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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.29 no.1 Florianópolis jan. 2021  Epub 01-Jan-2021

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n172733 

Resenhas

Diálogos e despojamento no universo da escrita feminista

Dialogues and Spontaneity in the Feminist Writing Universe

Jaqueline Castilho Machuca1 
http://orcid.org/0000-0001-9753-6829

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Letras, Natal, RN, Brasil. 59075-000 - secletras@gmail.com

D’ÁVILA, Manuela. Por que lutamos?: um livro sobre amor e liberdade. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019. 160pp.


Para Judith Butler (2003), os conceitos do que sejam “feminino” e “mulheres” não são estáveis. Para a filósofa, o movimento feminista não deve tentar resolver as questões de identidade e sim explorar as possibilidades políticas do/no movimento. É também com essa proposta que se apresenta o livro de Manuela D’Ávila, cuja temática vislumbra os caminhos que o movimento feminista vem tomando no que Butler chama de pós-feminismo: a ampliação das reivindicações que vão além da desconstrução de padrões.

A obra de Manuela D’Ávila, lançada e publicada pela Editora Planeta em 2019, teve duas edições no mesmo ano, o que demonstra o sucesso de vendas que o volume representa. Tal fenômeno pode ser explicado não apenas pela representatividade da autora frente aos movimentos feministas e às discussões progressistas, mas também pelo esforço da editora em dar visibilidade a nomes populares no cenário de não-ficção, dentre os quais figuram, por exemplo, Monja Coen e Leandro Karnal.

Manuela Pinto Vieira D’Ávila, que já exerceu mandatos de deputada federal e estadual pelo Rio Grande do Sul, compôs a chapa PT/PCdoB como candidata à vice-presidência da república junto a Fernando Haddad nas eleições de 2018. Graduada em Jornalismo pela PUC-RS e mestra em Políticas Públicas pela UFRGS, a gaúcha ingressou na carreira política em 2004 como vereadora na cidade de Porto Alegre. No início de 2019 lançou seu primeiro livro Revolução Laura, pela editora Belas Letras, cujas temáticas centrais são resistência e maternidade.

O título do livro Por que lutamos? é justificado no corpo do texto, uma vez que D’Ávila responde à pergunta proposta, explicitando a importância da luta feminista ao longo da história da humanidade, dando destaque, sobretudo, aos movimentos contemporâneos, mencionando inclusive temas caros como interseccionalidade. O tom despojado, que culmina em uma espécie de conversa informal, já tinha sido explorado por outras autoras, como é o caso de Chimamanda Ngozi Adichie no conhecido Sejamos todos feministas (2015), obra fruto de uma palestra proferida pela escritora em dezembro de 2012 no TEDxEuston.

Embora sem sumário, o livro é dividido em capítulos curtos, separados por desenhos no contraste da página escura com contornos claros e, em alguns momentos pontuais, perguntas com espaços para serem respondidas, o que funciona como uma espécie de diário (de leitura), no qual a leitora poderia participar da construção da obra como interventora do assunto. O público-alvo é visivelmente feminino, percebido nos diálogos estabelecidos por Manuela com as leitoras: “Você já descontruiu a si mesma hoje?” (D’ÁVILA, 2019, p. 72).

O prefácio de Maria Ribeiro chama a atenção por ser uma personalidade ligada ao universo da televisão e do cinema, extremamente popular entre o público jovem. Essa apresentação segue a mesma linha do livro como um todo: linguagem acessível, abuso de coloquialismos na tentativa de aproximação com as leitoras.

No prelúdio do primeiro capítulo, Manuela D’Ávila se vale de um texto de Gioconda Belli, intitulado “Conselho para uma mulher forte”. Nele a poeta nicaraguense fala em cuidado e autopreservação, o que dialoga muito bem com a primeira provocação de D’Ávila: ela define a palavra luta e convoca metaforicamente as leitoras para o combate que é, na verdade, a proposta geral do livro.

Na seção denominada “Apresentação”, a autora associa o feminismo a uma jornada de amor, distanciando o substantivo de uma visão romântica, convidando a interlocutora a perceber o entorno de maneira amorosa, porém combativa. Em seguida, são discutidos tópicos relacionados às liberdades econômica, afetiva e social. Aqui, a jornalista expõe dados que mostram a desigualdade salarial entre homens e mulheres, bem como discussões sobre maternidade, problematizando a tópica sobre políticas públicas que visam à colaboração para que as mulheres mães ingressem/permaneçam no mercado de trabalho. A discussão sobre maternidade é um tema caro à autora, que já havia jogado luz à questão em sua obra anterior. Nesse sentido, Por que lutamos? é sensível ao falar não apenas às mulheres que escolhem não gerar/adotar, como também acolhe àquelas que são ou serão mães, o que amplia seu público-alvo.

A descrição de passagens de sua vida aproxima a autora de suas leitoras - que se sentem inseridas no círculo social da voz narrativa. Ao se apresentar apenas no segundo momento da obra, trecho no qual versa sobre sua formação pessoal e política, D’Ávila evita que o texto seja direcionado exclusivamente à experiência política. A autora conclui a seção argumentando que existe uma causa que une as mulheres; contudo, há diferentes modelos de movimentos feministas, arrematando o assunto com as seguintes perguntas: “E você, que tipo de feminista é? E sua mãe? Sua irmã? Suas amigas?” (D’ÁVILA, 2019, p. 42). Em seguida, deixa algumas linhas em branco para que a leitora possa preencher com suas respostas, dando ao livro uma configuração despojada de diário.

No bloco seguinte, a autora propõe um exercício para aferir quão privilegiada é sua interlocutora. Para tanto, elenca cinco perguntas de cunho reflexivo que abordam temas como trabalho, cultura, transporte público e educação. Embora não traga respostas para as questões, já que o intuito é que se faça uma reflexão a respeito de cada uma dessas temáticas, Manuela D’Ávila se reconhece como alguém com muitos privilégios e em momento algum desloca seu lugar de fala, o que é bastante honesto com a interlocutora.

A autora também aborda assuntos caros aos estudos feministas, sem se aprofundar neles, como a baixa autoestima feminina; o medo da mulher em circular em espaços públicos, sobretudo nos meios de transportes públicos, o que denota não só a vulnerabilidade do gênero e raça, mas também a social; a construção do conceito de gênero e todos os problemas relacionados às fake news - que promovem falácias associando a discussão sobre o tema obrigatoriamente ao campo progressista.

A questão dos desempenhos de papéis sociais, culturalmente estratificados, é uma temática bem desenvolvida na obra, já que a autora retoma várias vezes o assunto para discutir o papel da mulher dentro da família, afirmando que algumas atividades atribuídas a ela deveriam ser, na verdade, atividades humanas, não relacionadas ao gênero. Ressalta, portanto, que tais padrões, por serem absorvidos desde a infância, só serão desconstruídos caso haja uma reflexão a respeito desses papéis.

Em seguida, muito atenta aos termos frequentemente usados para se referirem a atitudes invasivas de homens com relação às mulheres, a autora explica o que significa cada termo em inglês (manterrupiting, mansplaining, gaslighting, manspreading, double standard) como se fosse um glossário, o que torna a leitura extremamente didática. Como essa é uma discussão muito em voga, esse formato é fundamental para explicar às leitoras que eventualmente desconhecem os termos, o significado de cada um, além de levar à reflexão, incluindo nessa importante tópica mulheres que, embora não conheçam tais expressões, provavelmente já vivenciaram tais atitudes.

Já se encaminhando para os últimos blocos do livro, Manuela D’Ávila trata de temas fundamentais, como o feminismo negro, o racismo estrutural, a violência contra as mulheres, definindo e apresentando dados sobre a violência doméstica e a importância da figura de Maria da Penha para o combate das agressões contra as mulheres. Ainda que não se aprofunde nesses assuntos, trazê-los à tona é indispensável para uma obra que se propõe discutir as lutas feministas no Brasil no contexto atual.

Manuela D’Ávila fecha o livro comentando tópicos sobre maternidade, assédio, consentimento, provocando diretamente as leitoras a pensar se todas podem ser feministas e quais seriam as vantagens de sê-lo. Há momentos nos quais a narração ganha contornos confessionais de culpa: ao se colocar como alguém que também já perpetuou discursos machistas ao longo de sua vida, pontuando que ninguém nasce feminista. Nesse sentido, admitir que já reproduziu discursos preconceituosos humaniza a narradora e sua narrativa.

Em geral, o volume permite ser uma leitura muito prazerosa; porém, falha ao apresentar alguns dados sem a indicação de referência, o que pode ser questionável - por não apresentar o aporte - mas, por outro lado, aproxima as leitoras mais distantes da academia, já que uma das propostas do texto é a fluidez. Além disso, é escrito em linguagem extremamente acessível do ponto de vista da inteligibilidade.

Portanto, Por que lutamos? é um livro que, enquanto se desprende da linguagem acadêmica, acerca-se das leitoras, permitindo também a inserção do não canônico nas discussões sobre feminismos. A respeito do assunto, vale retomar as palavras de Chimamanda Adichie que confessa: “toda vez que tentava ler os tais livros clássicos sobre feminismo, ficava entediada e mal conseguia terminar.” (ADICHIE, 2015, p. 14). Apesar de ser uma seara fundamental, obras mais convencionais nem sempre chegam ao grande público, seja por fatores ligados ao mercado editorial, seja pelo fato de tais textos se constituírem de termos muito técnicos. Por essas razões, o volume, além de suscitar questões caras às discussões feministas, pode ser a porta de entrada para que a leitora busque outras fontes de conhecimento sobre o assunto.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. Trad. de Christina Baum. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. [ Links ]

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad. de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. [ Links ]

D’ÁVILA, Manuela. Por que lutamos?: um livro sobre amor e liberdade. São Paulo: Planeta do Brasil, 2019 [ Links ]

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MACHUCA, Jaqueline Castilho. “Diálogos e despojamento no universo da escrita feminista”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e72733, 2021.

Financiamento: Não se aplica.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 04 de Abril de 2020; Revisado: 27 de Maio de 2020; Aceito: 03 de Julho de 2020

jaquelinecastilho@hotmail.com

Jaqueline Castilho Machuca (jaquelinecastilho@hotmail.com) atua como Professora Adjunta de Teoria Literária na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). É graduada em Licenciatura Letras Língua Portuguesa/Língua Inglesa pela UFSCar, possui mestrado e doutorado na área de Teoria e História Literária pela Unicamp. É pesquisadora nas áreas de literatura, cinema, contemporaneidade e estudos feministas.

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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