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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.29 no.1 Florianópolis jan. 2021  Epub 01-Jan-2021

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n171698 

Resenhas

Sexo, género & feminismo: para uma vindicação contemporânea dos direitos das mulheres

Sex, Gender & Feminism: For a Contemporary Vindication of The Rights of Women

Ermelinda Sílvia de Oliveira Liberato1 
http://orcid.org/0000-0002-9857-4269

1Instituto Superior de Ciências da Comunicação, Luanda, Angola - isucic.mes@gmail.com

PAGLIA, Camille. Mulheres livres. Homens livres. Sexo, género & feminismo. ., Pereira, Hélder Moura. Lisboa: Quetzal Editora, 2018. 361pp.


A obra em referência é constituída por um conjunto de 36 “artigos mais representativos” (Camille PAGLIA, 2018, p. 13) publicados pela autora ao longo dos anos em diferentes meios, bem como “excertos, palestras e entrevistas” (PAGLIA, 2018, p. 13) que esboçam o seu pensamento em relação às temáticas apresentadas. Camille é uma conhecida académica feminista “pouco ortodoxa” (PAGLIA, 2018, p. 13), que se assume como “dissidente” (PAGLIA, 2018, p. 8), “rebelde insubmissa” (PAGLIA, 2018, p. 8), “libertária”1 (PAGLIA, 2018, p. 25), “entidade sem género” (PAGLIA, 2018, p. 9), o que lhe granjeou a alcunha de feminista anti-feminista. Autora de várias obras como Sex, Art and American Culture (1992), Vamps & Vadias (1994) e o seu mais conhecido trabalho Personas Sexuais (1999)2, procura, com a presente obra, mostrar “consistência e continuidade das [suas] posições libertárias” (PAGLIA, 2018, p. 13), bem como a sua coerência na defesa dos seus ideais.

Na introdução, devidamente documentada, identificamos as primeiras pistas sobre o crescimento da autora enquanto intelectual e feminista. Ao apontar as principais referências que a influenciaram ao longo de todo o seu percurso, Paglia dá-nos conta da necessidade premente de definição dos conceitos e seu devido enquadramento. Tendo como eixo e ponto de partida a mulher, a autora disserta, ao longo das 361 páginas que compõem a obra, em torno de três conceitos complexos socialmente construídos, politicamente explorados e culturalmente enraizados: sexo, género e feminismo, áreas sobre as quais se tem dedicado a pesquisar, dando assim relevante contributo na produção de conhecimento e, consequentemente, na desconstrução de ideias pré-concebidas sobre as mulheres e ao que se convencionou chamar “o mundo das mulheres” (Alain TOURAINE, 2008).

Assim, a mulher, considerada ao longo dos séculos, em todas as dimensões (económica, social, política, cultural, religiosa…) um ser inferior em relação ao sexo masculino, classificada como o “segundo sexo” (Simone de BEAUVOIR, 2016) e colocada sob a dependência de pais, irmãos, esposos, filhos, tem sido objeto de inúmeros estudos, tanto do ponto de vista social, emocional, biológico, psicológico e sobretudo, intelectual, que, de acordo com Paglia, têm sido dominados por “uma cambada de gente banal, imbecil e lamurienta… burocratas, seguidistas, partidárias, utopistas, quixotescas e pregadoras utópicas” (PAGLIA, 2018, p. 95), conduzindo assim a uma “institucionalização do sexismo” (PAGLIA, 2018, p. 95). O que todos esses estudos têm descurado é o seu corpo, entendido pela autora como “local sagrado e secreto” (PAGLIA, 2018, p. 67), dominado pelas hormonas que “muda[m] de hora a hora e de dia para dia” (PAGLIA, 2018, p. 188), pelo aparelho reprodutor, pelas mudanças causadas pelo inquietante ciclo menstrual, pela “maldição” (PAGLIA, 2018, p. 47) da menstruação, pelos efeitos da gravidez e do parto nesse mesmo corpo, aspetos que interferem com as suas emoções e que por sua vez influenciam as suas reações e ações e a tornam prisioneira de si mesma.

Do ponto de vista teórico e intelectual, esses três conceitos têm merecido particular destaque não só em termos de pesquisa científica, como igualmente, em termos de atuação3. Daí que a autora chame a atenção para a necessidade de se eliminarem fronteiras e se mobilizarem outras ciências, revelando uma abertura teórica e epistemológica, procedimento que resvala para a interdisciplinaridade, ou seja, deve prevalecer a produção do conhecimento, o debate de ideias, bem como a liberdade de pensamento e de expressão, em detrimento da censura de pensamento, do conformismo, do saber instalado, dos guardiões do saber, do raciocínio presunçoso, que nada mais fazem do que sufocar. A autora constrói assim uma posição que rejeita o conhecimento dogmático, o que faz com que vá contra alguns pressupostos das teorias feministas ditas “universais”, daí a sua “incapacidade desajeitada de encaixar[-se] no grupo das raparigas dóceis e bem-comportadas” (PAGLIA, 2018, p. 9). Paglia chama ainda a atenção para o carácter provisório e falível da ciência, sublinhando a contínua necessidade pela construção do conhecimento e o seu “compromisso ético com a procura da verdade” (PAGLIA, 2018, p. 26).

É essa constante procura da verdade que faz com que Paglia questione o porquê da subjugação, subordinação, submissão, sujeição das mulheres ao longo dos séculos. Para a autora, a resposta a essas e a outras questões reside na compreensão de diversos fatores e acontecimentos, que se resumem nos três conceitos estruturantes do livro em análise. Em relação à temática sobre o sexo, propõe o seu enquadramento em torno de três dimensões, nomeadamente: a) biológica, na qual realça que a diferença principal entre homens e mulheres não se limita aos órgãos sexuais, mas no seu organismo, que funciona de modo distinto, influenciado pelas hormonas que por sua vez agem sobre as emoções e consequentemente define a sexualidade de cada um/a. b) sexualidade, “O sexo não pode ser compreendido” (PAGLIA, 2018, p. 37) na sua plenitude, faz parte da natureza animal. Por conta desses pressupostos foram criadas, institucionalizadas e enraizadas normas sociais/culturais que sufocaram a mulher e é da luta contra essa condição que emerge o feminismo e, mais tarde, às teorias da desigualdade de género. c) socialização/cultura, em que o aspeto físico da mulher que se convencionou caraterizar como “frágil”, permitiu uma socialização (primária e secundária) da inferioridade desta em relação ao homem, o que fez com que as diferenças biológicas servissem de pressuposto para uma educação em função do sexo, atribuindo a cada um papéis sociais distintos.

O feminismo, movimento social cuja finalidade reside na igualdade dos sexos relativamente ao exercício dos direitos civis e políticos é definido por Paglia como um dos principais “movimentos sociais progressistas da era moderna” (PAGLIA, 2018, p. 154), que visa a luta (ideológica) contra a ordem política patriarcal4 instalada. Apesar de feminista, não deixa de apresentar a sua crítica ao feminismo, sobretudo académico, que considera ter-se perdido num “intricado construcionismo social” (PAGLIA, 2018, p. 89), que fez com que as mulheres se esquecessem da sua essência, transformando-as em mulheres obcecadas e moralistas. Para Paglia, trata-se essencialmente de um feminismo político que se distanciou da cultura e que apresenta “dificuldades em lidar com a beleza e a arte” (PAGLIA, 2018, p. 106), a sensualidade e a sexualidade.

Pelo mesmo caminho seguiram os estudos de género que, à semelhança dos estudos feministas, se foram encerrando cada vez mais para dentro de um sistema “que se alimenta a si próprio, ao mesmo tempo que cria o seu próprio cânone” (PAGLIA, 2018, p. 279), em detrimento de outras contribuições que pautam sobretudo pela não aceitação do saber institucionalizado. Para a autora, as dinâmicas culturais dos papéis de género são constantemente alteradas, fazendo com que haja uma frequente modificação dos pressupostos inicialmente construídos, daí que defenda que a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres não deve assentar em “proteções especiais para as mulheres” (PAGLIA, 2018, p. 298), nem tão-pouco pode ser alcançada “à custa da destruição das tradições masculinas” (PAGLIA, 2018, p. 149), mas a partir de uma união de esforços entre homens e mulheres, tendo como princípio base um compromisso ético com a procura da verdade, “animado por um código de responsabilidade pessoal corajoso” (PAGLIA, 2018, p. 28), alicerçado na liberdade de pensamento e de expressão.

Em suma, o livro em referência é mais do que um manual sobre mulheres. É também um livro para todos os cidadãos - homens e mulheres - pensarem a sua condição humana nas suas diferentes dimensões. Questionando o saber institucionalizado, as teorias feministas, de género e sobre o sexo e sexualidade, Paglia pretende sobretudo desconstruir as ideias enraizadas, com o objetivo de alargar os horizontes de possíveis, de onde sairá uma outra visão subordinada à construção de uma sociedade mais justa, igualitária, sustentável, humana. Para que tal aconteça, diz-nos a autora “o meu conselho é ler muito e pensar pela própria cabeça. Precisamos de mais dissidência e de menos dogma” (PAGLIA, 2018, p. 345).

Cabe aqui uma referência à Quetzal Editora pelo investimento na tradução e publicação da obra, mostrando que todas as ideias são bem-vindas e devem ser debatidas e conhecidas. De destacar ainda, o excelente trabalho de tradução de Hélder Moura Pereira , que não descurando o profissionalismo, conseguiu transmitir o espírito e a letra da obra de Camille Paglia.

Referências

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. Trad. de Sérgio Milliet. Lisboa: Quetzal, 2016. [ Links ]

PAGLIA, Camille. Mulheres livres. Homens livres. Sexo, género & feminismo. Trad. De Hélder Moura Pereira. Lisboa: Quetzal Editora, 2018. [ Links ]

TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Trad. de Joana Chaves. Lisboa: Instituto Piaget, 2008. [ Links ]

1Libertária: que é partidária de uma liberdade sem limites (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Volume XV. Página Editora, 1998, p. 38); Sistema em que a liberdade é proclamada valor absoluto e único. Quase sinónimo de anarquismo. O/a libertário/a intenta suprimir toda a espécie de constrangimentos, de normas e de leis (Enciclopédia Verbo luso-brasileira de cultura - Edição Século XXI. Lisboa, São Paulo: Editorial Verbo, 1999, p. 1086); A palavra libertário centra-se na autonomia dos indivíduos (MORIN, Edgar. A minha esquerda. Porto Alegre: Editora Sulina, 2011, p. 13).

2Obra muito criticada por académicas e políticas.

3PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), acordos de cooperação entre estados, planos de desenvolvimento internacionais, nacionais, regionais, locais…

4De acordo com Raquel Gutiérrez, “O patriarcado é o sistema cuja principal instituição, a família, se encarrega de perpetuar os valores da dominação e da opressão da mulher. E são as diferentes maneiras de educar o menino e a menina que determinam suas características” (GUTIÉRREZ, Rachel. O feminismo é um humanismo. Rio de Janeiro: Booklink, 2009, p. 28). Assim, o pai, “considerado como chefe de família, era senhor absoluto em sua casa, tendo o poder de vida e de morte sobre os seus filhos e toda a família” (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Volume XX. Página Editora, 1998, p. 622)

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: LIBERATO, Ermelinda Sílvia de Oliveira. “Sexo, género & feminismo: para uma vindicação contemporânea dos direitos das mulheres”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e71698, 2021.

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 19 de Fevereiro de 2020; Aceito: 12 de Março de 2020

ermelinda.liberato@gmail.com

Ermelinda Sílvia de Oliveira Liberato (ermelinda.liberato@gmail.com) é doutora em Estudos Africanos - Desenvolvimento Social e Económico em África, Professora auxiliar do Instituto Superior de Ciências da Comunicação (ISUCIC), Luanda - Angola, pesquisadora do Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL), Lisboa. No âmbito dos estudos africanos, as suas áreas de interesse debruçam-se sobre múltiplas questões como as de desenvolvimento, educação, género, e produção do conhecimento.

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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