Nesta seção, busca-se abordar a visão dos entrevistados sobre a predominância da heteronormatividade no ambiente organizacional. Para tanto, indagou-se aos sujeitos entrevistados se as organizações são ambientes neutros no que se refere ao gênero. Para um dos entrevistados, as organizações são ambientes nos quais impera a dominação masculina: “Refletem a sociedade onde prevalecem os valores dos homens” (E2). A presença da dominação masculina no âmbito organizacional também foi evidenciada nos seguintes discursos:

É o que eu falo, as organizações hoje em dia seguem muito o que o mundo fala. Se o mundo fala que é isso, ela não quer saber, é isso e está certo. E como o mundo ainda tem muita homofobia contra os gays, é uma coisa assim absurda, então acaba as organizações trazendo isso para as suas regras internas. (E8).

Não é só no poder do hétero masculino, mas, na sociedade e nas empresas. Porque não é só o homem que tem preconceito, as mulheres também são muito preconceituosas. Às vezes mais do que os homens. Isso é muito engraçado, como as mulheres às vezes fazem as brincadeiras vendo o gay como concorrência, aí você vê que existe um preconceito feminino muito forte. (E7).

O que se destaca nesse último relato é a menção ao preconceito vindo por parte das mulheres, expresso por meio de chistes e ‘brincadeiras’ em relação aos homossexuais no ambiente de trabalho. Outros entrevistados também mencionaram terem sido alvo de preconceito no trabalho pelas mulheres. Tal fato associa-se ainda ao preconceito existente entre os próprios homossexuais contra aqueles considerados ‘afeminados’. Esses relatos nos levam a considerar que a dominação masculina prevalece de tal forma no ambiente organizacional que impede a existência, inclusive, de uma solidariedade entre os sujeitos femininos, sejam mulheres, sejam homossexuais, ambos alvos de preconceito.

Ainda nessa linha, outros relatos apontam que as organizações são ambientes conservadores que afetam tanto homens quanto mulheres. Tal fato pode ser identificado no relato do entrevistado E1 sobre o ambiente organizacional: “Conservador. Que busca o tipo da pessoa perfeita, a pessoa de boa aparência, que se cuida, pessoa branca, que se veste de maneira mais séria, que tem uma vida mais séria, entendeu? Que não remeta a nenhuma possibilidade de escândalo. Um bom berço, uma boa escola.” Quando questionado sobre o que entendia como conservador, o entrevistado afirmou:

No que é ser homem né, com o homem dominando, porque a visão conservadora é assim, porque o homem é o cabeça, ele é o cara, é o cara que dá a paulada na mulher e vem arrastando ela pelo cabelo, bota ela para cozinhar e vai trabalhar. Ele manda, ele domina. Isso até no meio evangélico diz isso o cara é o cabeça e a mulher lá, seja obediente. (E1).

O entrevistado nove relata que as organizações não são neutras no que tange às questões de gênero. De acordo com o participante, muitas pessoas debocham desses sujeitos no ambiente acadêmico, nas universidades, e essas agressões têm continuidade no ambiente de trabalho, uma vez que essas pessoas ocuparão posteriormente os cargos de chefia:

Você imagina uma pessoa que está ali caçoando, rindo de outro gênero, seja ele qual for, esse amanhã é o nosso diretor de alguma organização, ele não vai ter uma visão que talvez eu teria ou você teria. Ele teria um pensamento daquele que ele tinha lá atrás. Pode ser que até mude pela educação, pelos estudos, mas, eu acho que seja meio difícil e isso pesa na organização. (E9).

O relato de outro entrevistado revela também a dominação masculina sobre as mulheres. Quando o entrevistado E5 foi indagado se acreditava que os valores patriarcais se refletem dentro das organizações, ele produziu o seguinte relato discursivo “ Não, acho que não. Porque tem muitos lugares onde donos, gerentes, são mulheres, então elas conseguem ter o porte e impor a palavra como se fosse um homem, então isso é o de menos. ” (E5, grifo nosso). No relato apresentado fica explícito que, na visão do entrevistado, a mulher apenas se impõe no mundo do trabalho quando age como homem. Outra narrativa mostra a dominação masculina através do preconceito contra a mulher. O indivíduo foi indagado se as organizações eram ambientes neutros no tocante ao gênero, ele então produziu o seguinte discurso:

A gente sabe… Eu sou jornalista não preciso estudar sobre isso… No mercado de trabalho quando se tem a mulher recebendo menos que um homem, quando se tem um número de mulheres em determinamos postos de trabalhos bem menores do que dos homens, diz por si só. Eles não dão oportunidades para mulheres, dentro da Volkswagen, ser mecânica, não dão oportunidade para uma mulher estar como motorista de ônibus, entendeu… Não por conta de força, porque mulher tem muita força também. Mas por conta do preconceito. (E4).

Aos indivíduos E9 e E6 foi direcionada a seguinte questão: Para você, o preconceito contra o gay afeminado está relacionado com o poder heteronormativo, ou seja, com o poder do homem na sociedade? Um deles respondeu: “Está, com certeza.” (E9). E o outro: “Sim, sim, sim, o homem mantém ali a sua hegemonia intacta e não deixa aquela área de poder dele ser invadida por outras pessoas.” (E6). Através desses relatos, percebe-se que o preconceito e a discriminação contra o gay afeminado é uma das formas de o homem heterossexual manter seu poder, não só dentro das organizações como também na sociedade.

Anotações do diário de campo

Um dos aspectos principais que justifica a apresentação de um diário de campo foi a percepção de que as dificuldades surgidas durante a pesquisa, assim como a observação dos sujeitos durante as entrevistas, constituíam também parte do corpus de análise. A primeira dificuldade surgiu no acesso aos sujeitos da pesquisa. Outro aspecto importante observado diz respeito ao enorme sofrimento demonstrado pelos entrevistados na abordagem dos temas relacionados às questões socialmente atribuídas ao feminino. O primeiro indivíduo contatado (que faria a entrevista piloto) foi indicado por uma pessoa com quem um dos autores possuía uma relação de amizade. Esse sujeito é empregado de uma grande empresa, e gay assumido no seu círculo de amizades, mas não no meio de trabalho. No primeiro contato, o indivíduo fez diversas perguntas sobre a pesquisa e se mostrou preocupado com a confidencialidade das informações. Após os esclarecimentos, concordou em realizar a entrevista e deixou seu telefone para contato. Porém, no dia seguinte, cancelou a participação e se comprometeu em indicar outros voluntários, o que não ocorreu.

Foi utilizada a técnica ‘bola de neve’ para o recrutamento dos participantes, tendo a seleção se iniciado a partir da rede de contatos dos autores. Foram contatados, após a primeira tentativa, três sujeitos, que se mostraram inicialmente interessados em participar da pesquisa. Contudo, ao serem informados que o projeto investigava o feminino nas organizações sob o ponto de vista de indivíduos gays, demonstraram grande preocupação com o anonimato e, apesar de confirmarem a realização da entrevista quando convidados, cancelavam a participação horas antes de sua realização.

Um dos primeiros entrevistados demonstrou estar nervoso diante de perguntas que abordavam aspectos relacionados à experiência dos gays afeminados nas organizações. Ao final da entrevista (com o gravador já desligado) o indivíduo referiu a dificuldade em lidar com os temas da pesquisa e relatou: “Cara, eu estava nervoso, as perguntas são bem fortes e tocam na ‘ferida’, mexem com a gente.”

Uma outra entrevista foi considerada a mais difícil da pesquisa, pois a todo momento o entrevistado solicitava interromper a gravação e demonstrava muito cuidado na escolha das palavras utilizadas. Ele manifestava resistência em responder as questões relacionadas diretamente aos aspectos femininos do homem gay, e chegou a chorar quando questionado sobre os gays afeminados no ambiente de trabalho. Em uma das pausas, o entrevistado afirmou: “Se soubesse que a entrevista era sobre o gay afeminado eu não teria participado.” De início negou ser afeminado, porém em outra pausa desabafou: “Eu sou super ‘pintosa’ e você ainda me pergunta se sou afeminado?”. Suas respostas foram, na maioria das vezes, evasivas e curtas.

Outra entrevista que produziu registros interessantes foi realizada com o entrevistado E4. A entrevista foi feita no seu ambiente de trabalho, e embora o sujeito fosse assumido naquele ambiente, sempre que aparecia algum colega ele solicitava interromper a entrevista e mudava o assunto rapidamente para que não percebessem sobre o que tratávamos. Ao ser questionado sobre o gay afeminado, reproduzia sua fala com trejeitos e com uma entonação irônica na voz, descrevendo o sujeito afeminado como aquele que falava ‘batendo bolo’. Além de descrever os gays afeminados com deboche, mencionou que um colega de trabalho (gay assumido e considerado por ele como afeminado), não era respeitado pelos outros colegas na empresa. Seu relato sobre o colega afeminado naturalizava a conduta dos demais colegas, legitimando o preconceito contra os homossexuais quando estes apresentam comportamento afeminado.

Por meio dessas observações infere-se que muitos gays preferem não falar desse assunto, devido ao grande preconceito ainda existente na sociedade e nas organizações. Como já relatado, um dos participantes chorou várias vezes durante a entrevista, principalmente quando se autodenominava afeminado. Esse comportamento remete a diversas interpretações, por exemplo, que ser afeminado é ter falhado como homem, do ponto de vista da heteronormatividade, ou ainda representar um grande conflito interno a respeito da sua identidade.

Análise do corpus da pesquisa

A partir da análise do corpus da pesquisa constatou-se que, conforme mencionado, a temática do feminino para os homens gays constitui uma fonte de sofrimento e rejeição, não apenas no ambiente de trabalho, mas também em função das experiências vividas na sociedade em geral, desde a infância. Tal fato pôde ser percebido nos relatos dos entrevistados, nos momentos de nervosismo e emoção demonstrados durante as entrevistas, no sofrimento exposto por alguns entrevistados, na negação das características femininas em seus comportamentos (negadas a princípio e depois reafirmadas pelos entrevistados) e mesmo na recusa de alguns sujeitos convidados para participar da pesquisa. Tais aspectos refletem o preconceito que os sujeitos femininos enfrentam no ambiente organizacional (e fora dele). Esse preconceito abrange não apenas os homens gays afeminados, mas também as mulheres que manifestam características consideradas masculinas nas organizações, tendo em vista que, conforme relatado, o ambiente de trabalho não é considerado um ambiente feminino. Ademais, conforme afirmou um dos entrevistados, as mulheres, para serem respeitadas nas organizações, devem apresentar comportamentos tidos como masculinos.

Para Beavouir (1980), Connell (2003) e Veiga (2012), todo ser feminino não é, necessariamente, uma mulher, nem a feminilidade é um privilégio somente das mulheres. Compreende-se que esses sujeitos, ao considerarem-se afeminados, estão afirmando possuir características femininas. Isso evidencia assim que ser feminino é uma construção que não está ligada ao sexo biológico, mas sim às questões psicológicas e sociais, ou seja, ser masculino ou feminino trata-se de uma questão de gênero. Nesse sentido, gênero, tal como afirma Scott (1990), é uma construção mental significante para a demarcação de relações de poder e, no contexto organizacional, é utilizado como um reforço da dominação masculina. Essa dominação expressa-se ainda sobre os corpos, uma vez que mesmo as formas de falar e de gesticular dos indivíduos femininos são alvos de deboche e de repressão (inclusive pelos próprios gays) no ambiente organizacional. Nesse sentido, cabe ressaltar a afirmação de Butler (2015) ao considerar que o corpo feminino não é, senão, uma construção política.

Por meio dos relatos constata-se ainda que, assim como existem ‘masculinidades’, conforme abordado no referencial teórico deste artigo, também podemos falar em ‘feminilidades’, considerando que as características associadas à feminilidade na mulher são diferentes daquelas associadas ao gay afeminado. A feminilidade na mulher é associada às características de submissão, fragilidade, falta de competência para exercer determinadas funções, além das características associadas ao ato de cuidar do lar. Os discursos apresentados sobre feminilidades podem ser interpretados à luz das ideias de Fletcher (2004) que apontam a vulnerabilidade e as habilidades de conquista e colaboração como socialmente atribuídas às mulheres e entendidas como femininas. Já no sujeito gay, a feminilidade está associada ao exagero no comportamento, à vaidade excessiva e à voz aguda. Contudo, essa feminilidade é repudiada por esses sujeitos, pois, por estar associada a um corpo masculino, pode fazer com que eles sejam vistos como menos capazes. Pode-se dizer, por meio da análise dos relatos, que existem feminilidades, e que estas estão em constante transformação, não existindo apenas um jeito de ser feminino: há uma multiplicidade de feminilidades.

Percebeu-se ainda que as feminilidades estão associadas aos papéis de gêneros previamente estabelecidos pela sociedade e pela cultura, questões estas que fazem eco com as ideias já evidenciadas por Butler (2015). Diante do exposto, pode-se afirmar que os gays afeminados são seres femininos, considerando que a feminilidade é vivenciada e reconhecida a partir, também, do olhar do outro, ou seja, por meio das interações desses sujeitos com o mundo levando cada indivíduo a atribuir sentidos diferentes para suas feminilidades através da sua corporeidade e subjetividade.

Nesse contexto de feminilidade e masculinidade/virilidade, entra em cena o gay afeminado. Quem é esse sujeito? Quais são as suas características? Contudo, antes de iniciar a discussão sobre o gay afeminado, faz-se necessário discutir algo anterior, o menino gay afeminado. Baubérot (2013) aponta a família como uma das instituições responsáveis pela construção da masculinidade e virilidade na criança. Por meio do relato de um entrevistado, percebe-se que o afeminamento no menino não é visto como um comportamento natural pela família e pela sociedade, além de ser associado na idade adulta ao universo feminino. Consequentemente, o menino afeminado experimenta as mesmas características e rejeições atribuídas a qualquer ser feminino. Fica explícito nos relatos que os entrevistados que se declararam afeminados, já na infância adotavam o feminino para si por enxergar nele os comportamentos que desejariam ter, ou até mesmo como uma forma de já mostrar sua sexualidade, como descrito por Beauvoir (1980, p. 12): “Alguns escolhem obstinadamente a feminilidade o que é uma das maneiras de se orientar para o homossexualismo.” Por meio dos relatos percebeu-se também que mesmo na infância a feminilidade não é permitida no menino.

É importante retomar também a questão que envolve a socialização. Por exemplo, um dos sujeitos relata que gostaria de ter os braços peludos iguais aos do pai, pois na família aquilo era valorizado e tido como símbolo de masculinidade, ilustrando assim os pensamentos de Santos (2008) e Cardoso, Oliveira e Dias (2015) ao exporem que a família é uma instituição responsável por socializar a criança de acordo com a heteronormatividade. Outra questão observada é que os relatos de diversos sujeitos se assemelham, independentemente dos tipos de organizações às quais estejam inseridos. Ou seja, tanto as organizações públicas quanto as privadas (dos mais diversos segmentos) proporcionam um ambiente permissivo às práticas que valorizam a masculinidade hegemônica em sujeitos gays, em detrimento das características associados aos gays afeminados. Essa observação dialoga com a ideia de Santos (2008) ao afirmar que aqueles que não se enquadram no padrão de masculinidade são tidos como ‘veadinhos’ ou até mesmo vistos como ‘não homens’. Nessa linha de pensamento e embasando-se na fala dos entrevistados, as organizações também se tornam ambientes de socialização responsáveis por inserir a masculinidade nos sujeitos homens, como apontado por Baubérot (2013) e Cardoso, Oliveira e Dias (2015).

Em diversos fragmentos de fala foi possível compreender que alguns sujeitos entendem a figura do gay afeminado como uma figura feminina e que, dentro do contexto organizacional, homossexualidade, mulheres e feminilidade compõem uma tríade de características que desvalorizam os sujeitos profissionalmente, questão já apontada por Carrieri, Souza e Aguiar (2014).

Os sujeitos relataram que há um padrão de masculinidade, ou seja, uma masculinidade hegemônica, pois socialmente há uma construção do que é ‘ser homem’ e essa construção traria em seu cerne características comuns a todos os homens. Tal masculinidade está atrelada aos traços brutos, tais como a luta, o consumo de bebidas alcoólicas e a definição do homem como aquele que manda. Essas características já são naturalizadas em uma sociedade baseada na dominação masculina. A existência de uma masculinidade hegemônica já foi descrita por Connell e Messerschmidt (2013) ao apontarem algumas de suas características: a agressividade, a força e a virilidade.

Outro aspecto observado diz respeito à virilidade, característica esta que, para os entrevistados, não está desvinculada da masculinidade, posto que ‘ser homem’, segundo os relatos, envolve relacionar-se com várias mulheres sem ter compromisso com nenhuma delas. Essa definição de virilidade pode ser encontrada também em Baubérot (2013). A associação entre ‘ser homem’ e ‘pegar’ várias mulheres reflete a noção de que a virilidade está vinculada à potência sexual do indivíduo, ou seja, à sua capacidade de ter relações sexuais com diversas mulheres, enaltecendo assim sua capacidade de conquistar várias ‘presas’. Nesse sentido, até o que se entende por virilidade está vinculado ao exercício da dominação masculina, pois homens impõem as regras e não aceitam que os sujeitos femininos as revoguem, como já apontado por Bourdieu (2014) e Molinier e Welzer-Lang (2009), ao ressaltarem que a virilidade é uma das inúmeras faces da dominação masculina.

Para um dos entrevistados - que se considera afeminado - ser afeminado não é ser ‘bicha maluca’. Ele assinala que os gays ‘bicha maluca’ possuem um andar extravagante e não estão no padrão. Nota-se, a partir dessa fala, que até o gay afeminado tem preconceito direcionado àquele que possui mais características de feminilidade. Essa performance corporal faz com que alguns gays tratem outros como desviantes, possibilitando assim que esses sujeitos extremamente femininos experimentem uma inferiorização e desvalorização de sua masculinidade perante outros gays. Tal fato foi observado por Zago e Seffner (2008, p. 6) os quais relatam que esses sujeitos experimentam “um decréscimo de gênero, uma inferiorização, uma perda, uma depreciação do valor de sua masculinidade em relação aos demais.”

Constatou-se ainda que os sujeitos gays preferem não se assumir no ambiente de trabalho, ou evitam mostrar comportamentos associados à feminilidade, pois acreditam que tais traços não são aceitos pelas organizações e isso poderia trazer problemas no ambiente laboral. Outro tipo de atuação organizacional que se mostrou fortemente masculinizada foi a área jurídica, tanto na esfera pública quanto na privada. Mesmo aceitando gays em seu quadro de funcionários, são áreas que preferem contratar gays com comportamento heteronormativo, como afirmou um dos sujeitos. Uma vez que os entrevistados inseridos nessas organizações reconhecem que são áreas predominantemente masculinas, infere-se que essas organizações constituem um grande sistema de poder masculino, assim como apontam Fleury e Torres (2011) ao relatarem que a gestão da diversidade reflete as relações sociais, políticas e econômicas, as quais são moldadas a partir das necessidades que emergem das relações de poder.

Por fim, foi possível constatar que as organizações aceitam a prática da afeminofobia, considerando que há um desprezo por gays afeminados que saem de seus papéis de gênero. Uma regra nunca dita, mas interiorizada por muitos, é ‘você pode ser gay, desde que seja viril’, seguida não só pelas organizações que são reprodutoras da masculinidade hegemônica, mas também por alguns sujeitos do universo homossexual, que ainda estigmatizam seus pares ‘menos discretos’, conforme já constatado por Siqueira et al. (2009) e Moura, Nascimento e Barros (2017).

Considerações finais

Retomamos aqui a pergunta de pesquisa proposta no início do artigo: Como sujeitos gays compreendem o gay afeminado no ambiente organizacional? As nuanças das falas dos homossexuais masculinos revelaram a existência de preconceitos, mitos e da visão sexista dos papéis femininos, e isso engloba também o gay afeminado. Além disso, ficou clara uma visão do ‘ser feminino’ como alguém menos capaz e da masculinidade como um atributo relacionado a alguém capaz. Isso demonstra que muitos gays ainda parecem acreditar no mito da fragilidade feminina, confirmando a aceitação e a reprodução do processo de socialização diferenciada destinada aos indivíduos femininos e masculinos, os quais também, são reprodutores da dominação masculina tanto na sociedade quanto nas organizações.

Percebeu-se ainda existir diversas instituições responsáveis pela criação da masculinidade/virilidade nos indivíduos, tais como família, escola e trabalho. A família procura inserir comportamentos masculinos e viris na criança por meio da ‘correção’, ou seja, quando percebem que o menino é afeminado procuram corrigir tal característica, e quando falham no processo corretivo acabam estigmatizando-os. Na escola, as crianças afeminadas são alvo de deboche e exclusão, e sua feminilidade torna-se motivo de estranhamento, podendo ser consideradas como seres desviantes diante da heteronormatividade. Devemos considerar que a escola também é um ambiente que prepara o indivíduo para a vida organizacional, ao mesmo tempo que é, em si, uma organização. Como já relatado, de forma breve, o ambiente de trabalho cria comportamentos masculinos nos indivíduos homens através de suas práticas organizacionais, sendo que algumas dessas práticas têm por objetivo eliminar traços femininos dos gays.

Nesse contexto, gays afeminados frequentemente são alvos de homofobia tanto por parte da sociedade heteronormativa quanto das organizações que acabam por refletir os valores da sociedade. Constata-se que os homens gays que não correspondem aos padrões de masculinidade hegemônica são mais discriminados e sofrem mais preconceito, podendo esta ser não somente uma questão homofóbica, mas, sobretudo, misógina. Deixa-se como sugestão, para pesquisas futuras, estudos que objetivem relacionar em profundidade as organizações como agentes que tratam o feminino como uma característica relacionada à incapacidade profissional. Nesse sentido, considera-se que a afeminofobia nas organizações pode não ser vivenciada somente por gays afeminados, mas afetar também heterossexuais, bissexuais, transexuais etc., sempre e quando esses sujeitos não cumprirem com seus papéis de gênero baseado na heteronormatividade e na masculinidade hegemônica

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1Neste artigo utilizamos as palavras efeminado e afeminado. A palavra efeminado é utilizada para descrever aqueles que perderam a virilidade ou que não possuem comportamentos considerados másculos. Já o termo afeminado é usado para se referir a sujeitos que performam a feminilidade em seus corpos e que esta pode ser performada junto com questões vinculadas à virilidade.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MOURA, Renan Gomes de; NASCIMENTO, Rejane Prevot. “O gay afeminado nas organizações: uma tensão permanente com padrões heteronormativos”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e65840, 2021.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 88882,366162/2019-01

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 23 de Maio de 2019; Revisado: 15 de Maio de 2020; Revisado: 29 de Maio de 2020; Revisado: 30 de Junho de 2020; Aceito: 03 de Agosto de 2020

renangmoura@gmail.com

rejaneprevot@unigranrio.edu.br

Renan Gomes de Moura (renangmoura@gmail.com) é doutorando em Administração na Universidade Grande Rio (Unigranrio), mestre em Administração (Unigranrio, 2017), especialista em Gestão de Competências e Talentos Humanos (Centro Universitário Geraldo Di Biase - UGB, 2014) e Administrador (UGB, 2012).

Rejane Prevot Nascimento (rejaneprevot@unigranrio.edu.br) é Cientista Social (Universidade Federal do Rio de Janeiro -UFRJ, 1992), mestre em Engenharia de Produção pela (UFRJ, 1997) e doutora em Engenharia de Produção pela (UFRJ, 2004). Professora da Universidade do Grande Rio, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Administração (PPGA/Unigranrio).

Contribuição de autoria: Renan Gomes de Moura: responsável pela escrita do artigo, produção do corpus da pesquisa, análise e discussão do corpus e redação das considerações finais. Rejane Prevot Nascimento: responsável pela análise e discussão do corpus, redação das considerações finais e revisão final do artigo

Conflito de interesses: Não se aplica

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