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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.29 no.2 Florianópolis maio/ago 2021  Epub 01-Maio-2021

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n255739 

Artigos

“Confusão, indecisão e incerteza”: enunciados de bissexualidade na jurisprudência

“Confusion, Indecision and Uncertainty”: Bisexuality Statements in Jurisprudence

“Confusión, indecisión e incertidumbre”: declaraciones de bisexualidad en la jurisprudencia

Lisandra Espíndula Moreira1 
http://orcid.org/0000-0001-9356-3416

Marcela Maria dos Santos2 
http://orcid.org/0000-0003-3241-4948

Míriam Ires Couto Marinho3 
http://orcid.org/0000-0002-4326-6007

Mariana Moreira Silva4 
http://orcid.org/0000-0002-3220-9832

Vitor Henrique Silva Pimenta5 
http://orcid.org/0000-0002-6690-1923

1Universidade Federal de Minas Gerais, Departamento de Psicologia, Belo Horizonte, MG, Brasil. 31270-901.

2Núcleo de Atendimento e Pesquisa em Psicanálise, Setor de Psicanálise Aplicada, Belo Horizonte, MG, Brasil. 30120-070. contato@nappsi.com.br

3Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. 31270-010 - posgradpsi@gmail.com

4Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. 31270-010 - cgradpsi@fafich.ufmg.br

5Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. 31270-901.


Resumo:

A partir do mapeamento e análise de decisões judiciais dos Tribunais de Justiça da região sudeste do Brasil, buscamos compreender, por meio da análise de conteúdo, como a bissexualidade é enunciada em tais documentos, sua construção como sexualidade diferenciada, as formas de violência às quais é associada e os desdobramentos de maior relevância. Problematizamos a bissexualidade, analisando sua invisibilidade como categoria distinta em relação ao campo LGBT, à escassez de documentos relacionados e à dispersão desse debate. Descrevemos e problematizamos, especialmente, os enunciados de uma decisão judicial paradigmática que antagoniza a bissexualidade e a coloca como fator-chave na anulação de união conjugal.

Palavras-chave: Bissexualidade; jurisprudência; anulação de casamento; sexualidade

Abstract:

From the mapping analysis of judicial decisions of the Courts of Justice of the southeastern region of Brazil, this research sought to understand how bisexuality is stated in such documents: its construction as differentiated sexuality, the forms of violence to which it is associated and the unfolding of greater relevance. We problematize the discursive production on bisexuality, analyzing its invisibility as a distinct category in relation to the LGBT field, the scarcity of related documents and the dispersion of this debate. We describe and problematize, especially, the statements of a paradigmatic judicial decision that antagonizes bisexuality and places it as a key factor in the annulment of conjugal union.

Keywords: Bisexuality; Jurisprudence; Annulment of Marriage; Sexuality

Resumen:

A partir del mapeo y análisis de decisiones judiciales de los Tribunales de Justicia de la región sureste de Brasil, esta investigación buscó comprender, a través del análisis de discurso, cómo se enuncia la bisexualidad en dichos documentos, su construcción como sexualidad diferenciada, las formas de violencia a la que está asociada y los desarrollos de mayor relevancia. Problematizamos la bisexualidad, analizando su invisibilidad como categoria diferenciada con relación al ámbito LGBT, la escasez de documentos relacionados y la dispersión de este debate. Describimos y problematizamos, especialmente, los enunciados de una decisión judicial paradigmática que antagoniza la bisexualidad y la sitúa como factor clave en la anulación de la unión conyugal.

Palabras clave: bisexualidad; jurisprudencia; anulación del matrimonio; sexualidad

Este trabalho inscreve-se numa pesquisa mais ampla, cujo objetivo é a análise de registros jurisprudenciais de Tribunais de Justiça brasileiros, colocando em questão os enunciados que constroem noções de gênero e sexualidade no cenário jurídico.1 A pesquisa se fundamenta na importância de reconhecer violências direcionadas para corpos que ocupam diferentes posições de gênero e sexualidade. Neste artigo, abordaremos documentos com questões vinculadas à bissexualidade.

Lidamos com a escassez de informações específicas sobre as violações sofridas em razão da bissexualidade. A produção de informações sobre essas violências e violações está também vinculada à necessidade de reconhecimento e atenção. Nota-se, por exemplo, o aumento de dados relacionados à violência contra mulheres posteriormente à implantação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) (BRASIL, 2006). Em relação às violências motivadas por orientação sexual, direcionadas a pessoas não heterossexuais, as informações e análises são insuficientes para compreensão dos mecanismos a partir dos quais o cerceamento do acesso à justiça acontece, uma vez que os registros ficam dispersos e são relapsos em relação a singularidades pontuais como a identificação da motivação de determinada violência. A dificuldade de acesso às informações relacionadas às manifestações de violências tem embasado argumentações utilizadas em prol da criminalização da homofobia, embora o projeto que tramita em discussão não contemple todos esses pontos2 (Salo de CARVALHO, 2017).

Apesar de identificarmos, inclusive nos documentos jurídicos, que há situações de violência motivadas pela sexualidade, é necessário um esforço para torná-las visíveis, tendo em vista que existe ainda carência na produção desses dados. Alguns movimentos sociais têm realizado trabalhos de produção de dados sobre essas violências. A organização Grupo Gay da Bahia (GGB, 2017) publicou, em relatório anual, o número de mortes provocadas por LGBTfobia no Brasil no ano de 2017. O levantamento consiste na sistematização de mortes veiculadas pela mídia durante o ano. Os dados são preocupantes, por se tratarem unicamente de casos de destaque midiático e pelos requintes de perversidade em muitos. Segundo o relatório, 445 mortes de pessoas LGBT3 foram documentadas no ano de 2017, sendo possível dizer que:

A cada 19 horas um LGBT é barbaramente assassinado ou se suicida vítima da LGBTfobia, o que faz do Brasil o campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais. Segundo agências internacionais de direitos humanos, matam-se muitíssimo mais homossexuais aqui do que nos 13 países do Oriente e África onde há pena de morte contra os LGBT (GGB, 2017, p. 1).

Este cenário de extrema violação de direitos exige o aumento de investigações, debates e ações para a garantia da segurança e do pleno exercício de direitos para todas e todos. As violências direcionadas a cada uma das categorias identificadas na sigla LGBT são de complexa identificação, especialmente violências vividas por bissexuais. Além disso, a relevância dessas temáticas se estende além das situações explícitas de violência, produzindo violações e enunciações que acionam hierarquias e desigualdades para esses sujeitos. Esse quadro de significados é regido por operadores sociais específicos de uma sociedade que se assenta numa cultura com fortes traços de machismo, racismo, sexismo e LGBTfobia.

Os materiais que compõem o corpus desse projeto foram pesquisados nos Tribunais de Justiça da região sudeste, no campo da jurisprudência, conforme explicação posterior, na descrição metodológica. A partir do mapeamento e análise de documentos relacionados a descritores LGBT, delimitamos, para este artigo, documentos vinculados à bissexualidade, buscando compreender como essa categoria é construída e posicionada nesses documentos e as demandas específicas relacionadas a ela. Dentre os documentos, elencamos a análise de uma decisão judicial que apresenta a bissexualidade como fator central da decisão.

Notas sobre bissexualidade

A potência subversiva da multidão de corpos queer que emerge no final do século XX tornou possível o crescimento do debate e o espaço na sociedade para a população LGBT (Paul B. PRECIADO, 2011). É essa potência da multidão queer que extrapola a matriz binária do gênero, fazendo emergir a possibilidade de outras existências, de outros usos dos corpos. Mas tal potência, quando vista de maneira ampla, pode impedir que vejamos as especificidades de cada segmento que a compõe.

Cada letra que constitui a sigla LGBT designa um grupo que não é homogêneo, mas partilha, de certa maneira, combinações identitárias relacionadas a gênero, sexualidade, corporeidades e modos de ser e de viver. Camila Cavalcanti (2007), ao analisar discursos acerca da bissexualidade, aponta para a resistência ao reconhecimento do bissexual como um sujeito político. Colocar em questão a bissexualidade é evidenciar a simplificação do binarismo que divide sujeitos conforme a orientação de seu desejo - de um lado, os que desejam o gênero oposto e, de outro, os que desejam o mesmo gênero. Nesse sentido, romper com a polarização hétero x homo, ou “pluralizar o objeto de desejo vem sendo alvo de constantes discórdias” (CAVALCANTI, 2007, p. 16).

Além da dificuldade de lidar com a multiplicidade dos desejos, a resistência da consolidação da bissexualidade como uma categoria política também está atravessada pela forma como foi associada à transmissão do HIV/AIDS. Esta associação, por sua vez, produziu “preconceito e discriminação frente aos indivíduos que se assumem como bissexuais” (CAVALCANTI, 2010, p. 80). Entretanto, não cabe aqui simplesmente tensionar essa associação, porém problematizar a própria marginalização e criminalização associadas às pessoas vivendo com HIV.

A bissexualidade nas produções acadêmicas se concentra especialmente em estudos do campo da psicanálise, da epidemiologia e nos estudos sobre sexualidade masculina. A revisão bibliográfica realizada em 2017, no Portal Capes, utilizando as palavras-chave ‘bissexualidade’ e ‘bissexual’, resultou em 24 artigos, em que os temas estavam associados à: prática sexual de risco de homens bissexuais (4); estudos epidemiológicos sobre HIV (3); sexualidade em geral (13); sexualidade e saúde de mulheres lésbicas (4).

É necessário pensar o conceito de bissexualidade de maneira ampliada, tendo em vista não só sexualidade, mas a potência dessa identidade política. Em relação à sexualidade, a bissexualidade diz respeito a sujeitos que se relacionam afetivamente e/ou sexualmente com homens e mulheres (Kleber PRADO FILHO, 2012; CAVALCANTI, 2010). Dentro de tais conceituações, destaca-se ainda a definição apresentada pela San Francisco Human Rights Commission LGBT Advisory Committee4 (2011), em que a bissexualidade é compreendida enquanto um potencial - e não uma obrigação - de envolvimento emocional, romântico e/ou sexual com mais de um sexo/gênero (SAN FRANCISCO HUMAN RIGHTS COMMISSION LGBT ADVISORY COMMITTEE, 2011).

A compreensão da bissexualidade coloca em questão as complexas relações entre práticas e identidades. Sam Rankin, James Morton e Matthew Bell (2015, p. 6) fizeram uma pesquisa sobre a experiência bissexual, a partir de um questionário respondido por 720 bissexuais. Em seu relatório apresentam, por exemplo, que muitos destes não se sentem pertencentes à comunidade LGBT. Sem encontrar pertencimento, produz-se uma espécie de “limbo” identitário:

66% dos entrevistados sentem-se “um pouco” ou “nada” pertencentes à comunidade LGBT. Muitos disseram que a bifobia e a invisibilidade bi dentro da comunidade LGBT foram limitadores para uma inclusão completa (RANKIN; MORTON; BELL, 2015, p. 6, tradução nossa5).

Fernando Seffner (2003) aponta algumas problematizações na construção da identidade bissexual. Para o autor, estigmas colocam o sujeito bissexual como vetor de infecções sexualmente transmissíveis (IST). Tanto para o parceiro hétero como para o homo há tendência de atribuir a maior possibilidade de transmissão de IST pelo parceiro bissexual. Como pano de fundo nessa acusação encontramos, além da marca histórica vinculada ao início da epidemia de HIV/AIDS, a temática da traição, sobre a qual prevalecerá um dos enunciados que ligam o sujeito bissexual à infidelidade, ou seja, como alguém incapaz de se adequar à monogamia.

A pesquisa de Seffner (2003) centra-se na construção da masculinidade bissexual, que ganha notoriedade a partir do surgimento da AIDS e sua correlação a uma narrativa discriminatória. Nesse contexto, há uma associação da identidade bissexual com algo ligado à promiscuidade. A representação da bissexualidade como libertinagem torna-se algo difundido ao ponto de cair em corriqueiras circulações midiáticas6. O autor aponta outro importante marcador da bissexualidade: sua associação com a homossexualidade. No caso do homem bissexual, “há um processo de recuperação da masculinidade que ficou arranhada por ter sido possuído por outro homem” (SEFFNER, 2003, p. 57). Percebemos a contradição do sujeito bissexual em ser lido ora como homossexual ora como heterossexual, sendo a bissexualidade propriamente dita ilegítima.

No caso da mulher bissexual, a identidade ganha outros contornos. A objetificação da mulher bissexual no modelo heteronormativo mantém a construção do corpo da mulher apenas como instrumento de fetiche do homem heterossexual. Percebe-se que a bissexualidade é lida a partir das práticas heteronormativas, onde não é possível vê-la como uma identidade distinta ou autônoma dessas práticas.

Mesmo quando a intenção é desmitificar a bissexualidade, os estereótipos ligados à identidade são acionados. Esse foi o caso do vídeo “Probabilidade”, formulado como material didático que comporia o kit anti-homofobia, cujo objetivo era o enfrentamento do preconceito contra pessoas LGBT dentro do ambiente escolar. O vídeo foi analisado por Renata Pamplona e Nilson Dinis (2013), que apontaram alguns de seus problemas, entre eles a percepção de que “os discursos presentes no vídeo romanceiam a bissexualidade ao apresentar o protagonista [...] como uma pessoa privilegiada por ter mais chances de sucesso numa busca amorosa do que pessoas heterossexuais e homossexuais” (PAMPLONA; DINIS, 2013, p. 107), reforçando a ideia de que sujeitos bissexuais se relacionam com muitas pessoas.

Cabe ressaltar que circunscrever o debate sobre a bissexualidade não objetiva defini-la de maneira homogênea, pois nos colocaria na mesma armadilha de qualquer outra categoria identitária. Como nos apontam Renata Pamplona e Nilson Dinis (2013):

[...] não existe o bissexual, a bissexual, assim como não existe a lésbica, o homossexual, a travesti, o/a transexual, a drag queen, existem, sim, travestilidades, homossexualidades, lesbianidades, transexualidades e bissexualidades (p. 104).

Colocando em questão a dimensão identitária da bissexualidade, importante ressaltar que não se refere à essência ou à disposição inata de caráter imutável, mas à composição de incessantes processos de subjetivação oriundos das experiências sociopolíticas com as quais os sujeitos interagem dialeticamente. Sendo assim, a bissexualidade também se associa ao âmbito das performatividades, dado que reside “numa dimensão plural e flexível em relação a condições de existência e performances” (PAMPLONA; DINIS, 2013, p. 104).

As reflexões referentes à bissexualidade ainda podem ser pensadas a partir de sua posição em relação ao “sistema hierárquico de valores sexuais” proposto por Gayle Rubin (2012), em que a monossexualidade e a heterossexualidade representam o topo dessa hierarquia, constituindo-se como norma e produzindo relações de opressão. Segundo a autora, os “indivíduos cujo comportamento está no topo desta hierarquia são recompensados com saúde mental certificada, respeitabilidade, legalidade, mobilidade social e física, suporte institucional e benefícios materiais” (RUBIN, 2012, p. 16). Por outro lado,

na medida em que os comportamentos sexuais ou ocupações se movem para baixo da escala, os indivíduos que as praticam são sujeitos às presunções de doença mental, má reputação, criminalidade, mobilidade social e física restrita, perda de suporte institucional e sanções econômicas (RUBIN, 2012, p. 16).

Sendo assim, pessoas bissexuais se deparam com um conjunto de violências específicas, tais como: invisibilização de suas demandas e pautas, fetichização de sua sexualidade (especialmente das mulheres), deslegitimação e invalidação de sentimentos, entre outros. Violências que, em conjunto, constituem a bifobia.

Um estudo que teve como base a entrevista com 20 (vinte) mulheres bissexuais demonstrou como funcionam os mecanismos da bifobia ao afirmar que elas não são compreendidas nem pelos heterossexuais, nem pelos homossexuais (Nikki HAYFIELD; Victoria CLARKE; Emma HALLIWELL, 2014). Este duplo padrão de discriminação também foi abordado por Pamplona e Dinis (2013):

Afirmar-se bissexual é em certa medida se situar ou declarar um pertencimento ao universo das homossexualidades, é caracterizar-se como lésbica ou homossexual/gay em especial diante da visão heterossexista. Mas, por outro lado, é não se situar por completo, no universo homossexual, uma vez que essa pessoa estabelece relações afetivas e sexuais com pessoas do mesmo sexo e com pessoas do sexo oposto, o que caracteriza, na visão de muitos homossexuais, um motivo de discriminação ou até mesmo repúdio, fundamentados no argumento de que esses se ‘escondem no armário’, são bichas ou sapatões enrustidos (p. 103).

A conclusão do estudo realizado com essas mulheres bissexuais foi que estas acreditavam que sua bissexualidade e suas práticas de relacionamento são deturpadas na cultura e na sociedade contemporâneas. Ainda de acordo com as entrevistas citadas, percebeu-se que a bifobia se dá em virtude da ruptura com a concepção normativa de que só é legítima uma prática sexual orientada exclusivamente para um único gênero/sexo, o que caracteriza o monossexismo (HAYFIELD; CLARKE; HALLIWELL, 2014).

O monossexismo é uma estrutura social de poder, na medida em que somos acionados culturalmente a fazer uma identificação enquanto heterossexuais (reconhecidos de maneira positiva) ou homossexuais (reconhecidos de maneira negativa), conforme afirma Miguel Fernández (2002).7 “As pressões monossexistas provêm de todas as instâncias sociais: educação, moral, religiosa, discursos psicológicos e científicos, modelos representados nos meios de comunicação, relações interpessoais, etc., e se manifestam em uma multidão de detalhes do cotidiano” (FERNÁNDEZ, 2002, p. 1, tradução nossa).8 Ele é o motor da bifobia, uma vez que, nas palavras de Natàlia Climent (2016), as discriminações que os bissexuais sofrem são consequência desta percepção de que não existem. De acordo com a autora, as violências bifóbicas tendem a ser mais simbólicas: “é um tipo de violência pouco visível, pouco palpável, mas que traz grandes repercussões para nossas vidas e tem consequências” (CLIMENT, 2016, p. 1, tradução nossa)9 como problemas de saúde mental, vulnerabilidade à violência sexual, perda de relações socioafetivas, perda de postos de trabalho e perda de suporte familiar.

A problemática a respeito do não reconhecimento da bissexualidade - seja nos documentos jurídicos seja no corpo social - ainda pode ser examinada em articulação com concepções de matriz heterossexual e heterossexualidade compulsória, conceitos analíticos caros aos estudos críticos sobre sexualidade. Em relação a tais conceitos, Judith Butler (2003) afirma que uma coerência interna se faz obrigatória para cada um dos gêneros e que se articula diretamente a uma heterossexualidade de preferência estável, visando a um arranjo binário de oposição. Dessa maneira, as experiências bissexuais, como vivências de desejo, afeto, identidade e política, carregam especificidades que podem desestabilizar arranjos normativos que colocam o desejo monossexual como único possível.

Caminhos metodológicos

Compreendendo as experiências bissexuais na sua complexidade e sendo um dispositivo identitário e político, interessa analisar os enunciados que constroem noções de bissexualidade nas instâncias jurídicas. O campo jurídico tem sido apontado como um espaço privilegiado para resolução de conflitos e garantia de direitos, num aumento de demandas nomeado como judicialização da vida (Laura SOARES; Lisandra MOREIRA, 2016).

A abertura do sistema jurídico para novas demandas, de certa maneira, produz “reconhecimento dos conflitos e ressalta a importância de temas que por certo tempo foram negligenciados” (SOARES; MOREIRA, 2016, p. 506). Entretanto, a judicialização pode incidir como nova forma de regulação e limitação das experiências de vida, principalmente quando aliada a processos de patologização das condutas (PRADO FILHO, 2012).

Nesse sentido, entendemos a potência da análise do sistema jurídico enquanto campo de disputas que pode ser um mecanismo de garantia de direitos das chamadas minorias, mas também um lugar historicamente construído para legitimar discursos hegemônicos. Das inúmeras possibilidades de pesquisa no meio jurídico, elencamos a análise das decisões tomadas em segunda instância10 nos tribunais de justiça do Sudeste (MG, RJ, ES, SP).

Ao conjunto de decisões tomadas numa instância dá-se o nome de jurisprudência. Nem toda jurisprudência tem caráter condicionante das decisões seguintes, mas pode servir de referência e precedente na argumentação de outras decisões sobre a mesma matéria (Juliana PERUCCHI, 2008). Nesse sentido, a jurisprudência possibilita a análise das decisões tomadas, em seu aspecto histórico, bem como possibilita a análise das bases possíveis para decisões que estão por vir.

Cabe ressaltar que, em muitas temáticas, a jurisprudência não se apresenta homogênea, havendo espaço para a interpretação e o uso de argumentações variadas, de acordo com os magistrados. Nesse sentido, a análise de um documento não significa a posição geral do sistema de justiça sobre a matéria.

Os materiais foram pesquisados por meio do acesso virtual a documentos disponíveis nos endereços eletrônicos oficiais dos Tribunais de Justiça dos estados da Região Sudeste do Brasil.11 São eles: Tribunal de Justiça do Espírito Santo - TJ-ES; Tribunal de Justiça de Minas Gerais - TJ-MG; Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro - TJ-RJ; Tribunal de Justiça de São Paulo - TJ-SP. Quanto ao procedimento de busca e escolha dos materiais nos sites dos tribunais, apesar de não serem plataformas padronizadas, estabelecemos alguns parâmetros: a) Pesquisar apenas acórdãos;12 b) Busca do descritor no “Inteiro teor”.13 Quanto ao recorte dessa escrita, os materiais foram selecionados a partir do descritor: “Bissexual”, que acionava também as derivações, como, por exemplo, “Bissexualidade”. Dos materiais encontrados, foram selecionados para constituir o banco de dados os 10 acórdãos mais recentes de cada um dos tribunais, conforme a data de julgamento, que no presente caso abarcaram o período de 26/02/2003 a 23/03/2017; este é um período de 14 anos, o que já assinala um dos aspectos que serão analisados adiante: a invisibilidade bissexual.

Os documentos foram analisados a partir da perspectiva da análise do discurso foucaultiana:

Teria então chegado o momento de considerar estes fatos do discurso, não mais simplesmente sob o seu aspecto linguístico, mas, de certa forma [...] jogos estratégicos de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também de luta. O discurso é este conjunto regular de fatos linguísticos em determinado nível, e polêmicos e estratégicos em outro (Michel FOUCAULT, 2002, p. 9).

Desta forma, a análise não tem por objetivo a atribuição de sentidos aos enunciados, mas descreve e analisa a relação - o jogo - do discurso com um campo de objetos e ações. “Entende-se o termo discurso não apenas como uma fala ou escrita, mas como o modo do que está dito estabelece relações de poder e de saber” (MOREIRA; Juracy TONELI, 2014, p. 38).

Interessa compreender como os enunciados se apresentam e constroem efeitos de verdade sobre a bissexualidade. Neste sentido, “não se pretende uma ancoragem que busque desvelar cada sentido engendrado [...], mas sim olhar para os emaranhados e pequenas minúcias daquilo que o acontecimento discursivo pronuncia e produz” (PAMPLONA; DINIZ, 2013, p. 99).

Bissexualidade na jurisprudência: só mais uma letra na sigla?

Com o mapeamento geral dos tribunais em relação às sexualidades, é possível verificar a exiguidade em termos documentais em relação à categoria “Bissexual”. Apesar de terem sido encontrados documentos com a presença desse descritor, estes ocorreram em quantidades expressivamente menores em comparação aos resultados de busca das demais categorias (lésbica, gay, travesti e transexual). Do total de materiais em cada categoria, somando os quatro Tribunais de Justiça, chama atenção o número bastante reduzido de materiais na pesquisa com o descritor “Bissexual” - apenas 69 documentos, em contraposição aos outros descritores: “Lésbica” - 116; “Gay/Homossexual” - 907; “Travesti” - 1127, “Transexual” - 290, “Transgênero” - 35.

Neste primeiro olhar, constata-se a escassez em relação à categoria bissexual no que tange à própria disponibilidade de arquivos documentais alusivos a essa demanda. Na segunda etapa da pesquisa, buscamos o inteiro teor dos 10 acórdãos mais recentes de cada categoria, em cada TJ. Assim, teríamos 40 documentos sobre bissexualidade. Entretanto, os materiais ficaram mais escassos, porque apenas um tribunal tinha mais de 10; nos outros, havia bem menos. Desse modo, o número total de documentos analisados no seu inteiro teor foi de 25 acórdãos em que o termo bissexual aparece na ementa e/ou inteiro teor do documento, assim distribuídos: 9 documentos do TJSP, 10 do TJMG, 3 do TJRJ e 3 do TJES. Também por isso o lapso temporal tão grande entre o documento mais recente e o mais antigo.

Em análise qualitativa dos mesmos, dos 25 acórdãos, um total de 11 apresentava o descritor “Bissexual” apenas como referência por extenso dos grupos que compõem a sigla LGBT. Sendo assim, esses documentos não discutem questões relativas à bissexualidade, especificamente. Essa questão parece estar relacionada ao debate sobre a bissexualidade e à forma como a categoria se torna invisível na comunidade LGBT pelas demandas de outras categorias.

Além disso, quando o descritor “Bissexual” se refere a uma das partes envolvidas no processo, não há necessariamente uma discussão relevante sobre a questão. Em um processo que debatia procedimentos médicos realizados para verificação da ocorrência de estupro de vulnerável, por exemplo, bissexual só aparece para dizer que, no momento atual, a vítima não teria traumas resultantes desta experiência, tendo uma vida sexual saudável, conforme se verifica:

Nesse momento, quando G. S. C. já havia adquirido a maioridade, ela, “perguntada sobre os fatos, disse que não se recorda de nada, não quis relatar”, afirmando ainda “que tem vida sexual ativa desde os 16 anos de idade e atualmente tem um namorado e que já teve relações bissexuais, com homens e mulheres. Relata que sua vida sexual é normal, sem dificuldades ou traumas” (TJMG, 2017, grifos nossos).

Formulações diversas poderiam ser realizadas a partir da leitura desse trecho, mas nenhuma que de fato tratasse da categoria em análise. Já, em outro acórdão, o tema central era a retificação de nome de uma mulher trans. O termo não aparece exatamente dentro da sigla LGBT, mas é como se estivesse, pois apenas é citado dentre outras categorias, sem maiores aprofundamentos: “Convém ressaltar que o transexual não se confunde com o homossexual, bissexual, intersexual (também conhecido como hermafrodita) ou mesmo com o travesti” (TJES, 2010, grifo nosso).

Buscando aprofundar as discussões, optamos por analisar de maneira mais detalhada um documento que carrega enunciados enfáticos sobre bissexualidade. Conforme Coacci (2013), essa tem sido uma perspectiva metodológica tradicionalmente utilizada para a pesquisa com acórdãos, quando há interesse de realizar a discussão de um assunto em sua complexidade, abarcando um número maior de dinâmicas que se articulam à temática. Outra possibilidade seriam estudos cruzados, buscando aproximações e possíveis formulações gerais a respeito de um tópico, partindo-se de um conjunto documental heterogêneo, o que não seria possível por conta da dispersão dos documentos e da diversidade de formas de abordar a matéria nos documentos encontrados.

Bissexualidade como incerteza na distribuição dos afetos

A partir da leitura dos documentos selecionados, optamos por apresentar uma decisão jurídica de maneira detalhada para aprofundar e tensionar alguns discursos construídos nela a respeito da bissexualidade, constituindo assim um estudo de caso. Essa é uma escolha metodológica que coloca em primeiro plano alguns discursos, mas cabe lembrar a heterogeneidade das decisões jurídicas.

O documento escolhido para análise apresenta a discussão referente a uma anulação de casamento no Tribunal de Justiça de São Paulo (0031731-05.2009.8.26.0000, decisão tomada em 26 de junho de 2012). A temática da bissexualidade não fica clara nas informações existentes na ementa, mas apresenta essa discussão em seu inteiro teor.

Anulação de casamento. Erro essencial em relação à pessoa do outro cônjuge. Caracterização. Dano moral arbitrado em 100 salários mínimos que é reduzido à metade. Verba honorária que deve ser fixada. Hipótese ademais que caracteriza sucumbência em parte mínima do pedido, a incidir o parágrafo único do artigo 21 do Código de Processo Civil. Observância também da Súmula 326 do STJ. Sentença de procedência mantida, alterada apenas a verba honorária para 10% do valor da condenação. Recurso provido em parte (TJSP, 2012).

Essa é uma decisão que analisa o apelo/recurso do réu que, em primeira instância, teve seu casamento anulado e foi condenado a pagar indenização por danos morais à sua, até então, esposa. O apelo não diz respeito ao desejo de retornar ao casamento, mas ao fato de a formalização dessa ruptura se dar por meio da anulação e não de um divórcio. Importante ressaltar a diferença dos dois instrumentos jurídicos que, juntamente com a morte, são considerados como as três formas de se chegar ao fim do casamento.

O divórcio surge em nosso ordenamento jurídico apenas em 1977, e antes dele a figura que se encontrava no Código Civil de 191614 (BRASIL, 1916) era o desquite. Neste processo, era necessário expor a motivação da separação, sendo permitidas por lei apenas as seguintes: adultério, tentativa de morte, sevícia ou injúria grave e abandono voluntário do lar conjugal por dois anos contínuos (art. 317 do Código Civil de 1916), o que permitia a discussão da culpa pela dissolução da união, uma vez que um dos cônjuges era responsável pela realização de alguma das práticas que poderiam ensejar a separação. Além disso, não se rompia o vínculo matrimonial,15 ou seja, não existia a possibilidade de novo casamento.

A Lei do Divórcio (BRASIL, 1977) surge com uma superação deste paradigma na medida em que o casamento passa a ser desfeito apenas pela manifestação volitiva das partes. Apesar disso, até o advindo de outra emenda constitucional, a emenda 66/2010 (BRASIL, 2010), era obrigatório um período mínimo de separação de 01 (um) ano antes da efetivação do divórcio, resultando num sistema bifásico para a dissolução do casamento. Ademais, até a sanção desta emenda, ainda era possível fazer uma discussão da culpa, desde que houvesse “a comprovação da prática de qualquer ato que importasse grave violação dos deveres do casamento e tornasse insuportável a vida em comum” (Renata ALMEIDA; Walsir RODRIGUES JR., 2012, p. 233), embora alguns juristas defendessem que esta discussão não era possível dentro do paradigma constitucional de 1988.

O instituto da anulação de casamento, por sua vez, está vinculado à teoria das invalidades. De acordo com essa teoria: “inválido é o negócio que contraria as limitações impostas pelo sistema jurídico” (ALMEIDA; RODRIGUES JR., 2012, p. 132) no que se refere à manifestação de vontade.

A anulação do casamento ainda é marcada pela busca da causa subjetiva da dissolução do casamento e pode realizar-se na hipótese de “vício de vontade, se houve, por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro” (art. 1556, BRASIL, 2002). São três as possibilidades de erro essencial, segundo o Código Civil, em seu artigo 1557 (BRASIL, 2002):

I - o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado; II - a ignorância de crime, anterior ao casamento, que, por sua natureza, torne insuportável a vida conjugal; III - a ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não caracterize deficiência ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência.

O que se observa é que estes artigos dão margem para que muitas reações de cunho preconceituoso sejam tomadas, levando em consideração apenas o “ataque” à subjetividade de uma das partes. Importante dizer que esta ação tem um prazo para ser impetrada: os “erros essenciais” devem ser descobertos em até 03 anos da data da celebração do casamento (art. 1560, III, BRASIL, 2002).

A principal diferença entre divórcio e anulação diz respeito aos efeitos produzidos por cada um dos estatutos. Enquanto que com a realização do primeiro o estado civil passa a ser “divorciado”, com o segundo, o estado civil retorna a “solteiro” - é como se o casamento nunca tivesse acontecido (art. 1564, BRASIL, 2002). Ou seja, pedir a anulação do casamento é negar que algum dia houve qualquer tipo de vínculo entre os cônjuges; é anular, além do vínculo, a história e as marcas que a relação produz.

No documento em análise, então, o réu pede a improcedência da decisão anterior (anulação do casamento e indenização) e solicita a separação judicial, alegando que:

O erro quanto à pessoa do outro cônjuge não pode ser alegado, porque era do conhecimento da Autora o fato do Réu ser bissexual. Restou provado nos autos o namoro, o noivado e o casamento, este realizado por mera conveniência das partes, sem que se possa cogitar de anulação do casamento, porque não houve erro essencial quanto à pessoa do Réu (TJSP, 2012).

As argumentações contrapostas, resumidamente, referem-se à alegação de erro por parte da esposa, que afirma não ter sido informada sobre a bissexualidade do cônjuge e, portanto, casou “enganada”, sob a falsa premissa da heterossexualidade do marido. Por outro lado, o marido afirma que sua bissexualidade era de conhecimento público.

Na análise desse embate, a decisão retoma alguns argumentos elencados pela acusação. Utiliza-se da narrativa da história do envolvimento do casal, incluindo elementos que constroem a figura do marido (aqui réu) como alguém que, intencionalmente, teria ocultado informações:

Apesar das aparências, o comportamento do Réu tinha objetivos escusos... Em maio de 2005, passaram a morar juntos, a confirmar a união estável, com casamento em 01/12/2005. Ocorre que o Réu tinha por objetivo esconder sua homossexualidade perante sua família e a sociedade, fato em nenhum momento percebido por ela (TJSP, 2012).

Além da argumentação da bissexualidade, a acusação constrói a ideia de uma intencionalidade fraudulenta, onde o réu estaria casando apenas para esconder sua homossexualidade. Importante salientar que essa enunciação dificulta a compreensão da bissexualidade como uma orientação sexual específica e legítima, concebendo-a apenas como estratégia frente aos possíveis efeitos negativos de assumir a homossexualidade.

A forma como a bissexualidade é aqui apresentada nos indica que ela não é vista como uma identidade possível, muito menos legítima. Há um jogo entre as noções de heterossexualidade e homossexualidade que parece indicar que o exercício da bissexualidade não é lido por si só, mas como uma estratégia de esquiva, dissimulação, disfarce, ou seja, uma tentativa de manter-se no armário: “o Réu tinha por objetivo esconder sua homossexualidade perante sua família e a sociedade” (TJSP, 2012).

Essa construção discursiva precisa ser colocada em análise, pois aciona premissas importantes para compreensão das noções de sexualidade e de direitos. Se aceitamos como válida esta argumentação - uso do casamento heterossexual como disfarce -, então há, em contrapartida, a afirmação dos privilégios vinculados ao exercício da heterossexualidade, em detrimento da homossexualidade que fica sujeita a formas de violação. A decisão ainda aciona a necessidade de confessar suas práticas e desejos sexuais como condição para a validação da união.

Conforme bem referido na r. sentença (fl. 179), verbis: “A autora claramente, não foi avisada das opções sexuais do réu, mesmo porque fosse ela alertada saberia que o réu estava dividido e não se manteria fiel à relação” (TJSP, 2012).

A vontade de saber e o imperativo de dizer sobre o sexo, conforme apontado por Foucault (1988), no primeiro volume da História da Sexualidade, são aqui utilizados como ponto-chave para a deslegitimação de uma sexualidade que não foi, ou talvez não possa ser confessada, apenas apontada e punida. A contraposição que o autor faz em relação à hipótese repressiva reside no fato de que a sexualidade não está sendo interditada no discurso, mas se instiga a dizer sobre o sexo e, nesse imperativo, se produzem relações de poder e condução das formas de vivenciar a sexualidade. A sexualidade é um poderoso dispositivo de poder e o jogo entre saber e dizer se produz de distintas maneiras, como fica claro no relato dos testemunhos ouvidos no processo:

As testemunhas ouvidas em Juízo confirmaram que o réu escondia a sua opção sexual mantendo encontros furtivos com outros homens e as testemunhas do réu afirmaram apenas, genericamente, que todos sabiam que o réu era bissexual, confirmando a testemunha N. S. F. (fls. 126) que havia ameaça feita pela autora de que contaria à família do réu sobre o fato, o que indica que ninguém sabia das opções sexuais do réu (TJSP, 2012).

As testemunhas transitam entre as práticas que, às vezes, se dizem, às vezes, se escondem, às vezes, todos sabem, mas, às vezes, dizer pode ser usado como ameaça. São suspeitas, dúvidas que, nessa decisão, pesam em favor da esposa, pois parecem convergir com significados e enunciados sobre a própria bissexualidade. Além desse jogo entre dizer e esconder, os enunciados associados à bissexualidade vão se construindo de maneira mais explícita no documento:

A bissexualidade demonstra confusão, indecisão e incerteza na distribuição do afeto dirigido a pessoas dos dois sexos. E essa condição deve ser detalhadamente esclarecida ao parceiro sob pena de se fundar a relação em falsas premissas. Se o réu tinha essa dificuldade de se determinar sexualmente ou afetivamente, deveria tê-la partilhado com a autora [...]. Mas essa informação foi sonegada pelo réu à autora subtraindo dela o direito à escolha e daí correta a anulação do casamento, até porque não era o casamento proposto e almejado o que torna insuportável a vida em comum (TJSP, 2012).

Como exposto acima, a decisão do recurso apresentado pelo réu não reforma a decisão anterior no que diz respeito à anulação do casamento. Ou seja, confirma que a bissexualidade, não revelada anteriormente, significou a escolha do casamento sob “falsas premissas” (conforme citação do documento), portanto, um erro suficiente para anulação e definição de uma indenização por danos morais. O único aspecto retificado nessa decisão diz respeito ao valor da indenização e dos honorários, reduzindo os danos morais para 50 salários mínimos e 10% de verbas honorárias.

Tendo em vista o foco nas construções discursivas sobre a bissexualidade, o documento apresenta alguns pontos importantes. O argumento fortemente apresentado e validado por essa decisão é o de que, diante de um casamento heterossexual, presume-se que o desejo do sujeito será unicamente heterossexual. Se a premissa social, de maneira geral, parte da concepção da heterossexualidade compulsória, diante de uma formalização de união heterossexual, a premissa se cristaliza ainda mais. Entretanto, diante do desejo que tensiona essa norma, o judiciário institucionaliza essas práticas dissidentes como erros passíveis de condenação e, portanto, confirma a anulação da união.

Além disso, quando se dispõe a analisar o que seria a bissexualidade, o documento escorrega para várias construções estereotipadas: “A bissexualidade demonstra confusão, indecisão e incerteza na distribuição do afeto dirigido a pessoas dos dois sexos” (TJSP, 2012). Entender o fenômeno da invisibilidade bissexual pode trazer reflexões acerca dos possíveis desdobramentos que alguns enquadramentos podem acarretar, como a compulsoriedade da norma monossexual.

Se, perante a justiça, a não heterossexualidade de um sujeito, em questão manifestada pela bissexualidade, representa uma violação da honra de terceiro que desconhecia tal sexualidade, poder-se-ia pressupor, então, que a prática bissexual seja nociva moralmente, ratificando, assim, a supressão das manifestações sexuais consideradas diversas. E, se a definição legal de casamento é, segundo o Art. 1.511 do Código Civil, “comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”, e a bissexualidade é tida no caso em questão como fator justificante de anulação, ela é, por via resultante, enquadrada como fator que torna o sujeito inapto a uma união conjugal por representar uma fissura na concepção monossexista que não encontra espaço ou mínimo vestígio de acolhimento na visão cultural de invisibilização da bissexualidade. A decisão tenta disfarçar essas argumentações, definindo que a bissexualidade só se tornou problema porque não foi comunicada anteriormente. Neste caso, a alternativa seria garantir, talvez documentar, a ciência do cônjuge sobre o desejo bissexual?

A noção de bissexualidade atrelada a “confusão, indecisão e incerteza” se constrói a partir da premissa de que a orientação sexual seria unidirecional. Nessa lógica, novamente, a bissexualidade não se firma como uma prática sexual legítima, mas como um trânsito, um deslocamento entre práticas.

É possível problematizar que essa construção se dá porque o caso analisa a relação e a sexualidade a partir da noção de conjugalidade e estamos dentro de um paradigma monogâmico de casamento. Nessa lógica, a análise negativa da bissexualidade produz uma colagem entre ela e a infidelidade e, como consequência lógica, “não se manteria fiel à relação”, não cogitando em nenhum momento a possibilidade de que o sujeito bissexual possa ter uma união estável e plena.

Entretanto, a vivência sexual unidirecionada, ou monossexual, não é garantia de monogamia. Além disso, em casos de relações extraconjugais, onde não se questiona a bissexualidade, dificilmente a demanda seria por anulação de casamento. Podemos fazer aqui um paralelo com a discussão da legítima defesa da honra, que ainda aparece com desculpante em episódios em que o marido mata a mulher que o traía. Não costumamos encontrar essa argumentação na direção oposta, quer dizer, mulheres agindo em defesa de sua honra por terem sido traídas.

O estudo da legislação do Brasil e do contexto histórico da construção da mulher em detrimento da honra masculina, através das transformações legislativas que disseram respeito à mulher, ao longo dos anos nos possibilita o entendimento de como os discursos jurídico e social, munidos de suas técnicas, produziram uma forma de pensar a mulher como um sujeito inumano. Esse discurso, que é produtor de formas de verdades, cerceou e confinou as mulheres ao espaço do controle, da vigilância e da anulação. A legislação, portanto, através de suas estratégias, se propôs a definir as regras do jogo que inscreveram nos corpos os procedimentos e os domínios do saber, ditando tanto para as mulheres quanto para os homens os lugares cabíveis a cada um dentro da sociedade e do casamento (Margarita RAMOS, 2010, p. 55).

O paralelo se dá pelas construções destes lugares no que se refere ao casamento. Neste sentido, da mesma forma que mulheres são colocadas em uma posição subordinada aos homens, as sexualidades não heterossexuais são colocadas em uma posição subordinada com relação às heterossexuais. No caso em tela, o que se percebe é a tentativa de uma intensificação da punição pela quebra de um “dever” matrimonial, a fidelidade, que se dá pela exposição das práticas bissexuais.

Outra aproximação possível com esse debate aparece em situações de transgeneridade. Argumentações contrárias aos direitos de pessoas transgêneras afirmam que esses direitos poderiam representar ameaça, pela crença de que a ocultação dessa transição de gênero possa vir a configurar erro, fraude e ofensa à honra de qualquer pessoa que venha a se relacionar com o sujeito desconhecendo tal fato (Luiza LIMA, 2017). Ou seja, as pressuposições de cisgeneridade e/ou de heterossexualidade são assumidas pelo Estado também como norma jurídica. Assim, diante da ruptura com essas pressuposições, seria obrigatória a sua informação ao futuro cônjuge para garantir a legalidade da união, mesmo que essa noção não esteja fundamentada em nenhuma lei específica.

Conforme já foi apontado, a demanda de dissolução do casamento não se iguala à anulação do casamento. A separação ou dissolução do casamento poderia ter sido solicitada, o que não ensejaria a análise de motivos, nem mesmo de “culpa” dos cônjuges. Entretanto, a escolha e a decisão pela anulação produzem a definição de um erro por parte da autora e de uma ocultação intencional por parte do réu. Por conta dessa interpretação, possibilita-se a definição de uma indenização por danos morais. Em outras palavras, reconhece-se que essa falta do réu produziu um sofrimento, um dano à outra parte e para a qual é necessário determinar uma reparação.

Assim, frustrada a relação matrimonial das partes, inegável a ocorrência do dano moral em relação à pessoa do cônjuge enganado. A indenização por dano moral deve ser fixada mediante prudente arbítrio do Juiz, de acordo com o princípio da razoabilidade, observados a finalidade compensatória, a extensão do dano experimentado, bem como o grau de culpa (TJSP, 2012).

A indenização tem por finalidade reparar os danos causados à vítima. Importante salientar que os questionamentos e análises aqui levantados não estão colocando em questão o sofrimento vivenciado. Esse ponto, inclusive, tem sido um dos desafios da judicialização, tendo em vista que estabelecer esse nexo causal entre uma conduta e um dano requer problematizações muito complexas. Já o processo de culpabilização não apenas restitui a vítima, mas incide sobre o réu e sobre uma determinada temática a ser ensinada e regulada pelo sistema jurídico. Assim, na citação abaixo, é possível perceber que a determinação de uma sanção por uma conduta tem também o objetivo de definir o que são condutas indesejáveis socialmente e, portanto, ensinar modos de viver.

Referida indenização pretende compensar a dor do lesado e constitui um exemplo didático para a sociedade de que o Direito repugna a conduta violadora, porque é incumbência do Estado defender e resguardar a dignidade humana. Ao mesmo tempo, objetiva sancionar o lesante, inibindo-o em relação a novas condutas, e por isso, deve corresponder a um valor de desestímulo, que não pode ensejar enriquecimento sem causa, nem pode ser ínfimo, a ponto de não coibir a reincidência em conduta negligente (TJSP, 2012).

Trazendo em paralelo à esfera Civil alguns conceitos do Direito Penal, encontramos as definições mais aceitas das funções das sanções que definem os caracteres da punição, sendo que, aqui, nos importa o conceito da Prevenção Geral Negativa imbuído na punição. Esse conceito representa o efeito de coação psicológica consequente de uma crença de que a punição será aplicada caso certa conduta se realize. Essa crença é derivada do conhecimento/informação de que a justiça aplica concretamente punições àquelas condutas, horizontalmente. Temos como resultado operadores da justiça conscientes do efeito vinculante e ostensivo de suas decisões, compreendendo que a aplicação da justiça não será apenas factual, mas atingirá todos os sujeitos como uma praeter legem (costume consolidado que servirá como “norma” para decisão e resolução em caso singular). A visão da bissexualidade na jurisprudência acaba, então, ampliando suas consequências para muito além dos tribunais, fazendo com que o réu não seja apenas o sujeito do caso analisado, mas também todos os bissexuais.

O caráter discriminativo fica evidente no momento em que se percebe não ser possível afirmar certamente que a pena pecuniária aplicada, in casu, objetiva punir apenas a “ocultação” da bissexualidade, tornando indiscreto um desejo de depreciação imbuído no discurso do magistrado que demonstra, em seus argumentos, sua posição bifóbica. Isso se confirma pela ênfase do documento na bissexualidade do que para expor as reais consequências que motivaram a demanda da parte autora do processo pela intervenção judicial no caso.

É possível compreender, por meio das argumentações analisadas, que circulam nesta ação judicial do TJSP, noções de bissexualidade bastante problemáticas exatamente porque inviabilizam a existência da bissexualidade como uma vivência legítima, gerando uma dupla deslegitimação: pela definição monogâmica das uniões e pela presunção de singularidade do desejo, ou seja, ao formalizar uma união (seja heterossexual ou homossexual), presume-se que o desejo só se direciona daquela forma. Identificamos noções que constroem a bissexualidade como disfarce ou indecisão, mas ambas apontando para práticas lesivas, que produzem danos que, nesta lógica, precisariam ser reparados.

Nesse sentido, diante dos movimentos de judicialização da vida, é possível perceber que o sistema jurídico, por meio das diversas modalidades de resolução de conflito, vai incidir sobre as práticas cotidianas, mesmo em temáticas em que não existam legislações ou demandas específicas, como é possível perceber em relação às vivências bissexuais. Nesse movimento, julgando um caso específico, legitima-se não apenas aquelas partes envolvidas naquela situação, como também se pretende ensinar, conduzir, inibir, governar a todos.

Considerações

Na análise dos discursos que compõem os acórdãos, ficam evidentes alguns tensionamentos dos enquadramentos normativos que a bissexualidade desequilibra. Notou-se uma invisibilidade dessa categoria, tanto pela quantidade reduzida de documentos encontrados, em comparação aos outros descritores, quanto pela forma como a menção à bissexualidade se restringe à identificação da sigla LGBT em muitos documentos.

A partir da análise mais detalhada do acórdão escolhido, podemos perceber que a bissexualidade é questionada, deslegitimada, até mesmo punida. Essas práticas se fundamentam na cristalização da matriz heterossexual excludente, mas, também, em uma certa dificuldade em conceber a bissexualidade como a expressão de uma sexualidade autônoma, livre da necessidade de estar relacionada a partir das práticas sexuais dicotômicas.

A estratégia metodológica de salientar uma decisão por conta da apresentação de intensos enunciados coloca em primeiro plano alguns discursos que ecoam no sistema jurídico, mas precisamos alertar para a heterogeneidade das decisões jurídicas. Ou seja, a análise dessa decisão e o apontamento de algumas concepções sobre sexualidade que ela carrega não representam uma posição homogênea e consensual do judiciário sobre essa temática. No trabalho com esses documentos, em diferentes pesquisas, fica evidente a existência de discursos diversos e, por vezes, contrários, coexistindo em decisões diferentes ou, ainda, como argumentações em disputa na mesma decisão/documento.

Cabe ainda pensar na dificuldade de articular gênero e sexualidade a outros marcadores, numa perspectiva interseccional, ao trabalhar com documentos jurídicos. As informações elencadas como importantes nas decisões na maior parte das vezes não contemplam a compreensão desses marcadores. Essa ausência nos permitiria problematizar o modo como os sujeitos nos documentos jurídicos são produzidos como sujeitos abstratos, como sujeitos alheios às suas construções identitárias de classe, raça, território etc.

Pensar as questões contemporâneas referentes a gênero e sexualidade de maneira interdisciplinar e articuladas a um horizonte ético-político emancipatório constitui um grande e necessário desafio. Cotidianamente, violações de direitos, mecanismos de subalternização e violências diversas são acometidas contra pessoas bissexuais, lésbicas, gays, travestis, transexuais, entre outras/os de forma não isolada e em intrínseca associação com os demais marcadores que constituem as experiências e subjetividades dos/as sujeitos/as. Nesse sentido, a bissexualidade parece ser negligenciada nas estatísticas e na busca de construir essas vivências como posições políticas legítimas e que merecem também reconhecimentos e garantias.

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1 O projeto “Gênero e Sexualidade na jurisprudência” foi desenvolvido nos anos de 2016 a 2019, coordenado pela primeira autora, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, com a participação dos demais autores. Os apoios recebidos no projeto estão informados no final do artigo.

2O PL 122/2006, conhecido como PL de criminalização da homofobia, propõe alterar a Lei 7.716/1989, que define condutas ilícitas de discriminação e de restrição de acessos, mas não nomina como crime homofóbico as condutas violentas praticadas contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros. Nesse sentido, Carvalho (2017) indica, como estratégia de enfrentamento e visibilidade, possibilitar à “motivação homofóbica ‘adjetivar’ condutas que implicam danos concretos a bens jurídicos tangíveis, como a vida (homicídio homofóbico), a integridade física (lesão corporal homofóbica) e a liberdade sexual (violação sexual homofóbica)” (p. 242), sem, necessariamente incidir um aumento da criminalização, visto que são condutas já criminalizadas.

3Utilizaremos ao longo do texto a sigla LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis/Transexuais/Transgêneros), pois é a forma usualmente encontrada nos materiais consultados. Ressaltamos que existem formas de nomeação que buscam dar visibilidade a outras identidades e às diferenças entre elas. No entanto, no âmbito geral da pesquisa, trabalhamos com essas quatro categorias de análise, incluindo no “T” a pesquisa de documentos referentes a travestis, transexuais e transgêneros, como explicaremos mais adiante.

4O Comitê Consultivo de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros da Organização por Direitos Humanos em São Francisco foi criado em 1975 e fornece assistência e aconselhamento em relação à discriminação contra comunidades LGBT.

566% of respondents only feel “a little” or “not at all” part of a LGBT community. Many said that biphobia and bi erasure within their LGBT communities limited their full inclusion.

6_Seffner (2003) cita o episódio do desenho animado Simpsons, a partir do qual o tema desenvolvido é a visita dos personagens no Brasil. No episódio para retratar o estereótipo de um Brasil a todo vapor com as liberdades sexuais, cria-se um ambiente bissexual, ou seja, de pessoas se relacionando sem pudores com pessoas do sexo oposto ou não (p. 56).

7O texto em questão argumenta que a bifobia seria a junção da homofobia, definida como o medo de ter relações homo quando se reconhece hétero, e a heterofobia, caracterizada como o medo de ter relações hétero quando se reconhece homo. Acreditamos que estes enunciados possuem outros significados, em especial no contexto de ofensiva neoliberal que estamos enfrentando. Neste sentido, vale ressaltar que entendemos a homofobia enquanto a repulsa por pessoas que possuem identidade homossexual e tudo que suas práticas representam; e que não reconhecemos a existência da heterofobia, uma vez que suas significações são atribuídas enquanto o oposto da homofobia, como se fosse opressão equivalente, o que não é possível dentro de um sistema heteronormativo.

8“Las presiones monosexistas provienen de todas las instancias sociales: educación y crianza, moral religiosa, discursos psicológicos y científicos, modelos presentes en los medios de comunicación, relaciones interpersonales, etc., y se manifiesta en multitud de detalles de la vida cotidiana” (FERNÁNDEZ, 2002, p. 1).

9“Es un tipo de violencia poco visible, palpable, pero que repercutí a la larga en nuestras vides y que tiene consecuencias” (CLIMENT, 2015, p. 1).

10De maneira simplificada, é importante sinalizar que o sistema judiciário brasileiro está organizado em instâncias. Na maior parte das situações, a demanda por uma decisão é direcionada e atendida em primeira instância, podendo haver recursos das partes envolvidas. Os recursos são então analisados em segunda instância por uma turma de desembargadores de um Tribunal de Justiça. Além disso, ainda são cabíveis recursos às decisões de segunda instância que serão julgados por tribunais superiores.

11Os sites pesquisados foram: TJES: http://aplicativos.tjes.jus.br/sistemaspublicos/consulta_jurisprudencia/cons_jurisp.cfm; TJMG: https://www5.tjmg.jus.br/jurisprudencia; TJRJ: http://www4.tjrj.jus.br/ejuris/ConsultarJurisprudencia.aspx; TJSP: https://esaj.tjsp.jus.br/esaj.

12Há diferença entre acórdãos e decisões monocráticas. Resumidamente, os acórdãos documentam decisões tomadas por uma turma de desembargadores; já as decisões monocráticas são tomadas por um julgador e depois podem ser revisadas pela turma. Os acórdãos, segundo Thiago Coacci (2013), são documentos resultantes de julgamentos de recursos na esfera da segunda instância jurídica por um colegiado de operadores do direito (desembargadores). Nesse sentido, como efeito, a produção de decisões, seu acúmulo e sistematização, em conjunto, constituem as chamadas jurisprudências.

13Pesquisar no inteiro teor (quando havia essa opção) amplia a possibilidade de encontrar os descritores, mesmo quando a palavra não foi utilizada como referência principal na ementa. Essa opção funcionou bem em dois TJs (SP e MG), mas no RJ e ES a plataforma de busca não permitia. Nesses casos, a quantidade de materiais foi bastante restrita e a alternativa encontrada foi recorrer ao JusBrasil para encontrar mais materiais.

14Sobre o Código Civil de 1916, vale destacar que família foi definida como o casamento. “Patriarcal, heterossexual, hierarquizada, patrimonializada e matrimonializada, essa família singular representava a religiosidade que se pretendia incutir na sociedade através do Direito imposto no Brasil” (ALMEIDA; RODRIGUES JR., 2012, p. 91).

15“A partir do casamento ou da união estável [...] [inaugura-se] uma entidade familiar própria em função do que passam a estar juridicamente vinculados. Essa vinculação, no entanto, não é de parentesco [...] nem de afinidade” (ALMEIDA; RODRIGUES JR., 2012, p. 79). Isto porque há conteúdos particulares, como, por exemplo, a imposição jurídica para que sejam fiéis ou leais. As implicações jurídicas do estabelecimento do vínculo conjugal são definidas no art. 1566 do Código Civil (2002): “São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos”.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: MOREIRA, Lisandra Espíndula; SANTOS, Marcela Maria dos; MARINHO, Míriam Ires Couto; SILVA, Mariana Moreira; PIMENTA, Vitor Henrique Silva. “‘Confusão, indecisão e incerteza’: enunciados de bissexualidade na jurisprudência”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 2, e55739, 2021.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoios de: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, por meio das bolsas de mestrado de Marcela Maria dos Santos e de Míriam Ires Couto Marinho. Programa Institucional de auxílio à Pesquisa de Doutores Recém-Contratados da UFMG - Edital PRPq ADRC 05/2016 - Bolsista Mariana Moreira Silva de 01/02/2017 a 31/01/2018. Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica - PIBIC/UFMG, Edital PRPq 04/2018, agenciado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq. Bolsista Mariana Moreira Silva de 01/08/2018 a 23/01/2019.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 06 de Setembro de 2018; Revisado: 09 de Novembro de 2020; Aceito: 17 de Fevereiro de 2021

lisandramoreira@ufmg.br

marcelasantos@nappsi.com.br

miriamires@gmail.com

smarianamoreira@gmail.com

vitorhspimenta@ufmg.br

Lisandra Espíndula Moreira (lisandramoreira@ufmg.br) é Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do curso de Direito na UFMG, vinculada ao Departamento de Psicologia na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH/UFMG). Doutora em Psicologia (UFSC), mestre em Psicologia Social e Institucional e Psicóloga (UFRGS).

Marcela Maria dos Santos (marcelasantos@nappsi.com.br) é Professora Universitária e Psicóloga Clínica Integrante do Setor de Psicanálise Aplicada - Nappsi - BH. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG.

Míriam Ires Couto Marinho (miriamires@gmail.com) é mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Advogada popular especializada em direitos das mulheres.

Mariana Moreira Silva (smarianamoreira@gmail.com) é psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais e residente em Terapia Intensiva pela Santa Casa de Belo Horizonte.

Vitor Henrique Silva Pimenta (vitorhspimenta@ufmg.br) é graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.

Contribuição de autoria: Lisandra Espíndula Moreira: concepção, análise de dados, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados, revisão. Marcela Maria dos Santos: concepção, coleta de dados e análise de dados, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados, revisão. Míriam Ires Couto Marinho: concepção, coleta de dados e análise de dados, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados, revisão. Mariana Moreira Silva: concepção, coleta de dados e análise de dados, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados. Vitor Henrique Silva Pimenta: concepção, coleta de dados e análise de dados, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados.

Conflito de interesses: Não se aplica

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