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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.29 no.2 Florianópolis maio/ago 2021  Epub 01-Maio-2021

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n269909 

Artigos

A Mulher Heroína em combate ao patriarcado em Moçambique

The Heroine Woman in the fight against patriarch in Mozambique

Francisco Carlos Guerra de Mendonça Júnior1 
http://orcid.org/0000-0002-5184-1761

1Universidade de Coimbra Alta e Sofia, Coimbra, Portugal. 3004-530 - gabadmin@uc.pt


Resumo:

Este artigo tem como foco principal analisar a música Mulher Heroína, da rapper, advogada e professora de direito Iveth Mafundza. A artista moçambicana denuncia a desigualdade de gênero em vários aspectos socioeconômicos e culturais do país, tais como educação, acesso ao emprego, culpabilização das mulheres por doenças, lobolo e mutilação genital. As denúncias apresentadas na letra são comparadas a teóricas do rap e do feminismo, com ênfase em autoras que estudam a realidade social das mulheres moçambicanas. Dados estatísticos apresentados pelo Censo do país de 2017 e pelo relatório da ONU Mulheres de 2015 auxiliam nesta análise. A metodologia ainda abrange análise de discurso da letra Mulher Heroína e entrevistas semiestruturadas. O artigo também traça um histórico sobre a atuação das rappers moçambicanas, apresentando as pioneiras e os trabalhos mais recentes de rap feminista do país.

Palavras-chave: Iveth Mafundza; Mulher Heroína; rap; Moçambique; feminismo

Abstract:

This article has the goal of analysing the song "Mulher Heroína" by Iveth Mafundza, rapper, lawyer and law teacher. The Mozambican artist denounces the gender inequality that is present in many socioeconomic and cultural aspects in her country, like education, access to employment, blaming women for illness, lobolo and genital mutilation. The complaints presented in the lyric are compared to rap and feminist theorists, with emphasis on authoresses who study the social reality of Mozambican women. Statistical data presented by the 2017 country census and the 2015 UN Women report assist in this analysis. The methodology also includes discourse analysis of the lyric “Mulher Heroína” and semi-structured interviews. The article also traces a history about the performance of Mozambican women rappers, presenting the pioneers and the most recent works of feminist Mozambican rap.

Keywords: Iveth Mafundza; Mulher Heroína; Rap; Mozambique; Feminism

Introdução

Este artigo apresenta aspectos do combate à desigualdade de gênero em Moçambique, tendo como ferramenta de denúncia a análise de discurso de uma letra de rap feminista local. A música analisada é Mulher Heroína, da rapper Iveth Mafundza (2010b), que contém críticas às violências físicas e simbólicas sofridas pelas mulheres no cenário do referido país africano. A letra é comparada a contribuições de teóricas do rap feminista e de autoras que focam suas análises na realidade social das mulheres moçambicanas. A análise é auxilidada por dados estatísticos do Censo de 2017, realizado pelo INSTITUTO NACIONAL DE ESTATÍSTICA (INE, 2017), e também pelo relatório da ONU Mulheres (2015), uma organização dentro da ONU, publicado em 2015. Adicionalmente, esta análise é complementada por uma entrevista realizada com Iveth em 15 de março de 2018, na sua residência na cidade de Matola, em Moçambique. Ela atua no hip-hop desde o final dos anos 1990 e foi a primeira mulher a lançar um álbum de rap no país: O Convite, em 2010. Este artigo também apresenta dados sobre o surgimento do hip-hop em Moçambique, bem como mostra as primeiras mulheres a atuarem no rap desse país africano. Adicionalmente, são mencionados trabalhos atuais de outras rappers no cenário moçambicano.

O hip-hop é um movimento cultural surgido nos Estados Unidos, na década de 1970, que conta com quatro elementos originários: DJ,1 grafite, break dance e MC. O rap é o gênero musical desse movimento e surge da união entre o DJ e o MC. Emmett Price (2006) ressalta que o hip-hop tem origem negra e periférica, bem como discorre que o primeiro evento desse movimento ocorreu em 1973, no bairro nova-iorquiano Bronx, onde se vivia crise social e muita violência. Segundo Price (2006), o movimento reconfigurou o cenário do bairro e serviu de exemplo para o restante dos Estados Unidos, atingindo periferias de todas as regiões do país em menos de uma década. O autor explica que o rap deu voz a jovens que tinham duas coisas em comum: uma expressiva vivência da cultura negra e uma dura experiência de pobreza. A expansão internacional iniciou nos primeiros anos da década de 1980, quando jornalistas de várias partes do mundo foram conhecer o exemplo do Bronx. Para Tony Mitchell (2001), a diversidade de técnicas musicais, estilos de rima e temas abordados se dá muito mais fora dos Estados Unidos, apesar de haver uma predominância de uma narrativa etnocêntrica, reduzindo a experiência desse movimento para o local onde fora criado.

O patriarcado é uma categoria central neste artigo e, em relação a isso, Isabel Casimiro (2014) destaca a importância de analisar a relação ambígua das hierarquias de gênero no contexto africano. Por um lado, Casimiro (2014) apresenta a perspectiva de Patricia McFadden (1998), que traça um perfil no qual a autenticidade da mulher africana é considerada estática, pobre e rural, por ser perpetuada a imagem de uma pessoa pobre, analfabeta e que executa trabalhos ingratos, sem ter qualquer autonomia, voz ou características que representem modernidade. Por outro lado, Casimiro (2014) mostra que Ifi Amadiume (1997) considera “arrogância e abuso etnocêntrico”, por parte de feministas ocidentais, a generalização da imagem da mulher africana como submissa em todas as épocas, pois várias mulheres ao sul do Sahara controlavam atividades econômicas e religiosas. Isso constituía um matriarcado, paralelo ao patriarcado, em que ambas as formas de liderança coexistiam, havendo partilha de tarefas e cooperação de espaços. Assim, o matriarcado não era equivalente ao patriarcado, porque não se baseava em apropriação e em violência.

No contexto específico de Moçambique, a antropóloga Ana Maria Loforte (2015) descreve a predominância de uma sociedade patriarcal e com aspectos culturais específicos, onde a mulher é entendida como uma posse do homem. Assim, naturalizam-se o uso da força física por parte do homem, a subordinação da mulher e a violência doméstica. Loforte (2015) discorre sobre o crescimento de Organizações Não Governamentais (ONGs) em defesa das mulheres nas últimas décadas, mas reflete que o aspecto cultural dificulta medidas mais efetivas. Isso porque as pessoas que exercem papel de liderança na sociedade moçambicana, como líderes religiosos e idosos, aceitam essa subordinação das mulheres como defesa de valores culturais. Com isso, as mulheres muitas vezes sofrem com desprezo das autoridades de segurança quando realizam denúncias sobre casos em que foram vítimas de violência.

A relação entre rap e patriarcado é feita, neste artigo, a partir de contribuições de duas autoras estadunidenses que estudam o hip-hop e o feminismo negro, Patricia Hill Collins (2006) e Tricia Rose (1994), pois não foram encontradas publicações científicas sobre as relações de gênero no rap moçambicano. Collins (2006) aponta como ponto déficit do hip-hop a pouca relevância dada ao papel da mulher, proliferando as estruturas do patriarcado. Segundo Collins (2006), apesar de contestar diversas formas de opressão, os afroamericanos frequentemente não observam a diferença de gênero como um problema social a ser combatido. Por outro lado, Collins destaca a atuação de várias rappers feministas que denunciam as opressões de gênero em músicas, criticando, inclusive, os casos no hip-hop. Rose (1994) mostra como o rap reflete o machismo existente na sociedade, pois as mulheres participam desde o início do hip-hop, mas são excluídas dos espaços de maior destaque, bem como são objetificadas em várias letras. De acordo com essa socióloga, o discurso do rap mainstream do seu país celebra a violência sexista, mas os artistas negam isso, afirmando que tratam as mulheres nas músicas de acordo com os padrões de honra, justiça ou civilidade. Ainda segundo Rose (1994), esse discurso, amplamente aceito, rotula, controla e explora a sexualidade feminina. A autora ressalta que algumas músicas clamam por respeito às mulheres, mas argumenta que esse discurso também é conservador e sabota políticas progressistas, pois só as mulheres que seguem as regras de uma sociedade patriarcal são vistas como dignas de apreço. Sendo assim, esse respeito jamais se configura em uma luta pelo ideal: igualdade dos sexos e justiça de gênero (ROSE, 1994). Ademais, as mulheres são tratadas como inferiores no rap mainstream e, por isso, é naturalizado o fato de terem menos presença em espaços sociais, políticos e econômicos. Outro problema criticado pela socióloga nesse tipo de rap é um reforço do patriarcado, ao apontar homens como líderes naturais das famílias. A autora afirma que as mulheres negras são as mais desrespeitadas nesse rap mainstream e define o discurso contra elas como “asco”.

Contexto sociopolítico do surgimento do rap em Moçambique

O rap surge em Maputo, capital de Moçambique, no final dos anos 1980. Para compreender o contexto em que esse gênero musical começou a ter adeptos no país, é necessário contextualizar as transformações socioeconômicas vivenciadas naquela década. Jacinto Veloso (2007) explica que, desde a independência, em 1975, Moçambique mantinha relações econômicas exclusivamente com o bloco Leste, em um contexto no qual a Guerra Civil vivenciada pelo país desde a independência tinha influência direta da Guerra Fria.

Segundo Nádia Issufo (2019), houve, inclusive, uma emigração de 20 mil trabalhadores moçambicanos para a Alemanha Oriental (RDA) em 1979. Veloso (2007) discorre que Moçambique também ocupava papel fundamental na luta antiapartheid na África do Sul e patrocinava o grupo ANC (African National Congress - traduzido como Congresso Nacional Africano), do país vizinho, na luta contra o regime segregacionista. Nesse contexto, o bloco capitalista pressionava Moçambique e África do Sul a realizarem mudanças em seus regimes políticos. Moçambique era intimidado a estabelecer relações econômicas com o bloco capitalista, enquanto a África do Sul era pressionada a desfazer o regime apartheid e realizar eleições democráticas, sem distinções raciais, seguindo o modelo ocidental (VELOSO, 2007).

Veloso relata que o presidente de Moçambique, Samora Machel, e o presidente da África do Sul, Pieter Willem Botha, assinaram o Acordo do Nkomati em 1984. Esse documento previa que Moçambique deixasse de apoiar a ANC na luta contra o apartheid, enquanto a África do Sul parava de fornecer recursos para a RENAMO, força política rival na Guerra Civil Moçambicana. Ainda no ano de 1984, Moçambique foi aceito como membro do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, deixando o socialismo científico para adotar o socialismo democrático (VELOSO, 2007). Dois anos depois, Samora Machel morreu em uma queda de avião, tida oficialmente como acidente, mas acerca da qual Veloso (2007) levanta três suspeitas de atentado. Uma delas é de que a queda foi planejada por forças radicais da União Soviética, dona do avião em que Samora Machel voava, por não aceitarem a flexibilização econômica do seu parceiro. A África do Sul, onde o avião caiu, também aparece como possível planejadora da queda, já que Moçambique desobeceu ao Acordo do Nkomati e continuou patrocinando soldados na luta antiaparthaid. Há, ainda, a suspeita sobre membros do próprio partido de Machel, FRELIMO, devido à postura anticorrupção desse líder. A morte de Samora Machel e a Queda do Muro de Berlim influenciaram radicalmente os rumos do regime político moçambicano. Issufo (2019) salienta que os trabalhadores moçambicanos retornaram da antiga RDA em 1989. Em 1990, foi aprovada uma nova Constituição da República, que transforma Moçambique em uma democracia multipartidária. Os autores Sérgio Chichava e Jonas Pohlmann (2008) destacam que, no ano seguinte, foi promulgada a primeira Lei de Imprensa (Lei nº 18/91), que garantiu algumas liberdades que eram entendidas como valores burgueses pela gestão de Samora Machel, tais como a liberdade de expressão e de criação na imprensa, sem a necessidade de um aval prévio da FRELIMO. Ademais, foram realizadas as primeiras eleições presidenciais em 1994.

O início da década de 1990 também é marcado pelo surgimento de veículos de comunicação privados (CHICHAVA; POHLMANN, 2008). O rapper Helder Leonel, membro do grupo Rappers Unit, afirma, em entrevista realizada no dia 16 de março de 2018, que o rap surgiu no país por influência dos veículos de comunicação recém-criados e dos discos trazidos por pessoas que moravam na antiga RDA. Tratava-se de uma arte restrita a pessoas da elite, pois eram as únicas que conseguiam comprar aparelhos televisivos. Leonel (2018) destaca que as músicas eram cantadas em inglês, seguindo o modelo estadunidense.

Mulheres pioneiras no rap em Moçambique

Gina Pepa (2019) se tornou a primeira mulher a atuar no rap moçambicano, ao ingressar no grupo Rappers Unit, em 1994. Helder Leonel é um dos criadores do grupo e disse que o convite surgiu porque a ausência de uma voz feminina tornava as músicas agressivas e, por isso, restritas a um público muito específico. Gina Pepa foi convidada por ter facilidade tanto para cantar refrões, como também para rimar na sonoridade habitual do rap. A artista disse, em entrevista via Whatsapp, no dia 04 de agosto de 2019, que não interpretava letras autorais, por isso, cantava trechos de músicas escritas por homens do grupo.

Durante a década de 1990, ainda surgiram outras rappers mulheres em Moçambique, tais como P.A.T. e Deusa Poética. As dificuldades para elas se manterem atuando no hip-hop eram diversas. Iveth salienta, em entrevista realizada em 15 de março de 2018, que o hiperquestionamento técnico por parte de rappers homens foi um dos maiores problemas enfrentados por elas, pois constantemente reclamavam do tom mais agudo entoado pelas mulheres, dizendo não ser ideal para o rap. Os assédios de produtores e rappers, envolvendo propostas de visibilidade artística em troca de sexo, também foram problemas vividos pelas artistas. Assim, era difícil até mesmo convencer a família de que o hip-hop era um espaço propício para a atuação de mulheres. Esse último ponto, inclusive, foi enfatizado pela pioneira Gina Pepa, na música G.I.N.A. P.E.P.A.: “Meus pais chumbaram minha vinda pro rap, mas depois pensaram “filha merece”/ Gina agradece, a menina esclarece, com as rimas que mete” (Gina PEPA, 2006). Gina Pepa, no entanto, teve sua carreira interrompida em 2001, pois foi cursar relações públicas na África do Sul, país vizinho a Moçambique. Em 2004, as rappers Iveth Mafundza e Fat Lara participaram da coletânea Atenção Desminagem (Fat LARA, 2004), que visava apresentar a diversidade de estilos de produção presentes no rap de Maputo. Fat Lara ganhou, inclusive, o prêmio de melhor música rap do ano de 2005, em uma premiação do Programa Hip Hop Time. Fat Lara foi premiada com a música Raciocina (LARA, 2004, faixa 2). Na música, Lara convoca as pessoas para se dedicarem aos estudos, em um país onde cerca de metade da população era analfabeta na época do lançamento da música (INE, 2007).2 Ela classifica os estudos como alternativa ideal para as pessoas conseguirem estabilidade na vida.

Saio de manhã, vou à escola, com a bag nas costas, a camisa, saia, grava e as sapas postas/ Pronta, para mais uma dia de escolaridade, não é fácil, mas a escola é uma prioridade/ Sou MC, venho de longe pelas atitudes, não é por ser o tal que ignora minhas virtudes/ Tem que estudar pra algo no futuro ser, lutar pra uma posição justa na vida ter (LARA, 2004, faixa 2).

Fat Lara foi assassinada em 2007, quando foi esfaqueada em uma tentativa de roubo do seu celular. Além disso, outras artistas desistiram do rap, como são os casos de P.A.T. e Deusa Poética. Enquanto isso, Gina Pepa retornou a Moçambique em 2005, quando iniciou carreira solo. Gina Pepa comentou, em entrevista via Whatsapp, em 04 de agosto de 2019, que não conseguiu ter uma carreira regular devido à intensa rotina de trabalho na função de relações públicas. Assim, a artista realiza apresentações esporádicas e algumas gravações de música, não chegando a produzir um álbum. Em 2005, Gina gravou a música Noite de Vingança, dentro do projeto coletivo Mixologia, do DJ Beat Keepa. No ano seguinte, lançou a música G.I.N.A. P.E.P.A., que retrata a sua autobiografia e até a atualidade é considerada, pela artista, como a sua principal música de trabalho. Na letra, Gina Pepa questiona a predominância dos homens no rap moçambicano: “Por que pensar que só homem é perfeito na rima?/ Se no trono tá provado, que é rei e rainha?” (PEPA, 2006). Por outro lado, Gina Pepa faz uma homenagem aos espaços conquistados pelas mulheres no rap moçambicano, destacando tanto a sua atuação, como também saudando as vitórias alcançadas por Fat Lara: “Eu sei que ainda niggas duvida, mas ela é clara/ Pelo povo no game, não se separa/ É tipo Fat Lara, sem mic o rap pára/ Rap sem mulher é como exército sem garra”. No final de 2018, Pepa gravou uma música com Azagaia (2018),3 um dos rappers mais famosos do país, denominada Só Dever. A rapper afirmou, em entrevista para este trabalho, que a participação possibilitou novos convites, para shows e entrevistas. Segundo a artista, muitas pessoas acreditavam que ela já havia encerrado definitivamente a carreira, mas ela está captando recursos para gravar o primeiro álbum.

Perfil de Iveth Mafundza: Rapper, professora universitária e advogada

A rapper Iveth Mafundza iniciou a carreira artística no final dos anos 1990. O primeiro projeto que integrou foi o Sweet Girls, formado por quatro mulheres e que durou poucos meses. Em seguida, ingressou no grupo Beat Crew, sendo a única mulher em um coletivo com cinco integrantes. No início dos anos 2000, Iveth foi uma das fundadoras do Female MCs, grupo formado por seis mulheres e que pode ser traduzido como “Mulheres Rappers” (ou MCs Mulheres). Esse coletivo esteve cerca de dois anos em atividade, gravando apenas quatro ou cinco músicas. Depois disso, Iveth passou a atuar em carreira solo. Ela apresenta reivindicação de pautas feministas desde as primeiras letras, cobrando maior espaço para as mulheres, dentro e fora do hip-hop. Quando decidiu ingressar no movimento, a cantora cursava direito e era presidente nacional da Associação dos Estudantes de Direito. Apesar de receber apoio familiar para ingressar no rap, ela era desaconselhada por pessoas da área do direito, porque havia uma imagem negativa sobre o hip-hop. Devido à origem periférica do movimento, apresentada neste artigo por Price (2006), as pessoas associavam o hip-hop a uma imagem marginalizada, por isso, Iveth relembra, em entrevista em 15 de março de 2018, que ouviu de estudantes e de docentes que ela iria “manchar” a carreira acadêmica ao se tornar uma rapper e teria uma imagem negativa perseguindo-a por toda a vida, quando se arrependesse de ter ingressado no hip-hop. Ainda assim, ela preferiu cantar rap e, atualmente, concilia essa carreira com a atuação profissional como advogada e professora no curso de direito da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). A artista considera que, apesar da desconfiança inicial, conseguiu impor respeito em ambas as posições profissionais.

O rap é muito informal e o direito é muito formal. Há pessoas que dizem: “eu não consigo imaginar como que um advogado, como que um docente é repista, porque são cenários totalmente opostos”. E, na altura, eu estava a fazer o curso de direito e, como presidente da associação de estudantes, eu era chamada para cenários bastante formais. Então, a minha postura também tinha que acompanhar esses cenários. Mas então você é repista. E o repista é o quê? É um marginal. É assim que éramos chamados e até agora algumas pessoas assim nos chamam. E isto prejudicou de alguma forma a perceção de uma e outra pessoa, mas foi um momento ultrapassado (Iveth MAFUNDZA, entrevista, 15 de março de 2018).

Nas músicas, Iveth utiliza um discurso contundente e reivindica o respeito ao posicionamento das mulheres em qualquer espaço social. Iveth conseguiu estabelecer-se na carreira de rapper e ter essa posição respeitada pela comunidade acadêmica e pelos advogados. Ela, inclusive, é constantemente convidada para shows na Ordem dos Advogados e em universidades. Iveth disse, em entrevista no dia 15 de março de 2018, que as carreiras como professora universitária e advogada garantiram estabilidade financeira para ela, mas gostaria mesmo de se dedicar exclusivamente ao rap. Segundo Mafundza, a estrutura e as condições financeiras do país para artistas não permitem isso.4 Portanto, ela não consegue produzir músicas na frequência desejada. Para conquistar respeito em cada uma das posições ocupadas, Iveth busca separar as formas de conhecimento e inserir cada uma em sua lógica específica de transmissão de saber, criando um distanciamento entre a posição de rapper e as demais atuações profissionais. Apesar disso, a artista pontua que utiliza o conhecimento adquirido na área do direito para fazer músicas. Em entrevista, ela classificou a música Amiga (MAFUNDZA, 2010a, faixa 17) como uma aula prática de direitos humanos.

Na letra, Iveth interpreta uma mulher que confessa, a uma amiga, diversos casos de violência doméstica sofridos. A letra busca individualizar diversas formas de violência em uma personagem, visando aumentar o choque do público ouvinte. Assim, narra questões físicas, psicológicas e morais, para alertar sobre as várias formas de opressão vividas cotidianamente em muitas relações íntimas, casos acerca dos quais Mafundza tomou conhecimento por ser advogada e professora universitária de direito. Ao transmitir o conhecimento científico por meio da música, Iveth coloca em prática uma “ecologia dos saberes”, definida por Boaventura de Sousa Santos (2007) como um diálogo e congruência entre diferentes formas de conhecimento. Segundo Santos (2007), o saber acadêmico só atinge um caráter de transformação social se conseguir uma articulação com conhecimentos invisibilizados, surgidos a partir de lutas contra diferentes formas de combate às opressões. Iveth pratica a “ecologia dos saberes”, ao divulgar de forma poética um conhecimento adquirido através da lógica científica, e contribui para uma maior popularização dos saberes acadêmicos e jurídicos, pois as reflexões sobre os direitos da mulher e sobre o combate a violência doméstica são expandidas para além do ciclo de estudantes da UEM. No entanto, ela evita transmitir conhecimento na linguagem do rap em sala de aula, porque entende que poderia causar uma confusão entre os posicionamentos profissionais dela. Ainda assim, ela pontua ser possível criar aulas dentro de uma metodologia acadêmica, partindo de uma letra de rap.

Se eu quiser fazer uma aula de direito, com uma determinada música, eu até posso fazer isso e é muito interessante. Não só isto. Tem algumas outras músicas como O Sol Brilha Para Todos Nós, em que eu falo dos direitos dos povos, não é? Neste caso o direito dos povos africanos e falo da Independência, e falo dos conflitos internos e a paz, que são direitos coletivos e é a nossa realidade. Não é possível separar, mas em determinados momentos, por questões pedagógicas, eu tenho que separar, senão dentro do campus já é “Yô, yô, yô” e não o trabalho de docência (MAFUNDZA, entrevista, 15 de março de 2018).

Iveth é a rapper moçambicana com maior longevidade e continuidade na carreira artística.5 Porém, ela lamenta o histórico de dificuldades enfrentadas pelas mulheres para participar do movimento, problemas que foram mais acentuados durante os dois anos de existência do Female MCs. O grupo, formado por seis mulheres, tinha o objetivo de reunir as mulheres atuantes no rap de Maputo e mesclava novatas no rap com outras artistas já atuantes no movimento, tais como P.A.T. e Deusa Poética. Segundo Mafundza, o grupo conviveu com comentários machistas desde a sua criação, sendo questionado tanto no quesito técnico, como também ouvia comentários de que o hip-hop não era um local apropriado para as mulheres, por isso, Iveth entende que o grupo “esteve desde o princípio condenado ao insucesso”. Elas perceberam que a pouca visibilidade dada às músicas do grupo não era determinada por questões técnicas, mas pelo fato de as artistas conviverem em um ambiente hostil para elas.

Olha, nós viemos para a rádio e o locutor nos criticava. O locutor não tem que criticar. O locutor tem que fazer questões para saber como está a música, como está o projeto e tudo mais. E isto aconteceu, tivemos amigos que nos apoiaram em termos de produções e tudo mais, mas era uma crítica constante “vocês, as mulheres não vão à frente, vocês as mulheres, um grupo de mulheres é para fofocar e não efetivamente para fazer hip-hop” (MAFUNDZA, entrevista, 15 de março de 2018).

Essa falta de incentivo somou-se a outros fatores que precipitaram o encerramento do Female MCs. A maioria das integrantes era adolescente e tinha dificuldades para suportar a pressão psicológica em busca de espaço no hip-hop. Além disso, os familiares delas proibiam a participação em vários espaços, devido à imagem marginalizada do rap. Segundo Mafundza (2018), fatores como casamento e gravidez contribuíram para as desistências de algumas integrantes. Além do projeto do Female MCs, Iveth enfatiza, em entrevista no dia 15 de março de 2018, a importância de haver parceria entre as mulheres, para, por meio da sororidade, terem um apoio mútuo no meio artístico. Um exemplo é a parceria dela com a Banda das 7 Marias, grupo formado por sete alunas do curso de música da UEM. Esse grupo geralmente canta músicas tradicionais moçambicanas, renovadas nas vozes das jovens, em uma mescla com instrumentos musicais tradicionais e modernos. O grupo também tem músicas autorais e no trabalho com Iveth buscou adaptar-se ao rap, pois não é o estilo originário dele.

A música Mulher Moçambicana (DJDAMOST; Dama do BLING; Gina PEPA; Iveth MAFUNDZA, 2010) é um exemplo de união entre as mulheres rappers. Para esse trabalho, o DJ Damost convidou as rappers Gina Pepa, Iveth e Dama do Bling. Elas invocam a força das mulheres moçambicanas, destacando trabalhadoras desconhecidas, donas de casa, e também personalidades públicas, como são os casos de Josina Machel, Graça Machel, Maria da Luz, Luísa Diogo e Verônica Macamo. No refrão, as artistas cantam: “Mulher Moçambicana! A heroína do país, aquela que te faz feliz, a história já nos diz/ Mulher Moçambicana! A tua sina é suporte, permaneça firme e forte, siga e não perca o norte”. A única personalidade referendada na letra Mulher Moçambicana já falecida é Josina Machel, que teve papel central na luta anticolonial e lutou para as mulheres terem igualdade de voz na FRELIMO, bem como criou o Destacamento Feminino, para dar assistência às crianças órfãs, e também àquelas de mães e pais que se encontravam em combate na luta anticolonial. Josina casou-se em 1969, com o então líder da FRELIMO, Samora Machel, e faleceu em 07 de abril de 1971, data que passou a ser o Dia da Mulher Moçambicana.

Graça Machel foi a única mulher do mundo a se tornar primeira-dama em dois países. Ela casou-se em 1976 com o ex-presidente de Moçambique, Samora Machel, e ficou viúva dele em 1986. Em 1998, casou-se com o presidente da África do Sul, Nelson Mandela. Graça tem histórico como ativista dos direitos humanos, tendo participado da ONU, na assistência de crianças vítimas dos conflitos pelo fim do apartheid na África do Sul. Maria da Luz Guebuza é esposa do ex-presidente Armando Guebuza e realizava ações públicas individuais em projetos nas áreas da saúde e da educação. Luísa Dias Diogo foi ministra do Plano e Finanças de Moçambique (1999-2005) e também foi a primeira mulher a ocupar o cargo de primeira-ministra do país (2004-2010). Verónica Nataniel Macamo foi membro do Parlamento Pan-Africano de Moçambique e ainda preside o Parlamento de Moçambique desde 2010. Apesar de algumas posições contraditórias no âmbito político de mulheres que participaram da história recente da FRELIMO, tais como Maria da Luz e Luísa Diogo, a invocação desses nomes faz parte do empoderamento de gênero, pois as mulheres são minoria em cargos de poder no país e o intuito é ocupar mais espaços. Trata-se de apresentar a capacidade de vencer a invisibilidade em uma sociedade patriarcal, pois, como discorre Loforte (2015), as mulheres são ensinadas a serem subordinadas aos homens na sociedade moçambicana.

Segundo Iveth, os homens predominam entre as pessoas consideradas heróis nacionais na história oficial de Moçambique. Isso pode ser exemplificado com a Praça dos Heróis Moçambicanos, em Maputo, que homenageia três líderes da luta pela independência, todos homens: Marcelino dos Santos, Samora Machel e Eduardo Mondlane. Todavia, Josina Machel teve papel fundamental na luta anticolonial. Além disso, Iveth Mafundza enalteceu, em entrevista, a importância de outras mulheres ao longo da história de Moçambique, citando os exemplos de Alice Mabota6 (Amós ZACARIAS, 2019), ex-presidente da Liga de Direitos Humanos de Moçambique, e Joana Simeão, criadora do Grupo Unido de Moçambique (GUMO), força política dissidente da FRELIMO, após a independência do país.7

Na música Mulher Heroína, Iveth denuncia os cargos políticos “fantoches” do país. Alguns postos prestigiados são repassados para mulheres para transmitir a imagem de justiça de gênero, mas, segundo Iveth, elas continuam obedecendo a uma ditadura patriarcal: “Nos cargos de chefia, quem é que está sempre em frente?/ Tens o cargo de ministra e eles tomam as decisões/ És apenas figura, aceitas a ditadura/ Eis a dignidade da mulher vendida por cifrões”. Na entrevista realizada em 15 de março de 2018, Iveth enfatizou a importância de se distanciar dos partidos políticos, por entender que nenhum deles apresenta um projeto ideal para o povo. Assim, ela afirmou ser importante até mesmo evitar aparições em programas de televisão com alguma aproximação ou afinidade com partidos locais, para manter uma postura inquestionável de independência. Ainda na entrevista realizada em 2018, Iveth relatou perseguições e ameaças sofridas, por conta da sua postura de resistência. Todavia, na reta final da produção deste artigo, houve uma surpresa pela postura de Iveth nas últimas eleições presidenciais, ocorridas em outubro de 2019. Publicamente conhecida pelo engajamento contra as estruturas de poder da FRELIMO e pela constante denúncia sobre as hierarquias de gênero na política do país, Iveth apoiou publicamente a reeleição do presidente Filipe Niusy, da FRELIMO. Essa notícia coincidiu com o período de finalização deste artigo, levando até a uma dúvida sobre o prosseguimento deste trabalho, mas a opção foi pelo respeito ao histórico de engajamento de luta feminista da artista e o entendimento de que essa mudança de posicionamento político não descarta a importância do conteúdo presente na música estudada, Mulher Heroína, como ferramenta para analisar a injustiça de gênero em Moçambique.

No vídeo promocional do seu apoio, disponível na página da “FRELIMO Cidade de Maputo” (2019) no Youtube, Iveth apresenta-se vestida com a camisa da FRELIMO e afirma que a população não tem acesso suficiente à justiça, mas que o atual candidato do partido estaria compromissado em corrigir esse problema.

Olá amigos, chamo-me Iveth. No dia 15 de outubro, vamos ter eleições presidenciais, legislativas e para as assembleias provinciais. O acesso à justiça é um dos principais problemas da população moçambicana. Ter uma justiça célere, credível e acessível é desejo de todo moçambicano. A FRELIMO e o seu candidato Filipe Jacinto Nyusi reconhecem que as instituições de justiça devem ser fortalecidas, de modo a cumprir com a sua missão de defender a ordem jurídica, promover a observância da lei e garantir o acesso à justiça a todos os moçambicanos. Votar na FRELIMO e em Filipe Jacinto Nyusi é contribuir para promover um maior acesso à justiça, os mais desfavorecidos e a defesa dos seus direitos e liberdades. Unidos fazemos Moçambique desenvolver. Vota FRELIMO, vota Nyusi. É contigo que dá certo (FRELIMO CIDADE DE MAPUTO, 2019).

A invisibilidade sofrida pelas lideranças políticas femininas, segundo Iveth Mafundza, é a mesma enfrentada no hip-hop. Para representar a força da mulher moçambicana, Mafundza opta por apresentar-se com roupas populares entre as mulheres locais, como forma de reivindicação da identidade de gênero e de africanidade. A preferência é pelo uso de capulanas como saia e na cabeça.8 A rapper afirmou não conhecer outra artista moçambicana que tenha lançado um CD apenas de hip-hop em Moçambique e, por isso, “é complicado, essa questão de estar a andar sozinha, não é bonito, no sentido de que podemos ter companhia e temos que ter continuidade. É difícil, mas estamos a fazer a nossa parte, há projetos que andam por aí” (MAFUNDZA, entrevista, 15 de março de 2018). Apesar de Iveth Mafundza ter afirmado, em entrevista no ano de 2018, que o seu trabalho seria o único disco de rap produzido por uma mulher no país, já existiam outras produções fonográficas na época: em 2012, T-Rese lançou a mixtape De Salto Alto ao Micro e, em 2015, Filady (2012; 2017a; 2017b; 2018) apresentou a EP Lágrimas de Sangue.9

Mafundza lamenta, no entanto, que se sente isolada no hip-hop, ao afirmar que “se formos a contar quantas rappers nós temos em Maputo, não sei se chegam a cinco, dez dedos das minhas mãos, não sei” (MAFUNDZA, entrevista, 15 de março de 2018). No período da entrevista com Iveth, conhecíamos apenas os trabalhos de Gina Pepa, Dama do Bling e Filady, por isso, não houve um questionamento sobre a contradição entre os dados concretos e a afirmação de Iveth sobre o número de mulheres atuantes no rap moçambicano. Entretanto, em período posterior à entrevista com Iveth, passamos a conhecer os nomes de mais 19 rappers atuantes em Moçambique. Entre as artistas encontradas, pode-se destacar o grupo Revolução Feminina, que não tem um número fixo de componentes, por estar sempre aberto a inclusões de mulheres e haver integrantes menos ativas (O PAÍS, 2018). Porém, as rappers Guiggaz M Black, FT, Énia Lipanga e Patrícia são as artistas mais atuantes. Esse coletivo, criado em 2012, tem como foco principal a luta feminista e, inclusive, realiza ações formativas no âmbito educacional e cultural (Fátima MENDONÇA, 2006; 2016).10 Além das artistas já mencionadas, há pelo menos outras 14 rappers mulheres em Moçambique. Em Maputo, atuam as artistas Queen C, Rainha da Sucata, Envy, Isaura Tomocene, Nick Mazohe, Lokiizy, Leyla Djennyx, Leokid e Talucha. A Beira conta com as rappers Stella Baby e Carina Houston, que também atua como DJ e beatmaker.11 No Tete, Manú, Bela Vista e Lowla são as artistas presentes no hip-hop.

Assim, a análise sobre músicas moçambicanas de rap feminista é ainda um vasto campo para pesquisas. Sendo impossível traçar detalhadamente os perfis de todas as rappers moçambicanas neste artigo, a alternativa é tecer pequenos comentários sobre os trabalhos dessas artistas e registrar os nomes encontrados, para apresentar esse campo de pesquisa como um espaço a ser estudado em futuros trabalhos. Conceder visibilidade a essas rappers é uma situação emergente, pois a própria Iveth Mafundza mostrou desconhecimento, ao afirmar que se sente sozinha na condição de mulher no cenário do hip-hop moçambicano. Em relação ao conteúdo das músicas das artistas, não foi encontrado outro caso de uma ligação total ao feminismo, como o grupo Revolução Feminina. Existem algumas rappers que denunciam situações de desigualdade de gênero, mas não têm uma carreira direcionada para a luta feminista, como são os casos das rappers Gina Pepa e Filady.12

“Tu és mulher heroína e tu não sabes disso”: Análise de uma letra de rap como ferramenta para refletir sobre o patriarcado em Moçambique

A rapper Iveth Mafundza salienta, em entrevista no dia 15 de março de 2018, que a reivindicação de pautas feministas, por meio da música rap no contexto de Moçambique, provoca uma congruência de lutas contra diversas hierarquias. Segundo Anne McClintock (2010), as relações “de classe, gênero e raça não são reinos distintos de experiência, que existem em esplêndido isolamento entre si, nem podem ser simplesmente encaixadas retrospectivamente como peças de um Lego” (p. 19). Desse modo, McClintock (2010) explica que o sistema sociopolítico de cada contexto articula essas três formas de opressão do modo mais oportunista possível. A autora exemplifica que a demarcação da categoria raça foi necessária para criar o imperialismo europeu, pois possibilitou a vigilância a pessoas tidas como perigosas, tais como prostitutas, judeus, feministas e lésbicas. Assim, essas pessoas foram excluídas, para garantir os privilégios dos homens brancos. Relacionando essas concepções ao pensamento de Loforte (2015) sobre os aspectos culturais de Moçambique que fazem as mulheres ser consideradas como posses dos homens, pode-se compreender por que Iveth enfatiza a necessidade de repar sobre pautas específicas de Moçambique. Ao mesmo tempo, Iveth endossa, na entrevista do ano de 2018, que, devido à condição de mulher e africana, ela rima sobre as opressões vividas pelas mulheres em âmbito global e ainda sobre articulações do patriarcado típicas do continente africano.

Adiciona-se a essa luta contra as hierarquias algumas questões predominantes no próprio hip-hop, pois Rose (1994) e Collins (2006) salientam que o rap reflete o machismo, através da objetificação de mulheres em videoclipes e do discurso misógino. Apesar disso, Iveth endossa outra concepção das autoras estadunidenses ao mostrar que, apesar dessa opressão de gênero, o rap também pode ser um espaço de emancipação de gênero, ao servir como ferramenta para divulgação de pautas feministas. No entanto, a rapper moçambicana entende que o espaço para mulheres no hip-hop é conquistado e raramente oferecido de bom grado. Segundo Iveth, o rap a ensinou a se impor e buscar espaços, por meio do confronto, mas ela se solidariza com as diversas mulheres que não suportaram o ambiente hostil no movimento.

Na música Mulher Heroína, Iveth busca analisar e denunciar as articulações que legitimam o patriarcado, tanto de modo global, como também nos contextos da África, em geral, e de Moçambique, em particular. A letra inicia com um traçado histórico sobre o discurso que subalterniza a mulher, ao realizar críticas à versão bíblica na qual condena Eva, uma mulher, por aceitar comer a maçã do Éden, símbolo do pecado, mas isentar Adão de culpa, apesar de ele ter concordado em comer a fruta.

Tudo começou com a maçã do Éden... A maçã do Éden... A maçã do Éden.../ Que tu mulher induziste o mundo e Adão à perdição, que tu mulher mostraste a fruta da eterna maldição/ Só tu mulher és a culpada e a tua cruz é a submissão/ Mulher, carregas isto contigo até ao caixão/ Isto é o que o livro sagrado diz... Mas sempre se esquecem de dizer que Adão também o quis (MAFUNDZA, 2010b, faixa 15).

Após as críticas sobre a versão bíblica naturalizando a subalternização da mulher, Iveth prossegue com críticas sociais ao machismo. Todavia, ela aponta, na letra, que “Esta não é uma luta contra os homens, é mesmo contra o sistema/ Que te exclui, te derrota, inferioriza e te enferma/ E te destrói aos bocados” (MAFUNDZA, 2010b, faixa 15). Na entrevista realizada em sua casa, durante período de licença-maternidade, Iveth relatou sempre ter tido uma relação de respeito mútuo e horizontalidade com o seu marido, por isso, não tem motivos para generalizar as questões machistas para todos os homens. Além disso, realizou várias parcerias com rappers homens ao longo da carreira, mesmo cantando sobre as opressões sofridas pelas mulheres nessas músicas de produção coletiva. Entretanto, a rapper entende que a generalização é importante discursivamente, porque todas as mulheres estão vulneráveis a situações nas quais são colocadas como submissas e inferiorizadas. Assim, ela prossegue com críticas a esse sistema social na música: “A pressão é social e o ataque vem de todos os lados/ Tu és submissa! Indecisa! O sistema te escraviza!/ Te utiliza, banaliza, vandaliza e te pisa/ Te instrumentaliza e também desvaloriza! Te minusculariza…” (MAFUNDZA, 2010b, faixa 15).

Iveth também questiona um costume recorrente no qual as famílias, em dificuldade financeira, muitas vezes priorizam a educação dos filhos homens, enquanto as mulheres são obrigadas a abandonarem os estudos, para cuidarem dos trabalhos domésticos: “Quem é que fica em casa quando o “mano” vai à escola?”. A socióloga moçambicana Conceição Osório e Teresa Silva (2008) apresentam concepções que endossam esse verso da rapper, ao apontarem que não existe, em geral, uma expectativa equiparada para a educação de mulheres e homens em Moçambique. As autoras salientam que a escola tende a formar as pessoas para uma estrutura que tem o sexo e a idade como medidores dominantes de autoridade e, assim, transforma a inferiorização das mulheres em algo normal e tido como verdade ou crença. A socióloga exemplifica isso com uma pesquisa nas províncias de Maputo e Zambézia com alunas e alunos. Nessa investigação, todas as pessoas entrevistadas ressaltaram que os líderes de sala são homens, mas geralmente acompanhados de mulheres como adjuntas nessas funções, sendo isso um reflexo do papel de liderança dos homens nas famílias, enquanto as mulheres se responsabilizam pelos trabalhos domésticos. No entanto, Osório e Silva (2008) observam a emergência da valorização à formação educacional para mulheres em famílias com capital cultural médio ou elevado, ou também em famílias monoparentais e chefiadas por mulheres sem formação acadêmica e com poucos recursos, mas que vivenciaram forte violência e discriminação. Por outro lado, a evasão escolar tem como um dos principais fatores os casamentos prematuros. O Censo realizado pelo INE (2017) apontou uma taxa de 39% de analfabetos no país. A taxa de analfabetismo entre os homens é de 27,2% e 49,4% entre as mulheres. Além disso, de acordo com o Censo, das pessoas que concluíram um curso superior, 60,9% são do sexo masculino. Adicionalmente, 44,6% das mulheres terminaram o ensino primário, enquanto 67,1% dos homens finalizaram esse grau de formação escolar.

Outra questão problematizada por Mafundza na letra é o lobolo, prática cultural comum no sul do país. O lobolo, originalmente lovolo, em língua changana, designa o “preço da noiva”. Sofia Aboim (2008) explica que, nesse ritual, a família da noiva é recompensada economicamente, uma vez que a ida da mulher para a casa da família do marido é considerada uma perda. Vera Gasparetto (2019) considera que o lobolo coloca as mulheres como objeto de compra e venda, ao lado de outras práticas de inferiorização que são dominantes no sistema tradicional, tais como poligamia e casamentos prematuros ou forçados. A origem do lobolo, segundo Ana Luísa Teixeira (2009), ocorreu quando a economia colonial pôs fim à utilização do gado como moeda de troca e esse ritual passou a ser a forma de recompensação, devido às capacidades produtivas e reprodutivas da mulher. Sobre essa prática, Iveth versa: “Quem é que é vendida quando o marido lobola?”. Na entrevista para este trabalho, a rapper afirmou não ser contra o lobolo, mas contra a mercantilização da mulher por meio dessa prática. Para Iveth, esse hábito deve ser mantido como valor tradicional, por haver uma leitura espiritual no ritual do lobolo, mas através apenas de um valor simbólico e não com a cobrança de uma quantia que represente a venda das mulheres. Iveth foi lobolada, mas pediu para os seus familiares não exigirem um valor alto para o seu atual marido.

A minha opinião sobre o lobolo é uma opinião clara. Eu fui lobolada. E, na altura, eu dizia à minha família: “se meu pai fosse vivo, meu pai iria pedir por esse lobolo um cêntimo”. Então, por favor, não me vendam. Eu acho que o lobolo é uma coisa muito bonita em termos tradicionais. Mas nós não podemos tirar, não podemos vender uma pessoa, não podemos vender uma mulher. A vossa filha que vai ser lobolada, que vai se casar com a outra parte, não estar a ser vendida. Então, por favor, façam, cumpram com que as tradições, os espíritos querem, mas de forma simbólica. Se você quer casar, por exemplo, com uma mulher e quer pedir algum dinheiro, peça 100 meticais,13 que é um valor, são quase um dólar e meio (MAFUNDZA, entrevista, 15 de março de 2018).

Gasparetto (2019) discorre que a busca por extinguir essas práticas ganhou espaço na agenda política da FRELIMO desde o final da luta anticolonial. Em 1973, foi criada a Organização da Mulher Moçambicana (OMM), para reivindicar direitos das mulheres. A Primeira Constituição de Moçambique, promulgada em 1975, teve influência das reivindicações da OMM e determinava a eliminação de práticas tradicionais, como o lobolo, a poligamia e os rituais de iniciação (GASPARETTO, 2019). Teixeira (2009) discorre que se tratava de um projeto de ocidentalização que previa mudanças radicais nos papéis de gênero, não havendo coerência com a cultura tradicional, por isso, não refletiu em uma emancipação de gênero. O lobolo continua ocorrendo, inclusive, em famílias com capital cultural elevado, e, segundo Osmundo Pinho (2011), é entendido como uma forma de valorizar o casamento e mostrar a mulher um bem de difícil aquisição.

Gasparetto (2019) realizou tese sobre o Fórum Mulher, uma rede de organizações não governamentais feministas, que busca reunir o maior número de associações feministas possível, para fortalecer a luta por políticas públicas para a defesa das mulheres e enfrentar as relações hierárquicas de gênero. Ela mostra que não há um consenso em considerar o lobolo com origens na opressão, entre as ativistas entrevistadas. A diretora oficial de programas do FM, Clotilde Noa, afirma, na entrevista a Gasparetto (2019), haver um olhar deturpardo sobre as tradições, como forma de justificar outros problemas subsequentes e que é difícil taxar a opressão de gênero com origem na tradição ou no desenvolvimento. Segundo Noa, o lobolo inicialmente não era visto como “escudo”, mas como uma forma de unir as famílias e de conceder um valor para que o irmão da mulher que estava se casando também tivesse recursos para buscar um casamento. Para Iveth, o lobolo se torna um problema quando é atrelado ao mercantilismo e serve “para enriquecer pessoas” ou para legitimar a violência doméstica.

Tem um documentário daqui da cidade, da província de Maputo e esta foi uma realidade que foi vivida. Um pai recebeu, entregou a filha para ser lobolada, recebeu o dinheiro e ele entrega uma vara, no sentido que “quem batia na minha filha e quem educava a minha filha era eu, agora que estou a vender, que estou a entregar, tu é que passas a bater, tu é que passas a educar”. Quer dizer, tem aqui muita coisa por detrás, que põe em causa o próprio sentido de mulher. Mulheres não estão à venda. Nós não podemos ver os lobolos como uma forma de resolver os nossos problemas de fome (MAFUNDZA, entrevista, 15 de março de 2018).

Em entrevista, Iveth salienta a importância de manter os traços culturais moçambicanos, pois entende que, ao longo da história do país, os bens culturais locais foram apagados por determinações políticas. Washington Nascimento (2013) mostra que, durante o período colonial, a determinação política que mais provocou esse apagamento cultural foi o Estatuto do Indigenato, de 1930. Com a promulgação dessa lei, o Império Português passou a conceder alguns direitos para a pessoa colonizada que se tornasse assimilada cultural, tais como aceder a empregos formais, à educação e a espaços culturais, locais proibidos de serem frequentados pelo restante da população nativa. Essas pessoas deveriam ultrapassar a condição de indígena, como era definida a população nativa. O Diploma Legislativo nº 238, do dia 17 de maio de 1930, elencava que o objetivo da assimilação era “elevar gradualmente da vida selvagem à vida civilizada dos povos cultos a população autóctone das províncias ultramarinas” (BOLETIM OFICIAL DE MOÇAMBIQUE, 1930).

Para conseguir o documento de assimilação, era necessário mostrar identificação com a nação portuguesa e adotar um modelo de vida europeu, como forma de adquirir desenvolvimento. Nascimento (2013) relata que, para conseguir o documento de assimilação, as pessoas deveriam saber ler e escrever em português corretamente, apesar de grande parte da população portuguesa ser composta por pessoas analfabetas. Entre outros critérios, era importante ter um trabalho assalariado, assumir a religião católica, comer e vestir-se nos moldes portugueses, além de não ter qualquer cadastro policial (NASCIMENTO, 2013). De acordo com Maria Paula Meneses (2010), a busca pela assimilação gerava vergonha dos saberes locais e da identidade moçambicana em si, provocando assim a perda de hábitos, tradições, vestimentas e línguas africanas.

A partir da independência, em 1974, o presidente de Moçambique, Samora Machel, instituiu ainda a criação do “Homem Novo”. De acordo com Chichava e Pohlmann (2008), esse projeto visava à unidade do país e aplicava medidas desenvolvimentistas, bem como previa a organização da sociedade e o fim da exploração do homem pelo homem. Porém, para conseguir a unidade e o desenvolvimento, determinava o fim das etnias, dos regionalismos e dos tribalismos, bem como deveriam ser apagados todos os sinais de atraso. Essas medidas resultavam em adotar o português como única língua permitida em documentos oficiais, na educação e na imprensa, bem como coibir traços culturais regionais, para criar um sentimento de unidade em Moçambique (CHICHAVA; POHLMANN, 2008).

Iveth entende que tanto o Estatuto do Indigenato como a instituição do Homem Novo resultaram na aniquilação de grande parte da identidade cultural moçambicana. Com isso, muitas pessoas não conhecem dados básicos da história do país e não dominam línguas locais. Assim, Iveth salienta que a manutenção e o resgate de bens culturais locais significam resistência a um histórico de apagamento desses traços culturais, tidos recorrentemente como sinais de atraso, mas que, para ela, mostram uma riqueza de conhecimento de si e de toda a população moçambicana. Iveth afirma que a manutenção dos hábitos locais deve acompanhar uma revisão sobre a perpetuação do machismo, para combater as desigualdades de gênero.

Um problema referente a isso, retratado na música Mulher Heroína, é a culpabilização da mulher. A rapper versa sobre uma tendência em colocar a mulher como a responsável por todos os problemas sociais: “Quem é a vítima quando a desgraça nos assola.../ Feminizaram o HIV, a mulher é quem o controla?/ Estranho! Tudo recai sobre ti/ Parece que o teu pecado irás pagá-lo até ao fim...”. Para a artista, os problemas são feminizados e a mulher sofre mais com as questões sociais, como a fome e as doenças. De acordo com reportagem do jornalista Leonel Matias (2017), no portal Deutsche Welle, o Ministério da Saúde de Moçambique divulgou, em 2015, que 13,2% da população moçambicana estaria contaminada com o vírus HIV, sendo assim o oitavo país com maior prevalência da doença. São cerca de 1,5 milhão de pessoas contaminadas, em que 830 mil são mulheres acima dos 15 anos de idade. De acordo com Hélio Maúngue (2015), as mulheres em Moçambique, em sua maioria, têm menor liberdade sexual e menor poder de decisão sobre o sexo protegido, ampliando assim a vulnerabilidade delas à contaminação do HIV, independentemente de raça, faixa etária, profissão e nível de instrução. Ocorre, pois, uma feminização da infeccção. O autor cita o trabalho de Teresa Cruz e Silva e Ximena Andrade (2005) para alertar sobre a necessidade de denunciar que a disseminação do vírus ocorre devido às estruturas patriarcais que retiram das mulheres o controle sobre as liberdades sexuais. Com isso, o exercício dos seus direitos sexuais e reprodutivos é limitado.

As relações poligâmicas contribuem para a vulnerabilidade relativa à contaminação do HIV. Essa poligamia é aceita socialmente e legitimada em algumas regiões. Em outras, onde prevalece o casamento monogâmico, ocorre por meio de relações sexuais extraconjugais não declaradas. Como há uma hierarquização das relações de gênero, as mulheres acabam aceitando manter relações sexuais sem o uso de preservativo com os seus parceiros, apesar de conhecerem os riscos e terem consciência das relações extraconjugais. Entre os motivos para aceitar as relações sexuais sem o uso de preservativo, a dependência financeira é um dos mais determinantes. Ademais, é uma forma de evitar maiores violências físicas (MAÚNGUE, 2015).

Ainda em Mulher Heroína, a rapper questiona a diferenciação de gênero em relação ao acesso aos postos de trabalho e à educação de ensino superior: “Há mais mulheres do que homens no país/ Mas, menos mulheres do que homens, nos postos de trabalho e universidades do país!”. Essa problemática é constatada no relatório Progresso das Mulheres do Mundo 2015-2016: Transformar Economias, Realizar Desejos, produzido em 2015, pela ONU Mulheres. De acordo com o Censo de 2017 do INE (INE, 2017), a população moçambicana é atualmente de 27,9 milhões, sendo que 14,5 milhões são mulheres (para cada 100 mulheres há 93,5 homens). Segundo o relatório da ONU Mulheres de 2015, 45% das mulheres moçambicanas, entre 20 e 49 anos de idade, estão desempregadas, 30,1% estão empregadas, mas não são remuneradas, e apenas 24,9% são pagas. Enquanto isso, comparando a mesma faixa etária, apenas 2,7% dos homens estão desempregados, 41,2% estão empregados sem serem pagos e 56,1% estão empregados e remunerados. Os trabalhos não pagos são os trabalhos domésticos, trabalhos para consumo próprio ou atividades em comércios familiares. Iveth denuncia ainda uma condição de submissão das mulheres que estão no mercado de trabalho, refletida em uma vulnerabilidade ao assédio sexual dos patrões: “A história definiu o teu status/ Educada a se achar incapaz e vítima de maus tratos/ O patrão e seu assédio.../ Quantas não aceitaram porque p’ra o sistema não há remédio?” (MAFUNDZA, 2010b, faixa 15). Outra questão crítica é a diferenciação salarial, pois, ainda segundo o relatório da ONU Mulheres de 2015, apenas 7% das mulheres casadas moçambicanas recebem mais do que os seus maridos, enquanto 66,7% recebem menos e 18,1% recebem salários equiparados. Em relação ao acesso ao ensino superior, os homens também são privilegiados, como versa Iveth Mafundza. De acordo com a ONU Mulheres (2015), apenas 0,4% das mulheres completaram a educação secundária ou estão em universidades, enquanto 4,1% dos homens tiveram acesso a esse nível de educação.

A religião é novamente questionada por Iveth na música Mulher Heroína, sobretudo, porque as religiões católica, protestante, zion e muçulmana, as mais populares no país, permitem apenas homens nos principais cargos de liderança. Desse modo, a rapper versa: “Muito religiosa, mas sem espaço na igreja/ Tua fé é cega, a tudo dizes “que assim seja!”/ Olha se Deus te discrimina, não é o Deus real! Não é o Deus real, procure-o”. Segundo dados do Censo de 2017 (INE, 2017), 27,2% da população moçambicana é católica; 18,9% é islâmica; 15,6% é zionista e 15,3% é evangélica. Vale ressaltar que 4,8% declararam serem adeptas de outra prática religiosa; 13,9% afirmaram não ter religião e 2,5% realizam uma prática religiosa desconhecida. Sabe-se que a maior parte das pessoas enquadradas nesses três últimos grupos (21,2% da população moçambicana) pertence a religiões tradicionais ou sincréticas (uma mistura entre uma religião tradicional e o cristianismo ou islamismo). Muitas pessoas fiéis de religiões tradicionais não falam abertamente sobre essas práticas, escondendo essa informação até mesmo do Censo do INE, como forma de se proteger do preconceito, pois essas religiões ainda são vistas como símbolos de atraso. Em relação ao empoderamento de gênero, essas religiões tradicionais são as únicas, entre as praticadas em Moçambique, que permitem mulheres em cargos de liderança. Na continuidade da música Mulher Heroína, Iveth convoca as mulheres a saírem da condição de submissão e se imporem diante de uma cultura machista:

Está na hora de erguer... o sistema aprisiona, dependência é um lema que aqui não funciona/ Abra os olhos para ver e a mente revoluciona/ Teu inimigo és tu mesma, és tu mesma/ Tu és mulher heroína e tu não sabes disso, teu desvalor é uma constante e tu mal vés isso/ A sociedade dominou-te num eterno feitiço, surge et ambula mulher, és muito mais que isso! (bis) (MAFUNDZA, 2010b, faixa 15).

Ainda na música Mulher Heroína, Iveth questiona o fato de a legislação não ser cumprida, pois a igualdade de gênero é prevista em lei, apesar de os dados estatísticos mostrarem uma realidade díspar: “Na nossa Constituição, art. 36.º/ Igualdade de género? Ah... era uma vez/ Bem escrito nas leis, mas na prática é diferente”. De acordo com Iveth, a legitimação da cultura machista tem contribuição das próprias mulheres, que educam as filhas com os ensinamentos de superioridade masculina e as preparam, desde cedo, para serem submissas aos homens: “Tu és quem dá a educação machista/ Tu compactuas com a sociedade tradicionalista/ Ensinada a agradar, mas quem te agrada afinal?”. Iveth faz outro questionamento, logo em seguida: “És tu mulher a especialista em mutilação genital!”, para lamentar um problema crônico dessa violência contra as mulheres em alguns países africanos. Em texto publicado no site oficial da ONU, em 06 de fevereiro de 2019, consta o dado de que há casos de remoção de clitóris e lábios vaginais em 29 países africanos, prática também existente em outros continentes. Essa mutilação genital ocorre com a remoção parcial ou total da genitália da mulher e, em geral, são crianças ou jovens que passam por esse processo, por vontade da família, e, recorrentemente, por decisão da mãe. Segundo a ONU (2019), há motivos religiosos e econômicos para as famílias aceitarem realizar a mutilação, mas outras famílias decidem fazê-la por razões estéticas, por considerar o órgão sexual como feio ou impuro. Há casos, também, em que a mutilação tem o objetivo de limitar o desenvolvimento sexual das mulheres, pois elas seriam consideradas possuidoras de desejos insaciáveis.

A mutilação genital é um crime e uma violação dos Direitos Humanos, mas ainda é uma prática recorrente na ilegalidade. Meneses (2008) denuncia a existência de rituais de feitiçaria que põem em risco a vida de mulheres, pois são cortadas as suas genitálias, por meio de facas vulgares, provocando sangramentos, dores, danos irreversíveis e até mesmo o óbito. Vale destacar a diferença dessa prática com outras alterações na genitália das mulheres em Moçambique que são recorrentes e, geralmente, orientadas por madrinhas e médicos tradicionais, pessoas que repudiam a mutilação praticada por feiticeiros. Brigitte Bagnol e Esmeralda Mariano (2009) exemplificam isso com a atuação de madrinhas e médicos tradicionais na província do Tete, em Moçambique. Essas pessoas realizam alongamento dos lábios vaginais, com produtos naturais e sintéticos, tanto tradicionais, como modernos. Nesse processo, está envolvido um simbolismo ligado ao erotismo, à reprodução e às concepções estéticas, cujo objetivo é melhorar o prazer das mulheres e dos homens nas relações sexuais.

Ainda na letra, a artista convida todas as mulheres para uma luta constante por novas verdades: “Há uma luta que não vés/ uma religião que tu não crés/ algo te acorrenta os pés/ deixa a liberdade contornar estas marés!!!”. Ademais, cobra uma legislação sobre a violência doméstica: “A lei da violência doméstica... para quando no parlamento?/ Mais tempo vão levando para dar seguimento!/ Serão eles um exemplo de dirigentes indiferentes ao teu sofrimento?”. Iveth ainda convoca todas as mulheres para se imporem perante a sociedade, em busca de uma transformação focada em acabar com as relações hierárquicas de gênero presentes em Moçambique, tal como foram denunciadas neste artigo por Loforte (2015):

Dizer não sei... tu és a minoria/ E decerto que à este grupo o vosso comportamento não traz euforia/ Deixadas à revelia!/ Pra prolongar o teu sofrimento... entregues a rebeldia/ À todas vítimas dos opressores (opressores)/ O sistema é um regime de ditadores (ditadores)/ A liberdade é inimiga destes terrores (destes terrores)/ Tá na hora de repores teus valores (teus valores) (MAFUNDZA, 2010b, faixa 15).

Ao longo da música Mulher Heroína e outras contribuições artísticas, Iveth apresenta uma visão ampla sobre as diferentes formas de violência de gênero ocorridas em Moçambique. Todavia, ela afirma, em entrevista, que não pretende ser vista como uma espécie de porta-voz das causas das mulheres moçambicanas no rap. De acordo com a artista, é necessário estabelecer um movimento hip-hop de mulheres em Moçambique, pois cada uma vivencia, observa e analisa diferentes realidades. Com isso, Iveth afirma, em entrevista no dia 15 de março de 2018, que apenas a pluralização das vozes permite que o movimento cultural e o país observem isso a partir de amplos pontos de vistas femininos e feministas.

Considerações finais

Este artigo mostra que o hip-hop apresenta uma ambiguidade em relação à injustiça de gênero em Moçambique. Por um lado, o movimento é mais um agente dessa opressão e invisibiliza as mulheres. Por outro, é o espaço onde várias artistas feministas se expressam, denunciando o machismo. A invisibilidade foi vista no pequeno número de gravações das rappers pioneiras, como também em casos de assédio e de hiperquestionamento técnico, bem como na curta duração de grupos de rap exclusivamente femininos - Sweet Girls, Female MCs e Imperial Ladies, que foram encerrados precocemente justamente por conta da invisibilidade. O desconhecimento mútuo dos trabalhos dessas artistas é outro aspecto dessa ocultação aos trabalhos delas, pois foram encontradas mais de 20 mulheres atuando no rap moçambicano, mas Iveth disse se sentir isolada, falando ainda que o número de rappers mulheres no país não chegaria a cinco ou, no máximo, dez. A participação em grupos de Whatsapp criados em prol da democratização do rap moçambicano, onde rappers e beatmakers de todas as províncias do país divulgam os seus trabalhos, evidencia mais um tópico dessa invisibilização, pois nenhuma hip-hopper mulher está entre os 662 membros de cinco fóruns.

Como ponto positivo, pode-se destacar o trabalho atual do projeto Revolução Feminina, na busca por agregar o maior número de mulheres possível em um coletivo feminista de rap. Em relação ao conteúdo, a música analisada no artigo, Mulher Heroína, mostrou como o rap pode ser um meio de denúncia das injustiças de gênero em vários aspectos. A letra questiona a mercantilização de mulheres, a mutilação genital e a culpabilização delas em casos de HIV. A música ainda contém denúncias às desigualdades de gênero na educação, na religião, nas vagas de emprego, na taxa de analfabetismo e na vulnerabilidade ao HIV. Quando se compara esse discurso de Iveth com as estatísticas sociais oficiais e com publicações científicas sobre as mulheres moçambicanas, prova-se a contundência da letra. A rapper realiza uma “ecologia dos saberes”, ao divulgar reflexões acadêmicas e jurídicas em um discurso mais coloquial e que atinge um público maior. O trabalho também apresentou problemas no discurso de Iveth, em que se pode destacar a postura contraditória dela em relação à posição político-partidária. A rapper afirmou, em entrevista em 2018, que evita qualquer ligação com os partidos RENAMO e FRELIMO, devido às contradições de ambos. Porém, ela apoiou a reeleição de um candidato do partido no poder governamental no ano seguinte, em uma eleição em que houve boicote à Alice Mabota, personalidade enaltecida pela própria Iveth na entrevista de 2018.

Percebendo as limitações de abrangência deste artigo e sabendo da necessidade de ampliar as diversas análises sobre o rap em Moçambique, sobretudo, com ênfase nas mulheres, o último contributo deste texto é apresentar sugestões para artigos futuros. A primeira recomendação é um estudo sobre a história das mulheres no rap moçambicano, a partir dos nomes citados no artigo. É importante também realizar comparativos intergeracionais e inter-regionais do discurso de gênero, percebendo as mudanças de percepção a partir de diferentes épocas ou espaços geográficos. Pode-se, ainda, fazer estudos de caso, como a atuação de Carina Houston como beatmaker, função rara entre as mulheres, ou a condição de imigrante de Jazz P.

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1Disco-jóquei é o artista que seleciona as músicas e as reproduz. Foram eles que iniciaram o hip-hop, realizando manipulações das aparelhagens de som, em que o momento de maior impacto da batida musical passou a ser chamado de break e a dança que acompanhava essa batida foi intitulada de break dance.

2O Censo realizado pelo Instituto Nacional de Estatística em 2007, três anos depois do lançamento da música, apontava, na época, uma taxa de analfabetismo no país de 50,4%.

3Azagaia é um artista conhecido publicamente em Moçambique, devido às críticas ao governo local, algo não habitual no país. Ele já teve uma música censurada em 2006, na Rádio Cidade, de ordem estatal. Ademais, foi preso por porte de cannabis ativa, em caso com grande repercussão midiática. Em agosto de 2014, Azagaia foi detectado com um tumor no cérebro, responsável por afastá-lo das atividades artísticas até fevereiro de 2016.

4Azagaia disse, em entrevista no dia 22 de março de 2018, em Maputo, que é o único artista se sustentando exclusivamente do rap em Moçambique. Além disso, não foi encontrado qualquer dado que o contrariasse.

5Essa afirmação considera aquelas com atuações constantes, pois a pioneira, Gina Pepa, também realiza algumas ações, mas de caráter esporádico, e teve a carreira interrompida diversas vezes.

6Em 2019, Alice Mabota seria a primeira mulher candidata à presidência de Moçambique. Porém, a sua candidatura foi rejeitada, após receber grande apoio popular, sob justificativa de que mais de um terço das assinaturas colhidas para solicitação de candidatura eram inválidas. Todavia, Mabota afirmou, em entrevista ao jornalista Amós Zacarias, publicada no Deutsche Welle, no dia 02 de agosto de 2019, que essa rejeição teria ocorrido por um viés administrativo e político, pois todas as assinaturas teriam sido reconhecidas pelo serviço notoriado do país. Assim, o único motivo para impedi-la de participar do pleito seria a boa aceitação pública alcançada pela candidatura dela e também o temor de ter uma mulher no cargo máximo do país. Esse caso não é inédito. O rapper Azagaia disse, em entrevista no dia 22 de março de 2018, que foram criadas irregularidades iverídicas para impedir a candidatura dele ao cargo de deputado da cidade de Matola em 2009.

7O grupo liderado por Joana Simeão defendia o pluralismo partidário e ideais pró-ocidentais, por isso, ela foi morta, acusada de traição. Isso porque, após a Independência, a FRELIMO construiu um regime monopartidário, de inspiração socialista, que não tolerava divergências ideológicas.

8A capulana é um tecido originalmente indiano, mas bastante utilizado em quase toda a África Subsaariana e que foi ressignificado como um símbolo da identidade feminina em Moçambique, devido à sua popularização.

9Após a entrevista, ainda surgiram outros discos de mulheres moçambicanas. Em julho de 2018, Carina Houston lançou a EP Vencedora. Em março de 2019, Filady apresentou a EP We Moving. Em agosto de 2019, Jazz P lançou o álbum Still Grinding. Jazz P é natural do Reino de Eswatini (antiga Suazilândia), mas se radicou em Moçambique, fugindo da violência machista do seu país, onde o rei Mswati III obriga 10 mil virgens a desfilarem com seios à mostra em seu aniversário, para escolher uma nova esposa por ano.

10As artistas desse grupo alternam as funções artísticas com atividades como iluminação, técnica de som e designer gráfico. Elas se apresentam com roupas típicas de mulheres moçambicanas, com ênfase na capulana, e alternam músicas autorais com canções adaptadas, realizando um diálogo com os ritmos musicais locais, utilizando sons de marrabenta ao rap. A marrabenta é um gênero musical importante na formação da identidade moçambicana desde o período da luta anticolonial, que passou a transmitir ideais anticoloniais, por meio da indignação e de estratégias emancipatórias. Mendonça (2016) ressalta que, no bairro periférico Mafalala, essa música se interligava com a literatura, a política e as artes plásticas, voltada para a luta anticolonial. Assim, a marrabenta é um símbolo cultural moçambicano bastante popular até a atualidade.

11Beatmaker é uma expressão em inglês que pode ser traduzida como fabricante de batidas. Essas são as pessoas que criam os instrumentais da música rap, denominados beats, que podem ser traduzidos com batidas. O beat é o resultado de duas frequências musicais diferentes. A música rap surge da junção entre a voz do MC e esse beat.

12A rapper Filady atua no rap desde 2012, e realizou algumas críticas voltadas para a desigualdade de gênero, sobretudo, no início da carreira. Em 2013, ela criou um grupo de rap composto por mulheres, intitulado Imperial Ladies (traduzido como Senhoras Imperiais). O projeto tinha quatro integrantes, mas durou apenas um ano. Desde 2018, ela tem focado em conteúdos menos engajados politicamente, ao mesmo tempo em que investiu em maior produção técnica. Filady denuncia as desigualdades de gênero nas seguintes músicas: Vendedora Ambulante, de 2012; Pão Seco, de 2017 e Mãe Grande, também de 2017. Em Vendedora Ambulante, ela retrata uma jovem que abandona os estudos para trabalhar vendendo badjias, comida típica local. Ela é humilhada constantemente, sofrendo acusações de vender comida podre e ainda é roubada. Em Pão Seco, aborda a violência doméstica sofrida pela esposa de um homem alcoólatra. A personagem diz preferir comer pão seco ou morrer a continuar dependendo do agressor. Em Mãe Grande, Filady vivencia a filha de uma cantora de barzinhos, que apresenta problemas de saúde por atuar em esquinas sem estrutura, além de sofrer com xingamentos e assédios. A filha, interpretada por Filady, consegue terminar um curso de ensino superior, contrariando as estatísticas a respeito de níveis educacionais das mulheres, e classifica o esforço da mãe como responsável pela conquista.

13Nome da moeda moçambicana.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MENDONÇA JÚNIOR, Francisco Carlos Guerra de. “A Mulher Heroína em combate ao patriarcado em Moçambique”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 2, e69909, 2021.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 07 de Novembro de 2019; Revisado: 13 de Maio de 2020; Aceito: 18 de Junho de 2020

carlosguerrajunior@hotmail.com

Francisco Carlos Guerra de Mendonça Júnior (carlosguerrajunior@hotmail.com) é doutor em Ciências da Comunicação na Universidade de Coimbra, desenvolve a pesquisa “Rap como forma de ativismo político no espaço lusófono”. Foi bolsista Capes no Programa de Doutorado Pleno no Exterior, processo 99999.002257/2015-07. É mestre em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra. É graduado em Comunicação Social - Habilitações Radialismo e Jornalismo pela UFRN. É professor de jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA). Atua ainda como rapper e produtor cultural.

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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