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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.29 no.2 Florianópolis maio/ago 2021  Epub 01-Maio-2021

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n270109 

Artigos

“Maternidade guerreira”: responsabilização, cuidado e culpa das mães de jovens encarcerados

“Warrior Motherhood”: Responsibility, Care and Guilt of Young Inmates’ Mothers

Simone de Oliveira Mestre1 
http://orcid.org/0000-0001-8976-8312

Érica Renata de Souza2 
http://orcid.org/0000-0003-2195-8237

1Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Belo Horizonte, MG, Brasil. 31270-901 - ppgs@fafich.ufmg.br

2Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Antropologia e Arqueologia, Belo Horizonte, MG, Brasil. 31270-901 - daa@fafich.ufmg.br


Resumo:

No presente estudo, visamos lançar um olhar antropológico sobre o “ser mãe” do outro lado dos muros das prisões, o lado das visitantes, ou seja, das mulheres cujos filhos estão presos. As percepções e reflexões apresentadas são provenientes de uma pesquisa etnográfica sobre mães de jovens envolvidos com a “criminalidade”, realizada na cidade de Porto Velho-RO, entre os anos de 2014 e 2016. O estudo parte da problematização do estigma de “criminoso” atribuído ao filho e que passa a ser associado à identidade materna, evidenciando uma dupla pressão exercida sobre as ideias de cuidado de mãe: culpa e responsabilização tanto pelos atos, como pelo acompanhamento do filho encarcerado. Essa situação, comum com outras mães, favorece a formação de uma rede de cuidados, concomitante à experiência de se submeter aos procedimentos de segurança, marcada por questões de gênero, estigma e violência.

Palavras-chave: Maternidade; cuidado; culpa; violências

Abstract:

This study aims to cast an anthropological look at “being a mother” on the other side of the prison walls, the visitors' side, that is, the women whose offspring are imprisoned. The perceptions and reflections presented here come from an ethnographic research on young people's mothers involved with “criminality” conducted in the city of Porto Velho - RO, Brazil, between the 2014 and 2016. The study starts from the problematization of the stigma of “criminal” attributed to the young, who is associated with the maternal identity and which evidences a double pressure exerted on the ideas of mother care: guilt and responsibility, both for the acts and for the accompaniment of the imprisoned young. This situation, common with other mothers, favors the formation of a care network, concomitant with the experience of undergoing safety procedures, marked by gender, stigma and violence.

Keywords: Maternity; care; guilt; violence

Ser mulher é ser guerreira, ser vitoriosa, enfrentar a vida de frente.

(Joana)

Estamos vivenciando, atualmente, uma efervescência de estudos acadêmicos e matérias midiáticas que problematizam e denunciam a realidade da maternidade em situação de cárcere, sobretudo a realidade das mulheres grávidas ou de mães de recém-nascidos que estão em situação de privação de liberdade. Este estudo, por sua vez, visa chamar a atenção para outros impactos sobre a maternidade decorrente da relação entre mulheres e prisões, focando nas mulheres que transitam nas penitenciárias brasileiras para acompanhar seus filhos e que são rotuladas/estigmatizadas por meio das expressões “mãe de vagabundo” e “mãe de bandido”, as quais são constantemente usadas tanto por agentes penitenciários/as, como pela população para se referir a essas mulheres cuja identidade materna é inviabilizada e violada constantemente.

As reflexões e olhares que serão apresentados neste artigo são derivados de uma pesquisa de Mestrado de cunho etnográfico realizada em 2014 e 2015, na cidade de Porto Velho, com um grupo de seis mães, cujos filhos estão presos no sistema prisional de Rondônia. É importante salientar que a pesquisa de Mestrado1 deu continuidade a uma pesquisa de monografia realizada com o mesmo grupo de mães entre fevereiro de 2012 e julho de 2013, período em que seus filhos cumpriam medida de privação de liberdade no sistema socioeducativo e tinham em torno de 17 anos. O início da pesquisa de Mestrado coincidiu com a saída desses jovens da unidade socioeducativa e o alcance de sua maioridade penal. No decorrer de tal pesquisa, observamos que todos os jovens permaneceram envolvidos com atos considerados ilícitos e acabaram entrando no sistema prisional. Desta forma, foi possível observar a trajetória dessas seis mães desde a liberação dos filhos da unidade socioeducativa, reservada a adolescentes, até a entrada deles no sistema prisional, destinado a adultos infratores.

Partindo do entendimento de que as relações vivenciadas na maternidade posicionam o gênero como uma categoria útil de análise (Joan SCOTT, 1995, p. 2) a ser problematizada na relação com outras categorias sociais, especialmente a categoria mãe, entendemos que a maternidade enquanto experiência é marcada por uma espécie de tríade conceitual formada pelos conceitos de cuidado, responsabilização e culpa, principalmente quando essa maternidade é situada em um contexto marcado por estigmas, conflitos e cerceamentos.

Portanto, nosso objetivo, neste artigo, é demonstrar como essa tríade conceitual cuidado, responsabilização e culpa funciona de maneira articulada nas produções simbólica, psicológica e física das violências que marcam a maternidade e a identidade materna dessas mulheres.

Considerando a complexidade do que estamos chamando de tríade conceitual, organizamos o artigo buscando apresentar e explicar separadamente cada conceito em diálogo com os dados etnográficos da pesquisa. Entretanto, precisamos, antes, abordar as concepções de maternidade e amor materno com as quais estamos trabalhando e quais seus desdobramentos na vida das mulheres. Deste modo, optamos por organizar o texto em quatro tópicos.

No primeiro, buscamos problematizar a visão da maternidade enquanto destino natural denunciada por Simone de Beauvoir (1967), bem como o mito do amor materno, cunhado por Elisabeth Badinter (1993 [1985]), como perspectivas fundamentais para a compreensão da visão sobre maternidade difundida no imaginário social. No segundo tópico, debatemos sobre a responsabilização materna e seus desdobramentos na vida das mulheres. Um destes, a culpa, é abordado no terceiro tópico, no qual apresentamos a culpabilização/culpabilidade materna como uma produção cultural. No quarto e último tópico, mostramos como o vínculo entre mãe e filho é marcado por uma relação de cuidado. Concluímos, por fim, pontuando como a responsabilização, a culpa e o cuidado marcam a experiência do que intitulamos “maternidade guerreira”.

Maternidade guerreira e o amor materno

Os estudos de Antropologia de Gênero, os debates feministas e o próprio campo de pesquisa sobre maternidade atentaram-nos para o fato de que algumas palavras no singular não conseguem abarcar as especificidades e as experiências das pessoas. Nesse caso, a maternidade é um bom exemplo. Ainda que o presente texto tenha um recorte bem específico e delimitado, que são mulheres mães de jovens privados de liberdade, não é possível reduzir a maternidade como experiência a uma única forma de ser mãe. Em resumo, ao, inicialmente, pensarmos em maternidade, encontramos maternidades, e usar essa palavra no plural é enfatizar que não podemos pensá-la como um fenômeno homogêneo, que é vivenciado igualmente por todas as mulheres.

Adiantamos que a escolha por usar a categoria nativa2mães guerreiras no título, além de comunicar que essa palavra é usada pelos filhos e pelas próprias mães para identificar as mulheres que passam pela mesma situação - acompanhar um filho encarcerado -, deu-se, também, por ser a expressão que melhor representa nossos olhares sobre elas. E é pensando em debater essa maternidade guerreira, vivenciada por essas mulheres, que pretendemos articular algumas contribuições teóricas das concepções antropológicas e feministas sobre maternidade, a fim de compreender como as noções de cuidado, responsabilidade e culpa marcam a vida das participantes da pesquisa e interferem em sua relação com os filhos e outros sujeitos da família.

Na perspectiva dos estudos de gênero, podemos compreender a maternidade “como um símbolo construído histórica, cultural e politicamente, resultante das relações de poder e dominação de um sexo sobre o outro” (Lucila SCAVONE, 2001, p. 143), o que colabora para a difusão, no imaginário social, de imagens materna e paterna completamente opostas em termos de responsabilização, culpa e cuidado, com as exigências que recaem sobre as mães, sendo diferentes das direcionadas aos pais, dado que “o processo da maternidade se estabelece tradicionalmente com a mãe dando à luz enquanto a paternidade o é pela prova de relações sexuais com a mãe” (Marilyn STRATHERN, 1995, p. 303). Nesse sentido, como argumenta Strathern, enquanto para os homens a paternidade deve ser comprovada, uma vez que ela pode ser questionada, a maternidade é dada como certa para as mulheres, considerando-se que, nesse contexto, a maior prova de uma maternidade seria a própria gestação.

Os discursos em torno da maternidade e do amor materno, assim como do instinto materno, são endossados por argumentos que visam explicar as experiências corporais das mulheres por intermédio da relação entre mulher e natureza, compreendendo que aspectos do corpo feminino como menstruação, variações de humor e gravidez seriam condições “inerentes” à natureza feminina. Esse viés biologizante da maternidade é difundido nos discursos médicos, midiáticos e religiosos como a fase fundamental para tornar a mulher um ser completo.

Para Sherry Ortner (1979), a associação entre mulher e natureza nasce quando aspectos psicológicos e a função social da mulher contribuem para que ela seja vista como mais próxima da natureza. Na crítica de Beauvoir (1967), há uma problematização sobre a expectativa de que toda mulher realize seu “destino biológico”, que é a maternidade. Para Badinter (1993 [1985]), a sociedade não apenas espera, mas exige que isso ocorra, determinando que toda mãe tenha um amor incondicional, acompanhado de uma dedicação exclusiva aos filhos, como podemos identificar no relato de Flávia3 ao falar sobre sua relação com a própria mãe e com seus filhos:

[...] sou mãe, sou pai, sou amiga, sou tudo pra meus filhos, pra eles, eles não tiveram pai, eu praticamente dei tudo pra eles, dei amor, dei carinho, dei tudo que nunca recebi da minha mãe. Eu sempre desejei receber amor, carinho, afeto, conselho, ela nunca me deu, só fui espancada, fui maltratada, fui lavadeira, fui cuidadora de meus irmãos. E sempre meu objetivo de vida e, quando eu fosse mãe um dia, meu objetivo de ter filho era apenas dois filhos, dois [choro], sabe por quê? Eu nunca tive infância, eu nunca tive infância, eu tive carinho, amor e afeto do meu pai, do meu pai eu tive, da minha mãe não. Eu sempre busquei, não sei se dei uma criação boa para os meus filhos, meu primeiro filho estudou em colégios particulares.

Percebemos que as expectativas de Flávia em relação à sua mãe e à sua atitude como mãe são nitidamente influenciadas pela perspectiva da maternidade da devoção, do amor incondicional, do cuidado e da responsabilidade. Essa imagem também influencia a própria construção da categoria nativa da mãe guerreira, aquela que se sacrifica para não abandonar o filho, que se colocaria no lugar dele para não o ver sofrer.

Diante dessas visões, há, nos relatos das mães e dos filhos, uma forte influência do discurso do “amor materno”, que é constantemente reafirmado na frase “Amor só de mãe”, remetendo para a ideia da mãe como a única que jamais abandona um filho “preso”. A presença da frase citada em tatuagens e pichações nas paredes dos alojamentos/celas do sistema socioeducativo e prisional exemplifica o quanto a responsabilização das mulheres pelos atos do filho é romantizada.

A sociedade exige das mães aquilo que não depende exclusivamente delas - os atos dos filhos -, estimulando a produção de uma maternidade que pode ser compreendida socialmente como uma espécie de “instituição social compulsória” (Adrienne RICH, 1981), mantida por meio do mito do amor materno, que busca naturalizar e universalizar as performances das mulheres diante da maternidade.

De acordo com Aminatta Forna (1999), esse mito é a mãe de todos os mitos. Ao usar a metáfora, a autora não busca naturalizar a noção do que é ser mãe, e sim problematizar o quanto a maternidade estrutura outros mitos, principalmente porque legitima os discursos que responsabilizam exclusivamente as mulheres pelos cuidados com os filhos, mesmo em detrimento de si mesmas, fortalecendo o mito da “felicidade feminina no sacrifício” (BADINTER, 1993 [1985], p. 268) e sustentando uma imagem da “maternidade associada ao cuidado, dedicação e renúncia pessoal em função do outro” (Érica SOUZA, 2005, p. 298).

A relação entre maternidade e natureza é o alicerce do mito do amor materno, que é difundido por intermédio da idealização do instinto maternal em conjunto com o mito da felicidade feminina no sacrifício. Assim, as palavras ‘amor’ e ‘materno’ “significa[m] não só a promoção do sentimento, como também a da mulher enquanto mãe. Deslocando-se insensivelmente da autoridade para o amor, o foco ideológico ilumina cada vez mais a mãe” (BADINTER, 1993 [1985], p. 145). A concepção do mito do amor materno é construída com base no padrão exigido pela sociedade, que define a figura materna como portadora dos atributos de delicadeza, dedicação e sacrifício em nome do filho.

Em suas contribuições teóricas, Rich (1981) chama a atenção para a possibilidade de a maternidade ser configurada como uma instituição ou experiência. A autora não percebe a biologia como o principal motivo de a maternidade ter se tornado uma instituição tão opressora para as mulheres e que, muitas vezes, “associa a mulher ao doméstico e à renúncia de sua própria vida” (SOUZA, 2005, p. 134).

O problema, no ponto de vista da autora, encontra-se no fato de como a sociedade patriarcal, ao institucionalizar a maternidade, limitou sua percepção como experiência de responsabilidade exclusiva das mulheres. Socialmente, Rich aponta que as mães são enquadradas em um modelo de mãe, ou seja, vivenciam a maternidade como uma instituição e são pouco motivadas a conhecer e protagonizar a vivência e os desdobramentos da maternidade como experiência.

O discurso que determina que toda “mulher é mãe por natureza” produz uma concepção de maternidade como um conjunto de práticas institucionais, essencialistas e obrigatórias, em vez de conjecturar essa perspectiva enquanto experiência pessoal e coletiva, vivenciada de diversas maneiras e encarada de forma totalmente diferente, de acordo com o contexto pessoal de cada uma.

No entanto, quando perguntamos sobre o significado de ser mãe às mães participantes da pesquisa, dentro ou fora do contexto da própria pesquisa, ou seja, da unidade prisional, podemos identificar que, em seus discursos, a articulação entre “mãe” e “natureza” é claramente perceptível quando falam de sua maternidade:

[...] mana, mulher, mulher mesmo nasceu para ser mãe, né? (Flávia).

[...] meu coração de mãe sentiu que ele estava passando por dificuldades (Rosário).

[...] meu filho é um pedaço de mim (Joana).

Há, no imaginário social dessas mulheres, um entendimento de que a maternidade é própria da natureza feminina ou atrelada aos seus corpos (quando falam em “coração” ou “pedaço”, por exemplo), mostrando o quanto elas são influenciadas pelas associações mulher-natureza e homem-cultura que impulsionaram o enraizamento do ideal de mãe em torno da dedicação, do sacrifício e da exclusividade total para o filho, o que é uma concepção que condiciona a felicidade e o bem-estar dos filhos como responsabilidade dos pais, sobretudo da mãe.

É com base em argumentos oriundos da relação entre “biologia e comportamento” (Henrietta MOORE, 1997) que muitas ações dos filhos são associadas à responsabilidade da mãe, principalmente quando essas ações são negativas. Exemplo disso é a recorrência de discursos, durante a pesquisa, que buscam associar o envolvimento dos filhos com a “criminalidade” à suposta falha da mãe em sua criação, deixando de considerar a condição de vulnerabilidade na qual tanto mães quanto seus filhos estão inseridos. Em suma, ao ter filhos presos, as mães passam por um processo de responsabilização que tem como pedra de toque a construção social da maternidade, como abordaremos a seguir.

A responsabilização das mães

A relação entre mãe e filho é marcada, tradicionalmente, pela responsabilidade da mãe em socializar os filhos conforme os preceitos morais da sociedade e da religião. O que se espera dela é que coloque o filho em contato com o mundo (Sheila KITZINGER, 1978) ou, em outras palavras, a ela é lançada toda a obrigação de educar os filhos. Essa afirmação está presente em discursos religiosos, governamentais e “científicos” que reforçam o entendimento social de que a educação dos filhos é, quase exclusivamente, uma responsabilidade das mães.

Essa “responsabilidade” é naturalizada e oculta o caráter moral, social e cultural de um processo de “responsabilização” exclusiva das mães diante do que a sociedade entende como “sucesso” ou como “fracasso” dos filhos. Nesse sentido, a partir daqui, utilizaremos apenas a noção de “responsabilização”, a fim de evidenciá-la tanto como expectativa e construção social, quanto como materialização nas práticas cotidianas das mães.

A responsabilização da mulher pela educação dos filhos e pela manutenção da família nuclear nasce historicamente no fim do século XVII, período que, segundo Badinter (1993 [1985]), foi marcado pela mudança de concepção dos sentimentos. Consequentemente, foi nesse período em que se alterou o entendimento sobre maternidade e infância, posto que, até o século XII, a infância nos padrões que conhecemos hoje não existia, como afirma Philippe Ariès (1975).

O autor menciona que a representação em torno das crianças foi radicalmente modificada: antes, eram vistas como adultos em miniatura, passando, então, a ter sua imagem associada à pureza e à inocência dos anjos e ganhando, posteriormente, tanto a infância quanto a maternidade representações nas figuras do menino Jesus e da Virgem Maria.

É especialmente na caracterização da criança como menino Jesus acompanhado da mãe representada como Virgem Maria que a maternidade e a infância ganham contornos que influenciam grande parte das nossas percepções sobre filhos (crianças) e mães nos dias de hoje, uma vez que a “mãe permanece, em nosso inconsciente coletivo, identificada a Maria, símbolo do indefectível amor oblativo” (BADINTER, 1993 [1985], p. 09). Em consequência, exigimos socialmente da mulher uma vocação natural para a maternidade - devoção integral aos filhos e à família.

No período citado, passa-se a atribuir à mulher não apenas a função reprodutora, mas a função materna, o processo de tornar a mãe a principal referência/responsável pela educação e cuidados dos filhos e desenvolvimento da família que foi pautado em princípios burgueses e cristãos. Cabe observar que, nesse mesmo momento histórico, a maternidade não era aceitável sem a materialização (ou constituição) de uma família, sendo que valores cristãos e morais que cercavam a maternidade e a família se tornaram incumbências exclusivas das mães, como apontam type="bibr" Badinter4 (1993 [1985]) e Mary Del Priore (1993).

Esse tipo de discurso está apoiado no entendimento de que a mulher, ao se tornar mãe, é a principal responsável pelo equilíbrio social e emocional do filho. Esse pensamento encontra respaldo nas teorias científicas no campo da Psicologia, em especial a teoria do apego, criada pelo psicólogo britânico John Bowlby (1989), que defende que tanto a omissão quanto o descuido da mãe com o filho podem influenciar no desenvolvimento “saudável”, ou não, desses sujeitos. Os pressupostos do autor e de sua respectiva teoria influenciaram, segundo Lynda Ross (2014), a produção de uma grande demanda de responsabilização sobre as mães, sendo os filhos privilegiados em detrimento da vivência pessoal da mulher durante a maternidade. Em cartas pessoais, a própria Sra. Ursula Bowlby (esposa do psicólogo) concordava que a teoria de Bowlby (1989) responsabilizava mães sobre a vida dos filhos. O caso de Bowlby é o típico caso do homem que utiliza o seu lugar na hierarquia social para reforçar estereótipos e responsabilizações sobre a mulher; ele não teve a preocupação de considerar as posições da própria esposa ao negar a ela e às demais mães o seu “lugar de fala”.

O caso chama a atenção para o fato de que algumas contribuições científicas impulsionam e/ou legitimam discursos ramificados no senso comum que sempre colocam a mulher como a única encarregada pelos cuidados com os filhos, alocando essa responsabilização em uma condição de inerência ao universo feminino. Novamente, as teorias mencionadas anteriormente, em vez de contribuírem para o debate da maternidade como experiência emocional, corporal e cultural, acabam reforçando estereótipos em torno da maternidade, incentivando um roteiro dicotômico sobre a criação dos filhos - tida como “sucesso” ou “fracasso” materno -, o que é acionado em torno da produção cultural da culpa e da responsabilização materna.

Os sentimentos de responsabilidade e culpa andam juntos, e não há qualquer aspecto biológico nisso. Eles são oriundos da combinação de motivações pessoais e pressão social. Como podemos perceber nas falas das participantes da pesquisa, elas, de fato, se sentem responsáveis pela situação do filho. A participante Dora sente-se culpada por ter se reconciliado com o esposo, causando revolta no filho, que não aprovava a união dela com o marido violento. Da mesma forma, Flávia acredita que, por ter realizado um aborto no passado, os problemas do filho são um “castigo de Deus”, uma forma de ela pagar por seus pecados, como relatou ao falar o quanto as críticas de seus familiares ao filho lhe causam incômodo:

[...] eu disse pra meu irmão, eu disse mano, você é tio, é filho, você ainda não é pai, mas não critica meu filho não. Se meu filho é assim, ele tem algum motivo pra ser assim. Eu sei que eu já fui muito errada nessa vida; hoje, eu estou colhendo tudo aquilo que eu fiz, entendeu? Não nego, não. Sabe, Xxxx,5se eu estou sofrendo hoje, eu tô pagando por algo que eu fiz no meu passado.

A maternidade, alicerçada na responsabilização exclusiva das mulheres, é nitidamente uma instituição influenciada pelo patriarcado, ao impor um estilo normativo para mulheres, cuja função/responsabilidade seria a de disciplinar e cuidar dos filhos, contribuindo para uma classificação da maternidade com base em um padrão ideal, avaliado na flexibilização da mãe em abdicar de seus projetos pessoais, profissionais e políticos em prol da dedicação incondicional aos filhos.

Essa renúncia, em nome de um benefício maior, bem como a inclinação para o desvelo dos filhos, é identificada, no contexto desta pesquisa, quando as mães relatam que, muitas vezes, desistem ou desistiram de atividades de interesse pessoal (como encontros amorosos, festas, cultos, trabalho extra e outros) para irem visitar os filhos no Presídio, sob a justificativa e receio de eles ou outros acharem que elas estão faltando com suas “obrigações de mãe”, como relata uma das interlocutoras da pesquisa:

[...] se eu faltar duas ou três visitas seguidas, muita gente fica achando que eu estou abandonando meu filho, inclusive ele. Mas o povo esquece que você tem outros filhos, trabalho e casa para cuidar também. Esquecem que, desde que ele nasceu, cuido dele sozinha, sempre dependendo da ajuda dos outros, ajuda que nem sempre você consegue.

Como podemos perceber, há uma forma de classificar a identidade materna com base em sua presença na visita - é como se o amor da mãe (o amor só de mãe) estivesse atrelado à sua dedicação com o filho nos dias de visita. Uma das ideias presentes na categoria nativa mãe guerreira encontra-se na presença da mãe, nessa dedicação em acompanhar o filho que pode ser observado durante as visitas ou no envio de coisas para ele dentro do Presídio.

No contexto de privação da liberdade, a dedicação materna ao filho é reconfigurada, visto que a mãe que não consegue realizar um acompanhamento mais sistemático do filho tem sua identidade materna classificada como negativa e que coloca em xeque a sinceridade do seu amor pelo filho. Como observado anteriormente, ser mãe, no olhar desses filhos, é ser mãe guerreira - estar presente de alguma forma; caso contrário, ela deixa de ser reconhecida como mãe, como me relatou um filho: se tua mãe não vem te visitar ou não manda as coisas pra você, nem uma carta, na boa, nem tua mãe ela é.

Concordando com as contribuições de Badinter (1993 [1985]), reconhecemos que vivemos em uma sociedade que tende a enxergar que, quanto mais uma mulher renuncia à sua vida pessoal para cuidar dos filhos, maior é seu compromisso e seu amor de mãe. Por esse prisma, as falas das mães expressam essa ideia da maternidade no sacrifício pelos filhos. Trata-se de um contexto no qual elas seriam capazes de tudo, inclusive de se sacrificarem no lugar dos filhos, como coloca Flávia, ao falar de sua revolta com a violência policial sofrida por seu filho:

[...] acho que isso não é coisa que se faz, sabia, Xxxx?6Fazer isso com meu filho. Eu sei como mãe, meu filho pode ser o que for, mas é meu filho. Entendeu? É meu filho, me doeu na alma, se eu tivesse no momento eu diria “me espanque, me mate, faça comigo, mas com meu filho não”. Porque me doeu muito de ver meu filho todo roxo, entendeu?

A fala acima pode ser interpretada, por um lado, como um reflexo do sentimento que as mulheres assumem diante da penalização dos filhos, uma sensação conflitante e extremamente dolorosa que simultaneamente representa seu sentimento de “fracasso como mãe” e esconde, no fundo, uma mea-culpa pelo fato de os filhos entrarem no “mundo do crime”.7 Por outro lado, a voz de Flávia faz coro às vozes das mães que tiveram seus filhos assassinados pela polícia, e que são retratadas no trabalho de Adriana Vianna e Juliana Farias (2011). Essas autoras relatam como a luta por justiça mobiliza, sobretudo, as mães, sendo:

O acionamento da condição de mãe como elemento de autoridade moral em atos políticos nos fala de trânsitos relevantes em cenários contemporâneos: entre dor pessoal e causas coletivas; entre sofrimentos e direitos; entre formas e dimensões distintas do luto, aqui tomado como processo inextricavelmente individual e social (p. 83).

Da mesma forma que a mobilização por justiça é protagonizada simbolicamente pelas mães, como apontam as autoras, o acompanhamento dos filhos em situação de cárcere também é. Todavia, o protagonismo dessas mulheres, especificamente no acompanhamento do filho encarcerado, é marcado por um processo de responsabilização das mães (ou principalmente delas), posto que o estigma do filho, enquanto “criminoso”, não permite que o senso comum reconheça mãe e filho como vítimas da violência do Estado e sim como culpados, portanto, no imaginário social, ou seja, se o filho não trilhou um caminho socialmente aceito, é necessário encontrar um responsável, e essa culpa tende a recair de forma equivocada sobre as mães.

No senso comum, a sociedade interpreta o ato de infração do filho como uma falha da mãe e gera automaticamente um processo de responsabilização dela, a culpa pelos atos do filho, e gera um sentimento de obrigatoriedade em acompanhar o filho durante todo o tempo de sua privação da liberdade. Assim, a maternidade dessas mulheres enquanto instituição é marcada, também, pelo sentimento de culpa que será exposto no próximo tópico.

A produção cultural da culpa materna

Assim como a maternidade, a culpa não é uma reação biológica regulada por hormônios. As mulheres que não atendem aos padrões do ideal maternal impostos socialmente são julgadas e, consequentemente, penalizadas pela sociedade com rótulos e estigmas e, simultaneamente, afetadas pelo sentimento de culpa. As culpas (no plural, por serem muitas e de diferentes tipos) são produzidas culturalmente e incorporadas ao processo de estabelecimento do modelo de maternidade socialmente desejado.

Diante das considerações anteriores, pode-se perceber como a associação mulher-natureza influencia na construção social da maternidade, organizando um consenso que deposita na mãe a culpa pelo suposto fracasso do filho. Isso se dá porque a culpa materna ocupa um espaço central na articulação dos principais problemas emocionais e sociais das mulheres que são mães, principalmente em razão de a ‘culpa’ ser, na maioria das vezes, relacionada ao abandono e ao medo de fracassar como mãe, de falhar como dona de casa e titubear nos compromissos sociais de “mãe de família”.

Badinter aponta que o final o século XVII é marcado pelo fato de a sociedade exigir das mulheres um modelo de mãe devota, cuidadosa e dedicada, destinada a exercer as atividades maternas conforme o “instinto maternal”. Para isso, foi preciso “apelar ao seu senso do dever, culpá-la e até ameaçá-la para reconduzi-la à sua função nutritícia e maternante, dita natural e espontânea” (BADINTER, 1993 [1985], p. 144). Dessa forma, a autora aponta que a culpa feminina e materna encontra legitimidade, mormente, na justificativa da teologia cristã cuja superioridade é dada ao homem, associando a mulher à ideia de fraqueza e invalidez, remetendo-a, quase que automaticamente, à ideia de imperfeição e deformidade.

A construção da culpa em torno da mãe projeta nessas mulheres a condição de incapazes de resolver e encarar seus próprios problemas e é perceptível pela forma como os outros a enxergam, demandando um processo de autoafirmação no qual identificamos que “se a mulher não se diferencia claramente do resto do mundo ela sente uma sensação de culpa e responsabilização por situações que não se originam de suas ações e não têm relação com sua real habilidade em determinar os eventos” (Nancy CHODOROW, 1979, p. 81).

Trata-se de um tipo de culpa que assola as mulheres ocidentais, refletindo na preocupação constante de como os outros vão pensar e falar sobre elas, principalmente ao passarem do status de solteiras para casadas e, posteriormente, para mães.

A culpa que cerca a vida das mães, quer seja por ela não se dedicar suficientemente aos filhos, quer seja pelos filhos não corresponderem às expectativas sociais de aprendizado ou comportamento, origina-se na obrigatoriedade das mulheres em incorporarem a imagem da mãe cuidadora. É uma representação típica de como nossa sociedade atribui à mulher a responsabilização social pela criação dos filhos, desconsiderando, inclusive, suas possíveis dificuldades ou sua classe social, agregando responsabilização, apenas, a uma categoria de gênero, contribuindo, consequentemente, para a baixa autoestima das mulheres, cujas obrigações para com os filhos demandam atribuições de maior dedicação, trabalho e exigência que as atribuições paternas.

Se uma mãe abandona um filho, ela é repudiada socialmente; isso praticamente não ocorre quando o homem abandona seus filhos, mesmo sendo numericamente superior o número de homens que abandonam seus lares e filhos, em contraste com uma minoria de mulheres que ousam abandonar seus lares e logo se tornam alvo de julgamentos morais, atribuindo-se, inclusive, aspectos negativos ao seu caráter pessoal.

Nesse contexto, nem a culpa nem a responsabilização pelo cuidado são colocadas como responsabilidade do pai, sendo, muitas vezes, a “ausência paterna” ou a “ausência de autoridade masculina” apresentadas como justificativa para o envolvimento desses jovens no “mundo do crime”, atribuindo novamente às mães, principalmente as solteiras, a culpa por não oferecerem, por meio de uma relação conjugal, essa referência aos filhos.

A culpa não acompanha a mulher apenas em situações de abandono dos filhos: ela é culpada por todas as ações negativas dos filhos, ou mesmo se eles não obtêm o sucesso esperado pela família ou pela sociedade. Enquanto, nas situações em que o filho alcança o sucesso, isso é visto como um feito do pai ou dele próprio. Isso implica uma situação muito grave: com frequência, por conta desses problemas, muitas mulheres permanecem em um casamento indesejado, até mesmo sob condições de violência, por temerem a reação das pessoas caso rompam com a imagem de boa esposa, mãe e núcleo da família ou, até mesmo, por acreditarem ser incapazes de ter condições econômicas e sociais para cuidar de seus filhos sozinhas.

Discursos como “faltou um homem para educar esse menino”, “faltou uma referência masculina” ou “precisou de alguém para dar umas duras nele” são utilizados para falar de uma situação indesejada relacionada a uma mãe solteira e seu filho, reforçando que, mesmo sendo a maternidade uma característica colocada como “natural” da mulher, ela não é preparada para exercê-la sozinha, sendo sempre dependente de um homem para obter o sucesso pleno. Quando a mãe solteira “fracassa” ao criar um filho, atribui-se à “ausência paterna” o motivo do prejuízo em seu desenvolvimento, como se a presença do homem constituísse uma peça essencial para o alcance do sucesso dos filhos.

As mães retratadas nesta pesquisa são um bom exemplo disso. Uma vez atribuído o estigma de “desviante” ao filho, atribui-se, também, o estigma de fracassada à mãe. A maternidade dessas mulheres passa a ser vivenciada e experienciada por ciclos de decepções com os filhos e consigo mesmas. Percebe-se que essa “responsabilização” da figura materna cresce conforme a postura negativa adotada pelo filho. Quando existem erros ou fracasso por parte do filho, a culpa quase sempre tende a recair sobre a mãe, afinal, no imaginário de muitas pessoas, “se o filho não presta, a culpa é da mãe que não soube criar”. Esta frase é recorrente nos discursos que encontramos durante a realização da pesquisa de campo e demonstra o quanto a maternidade se apresenta como uma coerção para a mãe.

Os discursos que apresentam a mãe como “incapaz”, “sem pulso” ou alguém que “precisa de um homem” revelam o quanto ela é inserida no contexto social no qual sua autoridade é colocada em um plano secundário e dependente - precisando de um homem, precisamente de um pai para legitimar sua maternidade, visto que as tarefas de disciplinar e impor respeito são caracterizadas como atributos masculinos, ao passo que mães são vistas como inábeis diante das ações de impor uma moralidade aos filhos, por meio de coerção física, psicológica e, até mesmo, simbólica.

A responsabilização social que acompanha a mãe durante a infância, a adolescência e a vida adulta do filho é ainda mais enfatizada quando o filho é submetido a uma situação peculiar, como o caso da privação de liberdade. Consequentemente, quanto maior for o fracasso do filho, maior será o rótulo negativo da mãe. As pessoas tendem a enxergar os laços de afetividade entre mãe e filho como uma manifestação natural, porém estes laços só existem como manifestações sociais e culturais.

A ligação de mãe e filho é estabelecida pelo frequente contato entre ambos, que reconhecem e visualizam um no outro referências únicas de benevolência, respeito, companheirismo e carinho, e não por efeitos naturais previamente determinados. Diante desse entendimento, Simone de Beauvoir (1967, p. 291) define que não existe a figura da mãe “desnaturada”, posto que o amor materno nada tem de natural, mas que, precisamente por causa disso, não há mães más e, sim, mães que divergem do perfil de maternidade estabelecido socialmente e construído culturalmente.

A maternidade, no modelo do amor materno colocado por Badinter, passa a ser cada vez mais percebida pela sociedade como o destino fisiológico e a vocação “natural” das mulheres (BEAUVOIR, 1967), sendo os sentimentos de culpa e responsabilidade componentes essenciais da feminilidade, que são associados, por sua vez, à imagem consagrada de mãe enquanto divindade devota aos filhos e, acima de tudo, à família.

É importante reafirmar que a maternidade é uma representação social extremamente complexa, que carrega em si mesma múltiplos significados, cujos aspectos se diversificam de acordo com as noções de tempo, espaço e sociedade. Talvez, por isso, mereçam tantos outros olhares, inclusive daqueles que pensam a maternidade como função de natureza feminina e fazem dela (maternidade) o principal motivo de as mulheres não alcançarem a liberdade plena. Devemos buscar olhares que rompam com essa visão dicotômica e reconhecer as diversas formas de experiências vividas por meio da maternidade.

As experiências circunscritas sob discursos moralistas que condenam os atos “criminosos” do filho responsabilizam a mãe por seu suposto “fracasso” na missão de educar os filhos e conduzir a família, bem como geram ou reforçam o sentimento de culpa sobre as mulheres. Além disso, precisamos considerar, também, que a própria identidade de “mãe ideal” é questionada e, em contrapartida, não se apresenta o “filho ideal” (e tampouco o “pai ideal”). Nesse sentido, quanto mais próximas do ideal de mãe, mais essas mães supostamente “equilibram” a equação, buscando uma espécie de “compensação”, já que não há uma simetria mãe ideal = filho ideal. Essa busca constante por corresponder a esse estereótipo cumpre um importante papel, o de “sacralizar” sua identidade materna ideal a despeito do comportamento de seus filhos, socialmente condenados.

E se o filho é estigmatizado por suas condutas conflitantes com o que é estabelecido por lei em nossa sociedade, a mãe também é estigmatizada. Quando se fala em mãe de bandido,8 a ideia subjacente é atribuir a ela o fracasso por não saber cuidar do filho. Assim, a mãe sofre duplamente, pela culpa que sente e pela culpa que lhe é atribuída, portanto, a responsabilização materna não gera apenas o “fardo” da culpa; há outro fardo tão pesado e angustiante quanto este, é o fardo do “cuidado”. E é sobre o cuidado - terceiro elemento dessa tríade que estrutura a maternidade das mães guerreiras - a explanação do tópico subsequente.

Relações de cuidado entre mãe e filho

A pergunta “por que o cuidado é uma responsabilidade exclusiva das mães?” sempre foi algo que, como se diz na expressão popular, “martelava” em nossas cabeças. Essa inquietação surge também da interpretação da expressão popular, que dizia “quem pariu Matheus que balance” e representa a ideia que só à mulher cabe cuidar do filho, eximindo a responsabilização paterna. Essas expressões são observadas em nossos próprios ambientes familiares. Com algumas exceções, notamos que na maioria das famílias o pai não participa dos cuidados cotidianos, como banhar as crianças, fazer comida, limpar, levar ao médico, ir às reuniões escolares etc., ficando sempre a cargo da mãe a tarefa de cuidar dos filhos e às filhas o cargo de ajudar as mães com as tarefas domésticas, mesmo quando essa mãe trabalha e estuda - um dos reflexos das diversas jornadas de trabalho que ocorrem com as mulheres na contemporaneidade.

Assim como a maioria das mães, a responsabilização feminina pelos cuidados dos filhos é um ponto comum às participantes da pesquisa, e que, inclusive, foi um ponto de identificação e sensibilização com as mulheres participantes da pesquisa e que a pesquisadora coletou dos dados da pesquisa, não apenas pelo fato de identificar que são elas a maioria das visitantes que acompanham os filhos encarcerados, evidenciando essa responsabilização da mãe pelo cuidado, mas também porque a categoria cuidado permeou os diálogos e trocas em campo. Em diversos momentos, o cuidado estava presente nos conselhos que a pesquisadora recebeu sobre como “cuidar do seu filho” em campo.

Ademais, o fato de a pesquisadora ser mãe, e, consequentemente, vivenciar essa responsabilização de cuidar dos filhos, tornou-a mais próxima das participantes, como podemos observar na fala de Joana, ao reclamar de uma agente penitenciária que, em determinado momento, foi ríspida com ela e disse: no dia que ela ser mãe, ela vai ver, você sabe né Xxx,9você é mãe.

O fato de ser mãe e, principalmente, de “cuidar”, classificou a pesquisadora para aquelas mulheres na categoria de compreensão; para elas, por ser mãe, estaria a pesquisadora mais sensibilizada para compreendê-las, enquanto outras mulheres, ainda sem essa experiência, não. Por exemplo, a agente penitenciária encontrar-se-ia na categoria da incompreensão, pois, no entendimento daquelas mães, para as mulheres que nunca vivenciaram a maternidade, seria mais fácil culpá-las e julgá-las, afinal, não sabiam das dificuldades de criar/cuidar de um filho, particularmente em condições financeiras, sociais e familiares tão complexas. Aqui, expomos um ponto de vista apresentado pelas participantes de pesquisa, o que não significa afirmar que pesquisadoras mães possuem mais legitimidade para fazer pesquisa sobre maternidade, principalmente quando usufruímos de um amplo rol de debates sobre alteridade na pesquisa etnográfica.

A maternidade articulada ao cuidado se torna uma categoria de compreensão, segundo a qual uma mãe passa a ser considerada por outras mães capaz de entender e se sensibilizar com a experiência da outra, como é possível identificar nas falas das participantes ao afirmarem a avó é a maior conselheira da mãe ou só quem é mãe é que sabe como é. Essas falas apontam a experiência da maternidade como uma forma de conhecimento obtida por meio de uma realidade vivenciada, desmitificando a ideia de maternidade enquanto algo essencialista.

É relevante pontuar que o “cuidado” ou “care” localiza-se em um campo teórico de debates acadêmicos que surgiu há aproximadamente trinta anos e vem crescendo na América Latina em geral e na América Central em específico (Nadya GUIMARÃES et al., 2011). Considerando as dimensões teóricas, as diversas abordagens e os limites da nossa proposta, não cabe tratar de todas elas. As relações em torno do cuidado, assim como “as categorias analíticas de cuidado - care é um assunto relacionado às mulheres, e temas recorrentes em pesquisas acadêmicas” (Bila SORJ, 2012), sobretudo nos campos da Saúde, da Educação, da Sociologia, da Antropologia, entre outras áreas.

A este respeito, trataremos especificamente do cuidado materno quando os filhos estão adultos, o que se diferencia bastante do cuidado materno na gestação e do cuidado materno na infância. E, embora, em ambas as fases, o cuidado se torne uma responsabilidade atribuída exclusivamente às mães, as emoções provocadas por esta responsabilização são vivenciadas de modos diferentes por essas mulheres. Os marcadores sociais de idade, parentesco, cor, classe, profissão, escolaridade e estado civil são fatores que, além de influenciarem tanto a concepção quanto a forma de cuidar dos filhos, tencionam e impactam a experiência dessas mães.

Se observamos o trabalho de Andreia Lobo (2010) sobre maternidade em Cabo Verde, no qual mãe e avó compartilham o cuidado com as crianças, sendo que mãe, nesse contexto, “é um ciclo que começa com o nascimento de um filho e só se encerra plenamente quando a mulher se torna avó” (LOBO, 2010, p. 01), os fatores mencionados acima surgem, nesse caso particular, e podem ser encontrados em uma situação completamente diferente, como é o caso da nossa pesquisa.

São várias as formas como o “cuidado” aparece e é articulado nas relações entre mãe e filho. Podemos enumerar algumas delas: i) o cuidado em agradar o filho, como é o caso das caseiras;10 ii) o cuidado em se fazer presente para que o filho não pense que foi abandonado; iii) o cuidado em mediar as relações afetivas do filho, como é o caso da mãe que corteja a esposa para o filho e acompanha a situação dos amigos dele; e, principalmente, iv) o cuidado como sua responsabilização de mãe, como podemos notar nos seguintes relatos.

[...] eu sou mãe, mãe jamais vai abandonar um filho, eu nunca vou abandoná-lo, não importa o que ele fez, ele é meu filho, é minha obrigação como mãe (Rosário).

Meu filho é parte de mim, todos meus filhos, eu amo, amo os que eu não criei igual eu amo Pedro, cuido e cuidarei dele onde ele estiver, igual, eu ainda cuido do meu filho que está embaixo da terra (Helena, referindo-se ao filho que estava preso e ao filho que morreu).

Esses relatos mostram como a responsabilização pelo cuidado é colocada por elas como uma obrigação, um encargo que “faz parte delas”, cabendo-lhes exercerem a ação de cuidar independentemente do que seus filhos fizeram, o que mostra o quanto a noção de cuidado materno acoplado à ideia de natureza, identificada no discurso do “instinto materno” (BADINTER, 1993 [1985]), permeia as relações entre mãe e filho. A fala de Helena, acima, demonstra outro tipo de cuidado, que é o cuidado com a memória do filho, cuidado este que é evidenciado por movimentos sociais como as “Mães de Maio”,11 que reivindicam uma explicação sobre o que aconteceu com seus filhos e que clamam por justiça, sobretudo diante do extermínio da juventude negra.

O relato de Helena, assim como o relato de Joana, quando diz que, de certa forma, está preparada para a morte do filho, revela o quanto o cuidado dessas mulheres em relação aos filhos é um cuidado que não cessa. Essa responsabilização alicerçada no cuidado que é colocado como algo inato à natureza feminina, como critica Badinter (1993 [1985]) e como mencionando anteriormente, impulsiona um sentimento extremamente devastador para as mulheres: a culpa. As mães participantes da pesquisa não apenas se sentem culpadas pela condição dos filhos, como, perante a sociedade, sentem-se fracassadas na tarefa de cuidar dos filhos quando eles passam a serem reconhecidos socialmente como “bandidos”.

Ademais, no imaginário social, a essas mulheres não cabe apenas isso que pontuamos, é necessário que elas mantenham uma família e um companheiro para que sua legitimidade materna seja efetivamente reconhecida; caso contrário, não teríamos a tendência de negar às mães solteiras o reconhecimento de terem criado filhos sozinhas, atribuindo a elas a nomenclatura de “famílias desestruturadas” (Cláudia FONSECA, 2005). Por trás das palavras “estruturada” e “desestruturada”, existe uma categorização na qual, nos termos de Pierre Bourdieu (1989; 1999), aquela que detém o maior capital econômico, social e cultural está apta para ser classificada como estruturada e na medida em que as famílias oriundas das classes mais populares, por questões culturais, sociais e econômicas, não se enquadram na ideia do que se tem como estruturadas, sendo vistas como “desestruturada”, termo utilizado deliberadamente para “descrever a família dos outros. Não simplesmente outros (...), mas também pobres. É como se, numa espécie de lógica post ipso facto, pessoa bem-sucedida, por definição não poderia vir de uma família desestruturada” (FONSECA, 2005, p. 56, grifos originais).

Os termos “estruturadas” e “desestruturada” são utilizados na configuração dos discursos utilizados para classificar as condições da mãe solteira como insuficientes para criar um filho, principalmente, pela ausência de uma “referência masculina”. Isso se dá porque uma mãe solteira não é colocada no mesmo patamar que outra casada, embora tenha que cumprir igualmente as mesmas obrigações maternas, ainda que em condições desiguais ou em situação de não condições.

Quando falamos de ‘não condições’, estamos abordando o fato de que muitas pessoas, inclusive mulheres, têm seus direitos básicos negados ou restritos. A exemplo, citamos o caso de uma das mães entrevistadas, Dona Margarida, que, diante da falta de estrutura na zona rural, só teve conhecimento dos problemas psicológicos de Júnior (seu filho) depois que este já tinha cometido um assassinato, quando ele, dentro da Unidade Socioeducativa, foi diagnosticado como portador de esquizofrenia. Dona Margarida argumenta que percebia o comportamento instável do filho, mas que nunca pensou que fosse uma doença, e relata que, se soubesse, jamais deixaria Júnior ir sozinho para Porto Velho. Mesmo com esse diagnóstico, Júnior cumpriu medida socioeducativa durante dois anos, a pedido da própria mãe, uma vez que, além das ameaças dos familiares da vítima, a cidade não dispõe de lugar para receber jovens na situação dele.

O fato de Dona Margarida relatar sua gratidão por Júnior realizar cinco refeições diárias dentro da Unidade Socioeducativa e, depois, no Presídio, ainda que em péssimas condições e qualidade, destaca que, muitas vezes, mães e filhos passam por situações de vulnerabilidade extrema quanto às circunstâncias precárias dos presídios brasileiros. Muitas vezes, a situação de privação de liberdade do filho pode ser encarada como “vantagem” ou “benefício”, mesmo longe do mínimo necessário para garantir a dignidade para uma pessoa. A Margarida e Júnior foram negados direitos básicos, entre eles o direito à saúde e o cumprimento da pena em local adequado, por possuir o diagnóstico de esquizofrenia. Essa situação revela como as várias formas de instabilidade e fragilidade que cercam a vida dessas mulheres influenciam no exercício de suas maternidades, tendo como pivô a ausência de direitos básicos e a evidente limitação financeira.

As mães participantes da pesquisa estabelecem uma relação controversa com sua maternidade: de um lado, defendem que a maternidade é o processo mais significativo de suas vidas e descrevem o nascimento do filho como um momento maravilhoso, ainda que tenham que enfrentar problemas financeiros e amorosos (como relatou a maioria, principalmente Rosário). Do outro lado, a maternidade é fonte de angústias, refletindo problemas com os quais os filhos estão envolvidos, como é possível perceber no argumento de Dora: filho só é bom quando é pequeno, esse aí sempre me deu dor de cabeça ou é difícil, só mãe para aguentar.

Essa relação controversa é explicada por Érica Souza (2005) como decorrente do fato de a maternidade tornar-se o motor das relações, dos prazeres e dos conflitos entre filhos, famílias e mães. A dualidade citada pode ser demonstrada diante das inúmeras situações nas quais essas mulheres tiveram que passar desde que os filhos se envolveram com a “criminalidade”. Para elas, ainda é contraditório apoiar os filhos que cometeram um ato considerado “criminoso”, face ao peso social que este ato, via de regra, possui. Afinal, “crimes” são vistos socialmente como impuros, repugnantes e inaceitáveis, principalmente quando praticados por jovens pobres. Sem mencionar que esses jovens, na maioria das vezes, passaram mais de uma vez por unidades socioeducativas, quando ainda eram adolescentes.

Deve-se considerar que o episódio de ter os filhos presos (inclusive desde adolescentes) acarreta a preocupação constante das mães com a vida destes filhos (dentro e/ou fora da unidade prisional), produzindo vários transtornos durante o acompanhamento destes, como me relatou Joana:

[...] Sabe, é engraçado, desde pequenos, tive que me virar para cuidar dele e do irmão, só via ele de noite e domingo. Hoje ele está preso e só vejo uma vez por semana e o outro de noite. Se eu faltar à visita ele me cobra, tem que ter dinheiro para comprar as coisas, para ajudar ninguém aparece, para me pôr culpa é um monte de gente. Hoje penso, se pudesse voltar ao tempo, não tinha tido filhos, não digo que não amo meus filhos, eu amo porque sou a mãe deles. Mas a realidade seja dita, filho só é bom quando estão no colo, quando crescem é só dor de cabeça.

O discurso de Joana apresenta as dificuldades da maternidade, especialmente, quando exercida em condições sociais que necessitam de apoio de uma rede familiar,12 já que as condições financeiras não são favoráveis e o pai é ausente. Apesar de Joana externar que, se pudesse voltar atrás, não teria filhos, ela aciona o mito do amor materno para dizer que sua vontade não interfere no seu amor de mãe. A fala de Joana reflete nas contribuições teóricas da Valeska Zanello (2016) sobre as mulheres que não se enquadram na perspectiva do mito do amor materno, uma vez que existem “mulheres que não querem ter filhos ou aquelas que sentem desprazer na maternidade” (ZANELLO, 2016, p. 119). A fala de Joana evidencia, principalmente, como a responsabilização de cuidar sozinha dos filhos (muitas mulheres casadas cuidam sozinhas dos filhos também) é um fardo extremamente pesado para mulheres.

Até agora discorremos sobre as situações de violência simbólica e psicológica que marcam a identidade materna dessas mulheres ao cuidarem ou “fracassarem” em sua suposta função de cuidadoras. Não obstante, existe uma outra forma de violência que é uma das mais cruéis e que necessita de um artigo específico para abordamos sua complexidade. Trata-se da violência nas revistas íntimas e de alimentos. São unânimes os relatos entre as participantes da pesquisa que classificam a revista íntima como vexatória, constrangedora, humilhante e invasiva e o quanto se sentem violadas por passarem por ela. Como descrito no depoimento a seguir:

[...] assim, você espera um tempão lá fora, são muitas mulheres que vão entrar, quem chega primeiro entra primeiro. Eles olham a comida e as coisas que vão entrar, depois voltamos pra fila e aguardamos a agente chamar pra fazer a revista íntima, quando ela chama vamos para um banheiro, sempre entra de 3, 5 até 10 mulheres de uma vez, tiramos toda a roupa. Aí a agente pede para a gente se agachar três vezes de frente e três vezes de costas sobre um espelho que fica no chão, depois ela revista o cabelo e pede pra gente abrir a boca [...] é humilhante, você sai dali se sentindo um lixo, mas fazer o quê? Tem que passar por isso pra ver meu filho (Helena).

A violência na revista íntima é uma das diversas situações deploráveis pelas quais as mães e esposas são obrigadas a se submeterem para visitar o filho ou esposo, uma violência mascarada por meio de um discurso de segurança pública do Estado que tenta “minimizar” ou “suavizar” as dimensões violentas do procedimento, negando direitos básicos a essas mulheres, que são afetadas física, emocional e psicologicamente por esses protocolos de segurança.

A revista íntima vexatória é uma violência de gênero - direcionada para mulheres. Os poucos homens que frequentam presídios em condição de visitante não recebem o mesmo tratamento que as mulheres, esse tipo de violência cabe apenas às mulheres se submeterem, como podemos identificar no depoimento do esposo de Margarida: Não vou mesmo! Aquele negócio de ficar arreganhando o cu na frente de outros machos não é coisa de homem de verdade. Duvido que um homem de vergonha vai deixar passar por uma coisa daquela. A mulher vai, ela acha é ruim, mas, pra mulher, é mais fácil, já tá acostumada (Luís, esposo de Margarida Dora).

Não podemos deixar de mencionar violências recorrentes nos dias de visita. Para além da revista íntima, a “recepção” ou “atendimento” são marcados por trocas de hostilidades dos operadores do Estado com as visitantes que vão desde a morosidade na revista de alimento (jumbo e caseiras)13 ao rosto fechado e o tom de voz grosseiro dos agentes nas tratativas com as mães e esposas. Para ilustrar melhor, destacamos os trechos dos seguintes depoimentos:

[...] Assim, tem agente e agente, tem agentes que são ótimos, são bem-educados e te tratam com dignidade, mas, tinha umas que já olhavam com cara feia, ficavam soltando piadinhas. Um dia eu e minha nora fomos visitar o Fernando e ouvimos uma agente dizer assim, gente assim tem que morrer mesmo, ela estava se referindo ao meu filho, aquilo doeu tanto sabe (Rosário).

[...] Então, a comida, a gente leva a comida toda feitinha, com todo carinho, aí chega lá e misturam tudo, pega a comida mistura com arroz e feijão, e fica aquela gororoba, eu acho ruim, misturavam demais, eu acho que tem que ter a revista, mas pra que misturar tudo? É, tem também algumas coisas de alimentação que não tem nada a ver, que podia levar, que deveria ser livre, entendeu? Não falo assim coisas perigosas, como um garfo, por exemplo, que ele pode usar como arma, mas digo assim: alimento, tipo a lasanha, não entra a lasanha, o que é que tem a ver um queijo? Não tem nada a ver a pessoa comer um queijo, eles não vão servir todo dia, né? Não pode levar lasanha, não pode levar um daqueles iogurtes, o que é que tem um iogurte, a pessoa não pode tomar um iogurte? Eu acho que não tem nada a ver, não vejo nada de errado (Flávia).

Há uma violência simbólica praticada durante a revista do jumbo e da caseira, considerando que, por trás da caseira, há uma relação de afeição entre mãe e filho, e a forma como essa comida é revistada provoca um sentimento de revolta muito grande nas mães, que relataram que, em certas ocasiões, foi proibida a entrada das vasilhas e a comida era colocada dentro de um saco; em outros momentos, as agentes quebravam tanto os biscoitos e bolos que eles chegavam aos filhos em forma de farelos - parecia que eles estavam revistando comida pra cachorro, diz Rosário.

A maneira atroz como as agentes fazem as revistas dos jumbos e das caseiras é uma forma de violência simbólica que se apoia na legitimação da coerção da instituição penitenciária, que, ao usar o discurso de manter a segurança, executa uma ação mais ampla: estende aos familiares do sujeito encarcerado, em especial a mulher e a mãe, que são as supostas culpadas pelas condições do filho, uma relação de violência e controle, afinal, elas são vistas como “acostumadas” a passarem por procedimentos constrangedores que visam à segurança da instituição.

As violências citadas em uma perspectiva macro remetem para uma constatação óbvia: esforço que se investe para responsabilizar a mãe pelo filho não é colocado a favor de auxiliá-la na árdua tarefa de cuidar dele. A pesquisa confirma o que a literatura já apontava: socialmente, a mãe é sempre culpada de algo. Por se tratar de um universo pouco estudado, a pesquisa buscou contribuir para retirar essas mães de um lugar de invisibilidade social e descortinar as violências vivenciadas por elas.

Mas, no caso desta pesquisa, um paradoxo ingrato marca a maternidade dessas mulheres: se a mãe fica do lado do filho, visitando-o e o acompanhando, essa atitude é vista como se ela estivesse incentivando-o a continuar sendo um “criminoso”; e, se ela deixa de visitar, é acusada de não ser uma “boa mãe” e seria provavelmente/supostamente por isso que o filho teria entrado no “mundo do crime”. Tal constatação revela que, no imaginário social, a forma adotada pela mãe de “cuidar” do filho não a desonera de ser responsabilizada ou evitará o sentimento de culpa, semelhantemente à realidade de qualquer mulher que é mãe em uma sociedade patriarcal, machista e patrimonialista e alimenta um ciclo de violência de violências.

Considerações sobre ser mãe guerreira

A escolha de usar a categoria nativa mães guerreiras no título deste trabalho, além de comunicar que essa palavra é utilizada pelos filhos e pelas próprias mães para identificar as mulheres que passam por essa situação, que é acompanhar um filho preso, deu-se, também, por ser a expressão que melhor representa nosso olhar sobre elas. Consideramos essas mulheres guerreiras,14 por serem aquelas que se empenham intensamente para acompanhar os filhos, que resistem a diversas formas física e simbólicas de violências, que batalham pelo sustento de suas famílias, mulheres que, nas palavras dos jovens entrevistados, estão na batalha do cotidiano com a gente e nunca nos abandonam.

Essas maternidades são evidenciadas em diversas trajetórias que revelam mulheres que transpuseram a ligação entre mãe e filho, muitas vezes vista como ligação entre mãe e criança. Mulheres que, mesmo com os filhos casados, ainda se sentiam responsáveis por eles, que associam sua responsabilidade com o fato de se sentirem culpadas pelos atos dos filhos, e outras que separavam radicalmente a responsabilidade da culpa. Mulheres que denunciam que, para vivenciar sua maternidade, são constantemente violadas, que dependem de redes de apoio e reciprocidade para garantir a manutenção dos cuidados com os filhos. Mulheres que são invisibilizadas pela sociedade, como a maioria nas fileiras de visitantes de presídios, e que são obrigadas pelo Estado a se submeterem à violência de gênero presente nas revistas vexatórias.

Mulheres que, na maioria das vezes, vivenciaram sua maternidade em condições precárias de acesso a saúde, renda, educação etc. Enfim, mulheres para as quais o Estado limita ou nega direitos básicos, como a dignidade. E que, como seus filhos declaram, são guerreiras. Embora consideremos que toda mãe que se empenha diariamente na luta para criar seu filho é merecedora desse adjetivo, compremos que a categoria nativa guerreira carrega um simbolismo próprio do contexto estudado.

A essas mulheres, tal reconhecimento é atribuído apenas pelos filhos encarcerados e por pessoas envolvidas na mesma situação, outras mães, noras, amigos dos filhos etc. Em vista disso, a categoria guerreira, conferida às mães pelos filhos, é uma das expressões desse reconhecimento, juntamente com a expressão “amor, só de mãe” e tantas outras que são disseminadas no contexto de privação de liberdade, que visam reafirmar o quanto há de gratidão pelas mães. Estas, além de serem algumas das únicas pessoas que não os abandonam, vivenciam, ainda que de forma diferente, o processo de estigmatização decorrente do envolvimento dos filhos com a “criminalidade”.

Reconhecer essas mulheres como guerreiras é uma forma de evidenciar sua “agência”, sua capacidade de ação e (re)construção de sua maternidade e de seu lugar social, considerando que enxergá-las somente como mulheres que estão ou se sentem “aprisionadas” às expectativas sociais de maternidade seria uma forma arbitrária de pensá-las como “não sujeitas”.

Nesse sentido, seria arbitrário falar do contexto no qual a pesquisa foi desenvolvida e não problematizar nossa noção em torno do “crime” e dos sujeitos que são considerados “criminosos”, visto que os filhos dessas mulheres passam por certa seletividade, marcada pelas diferenças, que, por sua vez, também marcam as violências vivenciadas por suas mães.

A vida dessas mães guerreiras, assim como a vida das mulheres que se tornam mães em geral, é influenciada por todos os sentimentos associados à maternidade: responsabilidade, culpa, desvelo etc. Mas as proporções que esses sentimentos tomam na vida dessas mulheres que acompanham filhos encarcerados são extremamente singulares e marcadas de forma significativa por desigualdades sociais, de gênero e de raça.

É importante observar que a própria noção “tradicional” de família (burguesa) nuclear nega as especificidades das maternidades e tenta homogeneizar a pluralidade de dinâmicas familiares possíveis. E adotar perspectivas diferentes dessa noção é entender as particularidades das pessoas envolvidas na pesquisa e do próprio campo, dando ainda mais sentido ao exemplo que Clifford Geertz (2008) usa sobre a importância de diferenciar as piscadelas dos tiques nervosos. Nesse sentido, neste artigo, pretendemos contribuir para um debate sobre questões de gênero e humanização das mulheres visitantes de sujeitos encarcerados, sobretudo no que se refere às mães

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1 O título e demais informações sobre a dissertação foram omitidos em respeito à política de publicação da revista, que utiliza a avaliação de método duplo-cego, que exige a omissão de qualquer informação que identifique as autoras.

2Na Antropologia, a categoria nativa é identificada enquanto uma expressão êmica do grupo estudado, ou seja, é uma categoria que assume um significado próprio do contexto pesquisado. A expressão “mães guerreiras”, portanto, refere-se a uma categoria apresentada, acionada e interpretada pelas interlocutoras da pesquisa.

3Todos os nomes usados neste trabalho são fictícios, os quais foram acordados entre nós e as participantes, visando preservar suas identidades.

4É necessário mencionar que Badinter deixa explicitado, no prefácio do seu livro Um amor conquistado, que jamais afirmou que o amor materno é uma invenção do século XVIII, mas que é nesse período que começam a surgir indícios da mudança da concepção da sociedade quanto à maternidade.

5Nome suprimido em respeito à política de publicação da revista, que utiliza a avaliação “duplo-cega”, sendo necessária a omissão de qualquer informação que identifique as autoras.

6Nome suprimido em respeito à política de publicação da revista, que utiliza a avaliação “duplo-cega”, sendo necessária a omissão de qualquer informação que identifique as autoras.

7Utilizaremos sempre “crime”, “criminalidade” e “mundo do crime” entre aspas porque são termos jurídicos (e também do senso comum) que reduzem, classificam e estereotipam um conjunto de ações como condenáveis pela sociedade, não problematizam a discussão dos comportamentos na sua relação com a cultura e com a sociedade, como propõem muitos estudos antropológicos e sociológicos. Como este não é o foco do artigo, não desenvolveremos essa problematização, mas marcaremos, entre aspas, a insuficiência dos termos “crime” e “criminalidade” para nossa análise.

8Embora tenha uma efervescência de pesquisas sobre mulheres mães em privação de liberdade, estabelecer uma ponte entre a pesquisa aqui apresentada e essas pesquisas é algo extremamente complexo. Mesmo que ambas as experiências estejam localizadas em instituições prisionais, isso não significa que as temáticas tenham proximidade, uma vez que acompanhar um filho em situação de cárcere e ser uma mãe encarcerada são realidades extremamente distintas e mobilizam diferentes maneiras de vivenciar a maternidade.

9Nome suprimido em respeito à política de publicação da revista, que utiliza a avaliação “duplo-cega”, sendo necessária a omissão de qualquer informação que identifique as autoras ou autores.

10A caseira é a comida preparada pela mãe para levar ao filho na prisão. Ela representa um elemento fundado nas relações de reciprocidade entre eles, sendo a sua circulação mantida por meio da obrigatoriedade de a mãe preparar e da obrigatoriedade de o filho receber, bem como de retribuir com elogios, gestos de carinhos, origamis e outros tipos de agrados produzidos por eles dentro da prisão.

11Movimento social formado por mães e familiares de vítimas da violência policial no estado de São Paulo. Para mais informações, deve-se acessar o seguinte endereço eletrônico: http://maesdemaio.blogspot.com.br/.

12Quando se é uma mãe solo e de classe popular, o apoio de uma rede familiar significa contar com ajuda de outros familiares ou vizinhas na tarefa de cuidar dos filhos. Na maioria das vezes, essas mães dependem do apoio dessa rede para terem condições mínimas para trabalhar e garantir o sustento delas e dos filhos. O funcionamento dessa rede é distinto da noção de terceirização do cuidado dos filhos.

13Jumbo é o termo dado aos fardos com produtos que as mães e familiares levam para os filhos no dia da visita. Diferente da caseira, que é consumida no dia da visita, o “jumbo” é destinado para o consumo ao longo da semana, enquanto a “caseira” é o nome dando pelas pessoas encarceradas para designar a comida preparada por seus familiares e degustada no dia da visita.

14No universo estudado, não foi observado o uso de expressões como “falsa guerreira”. Foi possível identificar que as mães que não acompanhavam os filhos durante a privação de liberdade não recebiam o adjetivo de guerreira, ou simplesmente eram tratadas nas narrativas como ausentes ou indiferentes.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MESTRE, Simone de Oliveira; SOUZA, Érica Renata. “‘Maternidade guerreira’: responsabilização, cuidado e culpa das mães de jovens encarcerados”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 2, e70109, 2021.

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 19 de Novembro de 2019; Revisado: 10 de Setembro de 2020; Aceito: 28 de Outubro de 2020

erica0407@gmail.com

Simone de Oliveira Mestre é doutoranda em Sociologia pela UFMG, mestre em Antropologia (2016) pela mesma instituição, graduada em Ciências Sociais (bacharelado e licenciatura) pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR (2013). Membro da Associação Brasileira de Antropologia - ABA. Tem experiência na área de Antropologia e Sociologia, atuando principalmente nos seguintes temas: gênero, maternidade, etnografia, cuidado e direitos humanos.

Érica Renata de Souza (erica0407@gmail.com) é Professora Associada do Departamento de Antropologia e Arqueologia (DAA) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP, 2005), com doutorado sanduíche na York University, Toronto, Canadá (2002). Desde 2010, é coordenadora do Grupo de Pesquisa Gênero e Sexualidade (GESEX) junto ao DAA.

Contribuição de autoria: Simone de Oliveira Mestre: Elaboração do manuscrito, responsável pela pesquisa de campo, análise, redação, discussão e resultados. Érica Renata de Souza: Orientou a pesquisa de campo, auxiliou na análise dos dados e na discussão teórica dos resultados, revisou o manuscrito

Conflito de interesses: Não se aplica

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