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Revista Estudos Feministas

versión impresa ISSN 0104-026Xversión On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.29 no.1 Florianópolis ene. 2021  Epub 01-Ene-2021

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n162136 

Artigos

Da violência obstétrica ao empoderamento de pessoas gestantes no trabalho das doulas

From Obstetric Violence to Empowerment of Pregnant People in the Doulas’s Work

Daniela Calvó Barrera1 
http://orcid.org/0000-0003-4682-8033

Rodrigo Otávio Moretti-Pires2 
http://orcid.org/0000-0002-6372-0000

1Universidade Federal de Santa Catarina, Epicenes - Núcleo de Estudos em Gênero e Diversidade Sexual em Saúde, Florianópolis, SC, Brasil. 88036-002 - ppgsc@contato.ufsc.br

2Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e Epicenes - Núcleo de Estudos em Gênero e Diversidade Sexual em Saúde, Florianópolis, SC, Brasil. 88036-002 - ppgsc@contato.ufsc.br


Resumo:

A partir da realização de entrevistas com doulas de diferentes regiões brasileiras e de uma postura construcionista como suporte epistemológico e metodológico buscamos compreender os sentidos atribuídos às suas experiências e às suas vivências na doulagem e aos contextos relacionais em que se inserem. São citadas algumas das situações de violência com as quais as entrevistadas se deparam no cotidiano da sua atuação e na importância da vinculação entre mulheres para o fortalecimento da autonomia e empoderamento e superação das vulnerabilidades. Como resultado, o artigo aponta que a atuação como doula não apenas traz a possibilidade de empoderamento para a pessoa gestante, por meio do apoio e da informação trazidos pela presença da doula, como também para a própria doula, ao se conectar a outras mulheres com o intuito de enfrentamento das iniquidades com as quais se defronta.

Palavras-chave: doula; empoderamento; violência obstétrica

Abstract:

Starting from interviews with doulas from different regions of Brazil and from a constructivist stand as epistemological and methodological support, this paper seeks to understand the meanings attributed by the doulas interviewed to their experiences both in general life and in their specific activity as well as to their own relational contexts. The paper points out some of the situations of violence with which they are faced in their everyday activity and the importance of the bond between the women for the strengthening of their autonomy and empowerment and overcoming of vulnerabilities. As a result, this paper shows that acting as a doula brings the possibility of empowerment not only for the pregnant, through the information and the support brought by the presence of the doula, but also for the doula her, by means of connecting herself with other women in order to cope with the iniquities they face.

Keywords: Doula; Empowerment; Obstetric Violence

Introdução

A gravidez, o parto e o puerpério muito mais do que eventos biológicos que ocorrem nos corpos femininos, são eventos sociais, que envolvem a pessoa gestante,1 sua família (da qual pode fazer parte ou não uma pessoa parceira) e a comunidade. Tais eventos integram a vivência reprodutiva de mulheres e homens, além de constituírem uma das experiências humanas mais significativas, tendo ‘forte potencial positivo’ e ‘enriquecedor’ para todos os envolvidos (BRASIL, 2001). No entanto, há indícios de violações aos direitos das gestantes e parturientes no Brasil (Sergio CARVALHO, 2004). Altos índices de cesáreas e outras intervenções prescindíveis e cerceamento de autonomia aparecem nesses textos como importantes fatores de desempoderamento e acentuação das violências para com as mulheres no processo de parturição2 (Rejane GRIBOSKI; Dirce GUILHEM, 2006; Ana Renata RABELO; Kênia Lara SILVA, 2016).

As violências relacionam-se aos estereótipos de gênero e aos decorrentes comportamentos presumidos como ‘dos homens’ e ‘das mulheres’ dentro das hierarquias sociais, as quais são acentuadas pelas relações autoritárias estabelecidas entre os profissionais de saúde, especialistas, e as parturientes, leigas (CARVALHO, 2004; GRIBOSKI; GUILHEM, 2006; RABELO; SILVA, 2016). A Política Nacional de Atendimento Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) e o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM) reconhecem as desigualdades de poder na organização social a partir da perspectiva das relações de gênero, com prejuízos para as condições de vida e saúde das mulheres quando comparadas aos homens (BRASIL, 2004, 2005b). Uma vez que se apresentam em leis, práticas sociais e políticas, as desigualdades entre homens e mulheres tornam as mulheres mais vulneráveis ao sofrimento, adoecimento e morte (Fernanda CABRAL; Lúcia Beatriz RESSEL; Maria Celeste LANDERDAHL, 2005).

A partir do século XIX a assistência ao parto passa paulatinamente a ser institucionalizada e medicalizada (Miriam LEÃO; Marisa BASTOS, 2001) com predominância do ambiente hospitalar como o local socialmente legítimo para seu transcorrer. Esse processo não apenas desloca a pessoa gestante do ambiente doméstico e familiar, onde tradicionalmente aconteciam os nascimentos, como altera os atores envolvidos e seus papéis na atenção a esse processo. A pessoa parturiente deixa de ser assistida em seu lar por parteiras ou mulheres de sua confiança, acompanhada por familiares e indivíduos com quem estabelece laços afetivos, para ser assistida exclusivamente por profissionais de saúde no contexto das maternidades, passando muitas vezes horas a fio sozinha em trabalho de parto. Portanto, a institucionalização do parto teve papel determinante no afastamento da família e da rede social do processo do nascimento (Odaléa BRÜGGEMANN; Mary PARPINELLI; Maria José OSIS, 2005). Se no domicílio a parturiente tinha maiores possibilidades de um papel ativo no nascimento e maior espaço para autonomia sobre o processo, no hospital torna-se paciente, entregue às decisões profissionais (Denise SANTOS; Isa Maria NUNES, 2009), o que poderia ser diferente, por exemplo com a inserção de doulas no ambiente hospitalar já que, segundo Carmen Simone Grilo Diniz (2005), é um elemento de humanização, inclusive com melhor relação profissional de saúde-pessoa parturiente.

À medida que “o ambiente hospitalar reproduz as desigualdades nas relações de poder presentes no espaço social” (GRIBOSKI; GUILHEM, 2006, p. 111), abrem-se espaços para experiências de “risco, sofrimento, insatisfação, frustração e violência” (Karla SOUZA; Maria DIAS, 2010, p. 494), com prejuízos em relação à experiência de parto para a pessoa parturiente em termos de gratificação e boas memórias associadas.

O questionamento do progressivo aumento no número de cirurgias cesáreas realizadas e o perfil de morbimortalidade materna apontam para a excessiva medicalização da gestação e do parto (SANTOS; NUNES, 2009) e ainda para o alijamento da pessoa gestante dos vínculos com quem estabelece laços afetivos que poderiam lhe transmitir segurança emocional durante o trabalho de parto.

Em reação a esse panorama, surgem movimentos em prol da humanização do parto e do nascimento, reconhecendo que a negação do acesso das pessoas gestantes a conhecimentos sobre seus corpos e seus direitos restringe diretamente o exercício da sua autonomia. Para que se concretize a humanização é central o diálogo entre os profissionais dos serviços de saúde e as usuárias e os usuários, promovendo o respeito e incentivando a autonomia sobre seus próprios corpos e sobre a tomada de decisões referentes aos processos que os envolvam. Assim, de acordo com Griboski e Guilhem (2006), trata-se do resgate e da promoção do respeito à pessoa parturiente, para além da reorganização dos serviços de assistência à saúde das mulheres.

Em uma perspectiva com foco na humanização e na qualificação da atenção obstétrica é preconizada a incorporação, nos serviços de saúde, de condutas que sejam acolhedoras e pautadas na horizontalidade entre profissionais e parturientes, com atenção integral às necessidades das gestantes e do recém-nascido (BRASIL, 2005a). Esse enfoque deve ser pautado na percepção da gestante enquanto um ser social, inserido em determinado contexto e com características e necessidades únicas, assim como o respeito as suas singularidades e a promoção de autonomia (CABRAL; RESSEL; LANDERDAHL, 2005).

Uma vez que o suporte emocional durante o trabalho de parto passou a ser mais exceção do que rotina, os movimentos que visam a humanização do nascimento retomam esse apoio como uma de suas estratégias (BRÜGGEMANN; PARPINELLI; OSIS, 2005) o que abriu espaço para a multiplicação das doulas.

A bibliografia consultada refere a origem do termo doula como grega e significa ‘mulher que serve’. Posteriormente o termo passou a ser usado para se referir a mulheres que ajudavam as pessoas recém-paridas nos afazeres da casa, como cozinhar, ajudar no cuidado com outras crianças, entre outras necessidades. Atualmente é utilizado para se referir às mulheres (e alguns poucos homens, ressaltando que sua inserção na área é controversa entre as doulas mulheres) sem experiência técnica na área da saúde, que dão suporte físico e emocional às parturientes durante a gestação, no trabalho de parto e no parto e, muitas vezes, na amamentação (BRASIL, 2001; BRÜGGEMANN; PARPINELLI; OSIS, 2005; LEAO; BASTOS, 2001; SANTOS; NUNES, 2009; SOUZA, DIAS, 2010). A doula pode tanto ser designada e treinada pela instituição de saúde quanto pela comunidade (Ana Verônica RODRIGUES, Arnaldo SIQUEIRA, 2008). Em relação à pessoa gestante, a atuação da doula seria “encorajando, aconselhando medidas para seu conforto, proporcionando e orientando contato físico e explicando sobre o progresso do trabalho de parto e procedimentos obstétricos que devem ser realizados.” (BRASIL, 2001, p. 65). É importante ressaltar o relevante caráter informativo da atuação da doula (Raimunda SILVA et al. 2016), uma vez que, além do apoio emocional, ela fornece à pessoa em situação de parto informações “sobre todo o desenrolar do processo de parto e nascimento, esclarecendo-a quanto às intervenções e procedimentos, para que a mesma possa participar de fato das decisões acerca das condutas a serem tomadas neste momento.” (SOUZA; DIAS, 2010, p. 494).

Quando esta pesquisa começou a ser delimitada foi realizado um levantamento preliminar de textos nas bases de teses e dissertações, assim como no indexador de periódicos SciELO, em que foi possível verificar a existência de considerável bibliografia apontando para os benefícios da atuação de doulas para as pessoas gestantes assim como para suas famílias (BRASIL, 2001; BRÜGGEMANN; PARPINELLI; OSIS, 2005; LEÃO; BASTOS, 2001; SILVA et al., 2016). Pôde ser observado ainda que o suporte dado à mulher durante o trabalho de parto e o parto por profissionais de saúde, doulas e mulheres leigas tem sido foco de estudo em vários ensaios clínicos randomizados e revisões sistemáticas, tornando esse suporte uma prática embasada em evidências científicas (BRÜGGEMANN; PARPINELLI; OSIS, 2005).

O presente artigo analisa experiências de doulas em relação à vivência de violências no cotidiano de sua atuação, ao estabelecimento de vínculo, fortalecimento de autonomia e empoderamento, destacando que a atuação como doula não apenas representa a possibilidade de empoderamento para a pessoa gestante, através do apoio e informação trazidos pela presença da doula, como também para a própria doula, ao se conectar a outras mulheres no estabelecimento de estratégias de superação das vulnerabilidades de parturientes em suas práticas profissionais.

Percurso metodológico

Trata-se de pesquisa qualitativa de cunho exploratório, com vistas a elaborar hipóteses de leitura de uma determinada realidade. Adotou-se uma postura construcionista social como suporte epistemológico e metodológico, que toma como base os processos sociais através das narrativas e seus sentidos produzidos pelas próprias pessoas entrevistadas (Kenneth GERGEN; Mary GERGEN, 2010; Carla LORENZI et al., 2014), buscando compreender os sentidos atribuídos pelas doulas entrevistadas às suas experiências e às suas vivências na doulagem, assim como aos contextos relacionais em que se inserem (Maria Lucia BOSI; Francisco Javier MERCADO, 2007).

Os dados produzidos foram obtidos através de entrevistas semiestruturadas realizadas entre setembro e novembro de 2017 com treze doulas que se dispuseram voluntariamente a participar do estudo.3

Para a seleção das participantes foi realizada divulgação através de publicação-convite em rede social na internet, em grupos de debates entre doulas. Após contato com as primeiras entrevistadas, utilizou-se o processo de ‘bola de neve’ (Patrick BIERNACKI; Dan WALDORF, 1981), em que cada uma divulgou entre seus contatos. Aquelas que entraram em contato com as pesquisadoras, participaram das entrevistas individuais. Não foram buscadas novas entrevistas a partir do momento em que houve reincidência de informações das entrevistas, sem acréscimos de novos conteúdos, indicando saturação (GERGEN, K.; GERGEN, M., 2010; Dalton Luiz RAMOS; Cilene JUNQUEIRA; Nelita PUPLAKSIS, 2008). O critério de inclusão referiu-se a pessoas que tivessem realizado curso de formação de doula, já tivessem acompanhado pelo menos cinco gestantes e que concordassem voluntariamente em participar da pesquisa.

Podemos localizar nossas interlocutoras entre os diferentes marcadores sociais da diferença. No tocante à geração, a mais nova tinha 25 anos e a de mais idade tinha 46 (faixa etária média de 35,5 anos). Quanto ao estado civil, cinco se declararam solteiras, cinco casadas, duas divorciadas e uma afirmou estar em união estável. Por sua vez, em relação à raça/cor, sete se autodeclararam brancas, uma preta e cinco pardas. No que diz respeito à orientação sexual, seis se declararam heterossexuais, cinco bissexuais e duas lésbicas, ressalta-se que destas uma se denominou ‘sapatão’. Todas as características citadas estabelecem o lugar de onde fala cada uma, estando intimamente relacionado aos processos de atribuição dos diferentes sentidos às suas experiências.

O roteiro de entrevistas utilizado foi elaborado dando ênfase ao objetivo de pesquisa, visando delinear perguntas que contribuíssem para visibilizar o tema abordado. As entrevistas foram realizadas presencialmente ou via ferramentas de videoconferência on-line, uma vez que foram selecionadas doulas de diversas regiões do país. Essa modalidade de entrevista, por contar com o compartilhamento da imagem das interlocutoras, permitiu que a pesquisadora observasse nuances de expressões não verbais, importantes para compreender a reação delas a cada pergunta ou temática abordada. Após permissão verbal de cada doula os áudios das entrevistas foram gravados e posteriormente transcritos na íntegra.

Para análise das informações não foram criadas categorias ou eixos temáticos pré-estabelecidos em que se enquadrariam as falas. Estas por sua vez foram descritas e relatadas com o debruçar da pesquisadora sobre as transcrições, refletindo a respeito dos sentidos construídos pelas entrevistadas acerca dos padrões de gênero envolvidos nos processos de gestação, parto e puerpério e as possibilidades de empoderamento de doulas e ‘doulandas’ debatendo com a literatura da Sociologia em Saúde Coletiva sobre a temática. Assumimos ao longo da investigação que não seriam produzidas verdades, mas sim interpretações possíveis, levando em conta o lugar de onde falam tanto a pesquisadora enquanto feminista e alguém apropriada do discurso da ciência, quanto as interlocutoras enquanto mulheres que vivem as dinâmicas sociais do parto e da ‘doulagem’.

Resultados e discussão

Historicamente as representações ocidentais do corpo e comportamento das mulheres as caracterizam como seres com corpos incompletos, frágeis e com personalidades histéricas e descontroladas (Rosamaria CARNEIRO, 2013), por isso incapazes e despreparadas para a vida pública. Com o mencionado processo de cientifização e medicalização pelo qual passou a sociedade no século XIX, especialistas das áreas da ciência, anatomia, fisiologia, ginecologia e obstetrícia modernas retiram o corpo grávido e o momento do parto do universo de cuidados e saberes femininos ‘tradicionais’, transformando-os em ‘assuntos médicos’. Sobre esse processo a doula Agnes comenta:

antigamente os partos eram coisa de mulher, eram as mulheres, eram as parteiras que faziam esse trabalho. Então com a, vamos dizer assim, a hospitalização, com a medicalização do parto, desde que a figura do médico se destacou na sociedade e os médicos já iniciaram sendo homens, né? desde que as bruxas foram dizimadas, vamos dizer assim, [risos] a mulher foi afastada desse papel que originalmente era dela, né? (Agnes).

Essa apropriação por parte de médicos e cientistas do corpo da mulher contribuiu de forma relevante não só para exercer controle sobre sua reprodução e sexualidade, mas também para as representações que temos de mulher “inferiorizada, menor e desigual” (CARNEIRO, 2013, p. 2.377), perpetuando a noção de incompletude e incompetência feminina (Camila PIMENTEL et al., 2014) e justificando a limitação da sua participação social somente na esfera doméstica, exercendo a função de reprodutoras (CABRAL; RESSEL; LANDERDAHL, 2005).

As discussões sobre a situação feminina e sua inserção social e nos serviços de saúde emergiram na década de 1980 (GRIBOSKI; GUILHEM, 2006), trazendo à tona que o sistema de estereótipos normativos em que se baseiam as representações sociais de masculino e feminino é socialmente construído, e não um fato natural ou biológico. As desigualdades de poder entre homens e mulheres originam-se de normas e condutas designadas para cada gênero como efeito de hierarquias políticas, econômicas, culturais e geográficas (CABRAL; RESSEL; LANDERDAHL, 2005).

Atualmente, diversos documentos oficiais do Ministério da Saúde (BRASIL, 2001, 2004, 2005b) reconhecem que a construção social do ser masculino e do ser feminino está essencialmente vinculada a relações de poder desiguais entre homens e mulheres. Esses desequilíbrios advindos da organização social das relações de gênero se expressam em leis, práticas sociais e políticas públicas, interferindo de maneira relevante na vida e na saúde das mulheres, tornando-as mais vulneráveis ao sofrimento, adoecimento e à morte. Assim, torna-se imprescindível que incorporemos a perspectiva de gênero tanto nas análises do perfil epidemiológico, quanto no planejamento de ações de saúde, visando a promoção da melhoria das condições de vida, a igualdade e os direitos de cidadania das mulheres e pessoas gestantes (CABRAL; RESSEL; LANDERDAHL, 2005).

Com as menções nas bibliografias consultadas e nos relatos das interlocutoras sobre as relações assimétricas estabelecidas entre profissionais de saúde (detentores do conhecimento) e parturientes (leigas) se torna evidente o viés hierárquico do modelo assistencial e de gênero presente na assistência hospitalar ao processo de parturição. Nesse ambiente também será esperada da mulher uma postura submissa, lhes sendo negada a voz, o esclarecimento de dúvidas, e principalmente, diminuindo seu protagonismo, reforçando a sua dependência em relação aos profissionais de saúde (GRIBOSKI; GUILHEM, 2006).

A sujeição das mulheres ao que lhes é ordenado as priva do poder de se autodeterminar, ou seja, de sua autonomia, e as transforma em objeto passivo da ação dos profissionais, reforçando socialmente a ideia de que é o médico quem “faz o parto” (PIMENTEL et al., 2014, p. 174). Assim, podemos perceber que o próprio ambiente hospitalar reproduz as assimetrias nas relações de poder presentes no espaço social e das violências perpetradas contra os corpos femininos (GRIBOSKI; GUILHEM, 2006). É possível verificar uma certa ideia de submissão em algumas respostas das interlocutoras sobre como percebiam a influência de padrões de gênero no parto e na violência obstétrica, como no exemplo de Mima, a seguir:

uma coisa que eu acho também que influencia [a violência obstétrica] é como a mulher se comporta, porque às vezes ela é muito treinada para ser submissa, pra não decidir, pra não fazer nada sem alguém, sem alguma pessoa por ela e aí na hora do parto é ela, e aí é pedir demais porque ela já não fez isso a vida inteira e agora a hora do parto ela não vai conseguir, entendeu? (Mima).

Assim, através de diversas falas das interlocutoras foi transparecendo a opinião de que, de modo geral, muitas das violências obstétricas acontecem pelo próprio fato de serem mulheres, por já ser costumeiro o seu silenciamento (CABRAL; RESSEL; LANDERDAHL, 2005).

Porque é muito mais aceitável você violentar uma mulher que tá numa, numa situação de vulnerabilidade e que aprendeu desde criança que ela não tem que reagir, né? Ela é uma vítima fácil. A gente tá acostumada né, a sofrer o abuso e a violência e a se calar. Acostumada não né, acho que a gente aprendeu isso, né. (Maria da Conceição).

Em muitas das falas das entrevistadas aparece a questão da informação como perpetuadora de assimetrias de poder, uma vez que o médico tem informação, instrução, o que o coloca na posição de ‘saber o que está fazendo’ em oposição à gestante que chega no parto sem esclarecimento dos processos fisiológicos e procedimentos que podem ser realizados, tal como afirma também Ligia Sena (2016). Todas as interlocutoras responderam existir relações assimétricas de poder entre os profissionais de saúde, em especial os médicos, e as parturientes em afirmações como:

O médico como uma posição de autoafirmação de conhecimento se coloca nesse lugar de “eu sei, eu sei o que é melhor pra você”. Então a gente diz isso porque até médicos humanizados têm essa relação de hierarquia, então “vem comigo que eu sei. Eu sei o que é melhor pra você”. E muitas vezes a gestante já chega lá acreditando nisso porque já tá tão vulnerável, já tá tão sozinha nessa situação que ela acaba acreditando nessa voz né. O abuso de poder é imenso, é isso. (Elizabeth).

Os relatos vão ao encontro do que argumenta Mariana Pulhez (2013, p. 552) em relação “ao cenário epidêmico de cesarianas”, procedimento que somente deveria ser empregado em casos específicos. A predominância indiscriminada de nascimentos por via cesárea, além de apagar a diversidade de possibilidades de vivenciar os processos de gestar e parir, ainda vem acompanhada de recorrentes relatos de violência obstétrica, em que o lugar imputado à pessoa gestante é de submissão calada e passiva à autoridade médica, se traduzindo em frases como: ‘pra fazer não gritou’.

Quando um profissional de saúde dissuade uma mulher a parir sem intervenção com a justificativa de que ela ‘não vai aguentar’, ou que vai causar ‘sofrimento ao feto’, ou quando é orientada a dar mamadeira, pois seu leite é ‘fraco’, desconsidera-se as inseguranças e culpabilizações muito presentes ao longo do processo gravídico-puerperal, intimamente relacionadas à reprodução das hierarquias da estrutura patriarcal que desqualificam os corpos lidos como femininos e de mulheres, fixando-os como fracos e incapazes, dependentes do masculino (Laura MATTAR; Carmen Simone DINIZ; 2012).

Um considerável número de trabalhos aponta para a persistência de desigualdades sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil, denunciando que mulheres indígenas, pretas, com menor escolaridade, com maior número de gestações e aquelas residentes nas regiões Norte e Nordeste têm menos acesso à assistência pré-natal adequada (Rosa Maria DOMINGUES et al., 2015; Emanuelle GOES, 2018; Maria do Carmo LEAL et al., 2014; MATTAR; DINIZ; 2012). Desse modo, ao analisar as violências obstétricas relatadas pelas interlocutoras, para além de considerar a variável gênero devemos também mencionar a influência de marcadores como nível de escolaridade, raça, região geográfica e fonte de pagamento do parto (Gabriela LAMARCA; Mario VETTORE, 2015) na atenção prestada às pessoas parturientes.

A partir da literatura sobre a temática dos marcadores sociais da diferença emergida nos Estados Unidos nos anos 1980, questionou-se certa universalização das experiências de um grupo específico de mulheres do Norte Global para as mulheres dos demais contextos. Assim, passou-se a evidenciar as variáveis que diversificam as experiências das mulheres ao redor do mundo e como essas diferenças singularizam cada contexto de violência e enfrentamento, reforçando o fato de que as experiências dos sujeitos não são meramente determinadas pela biologia, mas possuem dimensão cultural, social e política (Larissa PELÚCIO, 2011). Com isso, percebemos que as vivências de partos no Brasil estão entrecortadas pela racialização, classismo e etarismo, pautadas em relações subalternizantes, uma vez que as diferenças são vividas como desigualdades, hierarquizando sujeitos e coletividades (PELÚCIO, 2011). Isso pode ser nitidamente percebido na fala de Adelaide:

A gente sabe, por exemplo, que as mulheres em situação de rua e as mulheres profissionais do sexo assim como as indígenas e as negras, elas sofrem muito mais violência em qualquer assistência à saúde, né. Então, assim, elas vão ser mais violentadas, elas vão receber tratamentos muito inferiores, muito aquém, e isso é violência… Tá relacionado às questões de gênero, raça... E as adolescentes também. (Adelaide, grifos nossos).

É necessário portanto tomar gênero, geração, raça/cor e classe como categorias analíticas que devem ser consideradas nos estudos em saúde, reconhecendo que, como construções sociais, vão configurar o espaço de socialização e repercutir no “acesso e uso dos serviços de saúde, bem como na forma pela qual os indivíduos se orientam frente às diferentes instituições sociais” (Florêncio Mariano COSTA JÚNIOR; Marcia Thereza COUTO, 2015, p. 1.310).

A intersecção entre os marcadores sexo e gênero percebidos na não aceitação por parte dos profissionais e o desconhecimento - tanto destes quanto das próprias pessoas gestantes - dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos das pessoas LGBTQIA+, são mencionados pelas doulas entrevistadas como um importante fator de desempoderamento e de intensificação da sua vulnerabilidade durante o processo de parturição.

A despeito das mudanças na legislação sobre acompanhante no parto, contexto que ainda tem ecos em certas recomendações oficiais anteriores que restringiam o acompanhamento ao parto à figura do ‘pai’ (Sonia HOTIMSKY; Augusta Thereza de ALVARENGA, 2002), ainda existem dificuldades para companheiros que não se enquadram nessa definição tradicionalista de ‘pai’. Entre essas pessoas, destacam-se as segundas mães ou pais trans que não tenham retificado seu nome e sexo juridicamente, o que se refere ao âmbito institucional das violências relacionadas a gênero e sexualidade e não apenas como atos individuais cometidos por profissionais específicos, de determinadas unidades de saúde. Essa questão da discriminação para com casais lésbicos e o enfrentamento de dificuldades da parceira de acompanhar o parto apareceu em trechos das respostas sobre a influência dos padrões normativos de sexo e gênero tanto na maneira como se dão os partos atualmente quanto nos números que temos de violência obstétrica. Uma das doulas comenta:

Eu acompanhei nos últimos dois anos acho que dois partos de manas lésbicas e que são socialmente tidas como “machinhos”. E foi muito claro a diferença de tratamento e atenção médica a essas duas mulheres. Muito claro. […] Inclusive em um desses partos teve uma “treta” homérica porque o hospital bateu pé que só aceitava que assistisse o parto O PAI [fala com ênfase]. Tá, mas a criança tem outra mãe! E o hospital disse ou é acompanhante, ou é o pai. E a outra mãe da criança precisou entrar como acompanhante, ou seja, ela perdeu o direito de ter uma terceira pessoa ali, né porque o pai tem direito de assistir o parto, mas a outra mãe não tem. (Isabel).

A doula Elizabeth traz essa preocupação quando fala que não só gostaria de ter a experiência de ‘doular’ mulheres lésbicas, bissexuais ou homens trans gestantes, mas também de proporcionar mais espaços de discussões sobre essas temáticas:

Começar mudando a linguagem, né, porque essa linguagem é muito viciada “a mulher, a mulher, a mulher, a mulher”. Eu acho que a gente começando a transformar na linguagem, a gente já vai chegando em novos lugares, abrindo mais espaços mesmo. (Elizabeth).

Também foi mencionada pelas interlocutoras a violência para com homens trans e as dificuldades por eles sentidas no processo gravídico-puerperal, como exemplificado no seguinte trecho:

a gente sabe que mulheres lésbicas também sofrem mais violência, e a gente sabe que homens trans que estão gestando não podem pensar em entrar numa maternidade parindo, né? Então, assim, a gente já teve relatos de homens trans que tiveram que buscar partos domiciliares porque não conseguem… não correm o risco de se expor ao nível de violência obstétrica que vão sofrer numa situação de parto, por despreparo das próprias equipes, né […] Então essas são assim, vamos dizer assim, os grupos de mais vulnerabilidade. (Adelaide).

Essa fala da doula Adelaide evidencia que para não incorrer em violência, os serviços e profissionais de saúde devem estar sensibilizados nas questões de sexualidade e gênero e orientados quanto às diferentes possibilidades de configuração familiar, respeitando as parentalidades não normativas que se apresentam na hora do parto. A prestação de atendimento que seja respeitoso e satisfatório, pautando-se nos direitos humanos e reprodutivos das pessoas LGBTQIA+ gestantes, pode concretizar, de fato, a integralidade da atenção às necessidades de saúde de gestantes lésbicas, bissexuais e transexuais.

Os marcadores raça/cor e classe também foram referidos em diversos estudos que abordam a temática do parto (Eleonora D’ORSI et al., 2014; DOMINGUES et al., 2015; GOES, 2018; LEAL et al., 2014). Questões de classe também foram mencionadas em falas de entrevistadas. Ao ser questionada se os padrões de gênero influenciavam a maneira como os partos se dão atualmente, Merga afirma que: “ Influencia, sim. Influencia… Ainda mais as mulheres de classe mais baixa, que eles tratam muito mal ” (grifo nosso).

As iniquidades em saúde vão incidir diretamente na existência de benefícios e oportunidades diferenciadas segundo a raça/cor da parturiente que resultam em prejuízo para aquelas que apresentam cor de pele mais escura (LEAL et al., 2017). Mulheres pretas e pardas estão mais sujeitas a sofrer violências e a ter seus direitos fundamentais violados na atenção pré-natal e parto, como elucidam Leal e colaboradores (2017, p. 6), “as mulheres de raça/cor preta e parda, quando comparadas às brancas, apresentaram, de maneira geral, piores indicadores de atenção pré-natal e atenção ao parto.”

Esses estudos apontam também a existência de diferenças significativas na assistência ofertada a parturientes adolescentes (< 20 anos), aquelas com menor escolaridade, pertencentes a classes econômicas mais baixas, sem companheiro/acompanhante, que não possuíam um trabalho remunerado, que foram atendidas em serviços públicos, residentes nas regiões Norte e Nordeste do país, assim como aquelas com maior número de gestações anteriores, insatisfeitas com a gestação atual ou que tentaram interromper a gestação (D’ORSI et al., 2014; DOMINGUES et al., 2015; LEAL et al., 2014, 2017; Elaine VIELLAS et al., 2014).

Dentre as evidências dos impactos das desigualdades podemos destacar que as mulheres socioeconomicamente desfavorecidas tiveram menores chances de um pré-natal adequado (DOMINGUES et al., 2015), pior avaliação do tempo de espera até serem atendidas, menor chance de respeito e privacidade durante o atendimento nos exames, no trabalho de parto e no parto e maior número de relatos de violência (D’ORSI et al., 2014). Também apresentaram pior relação com os profissionais de saúde e maior referência a maus tratos psicológicos e verbais (LEAL et al., 2017), além de terem sido utilizados mais procedimentos dolorosos como a aceleração do trabalho de parto e de baixo uso de analgesia obstétrica (LEAL et al., 2014, 2017), baixa proporção de início precoce do pré-natal e de número de consultas realizadas e a peregrinação das mulheres no momento da internação para o parto (VIELLAS et al., 2014).

Cabe mencionar que, da mesma maneira que gênero, classe e raça/etnia posicionam os indivíduos no interior das relações de poder, o recorte geracional também acarreta experiências específicas de adoecimento, vulnerabilidades, cuidado à saúde e acesso a recursos e uso de serviços de saúde, assim como acesso a recursos que possibilitem o enfrentamento dessas vulnerabilidades (COSTA JÚNIOR; COUTO, 2015). Assim, não podemos descuidar dos marcadores geracionais para compreender intersecções nos processos de cuidado e atenção ao parto.

Costa Júnior e Couto (2015) afirmam que a idade é comumente utilizada para justificar e naturalizar o poder e a dominação de um grupo de pessoas mais velhas ou adultas sobre crianças ou adolescentes, o que produz privilégios e desigualdades nas relações entre esses grupos (COSTA JÚNIOR; COUTO, 2015; Silvana GAMA et al., 2004). Em casos de parturiente adolescente, quando ingressa em um serviço de saúde, seja no pré-natal, seja no parto, ela passa a estar sujeita a diversas relações de poder que se interseccionam na sua vulnerabilização. Por um lado, se apresenta uma mulher (ou ainda um homem trans), jovem, leiga, e ainda despida diante de desconhecidos, um elemento que surgiu nas entrevistas como potencializador de vulnerabilidade. Do outro lado geralmente estão homens, adultos, especialistas, que estudaram por diversos anos para estar ali. Assim, o espaço do parto é muitas vezes utilizado para ‘dar uma lição’ na jovem mãe, partindo de uma noção de que existe um momento certo da vida para engravidar e parir. Essas reflexões também foram abordadas na fala de uma entrevistada:

as mães adolescentes também sofrem porque existe um padrão cultural de que existe o momento certo para você ser mãe e você ser mãe antes dessa hora certa é muito mal, é muito feio, é muito ruim. Então eu mesmo sofri violência obstétrica muito claramente por ser uma mãe adolescente. (Adelaide).

Em vista disso, mesmo havendo grandes avanços em relação às reivindicações feministas das décadas de 1970 e 1980, e que a assistência pré-natal no Brasil já alcançou cobertura praticamente universal, no que diz respeito especificamente ao parto, ainda não é possível verificar melhorias significativas. São frequentes os relatos de iniquidades no acesso a cuidados adequados na gestação e no parto (DOMINGUES et al., 2015). Necessita-se ainda de abordagens além dos aspectos biológicos, com a construção e implementação de estratégias voltadas para as populações vulneradas que levem em conta as dimensões sociais, econômicas, históricas e políticas, de modo que se reduzam as barreiras de acesso e facilitem o início precoce da assistência pré-natal (DOMINGUES et al., 2015).

Foi reincidente nos relatos das entrevistadas a trajetória de buscar por cursos de formação de doulas após terem entrado em contato com violências, negação de protagonismo e abusos de poder por parte dos profissionais da saúde no transcorrer da gestação ou parto (delas próprias ou de outras mulheres), um achado coerente com o que aponta também Camila Castello (2016).

Assim, a ‘doulagem’ surge como reação, um retorno dessas mulheres ao sistema de saúde na intenção de oferecer suporte às pessoas gestantes, auxiliando-as para que não se repitam as violências por elas vivenciadas anteriormente.

Eu sou uma doula que tive três cesarianas. A primeira cesariana foi extremamente violenta, as outras duas eu entendo que houve violência obstétrica em algum nível, especialmente no nível da negação da informação completa por parte da minha obstetra, nesse sentido. […] Acho que inclusive, ter vivido violência obstétrica, contribui pro meu trabalho já que combater violência obstétrica é uma das funções primordiais do trabalho da doula. (Adelaide).

Nesse contexto de estratégias de resistência às violências, as participantes da pesquisa relataram aproximação dos movimentos sociais e processos para a elaboração de si mesmas enquanto feministas, assim como também encontrado por Castello (2016) ao referir-se à ideia de sororidade em curso de doulas. Ao serem questionadas se o envolvimento com o feminismo as teria influenciado a se tornarem doulas, das treze, nove responderam que trilharam o caminho inverso. Ou seja, a percepção de si enquanto feministas se deu após se depararem, como doulas, com casos de violência contra mulheres em decorrência da gestação ou parto.

Na medida que eu comecei a trabalhar [como doula] , a minha afinidade foi muito grande por movimentos políticos, mas eu não tinha isso muito claro pra mim. Aí, a partir disso é que eu descobri a política, pela questão de ser doula e aí a gente vê que, pô, eu trabalho aqui com a mulher no individual, mas a gente tem que fazer um movimento maior, a gente tem que puxar e tal. Aí eu fui descobrindo esses movimentos sociais, a atuação política. (Joana, grifo nosso).

Para Gracia: “A humanização tá ligada ao empoderamento da mulher, e o empoderamento da mulher tá ligado ao feminismo. Então foi isso que me puxou pra esse lado eu comecei a aprender mais, e continuo aprendendo.”

Da fala de Joana convém ressaltar que também emerge a necessidade de se extrapolar o âmbito individual do atendimento a uma gestante específica, destacando a importância de movimentação coletiva e do papel da doula de ‘puxar’ movimentos sociais como o de humanização, o que nos parece consoante com Giovana Tempesta (2018, p. 57) ao afirmar que as doulas permitem certa desestabilização da “supremacia de certos conceitos e imagens hegemônicos e propondo a formulação de outros sentidos, outro tipo de tecnologia e outros ‘conhecimentos autoritativos’ concernentes às experiências de gestação, parto e puerpério.” A autora afirma ainda que há um contraponto à orientação liberal no ideário da ‘humanização do parto’, à medida que parte de um trabalho que valoriza o vínculo e a construção conjunta de sentidos ao redor do parto, entre doulas e pessoas parturientes.

Foi perceptível tanto nas respostas sobre elas se identificarem como feministas quanto nas respostas sobre a relação entre o feminismo e a entrada na doulagem a existência de uma noção baseada em senso comum do que é ser feminista, mas que passou a ser reformulada após o contato com a doulagem, com as violências e com os movimentos sociais, assim como o estudo de Castello (2016). Esse processo reflexivo foi decisivo na elaboração para algumas doulas do que era o feminismo, e o que era ser feminista, como pode ser identificado nas seguintes falas:

eu acho que depois que eu me tornei doula que eu fui me dar conta da violência contra a mulher, da violência obstétrica, da falta de espaço, do protagonismo da mulher falando da sua própria saúde, sobre seu próprio corpo. Foi aí que eu fui entender de fato o que era o feminismo, porque até eu então eu acho que eu reproduzia um pouco desse pensamento do tipo “ai, feminismo é muito extremo”, “feminismo é muito isso, feminismo é muito aquilo”. (Elizabeth, grifo nosso).

Assim, essas mulheres paulatinamente deixam de perceber as violências que presenciaram como casos isolados, de âmbito individual, e passam a entendê-los como reflexo da maneira como estão organizadas as relações sociais entre homens e mulheres, entre os profissionais de saúde e parturientes. Esse deslocamento pode ser percebido quando a doula Adelaide discorre a respeito da violência obstétrica que sofreu como um problema coletivo que, nas suas palavras “é estrutural, é cultural, é político, é econômico” (Adelaide). Ao pensar seu corpo e as violências sofridas enquanto um problema que é coletivo torna-se claro para ela, cujo corpo “foi violentado não por uma prática de um profissional técnico, ou de dois ou de três […] foi violentado porque é um corpo de mulher em uma sociedade que não respeita o corpo da mulher.” (Adelaide).

Ao analisar o âmbito institucional das violências obstétricas, Adelaide relata que foi possível reconhecer seu corpo, a função social dele e a sua própria função social enquanto indivíduo. Em sua narrativa, Adelaide destaca que esse processo de se reconhecer no mundo é relevante uma vez que leva também a repensar e reconhecer ‘todas as outras’ mulheres.

Entendemos que com esse processo de repensar a si e repensar as outras, essas entrevistadas passaram a conceber-se para além de sujeitos individuais, mas como sujeitos coletivos (Judith BUTLER, 2015), atravessadas por opressões e violências que estão enraizadas nas instituições, saberes e práticas. Porém, cabe neste ponto questionar a essencialização da gestação como algo eminentemente feminino, já que ao relatarem certa estabilidade nas vivências de violência das pessoas que gestam, fixando o gestar em ‘vivências de mulheridade’, atrelam o sujeito ‘mulheres’ dentro da lógica binária em que só mulher gesta e pare.

Através da reflexão a respeito da violência obstétrica e da constatação de que está intimamente vinculada às violências de gênero, elas começam a perceber a si e as outras como sujeitos políticos de movimentos que lutam pela humanização do parto e do nascimento, assim como de movimentos que visam a emancipação das mulheres, a superação das violências e desrespeitos aos corpos lidos como femininos e a equidade entre os gêneros.

O meu entendimento do movimento de humanização do parto, movimento com o qual eu me identifico, é um movimento político, feminista, essencialmente e fundamentalmente feminista! E eu gosto de dizer que eu sou ativista do movimento de humanização do parto e nascimento e de defesa dos direitos sexuais e reprodutivos de pessoas com útero. Então, assim, esse é meu entendimento de movimento. É desse movimento que eu faço parte, é político, é subversivo e é resistência. (Adelaide).

Os relatos das doulas entrevistadas evidenciam que, nas suas trajetórias, o reconhecimento de que a situação de vulnerabilidade, desempoderamento, silenciamento das mulheres na cena de parto é uma continuidade dos padrões normativos e opressivos de gênero e sexualidade estabelecidos em nossa sociedade. O desejo de erradicação da violência perpetrada contra as mulheres durante o parto as motivou a se engajarem nos movimentos sociais de mulheres e feministas.

O fato de poderem proporcionar contato físico, segurando a mão da mulher, respirando junto, promovendo seu encorajamento e estimulando, trazendo tranquilidade e proporcionando medidas de conforto e alívio da dor, além de prestar orientações, aconselhar e explicar sobre o progresso do trabalho de parto e procedimentos obstétricos que podem ou devem ser realizados (BRASIL, 2001; LEAO; BASTOS, 2001; SANTOS; NUNES, 2009), faz com que as parturientes muitas vezes verbalizem a associação das doulas a figuras como ‘anjos’ e ‘fadas’ (RODRIGUES; SIQUEIRA, 2008). Porém, o que queremos visibilizar com este artigo é que, ao contrário de figuras místicas, dotadas de poderes, as doulas são mulheres que também tiveram que mobilizar conhecimentos, se engajar em redes, o que se refere a processos de (auto)conhecimento e empoderamento sobre si e seu corpo, temática que tangencia o presente trabalho, mas que não será discutida por ser um enfoque mais amplo.

O que nos cabe apontar é que, para que possam representar essa figura de suporte, fortalecendo as mulheres atendidas, enquanto cidadãs, há conjuntamente um percurso pessoal de contato com violências, com redes estabelecidas com as pessoas gestantes que acompanham, assim como com outras doulas durante os cursos de formação e aperfeiçoamento e eventos relacionados à atividade, havendo um imbricamento entre a informação que passam a acessar ao tornarem-se doulas e seu empoderamento individual (Raquel SANCHEZ; Rozana CICONELLI, 2012). Ao longo das formações, elas puderam vir a conhecer os aspectos anatômicos e psicossociais relacionados ao próprio corpo e a olhá-lo de outras maneiras, conforme aprendiam sobre as etapas que o corpo passa durante a gestação, pré-parto, processo expulsivo e puerpério. Sobre isso, a doula Elizabeth relata: “as mesmas vivências que eu passei nos cursos de formação eu faço com elas pra que elas consigam liberar esses corpos presos. Porque a gente tem muita vergonha, muito medo das nossas intimidades.”

A partir de trocas e aprendizados com outras mulheres, todas as entrevistadas mencionaram que observaram mudanças na maneira como se percebem no mundo e na maneira como se relacionam com o próprio corpo. As maiores mudanças referidas foram, por um lado, um novo olhar para o corpo, mas também para os padrões estéticos e de consumo. Por outro lado, decorrente da primeira, apareceu a mudança na maneira como se relacionam com a sua sexualidade:

Sim. Em mim foi muito forte, a relação com meu corpo mudou muito, porque a partir do momento que eu entendi que eu sofri violência obstétrica e que na verdade a violência obstétrica é um problema estrutural. […] quando eu entendi isso, precisei me reconhecer nesse corpo de mulher e precisei reconhecer a minha função social e a função social do meu corpo. Isso para mim foi muito forte. E quando eu reconheço a mim mesma, eu reconheço todas as outras, todas as demais , então, sim, mudou a forma de cuidar do meu corpo, mudou, eu passei a questionar a minha relação de consumo, o meu padrão estético que eu achava que era o meu gosto estético pelo corpo e eu entendi que é um padrão construído, então mudou muita coisa. Mudou o que eu entendo da minha sexualidade (Adelaide, grifo nosso).

Completamente. Eu tenho uma outra relação de liberdade com o meu corpo, tenho uma outra relação de liberdade com a minha própria sexualidade, com a minha história, com o universo que tem dentro de mim, com as outras pessoas também com quem eu encontro, com um outro olhar de acolhimento, sabe? De compreender que, enfim, nossos corpos são sempre invisibilizados por conta dessa questão de padrões e tudo mais e que eu não preciso disso tudo na minha vida. E aí consegui transformar isso em mim… nas mulheres que eu encontro e que eu doulo também, que eu acabo doulando… a gente entra muito nessas questões do que é o se despir, né. (Elizabeth).

O processo de desenvolvimento da autoconfiança e da autoestima relacionado a essa nova maneira de olhar para si, para o corpo e a sexualidade são fatores determinantes para o empoderamento (CARVALHO, 2004), uma vez que dão argumentação mais sólida para a tomada de decisões sobre processos que envolvem seu corpo e ressaltam que essas decisões devem partir delas mesmas.

Quando entraram em contato com técnicas de alívio não farmacológico da dor, refletiram sobre a medicalização do parto e a utilização rotineira de analgésicos e anestesias, que é uma prática que deve ser amplamente debatida entre quem administra e as pessoas parturientes, e não uma decisão apenas do profissional de saúde. Aprenderam sobre seus direitos sexuais e reprodutivos, ao se aproximarem dos movimentos sociais de mulheres e feministas, participando de discussões a respeito de padrões normativos de sexo e gênero e sobre emancipação feminina. As entrevistadas relatam que também se empoderam ao participarem de partos de mulheres que se libertam dos padrões impostos e mostram toda a ‘potência’ do corpo feminino. E ao ressaltar essa ‘potência’ estão se contrapondo às noções que fixam os corpos femininos como fracos e incapazes. Isso se torna evidente em suas respostas quando indagadas se o contato com outras mulheres fez com que elas se sentissem mais empoderadas.

Podemos extrapolar para o contexto das doulas e gestantes o que Rabelo e Silva comentam sobre a relação de enfermeiras com mulheres:

Nessa exploração das subjetividades, apresentam-se as práticas emancipatórias, que são formuladas em consideração a mulher usuária e partilhando com ela em uma relação de liberdade para ambas. Todo processo emancipatório e autoconhecimento, ele não se descobre, se cria. (RABELO; SILVA, 2016, p. 1.212).

Assim, a partir do entendimento de que as práticas emancipatórias se dão em contextos relacionais, percebemos que, ao apoiar o processo de parto em que uma mulher passa a acreditar que ela é capaz, que seu corpo é capaz e que ela é um sujeito com direito de ser respeitado tanto como ser humano, quanto como cidadã, se empoderando e se fortalecendo (CABRAL; RESSEL; LANDERDAHL, 2005; GRIBOSKI; GUILHEM, 2006; SOUZA, DIAS, 2010), tornou-se claro para as doulas a possibilidade real de fortalecimento feminino. Com isso, o próprio processo de empoderamento da doula é retroalimentado, motivando-as a continuarem a exercer sua atividade. Em outras palavras, o empoderamento se dá de forma relacional, promovido por relações pautadas na troca de informações dialogadas, respeito e confiança (RABELO; SILVA, 2016). Para a grande maioria das doulas entrevistadas ver a força de uma mulher se empoderando fortalece a possibilidade do próprio empoderamento pessoal, como é perceptível nas colocações reproduzidas a seguir:

Nossa, muito mais! [empoderada] Muito mais. É porque doular uma mulher é visitar muitas profundezas dentro da gente mesma, né? […] é muito transformador doular uma mulher. Então é uma oportunidade de se ver né, eu me vejo em muitas mulheres . […] Então é um aprendizado e nesse aprendizado cresce esse empoderamento, né? (Merga, grifos nossos).

ah, não tem como não, né? [não se sentir mais empoderada] É impossível não sentir. Quando você sente a força de outra mulher, você se sente forte também. […] Eu sempre volto mais forte de cada parto que eu acompanho. Eu sempre trago um pouquinho da força de cada mulher que eu vi parir e que eu vi se abrir pra ela e pro mundo. E que eu vi a entrega dela e a gente sempre volta mais forte e a gente sempre volta um pouquinho mais empoderada! (Isabel, grifos nossos).

Se mulheres associam as doulas a figuras como ‘amiga’ ou ‘mãe’ (Ana Verônica SILVA; Arnaldo SIQUEIRA, 2007; RODRIGUES; SIQUEIRA, 2008), mesmo em casos em que não havia sido estabelecido vínculo prévio, é porque as doulas se reconhecem nas parturientes por elas atendidas, e se reconhecer no outro gera empatia, o que impulsiona ações que visam a transformação social. Nas palavras da doula Ursulina, se conectar com outras doulas e com as gestantes fortaleceu sua relação com mulheres em um nível que ela ‘não tinha nem ideia de que existia’, e com isso: “Eu me sinto mais fazendo parte, na verdade. Eu me sinto menos só. Pra ser franca, eu me sinto mais responsável pelas outras. Por nós, pelo nós, sabe?” (Ursulina).

Entendemos essa responsabilização ‘pelas outras’ como uma noção de responsabilização social pelas outras mulheres e pessoas gestantes que não encontram voz ao longo do processo gravídico-puerperal. Novamente vem a ideia de percepção de si como sujeitos coletivos, que passam por vivências que extrapolam o âmbito pessoal, então ao tomar consciência da existência das violências, elas se sentem impelidas a lutar pela emancipação das demais pessoas em suas gestações e partos.

Onze das entrevistadas afirmaram que após os contatos com a rede de mulheres passaram a se sentir mais empoderadas. Quanto às duas que responderam negativamente, o argumento aponta para o quanto ainda precisa ser feito no âmbito do empoderamento feminino e da humanização:

Mas com certeza eu não me senti mais poderosa não, eu percebi mais a impotência das mulheres e esse saber que eu tenho, que eu integrei, me deixa mais aflita assim, porque eu vejo com um olhar de urgência muito grande pras questões de sexualidade feminina de modo geral, não só parto e puerpério, mas tudo. O contato com o próprio corpo. (Nyzette).

Já a doula Adelaide, por mais que sinta os efeitos da opressão, percebe a potência do empoderamento mútuo das relações entre as mulheres com quem tem contato: “Totalmente. Embora as vezes eu me sinto muito impotente diante da opressão, eu me sinto empoderada comigo mesma, me sinto empoderada dentro dos grupos onde eu transito.” (Adelaide).

Mas em sua maioria os relatos foram de transformação, fortalecimento e empoderamento de si, reconhecendo os espaços de formação e de trocas entre doulas como relevantes para esses processos:

Sim, muito. Cada curso de formação que eu participei, tanto eu quanto as mulheres que participaram junto, o nosso feedback é “meu, isso mudou minha vida”. E muda a vida de assim… tu olha pra tudo que tem na tua volta, todas as escolhas que você já fez até hoje e você fala não, eu quero além, eu quero mais que isso. Então muda mesmo, muda a relação com o próprio corpo, muda a autoconfiança, muda as escolhas que a gente quer pra nossa própria vida e abertura vai acontecendo, não tem como não acontecer. A gente vai abrindo e rompendo com essas amarras, cordas, com essas prisões internas psicológicas assim. Quando você vê, tão todas urrando. Então pra gente chegar nesse lugar precisa de muita mudança, e a gente consegue chegar nesse lugar bem rápido juntas. (Elizabeth, grifo nosso).

Nessa fala da doula Elizabeth destacamos a potencialidade que ela identifica na coletividade de mulheres, na sua união. Ela ressalta que é trilhando esse caminho juntas que se torna possível repensar os padrões que pautam a relação com o próprio corpo, abrindo espaço para mudança. Para Tempesta (2019, p. 16), “a doula ocupa uma posição algo indefinida, porém potente; idealmente ela está física e emocionalmente próxima à mulher e perscruta o ambiente e as relações a partir de um repertório heterogêneo de conhecimentos e técnicas”.

Sobre esse processo coletivo podemos refletir também sobre o que nos conta a doula Bridget, quando afirma que, na sua percepção, “sempre teve uma relação diferente da comum com seu corpo” e que a maternidade foi crucial para mudar a maneira como lidava com ele, e destaca a relevância de se perceber conectada com outras mulheres para se fortalecer perante as pressões sociais.

Então assim, eu acredito que esse contato com essas mulheres, com esse outro universo fez realmente isso que já estava em mim ter eco, porque talvez se fosse uma voz isolada, se eu tivesse sozinha e não estivesse em rede talvez eu não tivesse essa reverberação e ficaria mais suscetível a essa enorme pressão externa social né, cultural, enfim. Então eu acho que sim, esse contato com as mulheres me ajudou a abraçar ainda mais essa minha questão com o meu corpo, com quem eu sou e tudo. (Bridget).

Da interação entre as doulas e as parturientes resulta um crescimento e empoderamento mútuo entre aquelas que cuidam e aquelas que são cuidadas. Segundo Souza e Dias (2010, p. 498), “cuidar significa praticar o convívio, o respeito e a solidariedade. A pessoa que cuida de algo ou de alguém, sempre se sente afetada pelo outro. Por isso, ao cuidar de alguém também estamos cuidando de nós mesmos.” Assim, a doulagem traz para essas mulheres entrevistadas novas maneiras de se relacionarem consigo mesmas e com o mundo, além de despertar sentimentos de conexão, de pertença, de responsabilidade coletiva.

Acho que a coisa de mulheres apoiando mulheres não tem como negar, a importância que isso tem nesse momento histórico e político, mulheres sendo amparadas e acolhidas por outras mulheres e a descoberta da potência do corpo. As doulas são as mensageiras do segredo e o segredo é a potência do corpo da mulher. Esse corpo que a gente fala tanto da questão do sexo e da sexualidade que é silenciada, e o parto é sexualidade, o parto é o ápice, é o momento alto, é a maior potência do funcionamento desse corpo e da sexualidade e nós somos mensageiras desse segredo, que o corpo da mulher funciona, e ele é extremamente potente. Eu acho que isso muda o mundo! (Adelaide).

Considerações finais

Ao longo da realização das entrevistas e da consulta à bibliografia entramos em contato com denúncias de violação de direitos fundamentais das pessoas gestantes e em situação de parto. Percebemos que com a institucionalização do parto as redes de apoio das gestantes foram cada vez mais afastadas, aumentando sua vulnerabilidade à violência obstétrica. Com a assimetria de poder estabelecida entres médicos e pacientes, acentuada pelas relações de gênero hierárquicas, a autonomia de decisão das mulheres sobre seu corpo e sobre seu feto/filho é muitas vezes cerceada e o protagonismo do parto assumido cada vez mais pelos profissionais da saúde, culminando na noção de que são os médicos que ‘fazem o parto’ (SENA, 2016).

Em contrapartida ao desempoderamento e às violências perpetradas contra parturientes, surgem os movimentos de humanização, que, tendo a figura das doulas como seu expoente, buscam resgatar a tomada de decisões esclarecidas e autônomas por parte das gestantes através do apoio físico e emocional e da informação de qualidade, tanto sobre processos fisiológicos ligados ao parto quanto sobre seus direitos sexuais e reprodutivos.

Foi possível apreender com o processo desta pesquisa que, tanto nos encontros com outras doulas, em cursos de formação, simpósios temáticos, rodas de conversas e outros encontros da categoria, quanto delas com as gestantes que acompanham, as próprias doulas entram em contato com informações que as esclarecem e empoderam, tornando-as agentes ativas nos processos de transformação social.

A partir dos relatos levantados nesta pesquisa pudemos perceber que essas doulas passaram a ressignificar a si e as suas próprias vidas a partir do contato com mulheres e pessoas em processo de parto, o que lhes permitiu vislumbrar a possibilidade de superação conjunta de todo um sistema de opressões institucionalizadas. Nesse processo em que doulas se empoderam sobre seus corpos e suas vidas, tomando decisões autônomas e conscientes, fortalecendo a doula de sua própria vida, a sua atuação com pessoas parturientes será retroalimentada.

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1Ao longo do trabalho foi feita a escolha política de não nos referirmos exclusivamente a ‘mulheres’ e ‘mães’ nas questões relativas a gestação e nascimento, buscando também visibilizar os processos gestacionais de homens trans e pessoas trans não binárias que foram assignadas femininas ao nascimento (N-B AFAN), ou seja, pessoas que tiveram seu sexo assignado como feminino por profissional da medicina, mas que, ao longo de seu desenvolvimento, se identificaram como homem ou como outro gênero fora do binário homem-mulher. Essas pessoas estão sujeitas à gestação enquanto possuírem útero e ovários, uma vez que nem toda pessoa trans deseja realizar cirurgia de readequação. Assim, quando a identidade de gênero de quem está gestando for masculina, deve ser garantido o tratamento por pronomes masculinos, e respeitado seu papel de pai da criança. Ao longo do texto trazemos contribuições de autores que trataram as temáticas referentes a gestação, parto e sexualidade especificamente de mulheres, porém, percebemos que essas questões podem - e devem - ser extrapoladas também para os homens trans, pois entendemos que o tratamento dispensado e possíveis violências que homens trans e pessoas trans N-B AFAN sofrem se dá em decorrência de serem associados a mulheridade e feminilidade e à posição inferior que lhes é associada no interior da hierarquia patriarcal. Assim, mesmo sendo homens ou masculinos, a maneira como são tratados em relação à sexualidade e ao parto está relacionada a essa posição de menor valor atribuída ao corpo que é lido como feminino.

2‘Processo de parturição’ ou ‘processo parturitivo’, apesar de não serem termos de uso corrente na língua portuguesa, aparecem nos textos que abordam as temáticas relativas ao parto, principalmente quando se quer abranger mais do que o momento específico da expulsão.

3O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sob o protocolo nº 2.229.100 cumprindo com a Resolução CNS nº 466/2012.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: BARRERA, Daniela Calvó; MORETTI-PIRES, Rodrigo Otávio. “Da violência obstétrica ao empoderamento de pessoas gestantes no trabalho das doulas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e62136, 2021.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: O projeto foi aprovado pelo CEP/UFSC, sob CAAE 71260017.8.0000.0121

Recebido: 20 de Março de 2019; Revisado: 03 de Julho de 2020; Aceito: 20 de Julho de 2020

barreradanielac@gmail.com

rodrigo.moretti@ufsc.br

Daniela Calvó Barrera (barreradanielac@gmail.com) é Cientista Social e Mestra em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Rodrigo Otávio Moretti-Pires (rodrigo.moretti@ufsc.br) é Livre-Docente em Saúde Sexual e Reprodutiva pela Faculdade de Saúde Pública da USP, Doutor em Ciências pela EERP/USP, Mestre em Sociologia Política pela UFSC, Mestre em Saúde Pública pela FMRP/USP, Sociólogo, Docente Permanente do PPGSC/UFSC e do Departamento de Saúde Pública/CCS/UFSC.

Contribuição de autoria: Daniella Calvó Barrera: conduziu as etapas de concepção, coleta de dados e análise de dados, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados. Rodrigo Otávio Moretti-Pires: contribuiu na concepção do projeto, análise dos dados e discussão e ajustes na redação final do artigo

Conflito de interesses: Não se aplica

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