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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.29 no.2 Florianópolis maio/ago 2021  Epub 01-Maio-2021

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2021v29n272289 

Resenhas

Da tradução como pagamento de uma dívida histórica: Trotula di Ruggiero, pesquisadora e médica medieval

Translation as Payment of a Historic Debt: Trotula di Ruggiero, Researcher and Medieval Doctor

Willian Henrique Cândido Moura1 
http://orcid.org/0000-0002-2675-6880

Virginia Castro Boggio1 
http://orcid.org/0000-0001-9209-6190

1Universidade Federal de Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução, Florianópolis, SC, Brasil. 88040-900 - secpget@gmail.com

RUGGIERO, Trotula di. Sobre as doenças das mulheres. SIMONI, Karine; DEPLAGNE, Luciana Calado. Calado, Alder Ferreira; Simoni, Karine. Tubarão: Copiart, Florianópolis: UFSC/DLLE/PGET, 2018. 184 p.p.


Por pudor e pela fragilidade da sua condição, elas não ousam revelar ao médico as aflições das suas enfermidades. Por tal motivo, eu, tendo compaixão pela sua desventura e particularmente impulsionada pela solicitação de uma certa senhora, comecei a ocupar-me diligentemente das doenças que muito frequentemente molestam o sexo feminino. (Trotula di RUGGIERO, 2018, p. 37).

Motivadas pela falta de pesquisa sobre mulheres na história da medicina, Karine Simoni e Luciana Calado Deplagne, as organizadoras do livro Sobre as doenças das mulheres, resgatam o tratado de medicina sobre a mulher escrito por Trotula di Ruggiero, em Salerno, no século XI. Esse tratado, considerado o marco da ginecologia e obstetrícia nas ciências médicas, ganhou sua versão bilíngue latim-português, a partir da iniciativa de um grupo de pesquisadoras e tradutoras de textos de autoria de mulheres da Idade Média. Podemos considerar o livro em três partes maiores: a primeira delas, assinada pelas organizadoras, versa sobre o processo de pesquisa, organização e tradução da obra; a segunda, é dedicada propriamente à obra de Trotula di Ruggiero em latim e em português; e a última, oferece às leitoras um glossário bilíngue português-latim das plantas medicinais utilizadas por Trotula.

Na primeira parte, Karine Simoni e Luciana Calado Deplagne fazem um levantamento histórico acerca do período correspondente à vida e à obra de Trotula, elencando questões de gênero, como o papel da mulher na época em que Trotula viveu e propôs seus tratados, além do silenciamento que seus escritos sofreram a partir dos interesses da igreja católica. Em decorrência disso, pouco se sabe sobre a autora. As organizadoras relatam que viveu no século XI, Trotula foi uma médica e professora de origem aristocrata, casou-se com um médico e teve dois filhos, que também seguiram a mesma carreira. Atuou na Escola de Medicina de Salerno, referência da época na Europa e fora dela. Conforme argumentam, “No período em que Trotula desempenhou suas atividades, a presença de mulheres na prática e no estudo da medicina não era, portanto, absoluto privilégio dos homens. A mulher, ainda não lesionada pelos discursos misóginos, age de maneira ativa na sociedade.” (Karine SIMONI; Luciana Calado DEPLAGNE, 2018, p. 20). Inclusive, o fato de ser mulher, proporcionou que Trotula tivesse mais facilidade para lidar com “doenças ditas ‘femininas’” (SIMONI; DEPLAGNE, 2018, p. 27), pois suas pacientes tinham mais liberdade e familiaridade em explicar para ela os seus problemas, como expõem as organizadoras.

No “Prefácio” do livro, Cláudia Costa Brochado destaca que “há uma dívida histórica para com a memória de Trotula, [...] que talvez seja um dos maiores exemplos da tentativa de silenciamento das vozes femininas mediante recursos dos mais variados em todos os tempos.” (Cláudia Costa BROCHADO, 2018, p. 15). Nesse sentido, as organizadoras trazem vários exemplos desse silenciamento, entre eles o caso de Kaspar Wolf, editor que, em 1566, publicou o livro de Trotula atribuindo sua autoria a Eros Juliae, um escravo liberto romano, o que nos permite enfatizar o caráter patriarcal e opressor da época.

Podemos relacionar esse exemplo com as reflexões de Olga Castro acerca da escassez de obras de autoria de mulheres. Realizando uma pesquisa historiográfica, essa autora discute que “durante longos períodos históricos, a escrita foi considerada uma atividade produtiva/masculina, o que impediu o acesso de muitas mulheres ao mundo literário como autoras.” (Olga CASTRO, 2017, p. 227). Contudo, mesmo que na maioria das vezes sua autoria fosse excluída, com a democratização dos feminismos, algumas mulheres puderam publicar seus escritos (CASTRO, 2017), o que, a posteriori, observamos não ter sido o caso de Trotula.

Como consequência do descrédito gradativo das mulheres acerca da produção intelectual, o qual foi promovido pela Igreja Católica, sobretudo a partir do final do século XI, até o século XX, médicos e estudiosos da medicina não admitiam que o tratado pudesse ter sido escrito por uma mulher, afirmando que Trotula di Ruggiero era um “personagem fantástico, imaginário.” (SIMONI; DEPLAGNE, 2018, p. 30). A Reforma Gregoriana, no século XI, imprimiu à mulher o caráter de “incapaz e inferior perante o homem” (SIMONI; DEPLAGNE, 2018, p. 29), o que desencadeou a ideia da mulher como a encarnação do mal e bruxa para o Tribunal da Inquisição no século XV, corpo impuro, instrumento e receptáculo de vícios, de acordo com a concepção religiosa da época. (SIMONI; DEPLAGNE, 2018). O silenciamento da médica-autora perpetuou-se até 1930, quando Kate Hurd-Mead, uma obstetra feminista, revelou a identidade de Trotula comprovando a veracidade e a autenticidade de sua obra (SIMONI; DEPLAGNE, 2018).

As organizadoras enfatizam que parte desse apagamento ocorre devido à falta de traduções que creditem Trotula di Ruggiero como autora de seus tratados. A perda do nome de Trotula na autoria dos seus textos não é uma casualidade, como comprovam os Estudos Feministas de Tradução: “Muitas obras de escritoras estão perdidas, isto é, existem muitas autoras que não foram traduzidas apesar de terem escrito obras relevantes que, segundo os feminismos, teriam sido traduzidas se tivessem sido escritas por um autor.” (CASTRO, 2017, p. 229). A partir de 1930, a obra de Trotula foi publicada e traduzida para várias línguas e em vários países da Europa. No entanto, como explicam Susan Bassnett e André Lefevere (1990 apud CASTRO, 2017), a reescrita de um texto - entendendo reescrita como tradução, adaptação, publicação - não depende de fatores aleatórios como o gosto literário de uma certa cultura, mas de interesses econômicos, políticos ou ideológicos dos setores dominantes da sociedade que recebe o texto reescrito.

Nesse sentido, Olga Castro (2017) afirma que dentre as muitas contribuições dos feminismos às diferentes áreas do conhecimento, destaca-se o questionamento do caráter supostamente neutro e objetivo desses saberes, revelando que atendem em geral a interesses patriarcais. Novos enfoques, como a virada cultural dos Estudos da Tradução, propõem um foco no processo da tradução, e não no produto, a partir da compreensão de que o trabalho tradutório não é uma transferência linguística dos sentidos de um texto original, transmissão fiel das ideias do autor ou da autora, mas uma transferência cultural. Dessa forma, o tradutor e a tradutora não são mais um elemento neutro e objetivo, senão um/a agente sujeito/a a negociações dentro do sistema sociocultural no qual o texto é produzido e consumido. Sendo assim, acreditamos que a dívida com a memória de Trotula vem sendo quitada a partir das traduções de sua obra para diversos idiomas, dentre os quais mencionamos o inglês, o italiano, o francês, e, agora, o português.

A segunda parte do livro é uma compilação dos escritos mais conhecidos de Trotula di Ruggiero, De passionibus mulierum ante, in e post partum (Sobre as doenças das mulheres, antes, durante e depois do parto) e De ornatu mulierum (Sobre a beleza das mulheres). Sob o título de De passionibus mulierum (Sobre as doenças das mulheres), o livro que aqui apresentamos é dividido em sessenta e um capítulos escritos por Trotula acrescidos de dois capítulos complementares. Encontramos nessas seções uma descrição de sintomas e cuidados concernentes à ginecologia medieval, expressando as preocupações e as indicações acerca dos tratamentos de saúde da mulher da época, em que a médica apresenta problemas e relatos dos mais variados tipos, desde o excesso ou a falta de menstruação, até questões como dores uterinas e na vulva, cuidados com o bebê e aborto. O tratado de di Ruggiero tornou-se um marco para a história da ginecologia e obstetrícia e, com esta edição em língua portuguesa, permite às leitoras conhecerem um pouco mais acerca das pesquisas sobre ginecologia desenvolvidas por Trotula, médica e pesquisadora da medicina durante a Idade Média.

A parte final do livro, “Glossário das plantas medicinais utilizadas por Trotula”, foi elaborada pelas organizadoras e tradutoras a partir da tradução latim-português. A organização desses verbetes é uma ferramenta que pode ser utilizada por pesquisadoras e pesquisadores, tradutores e tradutoras que necessitem identificar ou compreender melhor os nomes e os usos das plantas mencionadas (em português e/ou em latim), pois além da tradução do nome da planta há a indicação do capítulo em que o termo foi utilizado por Trotula em suas pesquisas, permitindo compreender melhor seu contexto de uso para a época.

A tradução do livro de Trotula para o português brasileiro é uma contribuição importante para os Estudos Feministas de Tradução, campo ainda com poucas pesquisas no Brasil, mas que tem se tornado, como apontam Naylane Araújo Matos, Beatriz Regina Guimarães Barboza e Sheila Cristina Santos, “cada vez mais consolidado nos Estudos da Tradução e reivindicado a valorização e presença do trabalho de mulheres, tanto no campo tradutório quanto tradutológico.” (Naylane Araújo MATOS; Beatriz Regina Guimarães BARBOZA; Sheila Cristina SANTOS, 2018, p. 44). Além disso, compreendemos que, sobretudo, para além dos aspectos paratextuais e tradutórios, a leitura do livro contribui para pesquisadoras e pesquisadores de cultura e história das mulheres medievais, áreas que historicamente sofreram com os apagamentos de obras de autoria de mulheres, como pudemos constatar com o tratado de Trotula di Ruggiero.

Referências

BROCHADO, Cláudia Costa. “Prefácio”. In: RUGGIERO, Trotula di. Sobre as doenças das mulheres. SIMONI, Karine; DEPLAGNE, Luciana Calado (Org.). Trad. de Alder Ferreira Calado e Karine Simoni. Tubarão: Copiart; Florianópolis: UFSC/DLLE/PGET, 2018. p. 15-17. [ Links ]

CASTRO, Olga. “(Re)examinando horizontes nos estudos feministas de tradução: em direção a uma terceira onda?”. Trad. de Beatriz Regina Guimarães Barboza. TradTerm, São Paulo, v. 29, p. 216-250, 2017. Disponível em Disponível em http://www.revistas.usp.br/tradterm/article/view/134563 . Acesso em 08/03/2020. [ Links ]

MATOS, Naylane Araújo; BARBOZA, Beatriz Regina Guimarães; SANTOS, Sheila Cristina. “Estudos feministas de tradução: um recorte de pesquisas do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (PGET-UFSC)”. Belas Infiéis, Brasília, v. 7, n. 2, p. 43-61, 2018. Disponível em Disponível em https://periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/article/view/15266 . Acesso em 14/02/2020. [ Links ]

RUGGIERO, Trotula di. Sobre as doenças das mulheres. SIMONI, Karine; DEPLAGNE, Luciana Calado (Org.). Trad. de Alder Ferreira Calado e Karine Simoni. Tubarão: Copiart; Florianópolis: UFSC/DLLE/PGET, 2018. [ Links ]

SIMONI, Karine ; DEPLAGNE, Luciana Calado. “Trotula di Ruggiero: a mulher que zelava pelas mulheres”. In: RUGGIERO, Trotula di. Sobre as doenças das mulheres. SIMONI, Karine; DEPLAGNE, Luciana Calado (Org.). Trad. de Alder Ferreira Calado e Karine Simoni. Tubarão: Copiart; Florianópolis: UFSC/DLLE/PGET, 2018. p. 19-33. [ Links ]

Como citar este artigo de acordo com as normas da revista: MOURA, Willian Henrique Cândido; CASTRO BOGGIO, Virginia. “Da tradução como pagamento de uma dívida histórica: Trotula di Ruggiero, pesquisadora e médica medieval”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 2, e72289, 2021.

Financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica.

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica.

Recebido: 20 de Março de 2020; Revisado: 27 de Maio de 2020; Aceito: 04 de Julho de 2020

willianhenry_@hotmail.com

virgiboggio@gmail.com

Willian Henrique Cândido Moura (willianhenry_@hotmail.com) é doutorando e mestre em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (PGET-UFSC). É graduado em Letras: Português e Espanhol pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Desenvolve pesquisas sobre os Estudos da Tradução Audiovisual, analisando a manipulação ideológica e as relações de poder na tradução cinematográfica. É tradutor, editor e revisor de textos.

Virginia Castro Boggio (virgiboggio@gmail.com) é doutoranda e mestra em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (PGET-UFSC). É graduada em Letras: Espanhol. Desenvolve pesquisas sobre os Estudos Feministas de Tradução e tradução literária de autoria de mulheres. É tradutora no par linguístico português-espanhol.

Contribuição de autoria: Willian Henrique Cândido Moura - concepção, coleta de dados e análise de dados, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados. Virginia Castro Boggio - coleta de dados e análise de dados, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados.

Conflito de interesses: Não se aplica

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