SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29 número2Transmasculinidades no esporte: entre corpos e práticas dissonantes“Sou negro, homossexual e tenho doença mental”: intersecções em jornais portugueses índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.29 no.2 Florianópolis maio/ago 2021  Epub 10-Maio-2021

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n279423 

Seção Temática Gênero, tecnologias e (novas) formas de subjetivação nas práticas esportivas

Gêneros em disputa: a LiGay Nacional de Futebol Society e o espaço de acontecimento

Gender in Dispute: The National LiGay of Football Society and its Space of Happening

Géneros en disputa: la LiGay Nacional de Fútbol Society y su espacio de acontecimiento

Wagner Xavier de Camargo1 
http://orcid.org/0000-0003-4110-647X

1Universidade Federal de São Carlos, Centro de Educação e Ciências Humanas, São Carlos, SP, Brasil. 13565-905 - ppgas.coord@ufscar.br


Resumo:

Em algum momento da chamada ‘década esportiva’, na qual o Brasil passou por dinâmicas políticas, econômicas e sociais de grande impacto, emergiram ‘minorias’ sexuais engajadas, as quais trouxeram como pauta a presença de outros corpos e estéticas de gênero no meio futebolístico brasileiro. A proliferação destes e a intensificação de suas demandas desembocaram na organização de torneios específicos para pessoas autoidentificadas como LGBTIQAP+, em várias regiões do país. A LiGay Nacional de Futebol Society é o resultado direto de uma arregimentação maior desses grupos. A partir de uma pesquisa etnográfica em eventos planejados e executados pela referida liga (entre 2017 e 2019), este artigo busca ponderar sobre essas novas práticas esportivas e o modo como atletas homo/transexuais subjetivam de forma diferente o futebol, reeditando-o como espaço de acontecimento.

Palavras-chave: futebol society; LiGay; homossexualidades; transmasculinidades; modos de subjetivação

Abstract:

At some point in the ‘sportive decade’ in Brazil, in which the country was target by huge changes in social and political contexts, particularly sexual ‘minority’ groups emerged, and brought the existence of other bodies/aesthetics to the world of football. As they spread quickly, their demands for LGBTIQAP+ tournaments had increased in cities and states of the National territory, and consequently, the LiGay (National LiGay of Football Society) was created. Based on ethnographic research on events planned and carried out by such league (from 2017 to 2019), this article aims to analyze these new expressions on the football practices, and the way how homo/transexual athletes show different kinds of subjectivation about these activities, re-editing them as a space of happening.

Keywords: Society Football; LiGay; Homosexualities; Transmasculinities; Subjectivation

Resumen:

En algún momento de la llamada ‘década del deporte’, en la que Brasil pasó por dinámicas políticas, económicas y sociales de gran impacto, surgieron ‘minorías’ sexuales comprometidas, que trajeron la presencia de otros cuerpos y estéticas de género a la escena del fútbol brasileño. La proliferación de estos y la intensificación de sus reivindicaciones llevaron a la organización de competencias distintas para personas LGBTIQAP+ en varias regiones del país. La LiGay Nacional de Fútbol Society es el resultado directo de una mayor regimentación de estos grupos. A partir de una investigación etnográfica sobre los eventos planeados y ejecutados por dicha liga (entre 2017 y 2019), este artículo buscó considerar esas nuevas prácticas deportivas y la forma en que los atletas homo/transexuales subjetivan el fútbol de manera diferente, reeditándolo como un espacio de acontecimiento.

Palabras clave: fútbol society; LiGay; homosexualidades; transmasculinidades; modos de subjetivación

Introdução

Quando o inglês Justin Fashanu anunciou-se ‘homossexual’1 nos anos 1990, o mundo futebolístico não estava preparado para isso. Jogador mais caro da história da modalidade, transferido de seu clube para o Nothingham Forest Football Club por um milhão de libras esterlinas, no auge do sucesso, talvez tenha considerado que a fama o blindaria e que nada aconteceria depois da entrevista bombástica ao jornal The Sun, na qual revelou que mantinha relações homoafetivas com outros homens. Ledo engano. A pressão foi tanta que sua vida profissional virou do avesso, seus contratos se esvaíram, seu futebol tornou-se andarilho e a relação com o irmão se deteriorou, quem, como forte aspirante a uma carreira de sucesso, viu seus sonhos ruírem a partir do escândalo causado por Justin, que, infelizmente, se suicidou algum tempo depois.2

Se o mundo do futebol de homens3 continua o mesmo no tratamento preconceituoso às sexualidades de jogadores, muitas coisas mudaram no esporte-espetáculo, inclusive a declaração mais frequente de sexualidades dissidentes da heterossexual por parte de atletas, em esportes individuais e coletivos. O ‘armário da sexualidade’ nunca esteve tão aberto: os meios de comunicação consideraram os Jogos Olímpicos do Rio 2016 como os “mais gays da história” (Tom AVENDAÑO, 2016), em referência a quantidade de anúncios de ‘saída do armário’ por parte de atletas, em várias modalidades olímpicas.

Em que pese à crítica a tal argumento, visto que foram declarações de cerca de sessenta pessoas num total de quase onze mil participações em tais Jogos, não se trata apenas de manifestações isoladas. Se para o feminismo o pessoal é político, vivemos um momento histórico de inúmeros posicionamentos pessoais perante instituições sociais e o esporte não tem escapado. Particularmente, temos presenciado no Brasil como as relações entre esporte e política estão se cruzando e compondo outras histórias: assim foi em 2013, com os protestos na Copa das Confederações, em 2014, com o movimento “Não vai ter Copa” (Arlei DAMO, 2014) e mesmo nos momentos prévios dos Jogos Olímpicos/Paralímpicos Rio 2016.

Segundo o entendimento em voga, isso ocorreu em função da ‘década esportiva’, período localizado, principalmente, entre os Jogos Pan-americanos, ocorridos no Rio de Janeiro em 2007, e os Jogos Rio 2016 mencionados anteriormente. As emoções atreladas aos eventos esportivos e a vinculação às questões políticas e socioeconômicas oriundas de diversos estratos sociais provocaram uma combinação explosiva de manifestações e protestos. Contudo, para as sociologias e antropologias dedicadas às análises sobre o fenômeno esportivo, não se trata apenas dos megaeventos mencionados, muito menos de um recorte temporal da intitulada ‘década’, mas “[…] das manifestações do fenômeno esportivo em uma perspectiva ampliada e plural, que supera o recorte temporal desta definição, abarcando dinâmicas de notável ressonância no campo político, econômico, midiático, educacional, etc.” (Enrico SPAGGIARI, Giancarlo MACHADO; Sérgio GIGLIO, 2016, p. 11).

A ampliação do entendimento de questões que se relacionaram com o esporte e sua profusão carregam em si novas possibilidades de compreensão de demandas que surgem em cena. É o que busco pontuar neste texto, à medida que resgato gêneros em disputa nas quadras de futebol society, em várias partes do país, no sentido de ressignificar o que se entende pelo ‘masculino’ e ‘feminino’ nessa expressão esportiva, com vistas a desmistificar ou se reapropriar de símbolos do campo e fazer disso um ‘espaço de acontecimento’.

São esportistas amadores que buscam espaço para suas expressões corporais e sexuais, dentro daquilo que se convenciona chamar de ‘mundo do futebol’. São homens cisgênero que mantêm relações homoeróticas e homoafetivas com outros homens e se autointitulam ‘gays’ ou ‘homossexuais’, mulheres cisgênero que buscam relações similares (porém, com outras mulheres) e se denominam ‘lésbicas’, pessoas bissexuais ou assexuadas e toda uma sorte de pessoas que se desidentificam em termos de gênero, como pessoas trans binárias ou não bináries, intersexos, queer, a-gêneros, pansexuais e demais (LGBTIQAP+). Pesquisadoras/es como Sofia Repolês e Érica Souza (2015), além do transativista Bruno Santana (2019), ressaltam o papel da linguagem na inclusão de tais ‘pessoas trans’ com o uso de substantivos ou adjetivos terminados em ‘e’, particularmente no caso de se referir a quem assim se (des)identifica. As marcas de gênero no masculino ou no feminino devem ser usadas com pessoas que se colocam como binárias.

A reivindicação desses grupos é provar que podem jogar futebol, independentemente de não se encaixarem, ipsis litteris, no modelo hegemônico do homem futebolista, branco, cisgênero, heterossexual, macho e viril. A ocupação de um espaço que lhes é negado e o ativismo nele são ‘acontecimentos’. Mas há algo além: acontecimento não é apenas o que acontece (um fato), ou o que tudo aquilo significa (o que de fato representa); é também tudo o que o futebol não identifica. O desfile de uma feminilidade exacerbada em corpos barbados, o flerte ou beijo nas laterais da quadra, os corpos que mesclam elementos tidos como ‘masculino’ e ‘feminino’, ou ainda a inflexão de gênero da linguagem são ‘acontecimentos’ que marcam e caracterizam essa ocupação como distintiva e diferente.

A própria generificação de corpos é um combate aos ditames regulamentares pelos quais o futebol (de matriz espetacular) se assenta, quais sejam, os dos gêneros colados aos sexos biológicos e, por isso, legitimados em competições esportivas que pregam a máxima da ‘igualdade de chances’ nas categorias binárias. Vale destacar que, no campo esportivo, gênero ainda é sinônimo de sexo e corpos são encaixados em tais categorias para competirem.4

Apesar de um discurso midiaticamente difundido de inclusão da diferença de corpos outros no esporte convencional, principalmente a inserção de pessoas com deficiência, a máxima não vale no tocante à sexualidade e muito menos quando se tratam de dissidências de gênero, como corpos/corpes que transitam entre gêneros e não assumem uma sexualidade ‘cis-heteronormativa’. Tais posturas têm aparecido nos discursos militantes das transgeneridades, resgatando a perspectiva de dupla violência simbólica que sofrem: o efeito dos discursos de normalidade/anormalidade relativa à sexualidade (Michel FOUCAULT, 1985, 1997), que empostam a heterossexualidade como norma, e as práticas presentes porém ocultadas da cisgeneridade, uma perspectiva tomada como ‘padrão’. Como afirma Viviane Vergueiro (2014), é a nomeação disso que vai questionar o status auferido de naturalidade, de verdade ou do biológico.

Como cenário, este artigo traz então etnografias realizadas em eventos esportivos no Brasil, organizados por e para pessoas que se reconhecem como LGBTIQAP+. A proliferação destes e a intensificação das demandas políticas de ocupação do futebol por expressões de gênero provocou a criação da LiGay Nacional de Futebol Society (LGNF) por parte de ‘homens gays’ cisgêneros, uma liga brasileira de clubes, resultado direto de uma arregimentação maior da demanda coletiva. Portanto, a partir de um campo etnográfico estabelecido nos eventos planejados e executados pela LGNF, este texto busca analisar essas novas práticas esportivas e o modo como atletas ‘homo/transexuais’ subjetivam, de forma diversa, o futebol e criam um ‘espaço de acontecimento’.

Dessa forma, o artigo se subdivide em três partes: na primeira descrevo as bases em que se assenta a aparição dos múltiplos futebóis generificados e suas reivindicações por espaço de expressão (esportiva e afetiva); na segunda trago a pesquisa etnográfica nos eventos esportivos, entre 2017 e 2019, estabelecendo uma discussão antropológica sobre significados e simbolismos de tais futebóis; e na terceira, as considerações finais, reflito sobre as propostas em vigor de futebóis generificados, que subjetivam o ‘bater bola’ como forma de existência/resistência, lutando por uma prática esportiva desgenerificada e particular.

Múltiplos futebóis, problematizações de gênero e a criação da LiGay

O evento esportivo sob investigação etnográfica é a Champions LiGay, uma clara referência à Champions League de futebol da Europa. Porém, é de futebol society (também chamado fut7) e não de campo, pois é realizado em quadras de grama sintética, em geral de fácil acesso, em ambientes urbanos de cidades médias e grandes no Brasil.

Como assinalou Tatiana Furtado (2017), numa reportagem, por ocasião da primeira edição, ocorrida em fins de 2017, este “futebol é coisa para mano, mana e mona”. Esse registro da língua falada faz alusão ao fato de que a modalidade pode ser jogada por homens ‘homo’/bi/‘heterossexuais’, por mulheres na mesma condição, e por inúmeras outras pessoas que se colocam em outro espectro, tanto da sexualidade, quanto de gênero, ou de ambos.

Como resultado da impostação contra manifestações LGBTfóbicas (homofobia, lesbofobia, bifobia, transfobia) do meio esportivo surgiram, nos últimos anos, grupos que inauguraram ‘múltiplos futebóis’, expressões que interseccionalizam distintos marcadores sociais como classe social, etnia, geração, performance de jogo e, sobretudo, sexualidade/gênero. Se, de um lado, apresentam certo ineditismo na proposta, de outro, participam do próprio fenômeno futebolístico em si, pois emergem “de dentro” dele (Luiz TOLEDO; Wagner CAMARGO, 2019). Esses grupos apareceram como forma de resistência, buscando empoderamento, a partir de exclusões sofridas em histórias individuais na relação com o futebol convencional.5

Para Arlei Damo (2007), a expressão “múltiplos futebóis” é signatária da noção de “futebóis”. Esse antropólogo, que dedicou parte de sua trajetória investigativa sobre o futebol de ‘matriz espetacularizada’ a partir da crítica de uma produção ‘canônica’ dos anos 1980-1990, resgatou recentemente seu próprio entendimento da categoria e o ampliou por meio de uma analítica que repensa e problematiza conceitos (de si e de outros pesquisadores), no contexto atual. Particularmente, segundo ele, de uma horizontalidade epistemológica a uma diversidade política, “[o] uso da noção de futebóis foi, portanto, uma estratégia para afirmar a diversidade, e ao mesmo tempo, demarcar a diferença entre a discursividade midiática e a nossa [antropológica].” (DAMO, 2018, p. 45).

Penso que os ‘múltiplos futebóis’ disseminam-se rapidamente na sociedade brasileira contemporânea como resultados de insatisfações crescentes de variados grupos com um tipo de valoração na cultura futebolística nacional, calcada nos mundos androcêntrico, sexista, racista e excludente do futebol midiatizado. Por isso, do ‘futebol de mulheres’ (Claudia KESSLER, 2016) ao ‘futebol de indígenas’, passamos por um espectro de possibilidades que buscam se expressar de modos peculiares, distanciando-se da prática hegemônica e, paradoxalmente, aproximando-se dela nas referências, de ser, de jogar, de vestir, de torcer. Como já fora destacado, “os ‘futebóis’ estão, ao mesmo tempo, à margem e também no centro do futebol hegemônico e espetacular, protagonizado por bio-homens [homens biológicos] que são referências principais de sociabilidade, identidade e reconhecimento na modalidade” (Wagner CAMARGO, 2020, p. 597). Portanto, os ‘múltiplos futebóis’ a que me atenho neste artigo é proposto e executado por equipes que jogam futsal ou futebol society, e têm aparecido e se desenvolvido no território nacional nos últimos cinco anos (2015-2020).6

Para tanto, aqui engendro uma discussão sobre gênero distinta da linha explicativa das primeiras teóricas feministas do campo, que o entendiam como a ‘construção social’ da diferença sexual. O filósofo espanhol Paul Preciado afirma que tal entendimento linear gerou catastróficos efeitos acerca da categoria gênero, que, em sua opinião, reverberam nas políticas atuais da área, de caráter estatal, muitas vezes binárias, que empurram ideais feministas para a oposição essencialismo/construtivismo. Como menciona textualmente, “a certeza de ser homem ou mulher é uma bioficção somatopolítica produzida por um conjunto de tecnologias do corpo, técnicas farmacológicas e audiovisuais, que determinam e definem o alcance das nossas potencialidades somáticas e funcionam como próteses de subjetivação” (PRECIADO, 2018, p. 127). Ou seja, para o autor, a enunciação de ser homem/ser mulher é uma ficção arquitetada com base no corpo biológico, porém construída por um apanhado de tecnologias e técnicas que transpassam tal organismo, potencializando-o num nível além da carne, funcionando como próteses da subjetivação.

Para ele, as pessoas estariam divididas em bio-homens e bio-mulheres, trans-homens/trans-mulheres ou tecno-homens/tecno-mulheres, sendo que os prefixos ‘bio’ e ‘trans’/’tecno’ diriam respeito a estatutos de gênero tecnicamente produzidos (PRECIADO, 2008, 2018). Consequentemente, bio-mulheres/homens se identificariam com as designações de gênero do nascimento e trans-mulheres/homens ou tecno-mulheres/homens as contestariam, tentando modificá-las a partir de processos externalizadores (estéticos, prostéticos, performáticos, etc.). Mediante isso, as formulações que explicitam o que esse sujeito/sujeite ‘é’ (‘sou mulher’, ‘sou transexual’, ‘sou homem’) agem como núcleos biopolíticos e simbólicos rígidos, ao redor dos quais se é possível agregar elementos pivotantes, como discursos e práticas performativas.

Apesar de pensar gênero além da performance butleriana, Preciado concorda com Butler (2000, 2003) sobre o fato de que montar (ou construir) gênero sempre equivale a desmontá-lo (ou desconstrui-lo). É assim, por exemplo, com o protocolo de aplicação voluntária de testosterona (que, inclusive, ele se submeteu ainda como bio-mulher) e com suas oficinas de drag king para bio-mulheres (uma vez que elas experimentariam o lugar de poder dos homens). Tais ações são estratégias de deslocamento de si, figurando na esfera das ‘micropolíticas de resistência’ gênero e na produção de (novas) subjetividades.

Gênero, por tal entendimento, não é metáfora nem ideologia, mas sim uma ‘tecnoecologia política’, não redutível apenas a atos performativos. O campo pesquisado dos ‘múltiplos futebóis’ é colonizado, cada vez mais, por um conjunto de pessoas que encampam distintas expressões de gênero - e que as usam para agregar saber sobre si.

As equipes a que me refiro expressam-se no futebol ostentando a bandeira do movimento político LGBTIQAP+, com pautas contra as inúmeras discriminações sofridas no esporte. A primeira Champions LiGay ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, num complexo esportivo com quadra de futsal na Barra da Tijuca, em 2017. Participaram dessa edição oito equipes representantes de localidades das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste: BeesCats e Alligaytors (RJ), Futeboys e Unicorns (SP), Bharbixas (BH), Bravus (DF), Magia (RS) e Sereyos (SC).

Desde o início da formação dos grupos, camisas (e depois uniformes completos, com calção, meião) distinguiam-se em cores e brasões ou escudos. Combinações de cores lembravam muito equipes do futebol convencional e podem ser mais ‘tradicionais’ (como verde e branco, vermelho e preto, branco e preto) ou ‘inusitadas’ (como amarelo e preto, azul claro, lilás e branco). Os brasões guardam referência com os das equipes de futebol e sempre trazem um animal que representa o grupo. Como apontado:

Como o veado, a abelha (“bee” em inglês, termo também usado em referência aos homossexuais), o gato (“cat”, em inglês) e o jacaré (“alligator”, em inglês) - ou de seres mitológicos - como o unicórnio ou a sereia (termo usado no masculino em referência a um homem bonito) -, frequentemente associados ao universo gay. (Diego JESUS, 2018, p. 334-335).

O primeiro evento foi marcado pelo estereótipo do ‘macho’ brasileiro futebolista, com características vinculadas a uma ‘masculinidade hegemônica’, na qual predomina a disciplina, o domínio de si, a força e a virilidade. Tomo como referência o conceito de Raewyn Connell (2005), porém há desdobramentos e críticas que mostram instabilidades e mesmo contradições nesse conceito, uma vez que as próprias ‘masculinidades queer’ dão uma resposta plausível (Tommaso MILANI, 2014; Fabrício FIALHO, 2006) e diferenciada.

Os corpos (de ‘homens gays’ e ‘cisgêneros’) tentavam se encontrar e buscar uma forma de agregar duas paixões: o ‘jogar futebol’ (algo que havia sido negado a eles bem cedo) e o ‘amar outros homens’, performatizando a homossexualidade ‘masculina’ e evocando um ethos guerreiro (JESUS, 2018). Outras figuras como drag queens, algumas mulheres e pessoas ‘trans’ orbitavam às margens.

O evento fez muito sucesso e a procura por participação tornou-se intensa nos meses seguintes. Como acontece atualmente, o contato cresceu tanto em redes sociais (particularmente, Facebook, Instagram), que os pioneiros Unicorns São Paulo (e, mais tarde, Unicorns Brazil) e os BeesCats começaram a, literalmente, ‘exportar’ know-how, explicando como montar e gerir grupos de ‘homens gays’ interessados em jogar fut7. Desde novembro de 2017, a cada seis meses uma edição ocorreu, conforme registrado na Tabela 1.

Tabela 1 Campeonatos nacionais da Champions LiGay 

Nome do evento Cidade-Sede Data Clube responsável Nº de equipes presentes
1ª Champions LiGay Rio de Janeiro/RJ nov./2017 BeesCats 08
2ª Champions LiGay Porto Alegre/RS abr./2018 Magia 12
3ª Champions LiGay São Paulo/SP out.-nov./2018 Unicorns 16
4ª Champions LiGay Brasília/DF abr./2019 Bravus 20
5ª Champions LiGay Belo Horizonte/MG nov./2019 Bharbixas 28

Fonte: elaboração própria.

#PraTodoMundoVer: A tabela está dividida em cinco colunas e descreve nome do evento, cidade-sede e estado, data de realização, clube responsável e número de equipes participantes. As informações estão assim dispostas: Primeira Champions LiGay, Rio de Janeiro, estado do Rio de Janeiro, novembro de 2017, BeesCats, oito equipes; Segunda Champions LiGay, Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, abril de 2018, Magia, doze equipes; Terceira Champions LiGay, São Paulo, estado de São Paulo, outubro e novembro de 2018, Unicorns, dezesseis equipes; Quarta Champions LiGay, Brasília, Distrito Federal, abril de 2019, Bravus, vinte equipes; Quinta Champions LiGay, Belo Horizonte, estado de Minas Gerais, novembro de 2019, Bharbixas, vinte e oito equipes.

Se o futebol é a linguagem comum, o que os particulariza é, exatamente, suas expressões de gênero: com o passar das edições da Champions LiGay, o fenômeno foi se popularizando e sujeites transmasculines, isto é, que estão em processo de transição de gênero de um corpo biológico de mulher para o de um homem (trans), binários ou não bináries, têm aparecido. Outra característica que salta aos olhos com o passar das edições é a maior quantidade de pretos e pardos que ocupam espaços nas equipes.

Na esteira de uma etnografia: corpos, políticas, espaços e sexualidades

De caráter etnográfico, minhas interpretações dizem respeito a eventos esportivos, planejados e executados de 2017 a 2019, os quais frequentei como ‘participante observador’. Aqui, diferentemente das etnografias em eventos esportivos internacionais (Wagner CAMARGO, 2012), nos quais operei como ‘observador participante’, me mantive de fora do gramado, porém dentro do fenômeno em curso. Narrar tal participação foi tão fundamental quanto narrar a observação - e, em termos antropológicos, passei da “observação participante para a participação observante” (Eunice DURHAM, 2004, p. 369), algo, inclusive, anteriormente feito em famosa etnografia sobre o mundo do boxe em Chicago, nos EUA (Loïc WACQUANT, 2002).

O trabalho de campo foi desenvolvido durante três edições de campeonatos nacionais da LiGay: a primeira, a terceira e a quinta Champions LiGay (Tabela 1). Travei contato com muita gente, de múltiplos gêneros, e das vinte pessoas com quem conversei, seis são informantes prioritários da pesquisa.7

Embora, em geral, seja colocada no lugar de técnica de pesquisa, a etnografia é um modo singular de como conceber a própria investigação, realizada via trabalho de campo, com forte componente experimental (James CLIFFORD, 2008). Essa técnica passa por uma longa trajetória de crítica sobre o seu desenvolver, das formas mais clássicas de sua apreensão (como no início do século XX com Bronislaw Malinowski) até atualmente com os pós-modernos e o enfrentamento à posição da autoria na escrita (Liliana SANJURJO; Wagner CAMARGO; Victor KEBBE, 2016).

Uma etnografia, se bem feita, também é teoria (Mariza PEIRANO, 1995). Além disso, não há etnografia sem pesquisa empírica, pois esta é a proposta central da antropologia. E o raciocínio inverso também é verdadeiro: não há antropologia sem etnografia. Tendo isso por pressuposto, etnografei os campeonatos, mencionados anteriormente.

Como procedimento metodológico, que me possibilita acompanhar o que está acontecendo no universo futebolístico LGBTIQAP+, desenvolvi um protocolo de resgate de informações por meio de redes sociais e de conversas por WhastApp (ou também entrevistas privadas com jogadores). A intenção é interpretar a dimensão simbólica dessas novas práticas esportivas em território nacional e o modo como elas subjetivam de forma distinta o fut7 e o tornam um ‘espaço de acontecimento’, vinculado às expressões de suas sexualidades e identificações generificadas.

A criação da LiGay em 2017 deu-se no contexto já de equipes amadoras de futebol espalhadas pela região Sul-Sudeste e mesmo de uma agitação política do esporte para minorias sexuais, bandeira de uma organização nacional, o CDG Brazil, que tinha muita dificuldade para realizar suas ações.8 Como a LiGay já tinha sido fundada por André Machado e realizado a sua primeira edição no final em novembro de 2017, muitas equipes começaram a espocar rapidamente, a ponto de ser organizada a 3ª Champions LiGay no final de 2018 (apenas um ano após a primeira), com a participação de dezesseis equipes e uma fila de espera de outras interessadas.

De meu ponto de vista, como antropólogo que acompanha, desde 2006, eventos esportivos relacionados às demandas LGBTIQAP+, se a criação da LiGay e mesmo a representação esportiva numa competição internacional (os Gay Games 2018, em Paris) marcaram um trabalho direcionado dessas equipes por empenho de Machado e colegas, colocaram, igualmente, um ponto final num projeto de intensão nacional, representado pelo CDG Brazil.

Ou talvez o próprio CDG encampava uma filosofia de administração esportiva que estava já agonizante nos anos insossos do governo provisório de Michel Temer, pós-Dilma e pós-PT. Basta lembrar que o esporte e o lazer nunca figuraram, historicamente falando, entre as pautas prioritárias da agenda governamental no país (Pedro ATHAYDE, 2015). Em sua gestão, Lula foi muito hábil em resgatar o ‘desporto’ como direito (social ou individual), que já estava na Constituição Federal de 1988, dando um encaminhamento para isso - inclusive com a criação do Ministério do Esporte: “Portanto, é preciso reconhecer o mérito inicial do governo Lula em assumir, pública e oficialmente, as demandas esportivas como uma questão de acesso dos cidadãos a um direito legalmente garantido” (ATHAYDE, 2015, p. 197). Entretanto, tal empenho foi logo obnubilado pelo investimento deslocado em relação aos megaeventos esportivos, pois, a partir de 2008, inicia-se um ‘deslocamento de recursos’ do orçamento do governo em direção à expressão do esporte de matriz espetacular, em detrimento tanto da proposta de Lula de garantia do fenômeno esportivo como direito social quanto da minimização de importância de programas como o Segundo Tempo. Tudo acontecia, obviamente, devido às prioridades relativas aos eventos da agenda internacional (Copa e Olimpíadas).

O ‘salve-se quem puder’ no Brasil de transição política, acompanhado das manifestações violentas de homofobia e racismo (ou, no limite, de toda sorte de xingamentos LGBTfóbicos) recorrentes em jogos de futebol ou competições esportivas, fez brotar agenciamentos produtivos, dentre os quais destaco a proliferação das equipes de fut7, de ‘homens gays’. Contudo, isso vai desencadear consequências: reivindicações de ‘mulheres lésbicas’, pessoas não bináries e de grupos transgêneres, que também acusam discriminações e demandavam um lugar de explicitação de seus futebóis.

A terceira edição da LiGay em 2018 já é realizada num contexto em que algumas pessoas ‘trans’ aparecem em cena, no propósito de ‘demarcar território’ e muitas outras se retiram, iniciando circuitos paralelos de prática do fut7. A competição ocorreu em quadras sintéticas alugadas, em frente ao Centro de Treinamento do Palmeiras, no bairro da Barra Funda, em São Paulo. Quando lá cheguei, bem antes do horário do início dos jogos, me espantei com o cenário bastante estruturado:

O Uber me deixou em frente à Arena, mas do outro lado da rua. Vi balões coloridos e uma música eletrônica em volume alto e tive certeza de onde seria o evento. Ao entrar no espaço, avistei tendas de agências de turismo que ofereciam viagens e pacotes (inclusive a LOVE Great Britain, órgão oficial do turismo para a Grã-Bretanha, estava lá distribuindo panfletos). Identifiquei um espaço do aplicativo Scruff (de encontros homoeróticos e afetivos), bem localizado e visível. Algumas pessoas ainda amarravam placas com o logo da LiGay e o nome São Paulo. Havia movimentação de pessoas uniformizadas para lá e cá, barracas de comidas e bebidas, uma tenda principal com aparelhamento de som. Ainda se localizavam trailers no espaço para venda de tickets e para banheiros. A organização correu por conta da equipe Unicorns Brazil, originária da cidade (Diário de Campo, 01/11/2018).

De modo geral, jogadores novatos apareceram, as equipes aumentaram em tamanho (inclusive com composição técnica) e as performances esportivas agregavam elementos táticos mais sofisticados, como triangulação para tabelar, gols em ângulos difíceis ou mesmo de bicicleta. Um futebolista do time dos Alligaytors narrou que a equipe tinha contratado um técnico formado em Educação Física que prescrevia treinos sistemáticos e diferenciados para o grupo. Observei a mesma ação feita por outras equipes e constatei a presença de muitas mulheres nas comissões técnicas (como na equipe dos Sereyos), algo também flagrado por outro antropólogo em campo (Maurício PINTO, 2019).

Percebi, além disso, que havia maior homogeneidade em composição corporal, com jogadores esguios e, aparentemente, em boa forma física. Como pontuei:

tal formato corporal funcionava como um componente do desejo homoerótico naquele evento paulista e que colocava em circulação corpos, sexualidades e desejos. Observei uma sessão de fotos, ainda previamente às contendas, em que um jogador do Futeboys fez muito sucesso e arrancava olhares de muitas pessoas presentes: com uma musculatura torneada que a camiseta rosa e amarela esculpia, shorts justo, barba aparada e contínua, cabelos castanhos claros: ele parecia ser a “medida do desejo coletivo” (aspas na expressão que ouvi). Ao menos, foi o que pude capturar nas movimentações dos olhares, expressões de sorrisos aleatórios ou mesmo comentários cantos-de-boca (Diário de Campo, 01/11/2018)

Isso me fez tecer, para aquele momento, crítica semelhante ao que havia feito no caso das edições dos Gay Games, etnografadas por mim (CAMARGO, 2012): havia predomínio de um corpo branco, cisgênero, hábil (ou seja, não deficiente), supostamente de classe média-alta, com educação superior e que ostentava padrões de beleza normativos e midiaticamente valorizados. Nesse contexto, portanto, era inteligível a expressão que ouvi de um jogador que disse “futebol gay que me representa”, dizeres estampados nas costas de uma camisa polo, que algumas pessoas usavam na primeira edição em 2017. Resgatando notas da primeira LiGay:

Na 1ª Champions LiGay no Rio de Janeiro, havia um homem no interior do Hotel Ipanema Plaza (Rio de Janeiro), no dia do congresso técnico, com uma camiseta com tais dizeres nas costas. Importante marcar que esse ‘futebol gay’ nasceu cisgênero, branco, burguês e reforçando dados da ‘masculinidade hegemônica’, como teria observado sobre esse conceito a pesquisadora australiana RaewynConnell (2005). (Diário de Campo, 25/11/2017).9

Portanto, é importante ouvir Bernardo Gonzales, um homem trans, ativista de direitos humanos, e ex-jogador dos Meninos Bons de Bola (MBB): tanto na 1ª Champions LiGay, quanto em outros eventos esportivos de promoção inclusiva, não apenas houve uma prevalência de corpos brancos, magros e definidos de ‘homens gays’, como prevaleceu a própria cultura futebolística da masculinidade tóxica e do menosprezo ou inferiorização de adversários. Como Bernardo registra, amplamente, em suas mídias sociais, após as humilhações sofridas pelo MBB, por parte de alguns times, durante a 2ª Taça Hornet, evento menor ocorrido em 2018:

Digo isso, porque hoje, de alguma forma, todas essas frentes, de alguma faceta, deixaram evidente que essa Taça e esse espaço pertencem, exclusivamente, aos 'homens cis' e 'gays'. Além dos 10 'caras trans', as 'mulheres cis' com uma representação tímida na forma de técnicas, as drags queen um espaço no entretenimento e ademais uma também tímida participação de 'mulheres cis' na torcida. (GONZALES, 2018, grifos meus).

A Taça Hornet, patrocinada por outro famoso aplicativo de encontro homoerótico (que empresta nominação ao evento), foi uma tentativa não muito bem sucedida, ainda num momento de transição, para o que depois seria o formato da LiGay. Ocorreram apenas as duas edições mencionadas.

Assim, enquanto faltava representatividade de identidades sexuais, de gênero e de corpos na terceira edição da Champions LiGay, havia a presença de drag queens, figuras celebradas por fazerem rir e por encaminharem deboches sobre o universo da homossexualidade. Tanto no evento do Rio de Janeiro, quanto no de São Paulo (em 2018), as drags coordenavam as pausas, faziam performances dançantes (solo ou acompanhadas) e falavam ao microfone. Elas literalmente dominavam a cena.10

As drag queens corroboram a noção de ‘acontecimento’, visto que transformam um simples certame futebolístico amador em uma frenética batalha, digna de final de Copa do Mundo. Em minha inferência, o acontecimento traria duas dimensões difusas entrelaçadas: de uma parte, a grandiosidade apoteótica do que aquilo representa para a comunidade que prestigia a competição (uma vez que pessoas LGBTIQAP+ são rechaçadas de espaços esportivos convencionais) e, de outra parte, um evento que merece respeito pelos próprios sujeitos e por quem os assiste jogando, pois, se não são incluídos em outros lugares do esporte, ali é o lugar que criam para a valoração da ‘causa’ e de todo o significado da ocupação daquele espaço.

A relação entre drag queen e ‘homens gays’ é antiga e sempre habitou o universo da noite, ao menos em casas noturnas. É um corpo que exagera em ações, falas, atos e roupas, mas que, ao entreter, também faz pensar. Nesse sentido, a atuação das drags é política e consequente.

Já na quinta etapa da Champions LiGay, ocorrida na cidade de Belo Horizonte, a cena drag não se fez muito presente e, devido ao cronograma apertado em número de jogos, seguiu-se a competição:

participaram 28 times de várias partes do país (prioritariamente das regiões Centro Oeste e Sul-Sudeste), mais de 400 atletas, os quais jogaram 56 partidas e fizeram 216 gols, dados estes oriundos da Confederação de Futebol de 7 do Brasil - que comandou, inclusive, a arbitragem do evento (Diário de Campo, 16/11/2019).

Longe do centro comercial, numa arena em local marginal da cidade (Arena Santa Cruz), o evento foi criticado por parte (talvez, a maioria) das pessoas, seja porque estava num lugar afastado, seja porque carecia de infraestrutura adequada, tanto para os jogos (a grama sintética estava mal colocada e havia barro por todos os lados), quanto os banheiros e vestiários não tinham portas, poucos possuíam chuveiros quentes e papel higiênico era artigo raro.

Numa reunião entre representantes dos clubes, no segundo dia de evento e com a tabela de jogos rolando, os problemas foram colocados em discussão e se estabeleceu uma comparação com as sedes anteriores da LiGay. O tom acusativo aos Bharbixas, entidade responsável, baseava-se na questão que não parava de circular nas rodas de conversa: “o que havia sido feito com o dinheiro das inscrições pagas pelos clubes?”. Independentemente das respostas e decisões tomadas em cima da hora, houve um comprometimento coletivo para que nas próximas edições não acontecesse o mesmo. Era a primeira vez que presenciava dirigentes de associações e clubes brasileiros reunidos, tentando pensar o presente e o futuro dos campeonatos de futebol identitários (no que diz respeito a gênero e sexualidade). Havia em gestação ali algo até então inédito no cenário esportivo LGBTIQAP+ no país.

Pode soar estranho, mas o engajamento político-esportivo na área das questões de gênero no Brasil é bastante recente, algo que, em países com larga tradição esportiva por tais grupos, no Hemisfério Norte, é bem mais comum (CAMARGO, 2012).

Andando pelas instalações do evento mineiro e percebendo a vizinhança do entorno, observei também que muitas pessoas dali circulavam pela arena e, de alguma forma, participavam do evento. Algumas vendiam produtos, como comida e bebida; outras paravam para ver os jogos, inclusive tirando fotos e torcendo por inércia - afinal, o que acontecia lá eram jogos disputados de futebol, algo fácil de entender na leitura dos passantes.

A partir disso, considero que a equipe organizadora acabou acertando na localização da arena, mesmo tendo sido criticada por isso. A visibilidade dessas expressões futebolísticas não hegemônicas é política e trazer à tona o encontro entre futebol, sexualidade e diversidade de corpos acaba me parecendo produtivo para fomentar a diversidade cultural e a convivência harmônica entre estratos sociais. Vale dizer também que ouvi reclamações dos dirigentes de equipes, mas nenhum dos jogadores com quem conversei nas bordas das quadras ou mesmo dentro dos vestiários reclamou das condições precárias do local de jogo ou de convivência. Foi o que um jogador de uma equipe gaúcha me disse, enquanto chovia, os jogos estavam paralisados e ele tirava seu meião e chuteiras encharcados: “não tem o que a gente teve em POA, mas tem o nosso futebol e então tá bom, né?”.

Em termos futebolísticos, equipes como Bulls Football Club (de São Paulo) e BeesCats se consolidaram como grandes expoentes e, em certa medida, se esperava que fossem também favoritas ao título. No tocante aos times, algumas mudanças ocorreram entre fim de 2018 e fim de 2019: os Sereyos perderam parte de seus integrantes para os Tubarões e a equipe acabou desfeita; os Ball Cat’s estiveram pela primeira vez num evento da LiGay e acabaram trazendo representatividade do Norte do país, até então sem qualquer participação; os Bárbaros F. C. (de São Paulo), acabaram ficando em segundo lugar na classificação final do campeonato e se mostraram a grande surpresa do evento, visto que era uma das mais novatas equipes da competição. Como destaquei:

A cada edição, a competitividade aumenta e o nível técnico de jogadores/as também melhora. Uma das partidas da semifinal entre as equipes Bharbixas (MG) e Taboa (PR) foi muito disputada e terminou o tempo regulamentar no empate (1 x 1). Na cobrança de pênaltis, os Bharbixas avançaram para a semifinal com um placar de 7 x 6 (Diário de Campo, 15/11/2019).

Os jogos da semifinal e da final demonstraram grande desempenho físico de jogadores e mesmo um empenho de concentração e mentalização, convocados pelas equipes técnicas. Cada jogo das etapas finais agregava dezenas de pessoas e as disputas eram acirradas, com a arbitragem também apertando o cerco. Passando rapidamente por um grupo que tinha sido desclassificado da tabela enquanto o campeonato avançava para as semifinais, ouvi o técnico e a assistente técnica dizerem: “isso aqui é futebol, porra; vocês não [es]tão aqui porque são gays, mas porque são jogadores de futebol. Tem que entender isso!” (Diário de Campo, 15/11/2019).

Algo interessante de ser destacado é o que diz respeito à representatividade de mulheres jogadoras, que nesse evento começou a se pronunciar. As ‘mulheres’ (‘cis’ ou ‘trans’) estiveram organizadas em três equipes, que jogaram entre si turno e returno - tais equipes somadas às vinte e cinco de ‘homens gays’, resultavam nas vinte e oito participantes da competição (Tabela 1). Demarcaram o território da LiGay também como espaço ‘delas’ e uma jogadora de Belo Horizonte fez questão de me dizer: “nas próximas vamos estar lá”. Percebi que o discurso funcionava via um interesse em mostrar o futebol de mulheres, muitas vezes forçosamente invisibilizado pela cultura masculinista do futebol convencional midiatizado.

Um ‘acontecimento’ emblemático na quinta edição da LiGay foi a maior presença de jogadores transmasculines/os, participando de alguma equipe ou apenas torcendo. Claro que, atualmente, há um proliferação positiva de jogadores homens trans e eles procuram seus espaços de prática, visto que já houve certa crítica em relação ao predomínio de ‘homens gays’ cisgêneros nos eventos da LiGay. No entanto, tal presença foi notada, muito mais do que anteriormente:

Ao adentrar à beira do gramado para tirar algumas fotos, notei a presença de uma garota entre os jogadores homens. Em realidade, observei direito e conclui que era uma pessoa trans, quem meu olhar moldado pela cis-heteronormatividade, acusava ser “uma mulher”. Enquanto acabava o jogo e eu preparava minha câmera para uma foto do grupo, pensei melhor e achei que era um “homem” trans. De repente, o time feminino daquela mesma equipe entrou em campo e ele, agora ela, trocou de uniforme na minha frente, bem na linha lateral do campo, alinhando-se com as mulheres lésbicas. E eu fiquei impressionado com a duplicidade de expressões de gênero, moldáveis às necessidades técnicas do momento e ao ímpeto juvenil do prazer de jogar bola (Diário de Campo, 14/11/2019).

Jogadores transmasculines/os têm se afirmado a partir da presença na disputa simbólica por uma ‘masculinidade futebolística’, ou dito de outro modo, de uma ‘transmasculinidade futebolística’. O futebol acaba sendo um dos espaços outros onde tais pessoas se encontram, além dos grupos de ativismo ou de cuidados com a saúde. Com maior ou menor passabilidade,11 o futebol como expressão da cultura é cooptado e, a partir dele, se propõem outras questões sobre corpos, gêneros, políticas e sexualidades. Essa narrativa sobre tal jogadore (vou assumir aqui que é uma pessoa não binárie) mostrou, primeiramente, um olhar viciado e eivado de preconceitos de um pesquisador homem, branco e cisgênero (apesar de gay) que sou, formado por uma ciência também objetiva e masculinista. Em que pese aos meus anos de pesquisa e militância na área de estudos de gênero, ainda fiquei ansioso por entender e explicar como aquele corpe, metamórfico, conseguiu, de modo fácil, flexível e totalmente desvencilhado do que outros lhe imputam como ‘natureza’, despir-se de roupas e de uma forma de jogar para, prontamente, assumir outras.

É a isso que me refiro também como ‘espaço de acontecimento’, por entender que a aparente simplicidade de mudança na performance de gênero está atrelada a uma transformação completa e outra (e nova) subjetivação sobre o jogar futebol. No caso, corpes como esse metamorfoseiam-se para adaptarem-se a outra prática e, contudo, conseguem ir-e-voltar, criando possibilidades de acontecer no jogo (de ver, de ser, de jogar, de perceber, etc.). Ainda, penso que tal modus operandi é o que mostra que o futebol já foi ‘colonizado’ (entenda-se de modo amplo) por corpos diversos, que inicialmente enfocando o bordão ‘gays também jogam futebol’, deram novos contornos para a expressão ‘jogar futebol’, cujos próprios novos contornos estão em fase de redefinição. O futebol society gay foi subvertido por um futebol que eu ousaria classificar como pós-queer, ou seja, mais despadronizado, politizado, democrático, inclusivo e pós-gênero.

Entendo que todas as pessoas são marcadas, por assim dizer, por gênero, mesmo quem, politicamente, visa se desfazer, de uma forma ou outra, dessas marcações que habita. No entanto, a questão que fica não é a nova situação (de gênero) conquistada, mas sim o processo instaurado, metamórfico/mutante e sem fim.

A seguir, teço algumas considerações finais sobre esses novos modos de subjetivação na prática de jogar futebol, que nos conduzem, tanto a um novo entendimento de corpos/corpes ali em movimento, quanto de uma nova potencial prática em gestação.

Considerações finais

Em fins de janeiro de 2020, mais especificamente no dia 29, em que é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans, Marcelo Nascimento Leandro (2020) soltou uma matéria-depoimento no Globo Esporte reconhecendo-se um ‘homem trans’. Com larga experiência no futsal de mulheres (com três títulos mundiais pela seleção brasileira) e um título com o Corinthians, no futebol de campo, Marcelo surpreendeu o mundo futebolístico com tal anúncio: afinal, assumir-se homossexual é um tabu no meio machista da modalidade, como já frisei no início deste texto, imagine-se a declaração de condição de pessoas ‘trans’, que contraria discursos de verdades sobre o sexo do corpo biológico, a partir do que se entende como padrão. Certamente tal caso é um marco, tanto na história do futebol nacional, quanto na do futebol mundial.

Ao contrário da opinião de um técnico com quem conversei à beira da quadra (na competição de Belo Horizonte) sobre questões ‘trans’ no esporte, não são apenas identidades sendo acionadas. São questões de outra ordem: são identificações em curso, que não se pretendem terminais e que se colocam como práticas de empoderamento, de pessoas que sofreram múltiplas camadas de exclusão até, enfim, encontrarem um caminho que consideram satisfatório. Diferentes podem ser os discursos de pessoas ‘trans’, porém a máxima ‘resistir para existir’ é um denominador comum, particularmente diante de tantas formas de violência a que são submetidas, inclusive a morte.

As múltiplas dimensões de gênero contidas nos espaços desses eventos esportivos se entrelaçam e misturam corpos/corpes de pessoas ‘trans’, binárias ou não bináries, pessoas bissexuais ou assexuadas, ‘homens gays’ e ‘mulheres lésbicas’, ‘cis’ ou ‘trans’, que propõem não somente uma performance esportiva de um ‘futebol marginal’, mas postulam uma disrupção, uma fratura, nos valores instituídos de ‘virilidade’, de ‘feminilidade’, de ‘masculinidade bruta’, de ‘macheza’ e de todas as qualificações oriundas do campo esportivo sobre atletas. Em maior ou menor proporção, de um jogadore ‘trans’ não binárie a um ‘homem cis gay’, essas categorias qualificatórias acabam perdendo força ou mesmo desaparecendo, numa clara ressignificação de seus conteúdos simbólicos.

Portanto, o bater bola desses sujeitos nunca é apenas um futebol qualquer: a presença corporal materializa outro simbolismo, que não importa de que grandeza seja, mas o futebol está sendo conquistado, englobado, cooptado, capturado, ou colonizado ‘de dentro’, por quem sempre jogou e foi excluído, ou por quem sabe tabelar e foi impedido, ou ainda, de quem sempre amou a modalidade, mas teve que renunciar a isso em prol de valores hegemônicos e excludentes.

No entanto, como a Champions LiGay tem crescido e agregado mais futebóis, não apenas a diversidade de corpos aumentou, como há outras classes sociais, gêneros, etnias, idades e mesmo expectativas sobre tais futebóis. Conforme narrei anteriormente, a equipe, que era novata e que o técnico e a assistente técnica passavam um sermão após a desclassificação na semifinal em Belo Horizonte, contava com jogadores aparentemente muito simples, com meias surradas, uniformes de tecido baratos e chuteiras velhas ou tênis esgarçados. A pressão que ouvi sendo exercida sobre o grupo por uma desclassificação numa competição quase que ‘de várzea’ mostra que o entendimento não é único, muito menos homogêneo, para as pessoas que dela participam. Mesmo nesse lugar, o futebol parece exercer a influência de ‘esperança’ de uma vida melhor, a partir dos espaços de acontecimentos.

As contradições entre os biocódigos, low ou high tech - como diria Preciado (2008) -, como testosterona, pelos/barba, próteses penianas, clitóris avantajados, músculos, mamas, etc., (con)formam subjetividades, que operam distintos regimes de produção corporal. Do primeiro campeonato ao último em fins de 2019, muita coisa mudou, outras formas corporais apareceram e outras enunciações de gênero surgiram. Arrisco dizer que do futebol gay houve um shift (mudança), que ainda está em processo, para um futebol LGBT, pluralizando as vozes e mesmo ampliando a representatividade das expressões de gênero, pois afinal as vivências com o futebol das pessoas envolvidas nesses eventos são tão distintas e múltiplas, que não cabem apenas na explicitação da homossexualidade ou da transexualidade em contraposição a uma heterossexualidade compulsória (Adrienne RICH, 2012). Na explosão de performances de gênero, a homossexualidade cis acabou ficando tão obsoleta e caduca quanto a cis-heteronormatividade. A ordem do dia dos grupos, no entanto, é a luta por um lugar de menor opressão, no qual caibam mais formas corporais desviantes e que o alvo a ser abatido seja a cis-heteronorma.

Não se trata de estabelecer um continuum de práticas futebolísticas dissonantes (que destoam do mainstream, mas se mantêm nele), que mudam mediante maior conscientização ou envolvimento das pessoas. Há uma clara tensão instaurada entre as equipes que praticam esse futebol society LGBTIQAP+ e participam dos eventos da LiGay ou outros. As expressões de gênero estão em busca de um formato de jogo (estilo, talvez?) para acomodarem corpos e demandas sexuais.

Importante entender que, a partir desse cenário instituído, não apenas os grupos estão em disputa por mostrar os seus futebóis, porém o próprio futebol está em disputa consigo mesmo, numa espécie de permanente redefinição. As discussões antropológicas sobre significados e simbolismos de práticas singulares acionadas pela diversidade em quadra acabou, inclusive, afetando o próprio futebol enquanto expressão no mundo. Será que há espaço para tantas mudanças?

Referências

ATHAYDE, Pedro F. “O ‘lugar do social’ na política de esporte do governo Lula”. In: MATIAS, Vagner B.; ATHAYDE, Pedro F.; MASCARENHAS, Fernando (Orgs.). Políticas de esporte nos anos Lula e Dilma. Brasília: Thesaurus, 2015. p. 187-210. [ Links ]

AVENDAÑO, Tom C. “Rio 2016 se transforma na Olimpíada mais gay da história”. El País [online], 2016. Disponível em Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/09/deportes/1470774769_409560.html . Acesso em 02/11/2019. [ Links ]

BUTLER, Judith. “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo”. In: LOURO, Guacira L. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. Disponível em Disponível em https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1230/Guacira-Lopes-Louro-O-Corpo-Educado-pdf-rev.pdf?sequence=1 . Acesso em 10/12/2019. [ Links ]

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. [ Links ]

CAMARGO, Wagner Xavier de. Circulando entre práticas esportivas e sexuais: etnografia em competições esportivas mundiais LGBTs. 2012. Doutorado (Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. [ Links ]

CAMARGO, Wagner Xavier de. “Dimensões de gênero e os múltiplos futebol no Brasil”. In: PRONI, Marcelo W.; GIGLIO, Sérgio S. O futebol e as ciências humanas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2020. p. 589-604. [ Links ]

CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2008. [ Links ]

CONNELL, Raewyn W. Masculinities. 2. ed. Berkeley: University of California, 2005. [ Links ]

DAMO, Arlei Sander. Do dom à profissão. São Paulo: Hucitec, 2007. [ Links ]

DAMO, Arlei Sander. “Futebóis: da horizontalização epistemológica à diversidade política”. FuLiA/UFMG, v. 3, n. 3, p. 33-66, set/dez. 2018. Disponível em Disponível em http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/fulia/article/view/15211/1125612315 . Acesso em 28/03/2020. [ Links ]

DAMO, Arlei Sander. “Vai ter Copa no Brasil”. Novos Debates: Fórum de Debates em Antropologia, v. 1, n. 2, jul. 2014. Disponível em Disponível em http://abant2.hospedagemdesites.ws/novos_debates/numeros-anteriores-2/ . Acesso em 03/06/2020. [ Links ]

DURHAM, Eunice R. A dinâmica da cultura: ensaios de Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2004. [ Links ]

FIALHO, Fabrício Mendes. “Uma crítica ao conceito de masculinidade hegemônica”. Working Papers, Lisboa, WP9-06, p. 1-14, set. 2006. Disponível em Disponível em https://bit.ly/2C2qmht . Acesso em 01/06/2020. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1985. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). Tradução de Andréa Daher; consultoria de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1997. [ Links ]

FURTADO, Tatiana. “Rio recebe primeiro campeonato brasileiro apenas com homossexuais”. O Globo [online], 19/11/2017. Disponível em Disponível em https://oglobo.globo.com/esportes/rio-recebe-primeiro-campeonato-brasileiro-apenas-com-homossexuais-22085485#:~:text=Enquanto%20isso%2C%20desfila%20seu%20talento,25%2C%20na%20Barra%20da%20Tijuca . Acesso em 13/04/2020. [ Links ]

GONZALES, Bernardo. “Futebol da diversidade, a quem queremos enganar?”. São Paulo, 02/06/2018. Facebook: https://www.facebook.com/bernardogonzalesalvarez. Disponível em: Disponível em: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=877635292418440&id=100005159321187 . Acesso em 06/07/2021. [ Links ]

JESUS, Diego Santos Vieira. “‘Futebol é coisa para mano, mana e mona’? A LiGay Nacional de Futebol Society”. Periódicus, v. 1, n. 10, p. 327-342, nov. 2018. Disponível em Disponível em https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/26521/17159 . Acesso em 13/04/2020. [ Links ]

KESSLER, Cláudia S. “Futebol ou futebóis: é plural ou singular?”. In: KESSLER, Cláudia S. (Org.). Mulheres na área: gênero, diversidade e inserções no futebol. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2016. p. 21-41. [ Links ]

LEANDRO, Marcelo Nascimento. “Meu nome é Marcelo”. Globo Esporte [online], 29/01/2020. Disponível em Disponível em https://interativos.globoesporte.globo.com/sp/futebol/materia/a-metamorfose . Acesso em 30/01/2020. [ Links ]

MILANI, Tommaso. “Queering masculinities”. In: EHRLICH, Susan; MEYERHOFF, Miriam; HOLMES, Janet (Eds.). The handbook of language, gender, and sexuality. 2. ed. New York/London, Wiley-Blackwell, 2014. [ Links ]

PEIRANO, Mariza. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. [ Links ]

PINTO, Maurício Rodrigues. “As mulheres que fazem a LiGay”. Ludopédio, São Paulo, v. 115, n. 11, 15/01/2019. Disponível em Disponível em https://www.ludopedio.com.br/arquibancada/as-mulheres-que-fazem-a-champions-ligay/ . Acesso em 09/02/2019. [ Links ]

PRECIADO, Paul. Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacoponográfica. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 127-129. [ Links ]

PRECIADO, Paul Beatriz. Testo yonqui. Madrid: Espasa Calpe S.A., 2008. [ Links ]

REPOLÊS, Sofia Gonçalves; SOUZA, Érica Renata. “Abrindo o guarda-chuva da diversidade: o debate das transmasculinidades”. In: SEMINÁRIO AMÉRICA LATINA: CULTURA, HISTÓRIA E POLÍTICA, 2015, Uberlândia, UFU. Anais… Uberlândia, UFU, 2015. p. 1-14. [ Links ]

RICH, Adrienne. “Heterossexualidade compulsória e existência lésbica”. Bagoas: Estudos Gays: Gêneros e Sexualidades, v. 4, n. 5, p. 17-44, 27/11/2012. Disponível em Disponível em https://periodicos.ufrn.br/bagoas/article/view/2309 . Acesso em 28/03/2020. [ Links ]

SANJURJO, Liliana; CAMARGO, Wagner Xavier de; KEBBE, Victor Hugo. “Etnografias: desafios metodológicos, éticos e políticos”. R@U: Revista de Antropologia da UFSCar, v. 1, n. 8, p. 7-18, jan./jun. 2016. [ Links ]

SANTANA, Bruno. “Pensando as transmasculinidades negras”. In: SOUZA, Henrique R. da Costa; SOUZA, Rolf Malundo (Orgs.). Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades. São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2019. [ Links ]

SPAGGIARI, Enrico; MACHADO, Giancarlo; GIGLIO, Sérgio Settani. “Por uma (nova) agenda de pesquisa sobre práticas esportivas”. In: SPAGGIARI, Enrico; MACHADO, Giancarlo; GIGLIO, Sérgio Settani (Orgs.). Entre jogos e copas: reflexões de uma década esportiva. São Paulo: Intermeios/FAPESP, 2016. p. 9-31. [ Links ]

TOLEDO, Luiz H.; CAMARGO, Wagner X. “Futebol dos futebóis: dissolvendo valências simbólicas de gênero e sexualidade por dentro do futebol”. FuLiA /UFMG, v. 3, p. 93-107, 2019. [ Links ]

VERGUEIRO, Viviane. [Entrevista cedida a] B. Ramírez Guzmán. “Colonialidade e cis-normatividade. Conversando con Viviane Vergueiro”. Iberoamérica Social: Revista-Red de Estudios Sociales, n III, p. 15-21, 2014. Disponível em Disponível em https://iberoamericasocial.com/colonialidade-e-cis-normatividade-conversando-com-viviane-vergueiro/ . Acesso em 10/04/2020. [ Links ]

WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. [ Links ]

1No texto há expressões êmicas, ou seja, proferidas por interlocutores em campo. Por isso que, por mais que eu não use os termos ‘homossexuais’, ‘gays’, ‘lésbicas’, ‘bissexuais’, entre outros, como categorias fixas e identitárias, muitas/os interlocutoras/es de pesquisa as usam constantemente. Portanto, tais nomeações aparecerão no texto assinaladas com aspas simples.

2Fashanu foi um exímio jogador e o único no mundo a se declarar homossexual em plena atividade. A melhor performance foi no clube Norwich City F. C., no qual jogou em 90 partidas e marcou 35 gols, no período de 1978 a 1981. Após a transferência milionária, a rápida ascensão trouxe um declínio inesperado, pois a forte pressão, o baixo rendimento e a suspeita sobre sua sexualidade, causaram-lhe lesões seguidas de transferências para outros clubes. Na Netflix há um documentário recente sobre essa história: Forbidden Games: the Justin Fashanu Story.

3Aqui adoto ‘futebol de homens’ e ‘futebol de mulheres’ e não masculino/feminino, pois entendo que tais adjetivos podem estar ligados a quaisquer corpos/atividades, independentemente das marcas biológicas.

4Ao longo do século XX, a vigência dos regimes de controle da sexualidade por meio dos ‘testes de feminilidade’ de mulheres atletas funcionou como uma forma policialesca (e desigual) de manutenção da ordem masculinista no esporte, principalmente nos Jogos Olímpicos.

5Um ponto em comum subjacente aos discursos às pessoas jogadoras nessa pauta de resistência é a luta contra as discriminações sofridas no chamado ‘país do futebol’, jargão oriundo muito menos de um ‘traço cultural’ específico do que dos discursos (jornalísticos, acadêmicos e populares) que naturalizam tais características como do ‘povo brasileiro’.

6Vale destacar que algumas equipes com as quais falei contam uma história maior de ativismo contra o futebol hegemônico, como a Real Gothic Brasil, de São Paulo. Porém, como me disse um informante, “da longa trajetória de militância, só agora o Real sai do armário”, em referência a participar de um evento com outros grupos do ‘futebol LGBT’ (Diário de campo 1, Evento Pacaembu, agosto 2017).

7Três informações importantes: a) nem todas as pessoas informantes são consideradas aqui; b) figuras públicas concordaram em manter seus nomes de registro, assim como pessoas ‘trans’, por questão de visibilidade, mantiveram nomes sociais e outras pessoas simplesmente não concordaram em se identificar, o que gerou nomes fictícios; c) a pesquisa de campo foi paralisada pela pandemia e este artigo é um recorte da investigação maior.

8Em 2008 foi criado o Comitê Desportivo Gay (CDG), que logo passaria a ser nomeado Comitê Desportivo LGBT Brasileiro, mantendo a sigla CDG Brazil como logo principal. Seu idealizador foi Érico Santos e, apesar de ter lutado uma década para desenvolver ações esportivas para a comunidade, acabou ofuscado pela criação da LiGay e por uma nova lógica do trabalho com pessoas LGBTIQAP+.

9Isso, inclusive, está registrado num vídeo na página do Magia Sport Club, no Youtube.

10No Vlog da Champions LiGay SP 2018, no Youtube encontra-se um vídeo de Sophia Foxx, no qual ela narra desde sua saída de casa até o retorno, toda a viagem para São Paulo, em novembro de 2018, a fim de atuar como drag na terceira edição da Champions LiGay.

11Conceito êmico (do campo), que deve ser explorado e tensionado. Refere-se a um corpo em transição quase finalizada de gênero, que é visualmente percebido por outras pessoas como pertencente ao gênero com o qual se identifica. Como o homem negro trans Bruno Santana em seu trecho de caderno de campo (2019, p. 99-100): “Comecei a ver que as pessoas na rua, principalmente as mulheres cis, ao notar minha presença sentiam-se ameaçadas e passavam a andar mais rápido, segurar suas bolsas, entrar em estabelecimentos, correr. São nesses momentos que consigo perceber que alcancei a tal da passabilidade cis, ou seja, passar despercebido, sem ter o gênero questionado pela sociedade”.

Como citar este artigo de acordo com as normas da revista: CAMARGO, Wagner Xavier de. “Gêneros em disputa: a LiGay Nacional de Futebol Society e o espaço de acontecimento”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 2, e79423, 2021.

Financiamento: Pesquisa de campo no ano de 2019 foi financiada pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 08 de Fevereiro de 2021; Aceito: 04 de Maio de 2021

wxcamargo@gmail.com

Wagner Xavier de Camargo (wxcamargo@gmail.com) é antropólogo e estuda questões de gênero e sexualidades nos esportes. Pós-doutorado em Antropologia Social, pela Universidade Federal de São Carlos. É membro efetivo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e membro-fundador da Rede Brasil-Alemanha de Internacionalização do Ensino Superior (REBRALINT), além de ex-bolsista e colaborador permanente do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (Deutscher Akademischer Austausch Dienst/DAAD).

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons