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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.29 no.2 Florianópolis maio/ago 2021  Epub 01-Maio-2021

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n271823 

Resenhas

O feminismo de volta nos trilhos

Feminism Back on Its Feet

1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, Lábrea, AM, Brasil. 69830-000 - cpi.cla@ifam.edu.br

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. ., Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019. 388 pp.


O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista de Silvia Federici foi publicado originalmente em inglês, em 2012, com o título Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist Struggle. A obra chegou no Brasil em 2019, após um cuidadoso trabalho de tradução realizado pelo Coletivo Sycorax, resultado de um intenso diálogo com a autora. Silvia Federici teve seu trabalho reconhecido no Brasil nos últimos anos, sobretudo a partir da tradução e publicação do livro Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2017). A historiadora, filósofa e militante de tradição feminista autônoma é considerada uma das intelectuais feministas mais importantes da atualidade.

O livro reúne artigos produzidos nas últimas três décadas, resultado da reflexão e pesquisa sobre a natureza do trabalho doméstico, a reprodução social e a luta das mulheres. O volume aborda política, história e teoria feministas, e também a trajetória de ativismo de Federici nos movimentos feminista e antiglobalização. Parafraseando suas próprias palavras, Federici se propõe a colocar o feminismo de volta nos trilhos e, para tanto, assume uma perspectiva de análise radicalmente anticapitalista.

A primeira parte do livro é composta por artigos produzidos nas décadas de 1970 e 1980. Destaca-se a trajetória militante da autora, sobretudo a partir da sua participação na Wages for Housework Campaign (Campanha internacional de salários para o trabalho doméstico) durante a década de 1970 nos Estados Unidos. Essa atuação como militante se torna o pilar da sua principal argumentação teórica desenvolvida no livro: o reconhecimento de que o trabalho doméstico é um trabalho - o trabalho de produzir e reproduzir a força de trabalho -, sendo um fator crucial na definição das relações de exploração das mulheres no capitalismo.

O Wages for Housework Campaign (WfH) foi uma campanha organizada por militantes marxistas e com experiências em movimentos anticolonialistas, de direitos civis, dos movimentos estudantil e operário. O objetivo da organização era exigir do Estado o reconhecimento do trabalho doméstico como uma atividade que deve ser remunerada, essencial para a produção da força de trabalho e, consequentemente, de capital - portanto indispensável para realização de qualquer outra forma de produção. As militantes argumentavam que a não-remuneração naturaliza o trabalho doméstico, motivo pelo qual reivindicavam que essa atividade fosse paga não pelos maridos, mas pelo Estado, como representante do capital coletivo - entendido como o verdadeiro “Homem” que se beneficia do trabalho doméstico e centraliza grande parte das riquezas produzidas pelas mulheres.

A exigência de remuneração para o trabalho doméstico é revolucionária, pois destaca a importância política do salário como um modo de organização da sociedade e, ao mesmo tempo, como organizador de hierarquias estabelecidas dentro da classe trabalhadora. Ao invés de se batalhar por mais trabalho, a exigência era de que as mulheres fossem pagas pelo trabalho que já exerciam. As quatro décadas que separam o WfH à publicação deste livro mostram que o trabalho doméstico e sua desvalorização (não apenas financeira, mas também moral) segue sendo um fardo para as mulheres. Após tantos anos de trabalho feminino fora de casa em regime de tempo integral, não se pode sustentar o pressuposto das feministas da década de 1970 de que o trabalho assalariado libertaria as mulheres. De acordo com a autora, “nós precisamos é de mais tempo e de mais dinheiro, não de mais trabalho” (Silvia FEDERICI, 2019 p. 120).

Federici recusa a ideia de que o trabalho assalariado fora de casa seria uma alternativa feminista para igualdade. Pelo contrário, o caminho seria o de reconhecer que as diversas atividades exercidas pelas mulheres não são atos de amor, mas um trabalho de fato. Ao identificar a trabalhadora doméstica como sujeito social importante nas relações de exploração capitalista, a autora revela a conexão umbilical entre a desvalorização do trabalho reprodutivo e a desvalorização da posição social das mulheres. Federici explica que a luta por salários não é uma luta para entrar na lógica das relações capitalistas, mas o reconhecimento de que as mulheres nunca estiveram fora delas, pois o trabalho doméstico, inevitavelmente, gera dinheiro para o capital. Em suas palavras, “o capital ganhou e ganha dinheiro quando cozinhamos, sorrimos e transamos” (Silvia FEDERICI, 2019 p. 48).

Nesse sentido, o feminismo deve enfrentar a condição material de vida das mulheres, não se restringindo à sua entrada no mercado de trabalho. Não se pode confundir uma necessidade econômica com uma estratégia política por meio da qual, por si só, o trabalho se tornaria um caminho para a libertação. As feministas - tanto liberais, com a ideia de glamourização da carreira, quanto socialistas, com a aspiração da luta de classes e realização de um trabalho produtivo, socialmente útil - equivocam-se ao ignorar que as mulheres trabalham fora porque precisam do dinheiro e não porque consideram isso uma experiência libertadora. Além disso, é notório que ter um emprego não liberta ninguém do trabalho doméstico.

Por esse viés, Federici aponta que um dos principais equívocos dos movimentos feministas tem sido a ênfase no papel da consciência individual no contexto da mudança social. Em outras palavras, é como se a escravidão fosse uma condição mental e a libertação pudesse ser conquistada, simplesmente, por meio de um ato de vontade. Esse pode até ser um caminho trilhado por algumas mulheres; no entanto, para a grande maioria, a libertação por meios individuais, sem condições materiais coletivamente construídas para tal propósito, pode se tornar uma atribuição de culpa. É necessário, então, ter senso de estratégia, levar em consideração as condições materiais da vida das mulheres, recusar a imutabilidade do sistema institucional e econômico; enfim, seria preciso recolocar o feminismo nos trilhos a partir de uma prática anticapitalista.

A segunda metade do livro é composta por artigos publicados entre 1999 e 2011, nos quais Federici amplia sua análise para uma compreensão do impacto do capitalismo global no cotidiano das mulheres. A globalização da economia provocou uma impactante crise na reprodução social da população dos países chamados de Terceiro Mundo. Essa crise se revela através de uma nova divisão internacional do trabalho, que se aproveita da mão de obra feminina dessas regiões como forma de garantir a reprodução da força de trabalho do Primeiro Mundo. Por essa lógica, todas as mulheres, de algum modo, estão sendo assimiladas à economia mundial, exercendo dupla função produtiva: produzindo trabalhadores (para as economias locais e os países industrializados) e mercadorias baratas destinadas à exportação.

A expansão do capitalismo neoliberal tem como objetivo essa integração massiva operada a partir de uma destruição de qualquer atividade econômica não orientada para o mercado, como ocorre com a agricultura de subsistência, por exemplo. O desmantelamento contínuo dos sistemas de propriedade comunal de terras, a privatização de terras e a comercialização de recursos naturais são estratégias do capital para desvalorização do trabalho reprodutivo diante da expansão das relações monetárias. A destruição de qualquer atividade econômica não subordinada à lógica da acumulação capitalista é necessariamente um processo violento e afeta sobretudo as mulheres. A globalização tem provocado a “feminização da pobreza” (FEDERICI, 2019, p. 137).

Federici é enfática ao afirmar que qualquer projeto feminista que não leve em conta esse cenário estará condenado à irrelevância e à cooptação. Desse modo, revela os limites de uma estratégia política feminista que não situa necessariamente a luta contra a discriminação sexual em um quadro anticapitalista. O desenvolvimento capitalista continua a produzir pobreza, doenças e guerras e, para se perpetuar, precisa criar dentro do proletariado divisões que bloqueiam a construção de uma sociedade livre de exploração. As políticas feministas devem, portanto, subverter a nova divisão internacional do trabalho bem como o projeto de globalização do qual ela se origina.

Vale ressaltar que Federici faz uma crítica contundente à ONU - Organização das Nações Unidas -, pois entende que sua atuação tem colonizado o movimento feminista. No capítulo intitulado “Rumo a Pequim: como a ONU colonizou o movimento feminista”, de 2000, afirma que as intervenções da ONU têm limitado o potencial revolucionário dos movimentos de mulheres, de maneira a assegurar que suas pautas sejam adaptadas aos objetivos do capital internacional. Em seu entendimento, o feminismo patrocinado pela ONU não serviu para a libertação das mulheres, mas, pelo contrário, despolitizou os movimentos de mulheres, desconectando-o dos movimentos de massa e favorecendo sua desarticulação frente à expansão das relações capitalistas. Um dos exemplos elaborados pela autora está no fato de que a ONU redefiniu a questão da pobreza como um problema de falta de capital, insistindo na ideia de “créditos” e de uma reforma agrária legal, conformada com as políticas do Banco Mundial de privatização de terra. Assim, descartou-se em definitivo a ideia de redistribuição de terras, verdadeiro objetivo da luta anticolonialista (FEDERICI, 2019, p. 249).

Para reconstruir o feminismo, as políticas de movimentos feministas devem exigir a devolução das terras expropriadas, o boicote ao pagamento da dívida externa e o fim da privatização da terra. Além disso, a reivindicação por igualdade deve estar articulada a uma crítica sobre o capital internacional e seu papel contemporâneo de recolonização dos países do Sul. É importante que o movimento feminista recuse uma existência baseada no sofrimento dos outros e trabalhe para a reconstrução de comuns. A ideia de tornar comum os meios materiais de reprodução é a construção de coalização, laços de cooperação e coletivização que permitem uma inversão da lógica do capital em mercantilizar tudo - e todos/as. Tornar comum é resistir, de forma autônoma, para que a nossa vida e de nossas comunidades não sejam engolidas pelo capitalismo e que possamos estabelecer relações que desafiem a lógica violenta e colonialista do mercado.

O ponto zero da revolução... se configura como uma contribuição relevante aos estudos de gênero, oferecendo um inestimável aporte teórico para os temas de corpo, sexo, reprodução social, trabalho doméstico, feminismo institucional e relações do feminismo com o Estado. Federici agita o debate feminista com contribuições inovadoras, por exemplo, quando aponta que a inserção no mercado de trabalho não transformou verdadeiramente as condições de vida das mulheres. A autora descontrói paradoxos teóricos e rompe com discursos militantes conciliadores e reformistas. Ao colocar o feminismo de volta nos trilhos, conclama que a luta política feminista será anticapitalista, ou não será.

Referência

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. Trad. de Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2019. [ Links ]

Como citar este artigo de acordo com as normas da revista: REBELO, Francine. “O feminismo de volta nos trilhos”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 2, e71823, 2021.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 26 de Fevereiro de 2020; Revisado: 27 de Maio de 2020; Aceito: 09 de Julho de 2020

fprebelo@yahoo.com.br

Francine Rebelo (fprebelo@yahoo.com.br) é professora de Ciências Sociais do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM), campus Lábrea-AM. É mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Tem experiência em: relações de gênero, mulheres indígenas, mulheres caminhoneiras e feminismo indígena. É membro efetivo da Associação Brasileira de Antropologia desde 2018.

Contribuição de autoria: Não se aplica

Conflito de interesses: Não se aplica

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